terça-feira, 5 de março de 2013

“O PDT se afastou do trabalhismo”, afirma Carlos Araújo


Aos 75 anos, Carlos Araújo voltará a se filiar ao PDT | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Samir Oliveira no SUL21

Ex-deputado estadual e fundador do PDT no Rio Grande do Sul, Carlos Franklin Paixão Araújo afirma que o partido está “descaracterizado” e “afastado das raízes do trabalhismo” no país. Após romper com a sigla em 2004 e permanecer ausente da política desde então, o ex-marido da presidente Dilma Rousseff (PT) voltará a se filiar ao PDT em março deste ano.
O retorno de Carlos Araújo ao PDT ocorre às vésperas da convenção que irá eleger o comando nacional da sigla – que permanece com o ex-ministro do Trabalho Carlos Lupi desde a morte de Leonel Brizola, em 2004. Carlos Araújo retorna ao PDT para ajudar os netos de Brizola a disputar a hegemonia no partido.
Nesta entrevista ao Sul21, Carlos Araújo fala sobre a situação do PDT no país e no Rio Grande do Sul e defende uma maior formação política dos seus militantes. Para o ex-deputado, o trabalhismo é doutrina que irá levar o brasil ao socialismo. “Pretendo me filiar em março. O trabalhismo é o caminho brasileiro para o socialismo. Quero participar dessa luta”, explica.
Com 75 anos de idade, Carlos Araújo é natural de São Francisco de Paula e ingressou clandestinamente na Juventude do Partido Comunista Brasileiro aos 14 anos – sigla na qual militou até 1957. Formado em Direito pela UFRGS, começou a ter contato com Leonel Brizola durante a campanha da Legalidade, em 1961. Após o golpe militar, em 1964, ingressou na luta armada e foi um dos dirigentes da VAR-Palmares. Foi na guerrilha que conheceu sua ex-mulher, Dilma Rousseff, com quem foi casado durante 30 anos, de 1969 a 1999. Graças ao relacionamento com Carlos Araújo, Dilma veio morar em Porto Alegre, já que o marido encontrava-se detido na Ilha do Presídio, durante os anos 1970. Ainda hoje, Carlos Araújo é uma das pessoas mais próximas de Dilma, com quem teve uma filha, Paula, e compartilha um neto, Gabriel.
Após eleger-se deputado estadual em 1982 e reeleger-se por mais duas legislaturas, Carlos Araújo – que também disputou a prefeitura de Porto Alegre em 1988 e 1992 – abandonou a vida pública, devido a um enfisema pulmonar que vem lhe causando complicações desde 1995.
“O trabalhismo é uma corrente de pensamento que tem como base a defesa dos direitos sociais no capitalismo”
Ex-deputado abandonou o partido em 2004 e afirma que, mesmo com o retorno, não irá se candidatar a cargos públicos | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Como o senhor avalia a situação atual do PDT no país?
 
Carlos Araújo – O PDT está um pouco descaracterizado, se afastou das raízes do trabalhismo. Falta ao PDT uma prática social maior, uma maior participação nos movimentos sociais. O partido deveria se voltar aos grandes problemas nacionais, mas não faz esses debates. A atuação é muito tímida. Internamente, é preciso haver mais democracia, discussão e revezamento de poder no PDT. Não podemos ter lideranças que se eternizam no poder.

Sul21 – Como o partido vem administrando a era pós-Leonel Brizola?
 
Carlos Araújo – Sempre é difícil administrar um partido após a perda de um grande líder. Leva tempo até que se encontre um rumo. O PDT procura esse rumo, mas não tem encontrado. A perda de um grande líder sempre gera embaraços, cria dificuldades e barreiras a serem superadas.

Sul21 – Foi um erro do partido ficar tão dependente do Brizola?
 
Carlos Araújo – Acho que não. A história tem mostrado, principalmente nos países emergentes, que as forças sociais se estruturam em cima de grandes lideranças. Líderes como Fidel Castro, Hugo Chávez e Leonel Brizola discursam durante muito tempo. Fidel chegou a falar por 14 horas seguidas. O Brizola já discursou por 7 horas. Esses líderes aprenderam que a educação para a consciência das massas é formada, em grande parte, pela audição. Esses líderes se destacam e é muito difícil formar um partido com eles. O PT tem um grande líder, mas o partido depende muito do Lula. É bom para o PT ter estrutura, conseguir caminhar sozinho, mas é algo muito difícil.

Sul21 – O senhor ajudou a fundar o PDT no Rio Grande do Sul. O que o partido representava em sua origem?
 
