O editorial "Sinergia" do Correio da Cidadania, de 22 de janeiro,
destaca a difícil situação da esquerda revolucionária brasileira,
"reduzida a apenas três pequenos partidos com registro eleitoral" e a
grupos sem os apoios para tal. Fraqueza que se agrava com a
"conjuntura" nacional "extremamente adversa" aos trabalhadores,
associada à "desorientação do movimento socialista" mundial. Lembramos
apenas serem quatro os partidos revolucionários registrados, com o
pequenino PCO.
Lembra o editorial que, diante dessa fragilidade, "a primeira idéia que
surge é a unificação" dos "pequenos partidos", para intervenção
potencializada. Aponta como bom sinal as negociações para a unificação
das "centrais sindicais socialistas" (Intersindical e Conlutas). Ótimo
augúrio, sobretudo se almejar a fusão de todas as sindicais, na luta
pela centralização-concentração sindical dos trabalhadores como classe
para si.
O editorial lembra como exemplo da possibilidade de se "marchar juntos"
a frente eleitoral do PCB, PSOL e PSTU em 2006. Propõe que, mesmo já
tendo o PSTU candidato próprio e o PCB discutindo semelhante
iniciativa, as duas organizações não descartam reconstituir a
composição eleitoral, sempre, é claro, em torno "de programa" e "carta
eleitoral comum" condizentes.
A frente de 2006 foi enorme passo adiante, seguido de corrida para
trás. Seria mais correto qualificá-la como "exemplo exitoso" quanto à
unificação eleitoral, mas neto fracasso no relativo à utilização das
eleições para a construção de programa e movimento unificador, política
e organicamente, da esquerda revolucionária, dentro e fora das
organizações citadas. O objetivo maior apontado pelo lúcido editorial.
A frente eleitoral sequer agitou programa operário para o Brasil. O
núcleo da campanha lançou-se à caça ao voto, privilegiando a denúncia
da corrupção, amealhando fortemente consensos opostos ao programa
socialista. Sem unificação programática, não houve unificação orgânica,
durante e após as eleições. Tratou-se de aliança transitória para
superar as eleições, que aprofundou a difícil situação da esquerda.
Nem todos querem o mesmo
A imprescindível unificação político-organizacional da esquerda
brasileira ocorrerá, caso ocorra, em torno de avaliação comum mínima da
superação das contradições essenciais da sociedade nacional e
internacional. Paradoxalmente, essa condição política essencial se
encontra substancialmente satisfeita, no que se refere a uma enorme
parte das organizações, dos movimentos e de militantes revolucionários
esparsos do Brasil.
Atualmente, enormes parcelas organizadas e desorganizadas da esquerda
socialista concordam sobre o caráter acabadamente capitalista do Brasil
e sobre a necessária superação de suas contradições através da
concretização simultânea das tarefas democráticas e socialistas, sob a
direção da classe trabalhadora. Processo que as organizações de origem
trotskista e o PCB definem como "revolução permanente".
Quais, portanto, as razões da atomização da esquerda socialista, que
aprofundam a fragilidade de sua intervenção? Certamente para isso
contribuem as fortíssimas idiossincrasias de origem, de organização e
de direção, dificilmente superadas sem um forte impulso do mundo do
trabalho. Porém, uma intervenção militante potenciada facilitaria a
retomada da iniciativa social.
A difícil realidade que vivemos torna as eleições momento determinante
para a construção de prática unitária, em torno da defesa de programa
socialista para a população e para sua organização. Razão pela qual
concordamos também com a preocupação registrada pelo editorial com a
inútil transcorrência dos meses, sem avanço no necessário processo
unitário e programático. Porém, cremos que tal demora não seja
gratuita.
Nem todos os segmentos que se organizam hoje nos partidos assinalados
comungam com o programa e a prática classista e socialista, não raro se
mobilizando contra os mesmos, em forma mais ou menos patente. O que
explicaria política e sociologicamente o fracasso na imposição de
dinâmica socialista militante à campanha de 2006 e muitos dos entraves
postos até agora a uma rápida conclusão da aliança eleitoral
programática.
Reformar o Estado burguês
As contradições sociais são várias e poli-facetadas, ao igual que as
classes e frações de classes que conformam a sociedade capitalista
atual. Mesmo enfraquecido pelo triunfo contra-revolucionário dos anos
1980, o socialismo serve ainda como referência a projetos pessoais e
sociais estranhos ao mundo do trabalho, já que almejam materializar-se
no seio da ordem capitalista, mais ou menos retocada.
Essa contradição entre o trabalho e versões (sociais) do capital se
expressa em forma límpida na oposição entre as duas propostas
eleitorais defendidas pelos três pré-candidatos do PSOL à presidência.
Pessoalmente, associo-me à candidatura do companheiro Plínio Arruda
Sampaio, por sua mais ampla abrangência política e social, sem deixar
de reconhecer que o ex-deputado Babá comunga com os objetivos
representados pelo seu concorrente e jamais opositor. São os dois boa
farinha do mesmo saco.
O lançamento do senhor Martiniano Cavalcante como pré-candidato do PSOL
à presidência da República presta enorme serviço ao esclarecimento
político, ao contrapor-se em forma cabal aos ideais defendidos por
Plínio Arruda-Babá. Ou seja, a luta intransigente pela sociedade
socialista, como única forma possível de superação da exploração do
trabalho pelo capital, que já ameaça a sorte da própria humanidade.
