Ronaldo Carmona, 35 anos, é graduado em ciências sociais e mestrando
em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP), onde
desenvolve pesquisa na área de Geopolítica e pensamento estratégico.
Foi dirigente nacional da União da Juventude Socialista (UJS) por quase
uma década e é militante do PCdoB há cerca de duas décadas. Atualmente
desenvolve tarefas junto à Comissão de Relações Internacionais do
Partido e é Diretor de Estudos e Pesquisas do Cebrapaz. É autor do
livreto “Transição ao socialismo e questão nacional na África do Sul, Índia e Rússia” (Editora
Anita Garibaldi, 2009) e de mais de uma dezena de artigos na Revista
Princípios, a maior parte deles sobre a América Latina.
Ronaldo, 60 anos de desenvolvimentismo se esgotaram, mas o
país avançou. No final dos anos 1950 e inícios dos 60, chegamos à Bossa
Nova, ao cinema novo, copa mundial de futebol, o CPC e o teatro levando
o povo ao proscênio, posteriormente a MPB… Enfim, o Brasil “bombou” no
mundo naquele tempo. Novas reflexões estratégicas surgiram na esquerda,
no seio do movimento das reformas de base e da “revolução brasileira”.
Isso foi barrado pela dependência, agora sob o domínio neoliberal.
Parece que vivemos um novo ciclo de “redescoberta” do Brasil. Como você
vê a questão?
A projeção internacional do Brasil, antes de mais nada, deriva
de suas enormes potencialidades nacionais, grande parte delas todavia
não decantadas.
As potencialidades brasileiras, em primeiro lugar, são objetivas.
Temos um território imenso com riquezas por toda a parte – da Amazônia
ao pré-sal. Num contexto de escassez de água e de terras agricultáveis
no mundo – boa parte em função das mudanças climáticas –, diz a
Embrapa, temos possibilidade de dobrar a produção de alimentos sem
derrubar uma única árvore.
As potencialidades brasileiras têm a ver também, fundamentalmente,
com a possibilidade de projetar poder, fruto de nossa posição
geopolítica e estratégica. Não há qualquer ameaça à nossa soberania e
integridade territorial e nacional nem em nossa vizinhança, nem
defronte nosso território. O risco vem do norte, de renovadas
ameaças do imperialismo norte-americano que se intensificarão no
próximo período, dadas algumas crises de escassez que passará o mundo –
sobretudo de energia, mas também de alimentos, de água e de matérias
primas em geral.
Penso ser fundamental a reorientação estratégica das Forças Armadas
brasileiras, em especial realocando tropas e equipamentos na Amazônia,
dada a presença norte-americana no entorno de nossas fronteiras e
diante das ameaças defronte ao nosso litoral, não de nossos irmãos de
sangue africanos do outro lado do Atlântico, mas nas inúmeras bases da
Otan diante de nossa costa marítima.
Enfim, como disse, as potencialidades brasileiras são, antes de mais
nada, objetivas. Como sempre lembra Samuel Pinheiro Guimarães, se
fizermos uma lista dos dez países com maior PIB, população e
território, três nações aparecerão nas três listas: EUA, China e Brasil.
Por certo nossa população ainda é pequena, tendo em vista nosso
território. No futuro, um governo de orientação nacionalista, com
projeto de realização plena da nação pelo socialismo, deverá incentivar
a natalidade como vetor estratégico da nação – como, aliás, fazem
alguns países europeus hoje. Precisamos no mínimo dobrar a nossa
população em uma ou duas gerações para ocupar esse vasto território.
Claro que num quadro de desigualdades históricas acumuladas, isso pode
parecer irrealista, mas num quadro de um governo que tenha visão
estratégica, de construir um país forte e próspero para as próximas
gerações, essa é uma questão inevitável.
Precisamos seguir incentivando a propagação dessa etnia nova, mulata
e mestiça, grande vantagem civilizacional dos brasileiros, que nos
permite ser um povo aberto, criativo, flexível, conciliador,
assimilador, “antropofágico” e “moedor” de diferenças. Enquanto outros
povos demonstram patriotismo como fator de exclusão e de ressaltamento
de diferenças e contradições com outros povos, o nacionalismo
brasileiro mostra ao mundo uma civilização que se afirma em harmonia e
cooperação com outros povos do mundo. Como dizia o Sergio Buarque em Raízes do Brasil,
trazemos no nosso sangue mouro e português a interação há centenas de
anos, com outros povos. Nesse sentido, o protagonismo do Brasil no
mundo é benigno, não busca subjugar ou dominar outros povos e nações.