Carlos Araújo – O PDT sempre representou o trabalhismo. É uma corrente de pensamento que tem como base a defesa dos direitos sociais no capitalismo. Getúlio Vargas, que é o fundador do trabalhismo, quando tomou o poder, em 1930, tinha que responder à seguinte pergunta: “Como vai ser o processo de desenvolvimento capitalista no Brasil?”. Então ele disse: “O meu governo terá como base uma democracia social, uma democracia política e uma democracia econômica. O Estado será um indutor do desenvolvimento, mas as rédeas do processo estarão nas mãos das forçais sociais”. Ele usava essa expressão: “Forças sociais”. Em seguida, as elites paulistas e mineiras se levantaram, em 1932, dizendo que esse projeto não servia para o país. Eles acreditavam que as forças sociais não conseguiam gerir o capitalismo no Brasil, defendiam que só quem poderia fazer isso era o capital internacional. Queriam que os representantes do capital internacional desenvolvessem o capitalismo brasileiro.
“Embora tenha feito e esteja fazendo grandes governos, o PT perdeu a sua auréola”
Carlos Araújo entende que PDT deve disputar espaço na esquerda | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Esse embate existe até hoje no país?
 
Carlos Araújo – Continua. Por isso tentaram derrubar o Getúlio em 1932 e em 1937. Por isso conseguiram derrubá-lo em 1945 e o levar ao suicídio em 1954. Foi a mesma questão que levou a derrubarem o Jango em 1964. Getúlio dizia que a hegemonia do processo político tem que estar com as forças sociais. Em 1866, quando houve a primeira eleição na Inglaterra, perguntaram ao Marx – que dirigia a Internacional – como os trabalhadores deveriam votar. Havia um candidato capitalista e outro que representava o regime monárquico anterior. O capitalismo naquela época era terrível, com crianças morrendo nas fábricas, trabalhando 20 horas por dia. Marx respondeu que os trabalhadores deveriam fazer uma aliança com os capitalistas. E disse que o ideal seria que, nessa aliança, os trabalhadores tivessem a hegemonia. Ele dizia que os trabalhadores seriam capazes de desenvolver o capitalismo com mais sabedoria do que os próprios capitalistas, dando um sentido mais social a ele. Foi isso que Getúlio falou. É isso que aconteceu nos governos Lula e acontece no governo Dilma. É o desenvolvimento do capitalismo com as rédeas do processo nas mãos das forças sociais. É a única forma de desenvolver o capitalismo e dividir o bolo enquanto ele vai crescendo. Se não vai tudo apenas para um lado. O trabalhismo representa essa visão do desenvolvimento capitalista.

Sul21 – O PDT não alimenta mais o discurso do trabalhismo?
 
Carlos Araújo – Não está mais adotando esse discurso e está muito desvinculado dos movimentos sociais. O PDT perdeu muito espaço, mas ele pode ser recuperado. Há um espaço para que o PDT avance. Embora tenha feito e esteja fazendo grandes governos, o PT perdeu a sua auréola. Isso nos faz pensar em como será no futuro. Sem o PT, surgirá outro partido para ocupar seu espaço? É uma questão muito delicada e o trabalhismo tem um papel a desempenhar nesse contexto, desde que esteja envolvido com os movimentos sociais.

Sul21 – O PDT pode voltar a disputar o poder dentro da esquerda?
 
Carlos Araújo – Sim. Esse é o destino do PDT, por isso o partido precisa retomar o seu caminho. O Brizola concorreu por duas vezes à Presidência. Em uma, ele perdeu por pouco no primeiro turno e apoiou Lula no segundo. Na outra eleição, foi vice do Lula. Nosso caminho é esse, é marchar junto com as forças de esquerda.
“Quem é de esquerda e está na política institucional tem que ser militante. Tem que pular muro e subir morro”
Sul21 – O senhor retornará ao PDT?
 
Carlos Araújo – Pretendo me filiar em março. Eu estava esperando melhorar um pouco a saúde. Sou trabalhista, penso que o trabalhismo é o caminho brasileiro para o socialismo. Quero participar dessa luta.
Carlos Araújo dará cursos de formação política a jovens do PDT nas tardes de sábado | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Quando o senhor tomou essa decisão?
 
Carlos Araújo – Essa decisão foi construída. O que me levou a acelerar o processo foi eu pensar que os netos do Brizola têm um papel a cumprir no partido. Eles estão sendo muito injustiçados dentro do PDT. Isso me levou à aproximação com eles.

Sul21 – Foi difícil o rompimento com o PDT em 2004?
 
Carlos Araújo – Foi, eu senti muito. Mas era uma conjuntura em que eu não queria mais permanecer no PDT nem em partido nenhum. Foi um afastamento. Saí para ficar mais livre, para não dizerem que eu desobedeci às normas do partido. Mas continuei muito amigo dos companheiros trabalhistas, nunca me afastei totalmente. Nunca tive vontade de ingressar em outros partidos.

Sul21 – Com o retorno ao PDT, o senhor pretende voltar a disputar eleições?
 
Carlos Araújo - Não vou concorrer. Vou ajudar na formação de quadros e em tudo o que eu puder. Como eu fiquei doente, é muito difícil permanecer na política institucional. Quem é de esquerda e está na política institucional tem que ser militante. Tem que pular muro e subir morro.
“Há uma crise partidária na esquerda. Os partidos estão muito desorganizados e não formam seus militantes”
Ex-marido de Dilma defende democratização do estatuto do PDT | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Qual a importância da convenção nacional do PDT para renovação do partido?
 
