Daniel Bensaid: a atualidade de um comunismo radical
A crise, social,
econômica, ecológica e moral de um capitalismo que não retrocede diante
de seus próprios limites e cuja desmedida e irracionalidade crescentes
ameaçam ao mesmo tempo a espécie humana e o planeta, volta a colocar na
ordem do dia “a atualidade de um comunismo radical”, invocado por
Benjamin diante do aumento dos perigos do período entre guerras. Em seu
último artigo, Daniel Bensaïd, falecido terça-feira, em Paris, analisa
a atualidade do Manfiesto Comunista.
Daniel Bensaïd
Gravemente
enfermo há vários meses, morreu terça-feira (12), em Paris, Daniel
Bensaïd. Militante de esquerda desde a adolescência, Bensaïd foi um dos
fundadores da Jeunesse Communiste Révolutionnaire (JCR), em 1966, e
participou ativamente do movimento de Maio de 68, antes de participar
da criação da Ligue Communiste (LCR), em 1969. Durante muitos anos, foi
dirigente da LCR e da Quarta Internacional. Em 2009, engajou-se na
criação de um novo partido de esquerda na França, o NPA (Novo Partido
Anti-Capitalista).
Professor de Filosofia na Universidade de
Paris VIII, Bensaid publicou diversos livros de filosofia e debate
político, ajudou a construir as revistas Critique Communiste e
ContreTemps e participou ativamente da criação da Fundação Louise
Michel, defendendo nestes espaços um marxismo aberto e não dogmático.
Também foi um participante ativo do processo de construção do Fórum
Social Mundial.
Publicamos a seguir o último texto de Daniel
Bensaïd, intitulado “Potências do comunismo”, uma análise sobre a
atualidade do Manifesto Comunista:
Potências do comunismo
Em
um artigo de 1843 sobre “os progressos da reforma social no
continente”, o jovem Engels (20 anos) via o comunismo como “uma
conclusão necessária que se é claramente obrigado a tirar a partir das
condições gerais da civilização moderna”. Um comunismo lógico em
resumo, produto da revolução de 1830, na qual os operários “voltaram às
fontes vivas e ao estudo da grande revolução e se apoderaram vivamente
do comunismo de Babeuf”. Para o jovem Marx, em troca, este comunismo
não era ainda mais do que “uma abstração dogmática”, uma “manifestação
original do princípio do humanismo”. O proletariado nascente havia “se
jogado nos braços dos doutrinários de sua emancipação”, das “seitas
socialistas”, e dos espíritos confusos que “divagam como humanistas”
sobre “o milênio da fraternidade universal” como “abolição imaginária
das relações de classe”.
Antes de 1848, este comunismo
espectral, sem programa preciso, estava presente na atmosfera do tempo
sob as formas “pouco polidas” das seitas igualitárias ou dos sonhos
icarianos. No entanto, já então a superação do ateísmo abstrato
implicava um novo materialismo social que não era outra coisa que o
comunismo. “Assim como o ateísmo, enquanto negação de Deus, é o
desenvolvimento do humanismo teórico, também o comunismo, enquanto
negação da propriedade privada, é a reivindicação da vida humana
verdadeira”. Longe de todo anticlericalismo vulgar, este comunismo era
“o desenvolvimento de um humanismo prático”, para o qual não se tratava
já só de combater a alienação religiosa, mas sim a alienação e a
miséria sociais reais de onde nasce a necessidade da religião.
Da
experiência fundadora de 1848 - ano que marca a primeira publicação do
Manifesto Comunista, de Marx - à experiência da Comuna de Paris (1871),
o “movimento real” que busca abolir a ordem estabelecida tomou forma e
também força, dissipando as “loucuras sectárias” de então e expondo ao
ridículo “o tom de oráculo da infalibilidade científica”. Dito de outra
forma, o comunismo, que foi primeiramente mais um estado de espírito ou
um, por assim dizer, “comunismo filosófico”, encontrava finalmente a
sua forma de expressão política. Em um quarto de século, concretizou-se
a sua mudança: de seus modos iniciais de aparição, de caráter
filosófico e utópico, à sua forma política, por fim encontrada: a da
emancipação.
1. As palavras da emancipação não saíram incólumes
das tormentas do século passado. Pode-se dizer delas, como dos animais
da fábula, que não morreram todas, mas que todas foram gravemente
feridas. “Socialismo”, “revolução”, “anarquia” não estão em situação
muito melhor que “comunismo”. O socialismo implicou-se no assassinato
de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, nas guerras coloniais e
colaborações governamentais até o ponto de perder todo o conteúdo à
medida que ganhava em extensão. Uma metódica campanha ideológica
conseguiu identificar, aos olhos de muitos, a revolução com a violência
e o terror. Mas, de todas as palavras ontem portadoras de grandes
promessas e sonhos de futuro, a do comunismo foi a que sofreu maior
dano, por causa de sua captura pela razão burocrática do Estado e sua
submissão a um empreendimento totalitário. Resta saber se, entre todas
essas palavras feridas, há algumas que vale a pena reparar e pôr de
novo em movimento.