Ronaldo, você lançou recentemente um pequeno livro abordando
a questão nacional nas formulações programáticas nos partidos
comunistas da África do Sul, Índia e Rússia. Como surgiu essa ideia?
Como você chegou a constituir um pensamento tendo por base a questão
nacional?
Este trabalho é, na verdade, um longo artigo que se
transformou num livreto, sendo “um capítulo” de uma pesquisa maior que
busca desenvolver e demonstrar o curso do que tenho chamado de
“nacionalização” do marxismo.
Sobre este trabalho, especificamente, duas questões. Penso que após
a crise do marxismo, com os episódios ligados ao fim da URSS, houve um
movimento crescente de “nacionalização do marxismo”. Começou a
perceber-se, fruto do balanço das primeiras experiências, que princípios,
justamente por serem princípios, não são um dicionário completo. Que
não há modelo único. Mais que isso, para além de princípios básicos do
marxismo – essencialmente, poder político aos trabalhadores e crescente
predomínio da propriedade social nos meios de produção – o caminho é
nacional, e mais que isso, é preciso beber do pensamento avançado
produzido no âmbito daquela formação social, onde o socialismo se
propõe realizar.
Segundo que, pela observação dos movimentos de renovação e
desenvolvimento do marxismo, percebo que muito pouco vem dos países
centrais, nomeadamente da Europa. Já se foi o tempo do “marxismo
eurocêntrico”. Os germes de um novo protagonismo do marxismo, não tenho
dúvida, vêm do Sul do mundo, especialmente de grandes países em desenvolvimento, que acumulam massa crítica nacional e avançada.
Outros “quatro capítulos” dessa pesquisa maior incluem: (1) análise
da trajetória do nacional nas formulações marxista, em Marx, em Lênin e
no seu desenvolvimento – penso que há um curso crescente de assimilação
do nacional pelo marxismo; (2) a centralidade da questão da Nação nos
países que persistiram na orientação socialista após os episódios de
1989-1991, nomeadamente China, Coréia, Vietnã e Cuba; (3) a
centralidade do problema nacional nas proclamações ao socialismo na
América Latina – os processos mais radicais aqui são, antes de tudo,
patrióticos e desenvolvimentistas. Por fim (4), a relação entre
marxismo e formação social brasileira. Penso, pelas razões expostas
acima, que os brasileiros têm uma propensão maior à vida coletiva e à
construção do que chamaríamos de “sociedade da prosperidade”. Aqui, o
liberalismo nunca vingou de fato, é estranho à nossa formação social.
Nação e socialismo, internacionalismo e patriotismo,
particular concreto e universal abstrato… O marxismo nem sempre lidou
bem com essa dialética. O movimento comunista, que você acompanha
sistematicamente, parece pouco convergente nessa direção. Então
pergunto: do ponto de vista teórico, que autores contemporâneos você
tem acompanhado que têm por base uma compreensão avançada dessa relação?
Mais que autores, noto na reflexão dos Partidos – em especial
de grandes Partidos Comunistas de massas, de grandes países em
desenvolvimento – um curso de crescente assimilação da chamada questão
nacional.
A grande derrota estratégica vivida pelo marxismo nos episódio de
1989-1991 força uma profunda análise, crítica e autocrítica, dos
comunistas em todo o mundo. Acho que passadas duas décadas desses
episódios, os Partidos comunistas tiveram balanços diferenciados;
alguns Partidos – louváveis exceções à parte –, sobretudo na velha
Europa, se fecharam, se apegaram aos princípios, num esquematismo
dogmático típico dos períodos de defensiva estratégica. Mas eu diria
que a maioria dos Partidos Comunistas, sobretudo os grandes PC’s de
massas, passaram a ver uma confluência, uma identidade entre o marxismo
e a questão nacional. O 10º Encontro de Partidos Comunistas, realizado
aqui no ano passado demonstrou isso, inclusive em suas resoluções.
Mas também é preciso dizer: no curso da construção de um arcabouço
teórico renovado, chamado por muitos de “socialismo do século XXI” tem
aparecido alguns surrados “contrabandos”, ainda que de roupagem nova,
que remetam ao “socialismo utópico” pré-marxista.
Um exemplo forte: alguns intelectuais na América Latina apontam o
que chamam de “mercantilismo” e “sociedade do consumo” como grandes
inimigos do socialismo. Isso é uma aberração do ponto de vista dos
fundamentos do marxismo. Só numa sociedade de prosperidade se realiza o
socialismo. Em especial para os brasileiros, sociedade da fartura e
abundância, cuja grande aspiração nacional segue sendo o
desenvolvimento, essa pregação da pobreza como socialista,
definitivamente, não cola.