Carlos Araújo – É muito difícil que haja uma renovação agora. O estatuto do PDT é muito rígido e autoritário, dá muito poder à executiva e ao diretório nacional. É muito difícil furar esse cerco. Eu estou retornando ao PDT e participando de uma corrente que quer sacudir o partido, que vai disputar a convenção. Estamos tentando fazer uma conciliação, para verificar se há trânsito dentro do partido. Acreditamos que o Alceu Collares é um bom candidato para essa transição. Precisamos ter um candidato que consiga unificar o partido, que está muito dividido. E que seja um candidato de transição, fixando regras para uma nova eleição e aproximando as correntes para construir a unidade possível.

Sul21 – Essa transição seria para realizar reformas no estatuto?
 
Carlos Araújo – Sim, para oxigenar o partido. O estatuto precisa ser mais democrático e adequado a nossa realidade. O estatuto atual foi feito pelo Brizola, que já havia perdido um partido e não queria perder outro. Então ele fez um estatuto extremamente centralizado e muito rígido. Agora não temos mais uma liderança do vulto do Brizola, por isso precisamos adequar o estatuto à nossa realidade.

Sul21 – Então a intenção é lançar um candidato de conciliação? Não haverá um candidato de oposição ao atual grupo que comanda o PDT?
 
Carlos Araújo – Se não der, iremos lançar sim esse candidato. Tentaremos fazer a conciliação até onde der. Se não for possível, lançaremos um candidato, mesmo que seja para perder.

Sul21 – Os irmãos Juliana Brizola (deputada estadual gaúcha), Carlos Brizola (deputado federal licenciado e atual ministro do Trabalho) e Leonel Brizola (vereador do Rio de Janeiro), todos netos de Leonel Brizola, fazem parte deste movimento. Quem mais integra o grupo?
 
Carlos Araújo – Dos integrantes gaúchos eu destacaria o Afonso Mota (secretário estadual do Gabinete dos Prefeitos) e o deputado federal Giovani Cherini. Também há muitos prefeitos.
“O prestígio do Lula e da Dilma é muito grande. Mas essa força eleitoral fantástica não se expressa da mesma forma como grande força política”
Sul21 – É um grupo majoritariamente formado por gaúchos?
 
Carlos Araújo – Não, temos apoios nos estados. Minas Gerais nos apoia. Há esforços em vários estados. Essa análise deve ser feita mais adiante. Na segunda-feira (4) tem uma reunião da executiva nacional que fixará as regras para a convenção nacional.
Para Carlos Araújo, as “consequências do poder” tornaram a esquerda acomodada| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – O ex-ministro do Trabalho Carlos Lupi – afastado da pasta por denúncias de corrupção e presidente nacional da sigla desde a morte do Brizola – prejudicou o partido?
 
Carlos Araújo – Eu não gostaria de pessoalizar nada. Prefiro não abordar esse assunto, ao menos no momento. Quero travar a luta interna em um nível estritamente político.

Sul21 – Mas no entendimento do grupo do senhor, os dirigentes atuais do PDT são responsáveis pela situação que vocês criticam.
 
Carlos Araújo – Sim. Queremos democratizar o partido. Queremos que o PDT tenha uma vida política interna permanente, não só em época de eleição. Há uma crise partidária na esquerda. Os partidos estão muito desorganizados e não formam seus militantes. Os jovens querem cursos, mas os partidos não dão. O PDT tem uns cerca de 600 jovens atuantes em Porto Alegre, que disputaram os DCEs da UFRGS e da PUCRS com chapa própria. Tem bastante dirigente jovem atuando. Mas eles estão sedentos por conhecimento e por discussão política. É um absurdo eles não saberem onde buscar conhecimento, quais livros ler. Eu fiz uma reunião com esses jovens na terça-feira (26), vou começar a dar cursos a eles nos sábados à tarde. Eles querem discutir e participar e a esquerda não está ocupando plenamente esse espaço de debates.
Sul21 – Por que não?
 
Carlos Araújo – Talvez por estar no poder. São as chamadas “consequências do poder”. Há uma certa acomodação. Todos os quadros políticos vão para o aparelho do Estado e ficam envolvidos em atividades burocráticas. Teria que haver uma maior formação política. Mas, ao mesmo tempo, os quadros precisam ir para o aparelho do Estado, precisam governar. É uma questão complicada.
“A principal questão colocada hoje é a do bem estar do conjunto da sociedade ainda no capitalismo. Uma revolução socialista não está na ordem do dia”
Sul21 – Com a chegada do PT e seus aliados ao poder, outros grupos políticos fazem fortes críticas à esquerda deste projeto que está no governo do país há 10 anos.
 