2. É necessário para isso pensar o que
ocorreu com o comunismo do século XX. A palavra e a coisa não podem
ficar fora do tempo das provas históricas a que foram submetidos. O uso
massivo do título “comunista” para designar o Estado liberal
autoritário chinês pesará muito mais durante longo tempo, aos olhos da
grande maioria, do que os frágeis brotos teóricos e experimentais de
uma hipótese comunista. A tentação de subtrair um inventário histórico
crítico conduziria a reduzir a idéia comunista a “invariantes”
atemporais, a fazer dela um sinônimo das idéias indeterminadas de
justiça ou de emancipação, e não a forma específica da emancipação na
época da dominação capitalista. A palavra perde então em precisão
política o que ganha em extensão ética ou filosófica. Uma das questões
cruciais é saber se o despotismo burocrático é a continuação legítima
da Revolução de Outubro ou o fruto de uma contra-revolução burocrática,
verificada não só pelos processos, as purgas, as deportações massivas,
mas também pelas convulsões dos anos 30 na sociedade e no aparato de
Estado soviético.
3. Não se inventa uma nova palavra por
decreto. O vocabulário se forma com o tempo, por meio de usos e
experiências. Ceder à identificação do comunismo com a ditadura
totalitária stalinista seria capitular diante dos vencedores
provisórios, confundir a revolução e a contra-revolução burocrática, e
fechar assim o capítulo das bifurcações, o único aberto à esperança. E
seria cometer uma irreparável injustiça para com os vencidos, todas as
pessoas, anônimas ou não, que viveram apaixonadamente a idéia comunista
e que a vivenciaram contra suas caricaturas e falsificações. Vergonha
daqueles que deixaram de ser comunistas ao deixar de ser stalinistas e
que só foram comunistas enquanto foram stalinistas! (1)
4. De
todas as formas de nomear “ao outro” necessário e possível do
capitalismo imundo, a palavra comunismo é que conserva maior sentido
histórico e carga programática explosiva. É a que evoca melhor o comum
da partilha e da igualdade, o funcionamento comum do poder, a
solidariedade frente ao cálculo egoísta e à concorrência generalizada,
a defesa dos bens comuns da humanidade, naturais e culturais, a
extensão aos bens de primeira necessidade de um espaço de gratuidade
(desmercantilização) dos serviços, contra a rapina generalizada e a
privatização do mundo.
5. É também o nome de uma medida
diferente da riqueza social daquela da lei do valor e da avaliação
mercantil. A competição “livre e não falseada” repousa sobre “o roubo
do tempo de trabalho do outro”. Pretende quantificar o inquantificável
e reduzir a sua miserável medida comum, mediante o tempo de trabalho
abstrato, a incomensurável relação da espécie humana com as condições
naturais de sua reprodução. O comunismo é o nome de um critério
diferente de riqueza, de um desenvolvimento ecológico qualitativamente
diferente da corrida quantitativa pelo crescimento. A lógica da
acumulação do capital exige não só a produção para o lucro e não para
as necessidades sociais, mas também “a produção de novo consumo”, a
ampliação constante do círculo do consumo “mediante a criação de novas
necessidades e pela criação de novos valores de uso”... “Daí a
exploração da natureza inteira” e “a exploração da terra em todos os
sentidos”. Esta desmedida devastadora do capital funda a atualidade de
um eco-comunismo radical.
6. A questão do comunismo é primeiro,
no Manifesto Comunista, a da propriedade: “Os comunistas podem resumir
sua teoria nesta fórmula única: supressão da propriedade privada” dos
meios de produção e de troca; não confundir com a propriedade
individual dos bens de uso. Em “todos os movimentos, põem na frente a
questão da propriedade, seja qual for o grau de evolução que tenha
atingido, como a questão fundamental do movimento”. Dos dez pontos que
concluem o primeiro capítulo, sete concernem às formas de propriedade:
a expropriação da propriedade latifundiária e a vinculação da renda da
terra aos gastos do Estado; a instauração de uma tributação fortemente
progressiva; a supressão da herança dos meios de produção e de troca; o
confisco dos bens dos emigrados rebeldes; a centralização do crédito em
um banco público; a socialização dos meios de transporte e a construção
de uma educação pública e gratuita para todos; a criação de manufaturas
nacionais e a ocupação (para plantio) das terras sem cultivar. Estas
medidas tendem todas elas a estabelecer o controle da democracia
política sobre a economia, a primazia do bem comum sobre o interesse
egoísta, do espaço público sobre o espaço privado. Não se trata de
abolir toda forma de propriedade, mas sim “a propriedade privada de
hoje, a propriedade burguesa”, o “modo de apropriação” fundado na
exploração de uns pelos outros.