A esquerda tem retomado a questão nacional de várias formas. Estrategicamente, como você vê a esquerda brasileira nesse sentido?
Historicamente há uma relativa subestimação da questão
nacional na esquerda brasileira. Isso tem a ver com uma tensão
existente ao longo do século XX entre questão nacional e questão
democrática. O vendável modernizante emergido da Revolução de 1930 e os
períodos de auge do nacional-desenvolvimentismo – nomeadamente o
segundo governo Vargas, o período JK e os II PND com Geisel –
coexistiram com tensões e restrições à democracia.
No caso da esquerda em geral, muito especialmente o PT, vejo uma
evolução importante, fruto da própria interação com a realidade
objetiva. O PT surge nos anos 80 como uma força anti-Estado e
anti-nacionalista. Chega a fazer enormes besteiras, fruto de um
infantilismo esquerdista, como foi a não assinatura da Constituição de
1988. Mais recentemente, entretanto, no governo, à frente de
responsabilidade objetivas com a Nação, passa a enxergar nossas enormes
potencialidades e, assim, a ver com outros olhos a questão nacional.
Os comunistas, a despeito das permanentes tensões no Brasil com a
questão democrática, sempre foram patriotas de primeira hora. Aliás,
nas vezes em que se situou do lado errado, em oposição à Nação – muitas
vezes, forçados a esta situação em contextos de forte repressão, mas
outras vezes por erros de orientação política, em flertes com o
simplismo binário do esquerdismo –, se isolou das massas e saiu do
centro da luta política.
O novo Programa Socialista do PCdoB, que deverá ser aprovado nos
próximos dias pelo 12º Congresso, entrelaça profundamente Nação e
socialismo. Penso ser uma grande conquista teórica dos comunistas
brasileiros e reflexo de um fenômeno geral no que diz respeito ao
desenvolvimento e ao curso do marxismo no mundo.
Mas a esquerda no Brasil, pode-se dizer, opera hoje uma mudança
qualitativa na percepção sobre a Nação e a nacionalidade. Visões
derrotistas e negativistas acerca da trajetória dos brasileiros – que
sempre prosperaram na esquerda –, vão sendo superadas aos poucos. Isso
abre grandes e novas perspectivas para a luta pelo socialismo à brasileira.
Na América Latina, particularmente do Sul, que panorama você
traça? Esse pensamento está bem presente na esquerda brasileira e
latino-americana?
A Revolução bolivariana, antes de ser do “século XXI” é
bolivariana, em alusão ao grande patriota Simon Bolívar. O nacionalista
Eloy Alfaro é o inspirador da “Revolucion Ciudadana” no Equador, também
chamada por Rafael Correa de “Revolução alfarista”. Mesmo na Bolívia,
onde a questão nacional é absoltamente diferente da nossa, tendo em
vista ser um país multicultural, o inspirador da Revolução é Tupac
Katari, líder indígena anticolonialista, símbolo da nação aimara. A
esquerda argentina busca se livrar das tensões com Juan Domingos Perón,
o maior de todos argentinos. Os paraguaios inspiram-se no Doutor
Francia, humanista e patriota paraguaio. Por aqui, figuras como o
patriarca José Bonifácio e o líder da modernização brasileira, o
presidente Getulio Vargas, passam a ser valorizados como nunca.
Para além dos valores e inspiradores, objetivamente, mesmo os
processos mais radicais na América Latina, impulsionam políticas
nacionalistas, essencialmente de recuperação dos bens estratégicos da
nação, como base para impulsionar um ciclo de desenvolvimento e
prosperidade.
Quanto isso está no centro do esforço de retomada de uma nova onda de lutas pelo socialismo?
O entrelaçamento entre socialismo e Nação estará na base da
retomada da luta pela transformação social neste século XXI. Nação como
motor que segue movendo as aspirações coletivas de um povo; socialismo
como elemento universal, que inclusive permite a realização plena e
efetiva da Nação.
A China, que desequilibra o jogo de forças no mundo de hoje, dizem
seus dirigentes, foi salva pelo socialismo, sem o qual a nação teria se
esfacelado, se dividido. Foi a “redenção” da Nação, não custam de
repetir os lideres chineses.
A falência da utopia liberal da globalização e a crise do
capitalismo que vivemos, tem seu contraponto mais forte na reemergência
do Estado nacional. Ou seja, de um ambiente geral mais favorável às
ideias mais avançadas.
Também no caso do Brasil, no próximo período, se alargará o campo
dos que perceberão que a plena realização da Nação passa pela transição
ao socialismo. O PCdoB dará uma grande contribuição a isso, penso, com
o novo Programa Socialista.