Carlos Araújo – Há uma fragmentação. Mas, veja bem: na sociedade, o prestígio do Lula e da Dilma é muito grande. Todas as pesquisas demonstram muito apoio da população. Mas essa força eleitoral fantástica não se expressa da mesma forma como grande força política. Há um descompasso.
Carlos Araújo defende que PT apoie candidatura do PDT ao governo gaúcho em 2018 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – No campo ideológico, mudou o debate na esquerda? Anteriormente, principalmente nos anos 1960 e 1970, havia mais forças organizadas defendendo a superação total do capitalismo. Essa bandeira já não é mais defendida por muitos desses grupos hoje.
 
Carlos Araújo – Isso muda com o governo Lula. O mundo impôs essa mudança. O Vietnã, a China, Cuba e a União Soviética mostraram que, nos termos em que colocaram, foi inviável a construção do socialismo numa época em que o regime capitalista ainda era muito forte no resto do mundo. Lênin, quando estava no poder na União Soviética, elaborou a Nova Política Econômica, a chamada NEP. Era uma política de desenvolvimento do capitalismo. O que está em discussão hoje é a viabilidade do socialismo. Ele é viável somente em um país? Ou é viável somente quando houver um grande desenvolvimento internacional do socialismo?
Sul21 – Na sua avaliação, existe algum país plenamente socialista hoje em dia?
 
Carlos Araújo – Não. Existe um certo nível de bem estar social em alguns países, como a Suécia. Mas isso foi conquistado em cima de outros países. O capital sueco no Brasil é muito forte. A principal questão colocada hoje é a do bem estar do conjunto da sociedade ainda no capitalismo. Uma revolução socialista não está colocada na ordem do dia. Quem quiser fazer isso pode ter um pequeno espaço em alguns lugares, não terá um espaço significativo. A realidade demonstra isso. O que fazem Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa em seus países? Eles estão desenvolvendo o capitalismo para tirar a população da miséria. Mas é claro que esses governos vão se fortalecendo e a América Latina vai se unindo.
“A internacionalização do capital é um processo em direção ao socialismo. É um processo de desenvolvimento capitalista, mas é, também, um processo em direção ao socialismo”
Sul21 – É possível passar desta etapa de gestor do capitalismo ao socialismo pleno?
 
Carlos Araújo – A internacionalização do capital é um processo em direção ao socialismo. É um processo de desenvolvimento capitalista, mas é, também, um processo em direção ao socialismo. O capitalismo vai se internacionalizando, rompendo fronteiras nacionais e se fragmentando. Hoje um controlador de uma grande empresa tem 10% do seu capital. Socializar essa empresa já não significa mais tirar das mãos de uma única pessoa. Se a GM (General Motors) for nacionalizada hoje, por exemplo, quem irá sentir essa medida a não ser uma meia dúzia de acionistas mais significativos, que possuem 5% ou 8% das ações? Não estou dizendo que já estamos no socialismo. Mas, como dizia Marx, a nova sociedade é gerada no útero da atual sociedade.
Ex-candidato à prefeitura de Porto Alegre, Carlos Araújo diz que Fortunati terá que desdobrar para atender base aliada | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21 – Voltando ao tema do PDT: o partido no Rio Grande do Sul é muito diferente do PDT nacional?
 
Carlos Araújo – O partido sempre foi bastante concentrado no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. E sempre enfrentou resistências históricas em São Paulo. Mas isso não significa que não possam ter lideranças em outros estados, o PDT está se fortalecendo.

Sul21 – No Rio Grande do Sul, o PDT aderiu ao governo Yeda Crusius (PSDB) após perder as eleições de 2006 com Alceu Collares e, em 2010, concorreu ao lado de José Fogaça (PMDB). Como o senhor avalia essas ações?
 
Carlos Araújo – Foram equívocos. Isso se confirmou com a eleição da Dilma. Naturalmente, se formou uma aliança em torno da candidatura dela no Rio Grande do Sul, inclusive com setores do PMDB liderados pelo Mendes Ribeiro Filho. Esses equívocos fazem parte da política, mas não podem se repetir.

Sul21 – O que o senhor defende para o PDT em 2014 no Rio Grande do Sul?
 
Carlos Araújo – Há uma discussão em torno desse assunto. Uns defendem candidatura própria, outros querem aliança com o PMDB e outros querem permanecer apoiando o governo Tarso Genro. Eu defendo que o PDT apoie o atual governo em 2014, mas com uma maior participação política nas decisões e com um acordo para que o PT apoie o PDT em 2018. O PDT é muito forte no estado, precisa ter candidato, mas agora não é o momento, o partido ainda não está suficientemente organizado e com força expressiva para isso.
“Defendo que o PDT apoie Tarso em 2014, mas com uma maior participação política nas decisões e com um acordo para que o PT apoie o PDT em 2018”
Sul21 – O PDT precisa reivindicar a indicação do vice-governador em uma eventual aliança com Tarso em 2014?
 