7. Entre dois direitos, o dos
proprietários apropriarem-se dos bens comuns, e o dos despossuídos à
existência, “é a força que decide”, diz Marx. Toda a história moderna
da luta de classes, da guerra dos camponeses na Alemanha às revoluções
sociais do século passado, passando pelas revoluções inglesa e
francesa, é a história deste conflito. Resolve-se pela emergência de
uma legitimidade oposta à legalidade dos dominantes. Como “forma
política encontrada da emancipação”, como “abolição” do poder de
Estado, como realização da república social, a Comuna ilustra a
emergência desta nova legitimidade. Sua experiência inspirou as formas
de auto-organização e de auto-gestão populares aparecidas nas crises
revolucionárias: conselhos operários, soviets, comitês de milícias,
cordões industriais, associações de vizinhos, comunas agrárias, que
tendem a desprofissionalizar a política, a modificar a divisão social
do trabalho, a criar as condições de extinção do Estado enquanto corpo
burocrático separado.
8. Sob o reino do capital, todo progresso
aparente tem sua contrapartida de regressão e de destruição. Em última
instância, não consiste em mais do que mudar a forma de servidão. O
comunismo exige uma idéia diferente e alguns critérios diferentes do
que os do rendimento e da rentabilidade monetária. A começar pela
redução drástica do tempo de trabalho obrigatório e a mudança da
própria noção de trabalho: não poderá haver completo desenvolvimento
individual no ócio ou no “tempo livre” enquanto o trabalhador
permanecer alienado e mutilado no trabalho. A perspectiva comunista
exige também uma mudança radical da relação entre o homem e a mulher: a
experiência da relação entre os gêneros é a primeira experiência da
alteridade e enquanto subsista essa relação de opressão, todo ser
diferente, por sua cultura, sua cor, ou sua orientação sexual, será
vítima de formas de discriminação e de dominação. O progresso autêntico
reside, enfim, no desenvolvimento e na diferenciação de necessidades
cuja combinação original faz de cada um e de cada uma um ser único,
cuja singularidade contribui para o enriquecimento da espécie.
9.
O Manifesto concebe o comunismo como “uma associação na qual o livre
desenvolvimento de um é condição do livre desenvolvimento de todos”.
Aparece assim como a máxima de um livre desenvolvimento individual que
não deveria ser confundido nem com as ilusões de um individualismo sem
individualidade submetido ao conformismo publicitário, nem como
igualitarismo grosseiro de um socialismo de quartel. O desenvolvimento
das necessidades e das capacidades singulares de cada um e de cada uma
contribui para o desenvolvimento universal da espécie humana.
Reciprocamente, o livre desenvolvimento de cada um e de cada uma
implica o livre desenvolvimento de todos, pois a emancipação não é um
prazer solitário.
10. O comunismo não é uma idéia pura, nem um
modelo doutrinário de sociedade. Não é o nome de um regime estatal, nem
o de um novo modo de produção. É o de um movimento que, de forma
permanente, supera/suprime a ordem estabelecida. Mas é também o
objetivo que, surgido deste movimento, o orienta e permite, contra
políticas sem princípios, ações sem continuidade, improvisações
diárias, determinar o que aproxima e o que afasta deste objetivo. Neste
sentido, não é um conhecimento científico do objetivo e do caminho, mas
sim uma hipótese estratégica reguladora. Nomeia, indissociavelmente, o
sonho irredutível de um mundo diferente, de justiça, de igualdade e de
solidariedade; o movimento permanente que aponta para a derrocada da
ordem existente na época do capitalismo; e a hipótese que orienta este
movimento na direção de uma mudança radical das relações de propriedade
e de poder, a distância dos acomodamentos com um mal menor que seria o
caminho mais curto para o pior.
11. A crise, social, econômica,
ecológica e moral de um capitalismo que não retrocede diante de seus
próprios limites e cuja desmedida e irracionalidade crescentes ameaçam
ao mesmo tempo a espécie humana e o planeta, volta a colocar na ordem
do dia “a atualidade de um comunismo radical”, invocado por Benjamin
diante do aumento dos perigos do período entre guerras.
Nota
(1) Ver Mascolo, D. (2000) A la recherche d´un communisme de pensée. Paris : Editions Fourbis, p. 113.
Versão
em espanhol publicada na Revista Viento Sur, traducción de Alberto
Nadal (http://www.vientosur.info/). Tradução para o português: Marco
Aurélio Weissheimer.