O senhor Cavalcante deixa claro que sua candidatura não é discussão
democrática entre companheiros irmanados no ideal socialista. Segundo o
candidato, ela surgiria para contrapor-se "àqueles que, de um modo ou
de outro, pretendem utilizar a campanha presidencial para derrotar as
principais forças do partido e dar ao PSOL um perfil antagônico ao que
ele teve até agora". Ou seja, uma candidatura contra golpistas e
liquidacionistas.
Folga dizer que "as principais forças do partido" que pretensamente os
companheiros Plínio Arruda-Babá pretenderiam derrotar são o senhor
Cavalcante e seus apoiadores e que o "perfil" resgatado pelos mesmos é
a procura diuturna de acomodação à sociedade de classes, com o objetivo
de nela se integrar como parlamentares e administradores, sob o
compromisso de, no máximo, retocar o Estado burguês e, jamais,
destruí-lo e refundá-lo sob a ordem do trabalho.
Os socialistas não passarão!
A virulência do manifesto do senhor Cavalcante é essencialmente contra
o programa socialista defendido pelos companheiros Plínio Arruda-Babá,
anatematizados como aventureiros que "buscam, conscientemente, o
isolamento e que pretendem dirigir a campanha e o discurso do PSOL
apenas para a vanguarda socialista". Militantes que se esconderiam
"atrás do propagandismo ideológico socialista", pronunciando-se de
"maneira estridente e sectária, pouco compreensível" às "amplas
massas".
Uma denúncia total e cabal de Plínio Arruda-Babá e seus companheiros de
idéias e luta, que pecariam mortalmente por fixação obsessiva na
organização classista e socialista dos trabalhadores. Militantes,
portanto, incapazes de assumir o doloroso acomodamento incondicional ao
senso comum, para poderem assim suportar as penosas sinecuras
parlamentares e administrativas, obtidas no maior número possível, é
claro.
O senhor Cavalcante e apoiadores não defendem apenas a ordem
capitalista no geral. O fazem no particular, em forma direta, sem papas
na língua, nesse "Bilhetinho ao Povo Brasileiro", para que todos
compreendam, sobretudo os grandes interessados, alguns deles, como é
sabido, financiadores de campanhas parlamentares desse setor respeitoso
e dignitoso do PSOL.
O senhor Cavalcante e apoiadores indignam-se com a idéia de que o PSOL
e uma frente de esquerda defendam eventualmente a nacionalização das
empresas privatizadas e dos grandes capitais. Sequer aceitam a violação
dos direitos sacrossantos do capital a explorar a saúde e a educação
como negócio! O manifesto propõe despudoradamente: "[...] devemos ter
clara consciência de que a correlação de forças não nos permite
apresentar propostas gerais de estatização de setores econômicos, sejam
da indústria ou dos serviços como educação e saúde". Durmam tranqüilos,
senhores, que Cavalcante e associados velam por suas propriedades!
Não menos paradoxal é a razão apresentada para a defesa canina do
capital: "Nas atuais condições, tais posicionamentos servem apenas para
‘chocar’ a opinião pública", que, sequer estaria preparada para essas
propostas essencialmente democráticas! E isso, apesar de vivermos
momento único, em que os grandes estados imperialistas viram-se e
vêem-se forçados a estatizar, mesmo transitoriamente, imensas empresas
capitalistas para salvá-las da bancarrota.
Privatizem o que resta, a população quer!
Se for verdadeiro o horror da população brasileira ao público e sua
paixão pelo privado e correta a proposta de adequação dos militantes
socialistas a tal estado de espírito, muito logo veremos os defensores
dessa estranha sociologia política defenderem a privatização de grandes
empresas ainda em parte nas mãos do Estado, como a Petrobrás, a Caixa
Federal, o Banco do Brasil, para podermos "estabelecer um diálogo
mediado e pedagógico com a população"!
Folga dizer que a candidatura do senhor Cavalcante não constitui apenas
um ataque direto aos militantes classistas e socialistas do PSOL, como
também uma impugnação cabal à frente de esquerda, pois logicamente o
PCB e o PSTU jamais comungariam com tais propostas pró-capitalistas,
expressões de classes e frações de classes contra as quais se
mobilizaram e se mobilizam, no passado e no presente.
Paradoxalmente, a desistência de Heloísa Helena de lançar-se como
candidata do PSOL e de uma frente de esquerda, para tentar abocanhar
uma senadoria, criou as condições para o surgimento de uma verdadeira
frente de esquerda, nas eleições deste ano, em torno de um programa
classista e socialista, que enseje uma verdadeira associação da
esquerda revolucionária em torno de uma militância comum.
Tal realidade ensejou, igualmente, ao surgir proposta claramente
classista e socialista para as eleições presidenciais, verdadeira
clarificação sobre as contradições de classes no interior do PSOL, há
muito já consolidadas, entre projetos do mundo do trabalho e de
acomodamento ao estado burguês, semelhante ao ocorrido no PT, ainda
recentemente. A superação desta contradição pode significar importante
avanço do programa e da organização socialista de massa no Brasil. Que
os anjos digam amém!
Mário Maestri, historiador, militante marxista-revolucionário desde
1967, participou da fundação e da primeira direção nacional do PSOL. É
hoje comunista sem partido.
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