Carlos Araújo – Isso é inevitável. Parece que o PSB está tentando um caminho próprio, isso faz com que o PDT passe a ser o parceiro próximo do Tarso.
Carlos Araújo entende que PSB deve apresentar um plano de governo para o país | Foto: Ramiro Furquim/Sul2

Sul21 – Em Porto Alegre, depois de muito tempo o PDT conseguiu vencer uma eleição para a prefeitura.
 
Carlos Araújo – Vários fatores influenciaram. Um deles foi a construção de uma ampla frente política. E os candidatos adversários não tinham muita força política e eleitoral. Isso também pode pesar a favor do Tarso. Com todas as críticas que se pode ter ao seu governo, não há uma liderança expressiva para enfrentá-lo.

Sul21 – A senadora Ana Amélia Lemos é a grande aposta do PP. Ela conquistou 3,4 milhões de votos em 2010.
 
Carlos Araújo – Ela tinha mais potencial antes das eleições municipais. Ela é uma candidata que tem uma expressão eleitoral, mas ficou enfraquecida por não seguir as determinações do seu partido em 2012.
“É justo que o PSB tenha candidato à Presidência, mas é preciso apresentar um programa de governo, dizer o que quer e a que vem”
Sul21 – Voltando a Porto Alegre, o senhor disse que um dos fatores que favoreceram a vitória de José Fortunati foi a construção de uma ampla aliança. Mas até que ponto uma aliança tão ampla e diversa se sustenta politicamente? A de Porto Alegre contém partidos aliados e partidos que fazem oposição aos governos Dilma e Tarso, como o DEM, o PPS e o PSDB.
 
Carlos Araújo – As alianças muito amplas são trabalhosas de serem administradas. O Fortunati vai ter que se desdobrar para conseguir governar com uma aliança tão ampla. Começam a vir exigências, principalmente fisiológicas. E essas alianças atingem, de certa forma, o perfil político do governo. Eu sou favorável a alianças. Às vezes são composições que não queremos fazer, mas não existe outra saída. É uma questão delicada, principalmente quando são alianças muito amplas, que podem levar o governo ao imobilismo.

Sul21 – Outro partido que está querendo disputar espaço político e se lançar eleitoralmente à Presidência é o PSB.
 
Carlos Araújo – O PSB tem sido um companheiro de viagem na esquerda. Provavelmente terá um candidato à Presidência, o que é justo, mas precisa apresentar um programa de governo. É indispensável que o PSB diga o que quer e a que vem. O PSB precisa explicar quais as suas diferenças com o PT, o PDT e o PCdoB. Isso ainda não está colocado. Tomara que o partido permaneça sempre como força de esquerda.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Entrevistas históricas: Eleanor Roosevelt entrevista Nikita Kruschev

(Kruschev, Eleanor e a intérprete)


Eleanor Roosevelt (1884-1962) foi uma primeira-dama e tanto. Durante o mandato do marido Franklin (1882-1945) era tão independente que se sentia à vontade para emitir opiniões contrárias às do presidente, e as publicava em jornais e revistas. Mulher à frente de seu tempo –há evidências inclusive de que era homossexual–, Eleanor se tornaria ao longo dos anos, mesmo após enviuvar, uma figura de referência na América. De 1936 até sua morte assinou uma coluna reproduzida em diversos jornais americanos. Definitivamente, não era para decoração.
Em junho de 1957, Eleanor denunciou que a Secretaria de Estado norte-americana lhe havia negado a autorização para viajar à China e entrevistar alguns líderes comunistas. Mas em outubro ela conseguiria ir à União Soviética, onde obteve um furo de reportagem: entrevistou durante três horas o líder do Partido Comunista, Nikita Kruschev (1894-1971), para o extinto jornal New York World-Telegram. A globetrotter Eleanor estava para completar 73 anos. Kruschev, o homem que sucedeu Stalin, era dez anos mais novo e estava de férias em Ialta, no mar Negro, quando concordou em falar.
A conversa entre o líder soviético e a ex-primeira-dama é fascinante e elucidativa. Primeiro por expor, sem disfarces, o comportamento norte-americano em relação ao comunismo, seu pânico quase infantil de que ele pudesse se espalhar pelo mundo. E também por mostrar a gênese dos conflitos que duram até hoje no Oriente Médio. Quem armou qual país? Eis aí onde tudo começou. Vejam os conflitos na Síria atualmente: quem são os maiores envolvidos na suposta tentativa de promover a paz? Estados Unidos e Rússia. Nada é por acaso.
Eleanor tenta colocar Nikita contra a parede, mas Kruschev faz o mesmo. Por vezes é ela quem se esquiva da pergunta, por vezes é ele quem foge. Ninguém se dobra, exatamente como seus países, em plena Guerra Fria. Dois anos mais tarde, Nikita Kruschev visitaria os Estados Unidos e seria sua vez de ser recebido por Eleanor Roosevelt. Ficaram amigos? Nem tanto, mas souberam se sentar para conversar, embora discordassem nos mínimos aspectos. Em um artigo, Eleanor contou ter achado o líder soviético “extremamente articulado” e, como pessoa, “alguém difícil de não se gostar”. Ao final, tomaram café e comeram frutas, doces e bolos oferecidos pela mulher de Kruschev, Nina.
Com todos os problemas da União Soviética, a entrevista deixa patente a falta que faz um líder de superpotência capaz de questionar de igual para igual o poderio norte-americano. Quem desempenha papel semelhante hoje no mundo é Hugo Chávez e seus colegas bolivarianos na América do Sul, mas os países que governam não têm o peso que a União Soviética tinha. Kruschev, porém, errou em sua previsão de que era o destino histórico do comunismo se espalhar pelo mundo…
A entrevista foi publicada em quatro artigos. No último deles, também muito interessante, Eleanor aborda especificamente a questão dos judeus soviéticos. Há estudiosos que apontam uma ascendência judaica nos Roosevelt, que eram primos.
***
3 October 1957
NEW YORK—A melhor maneira de começar esta série de artigos sobre a União Soviética é deixando Nikita S. Kruschev, líder do Partido Comunista, falar por si próprio. Pediram para submeter minhas questões antes da entrevista, mas o sr. Kruschev não as tinha diante de si quando apareci. E ele respondeu todas as perguntas, apesar de estar falando de forma completamente espontânea.
O primeiro artigo irá abordar somente uma parte das respostas gravadas e, como eu as tenho em russo, só posso dar a vocês a tradução como a recebi de minha intérprete, a sra. Anna Larova, que me contou que tinha traduzido para o meu marido em Ialta.
Abri a entrevista pedindo a ela para dizer ao sr. Kruschev o quanto eu tinha apreciado que tivesse reservado tempo para me ver durante suas férias, e acrescentei que gostei e achei muito interessante minha viagem por seu país. O sr. Kruschev respondeu: “Políticos nunca deixam obrigações políticas de lado”.
Aqui estão minhas perguntas e suas respostas:
ROOSEVELT: Vim à URSS como enviada dos jornais onde escrevo e para juntar toda a informação que possa para as palestras que darei no próximo ano, mas espero que, estando aqui, possa obter um maior entendimento e clareza a respeito de algumas questões que algumas pessoas em meu país não podem entender sobre o que ouvem da URSS.
KRUSCHEV: Aprecio sua vinda e quero falar sobre o presidente Roosevelt. Nós o respeitamos e recordamos suas atividades, porque ele foi o primeiro presidente a estabelecer relações diplomáticas entre os EUA e a URSS. O presidente Roosevelt compreendeu perfeitamente bem a necessidade de haver relações entre nossos países.
Ele foi um grande homem, um homem capaz, que entendeu os interesses de seu próprio país e da União Soviética. Nós tínhamos uma causa comum contra Hitler e nós gostamos muito que Franklin Roosevelt entendesse este desafio, um desafio comum aos dois países. Estou muito feliz por receber a senhora em nossa terra e por ter essa conversa.
ROOSEVELT: Sr. Kruschev, posso fazer as questões que lhe submeti? Então, se o senhor tiver alguma pergunta, faça-a, eu ficarei feliz de respondê-las. E talvez possamos ter depois uma conversa informal, não para citação direta.
KRUSCHEV: Sim, sra. Roosevelt, claro.
ROOSEVELT: Em casa as pessoas diriam “como a União Soviética espera que nós nos desarmemos sem inspeção quando ela nos forçou a refazer nosso exército depois da Segunda Guerra Mundial? Reduzimos nosso exército de 12 milhões para 1 milhão de homens”. Esta poderia ser uma das primeiras questões, senhor.
KRUSCHEV: Acho, sra. Roosevelt, que temos diferentes pontos de vista sobre essa questão armamentista. Nós não concordamos com sua concepção. Consideramos que a desmobilização dos exércitos aconteceu na União Soviética e nos Estados Unidos.
A senhora menciona que vocês tinham 12 milhões de homens armados, mas, em seu país, homens e mulheres estavam todos mobilizados. Em nosso país, morreu aproximadamente o número de pessoas que compunham seu exército, quase o mesmo número de pessoas. Sra. Roosevelt, não quero ofendê-la, mas se a senhora compara as perdas de seu país à nossa, suas perdas se igualam a apenas uma grande campanha, a um grande ataque dos alemães.
A senhora sabe da terrível destruição e ruína que tivemos, nossa mineração, nossa metalurgia. Perdemos nossas cidades. É por isso que nosso país estava tão impaciente em estabelecer a paz, em firmar a paz. Nenhum país desejou isso tão impacientemente quanto nós.
Quando falamos em desmobilização, apenas alguns círculos em seu país o querem. Outros pensam e acreditam que a nação soviética deveria perecer como estado socialista, esperam que pereçamos, que morramos.
ROOSEVELT: Não consigo entender isso. O sr. quer dizer que acha que nós pensamos, ou pelo menos alguns círculos, que todos os países socialistas deveriam acabar?
KRUSCHEV: Exatamente. Mas estas esperanças falharam e vocês podem ver agora que nosso estado socialista foi refeito sobre as ruínas, restabeleceu sua economia e tornou-se inclusive mais poderoso.
ROOSEVELT: Entendo, sr. Kruschev, mas os soviéticos tiveram uma proporção muito maior de homens armados na guerra do que nós tínhamos na época.
(Dr. David Gurewitsch, que viajava pela Rússia comigo, estava fazendo a gravação da conversa, e ao mesmo tempo ouvindo para se certificar de que as traduções estivessem corretas, já que ele conhecia a Rússia e tinha autorização para fotografar. Então interrompeu para dizer: “não somente a proporção, mas em números absolutos era muito maior –6 milhões de soldados soviéticos”).
KRUSCHEV: Dr. Gurewitsch, o senhor sabe perfeitamente o número de seus homens armados, mas não fique tão seguro a respeito dos nossos homens armados. O senhor não sabe. (Virando-se para a sra. Roosevelt) Não refuto que nosso exército fosse maior que o seu. Nós abordamos essa questão de uma maneira tranquila, calma. Então isso pode ser analisado de um jeito razoável e fácil de compreender.
Pegue um mapa e olhe a localização ou situação geográfica de nosso país. Isto é um território colossal. Sra. Roosevelt, se a senhora pega a Alemanha ou a França, pequenos países que mantêm seus exércitos para defendê-los tanto a Leste quanto a Oeste, é fácil. Eles podem ter um exército pequeno. Mas se nós mantemos nossos exércitos no Leste, dificilmente ele chegará ao Oeste, entende, porque nosso território é vasto demais. Ou o exército que está no Norte não tem como ser usado no Sul.
Então, para estar certo de nossa segurança, precisamos de um exército grande, o que não é fácil para nós. Quando as pessoas falam sobre fronteiras, falam em 3 mil quilômetros, o que é a distância entre os continentes. Mas se nós movemos nosso exército do Leste para o Oeste, isso significa 3 mil quilômetros.
ROOSEVELT: Entendo tudo isso, claro, mas o senhor não tem nada a temer vindo do Norte. Em Ialta, a derrota da Alemanha foi aceita, e eu entendo que o senhor não queira que a Alemanha se reerga como uma potência militar e que queira um grupo de países neutros entre o seu e a Alemanha. Entendo que estes países sejam livres mas que precisem estar próximos à União Soviética, já que a URSS está pensando em sua proteção.
Hoje, certamente, Grã-Bretanha, França e Alemanha não são uma ameaça militar. Eu não digo que não podem se tornar, mas não são atualmente. Estão somente em base defensiva. Então acho que se pode discutir muito calmamente como um país como a União Soviética pode estar segura –desejo e necessidade que entendo perfeitamente–, e ainda assim não ter um exército ofensivo, porque isso assusta o resto do mundo.
KRUSCHEV: O que posso lhe dizer, sra. Roosevelt? No momento em que aumentamos nossos exércitos, significa que tememos um ao outro. As tropas russas, antes da revolução, nunca se aproximaram da Grã-Bretanha e nunca invadiram a América. Até mesmo nos velhos tempos elas nunca foram aos EUA, mas as tropas americanas vieram ao Leste, as tropas japonesas estiveram em nosso Extremo Oriente, em Vladivostok, as tropas francesas em nossa cidade de Odesssa, e é por isso que temos um exército. Suas tropas se aproximam de nosso território, não as nossas ao seu.
Nunca fomos ao México ou ao Canadá, mas suas tropas foram lá, então é por isso que temos um exército em caso de perigo. Até que as tropas se retirem da Europa e as bases militares sejam liquidadas, é certo que o desarmamento não acontecerá.
ROOSEVELT: O tipo de armamento de hoje é que é importante mudar. Isto não era usado nos velhos tempos. Nós estamos reduzindo nosso exército, mas o que importa atualmente são as armas atômicas, e é por isso que acho que a ênfase terá que ser em como podemos chegar a um acordo.
(A arrogância americana, estrelando Richard Nixon, então vice-presidente, com Kruschev em 1959. Foto: Elliot Erwitt)
4 October 1957
CINCINNATI—Em um esforço para descobrir se Nikita S. Kruschev, líder do PC da URSS, acha que o mundo comunista pode algum dia viver em paz com seus democráticos vizinhos, coloquei questões a respeito em nossa recente entrevista gravada em Ialta.
Continuando de ontem:
Sr. Kruschev, gostaria de prosseguir e perguntar minha próxima questão.
Não suspeitamos da URSS à primeira vista, lutamos na guerra juntos. Meu marido, e acho que também o presidente Truman, tinham uma esperança real de que pudéssemos chegar a um entendimento.
Agora, sentimos nos EUA que alguns dos acordos feitos em Ialta não foram seguidos estritamente pela URSS, e a desconfiança começou a crescer. Lamento dizer que esta desconfiança é parcialmente causada pelo pouco intercâmbio entre nosso países.
Temos que fazer alguma coisa de ambos os lados para recuperar a confiança, então gostaríamos –mesmo que o senhor ache que nossa proposta de algum tipo de inspeção seja impraticável, já que nenhum lado necessita esconder o que está produzindo– ainda assim gostaríamos de sentir algum esforço por algum tipo de acordo, mesmo que nenhum de nós ache esse acordo inteiramente adequado.
Nosso povo gostaria de sentir que há mais boa vontade por parte dos soviéticos de considerar a proposta, que não é propriamente nossa, mas do Ocidente.
KRUSCHEV: Sobre o acordo de Ialta, temos diferentes pontos de vista sobre quem o rompeu. Não concordamos com a política dos EUA de que eles querem libertar a Europa e os países do Leste do socialismo. Eles não somente anunciaram, como deram dinheiro para isso. Criaram estações de rádio e fazem propaganda.
Eles nos culpam de ser os responsáveis pela (antiga) Tchecoslováquia ter estabelecido um regime socialista. Mas todos sabem que quando a revolução aconteceu na Tchecoslováquia, nem um só soldado russo estava em seu território.
A senhora sabe, sra. Roosevelt, o que aconteceu na Grécia –o desejo do povo foi destruído por tanques ingleses. Quando o próprio sr. Churchill atravessou o país em um tanque, o desejo do povo foi destruído. Após as tropas inglesas irem embora, vieram as tropas americanas.
ROOSEVELT: O senhor se importa se eu disser que nós acreditávamos que não era o desejo do povo? Nós acreditávamos que a maioria do povo queria o rei de volta e não queria os socialistas. Veja, esta é a diferença entre nós.
Então eu gostaria de ir para minha terceira questão, que é: o governo da União Soviética ainda acredita que o mundo se tornará comunista? Ou acredita que os dois sistemas podem coexistir em paz, porque este é o xis da questão?
O senhor diz que nós tentamos impedir estas nações de se tornarem socialistas, mas é porque acreditamos que a União Soviética deseja se estender pelo mundo, não somente pelo uso de soldados mas por meio de outros agentes, que nossa desconfiança cresceu.
KRUSCHEV: Também sou um agente?
ROOSEVELT: Pelo que sei, deve ter sido. Mas o que se acredita em nosso país é que vocês escalaram agentes com esse objetivo.
KRUSCHEV: Mas quem escalou?
ROOSEVELT: Acredita-se que há um esforço constante –vamos dizer sugestão– às pessoas de que o mundo se tornará assim. Agora, nós não acreditamos que o mundo será assim. Nós acreditamos em nosso jeito e vocês em seu jeito.
KRUSCHEV: Por isso colocamos nossos agentes –agentes das filosofias diferentes– nas Nações Unidas.
(Os bons camaradas: Fidel e Kruschev em 1960. Foto: Marty Lederhandler)
ROOSEVELT: Podemos viver no mesmo mundo sem tentar destruir um ao outro, e, portanto, ameaçando um ao outro? Ou vamos continuar nessa constante ameaça de guerra porque ambos pensamos que o outro está tentando promover somente a sua filosofia para o mundo inteiro?
KRUSCHEV: Duas questões, sra. Roosevelt, duas questões. A primeira é sobre duas filosofias que poderiam conviver em paz. Sem dúvida, sra. Roosevelt, nós precisamos viver em paz, nós precisamos viver, nós precisamos. (Dr. David Gurewitsch interrompe: não somente precisamos viver em paz, mas nós queremos viver em paz e nós nos esforçamos para viver em paz nos EUA).
ROOSEVELT: Concordo.
KRUSCHEV: Nós também queremos ter, veja, alguma coisa em comum em nossa atividade econômica, em nossa vida cultural.
ROOSEVELT: Sua filosofia sozinha pode se espalhar pelo mundo porque esse é o lema, no topo de seu jornal, por exemplo?
KRUSCHEV: Sim, temos um lema: “proletários de todo o mundo, uni-vos”. Não foi minha idéia. Nós diferimos sobre nossos assuntos externos. Nunca me escondi destas questões.
A frase que, estou seguro, disse ao Columbia Broadcasting System foi: o comunismo vencerá no mundo inteiro. Isso é baseado cientificamente nos escritos de Marx, Engels e Lenin. Seu povo nos EUA é culto, então sabe que todo tipo de mudança ocorre na economia e que as relações entre as nações mudam –feudalismo, capitalismo e então socialismo. E o estágio mais elevado será o comunismo. Isso é bem conhecido, é o sentido da história.
Quando um estado muda sua ordem, é problema do povo. Nós somos contrários a tentativas militares de introduzir o comunismo ou o socialismo em qualquer país, assim como somos contrários à sua interferência em restabelecer o capitalismo em nosso país através de intervenção militar. É por isso que insistimos na coexistência e colaboração.
ROOSEVELT: Eu poderia concordar que mudanças ocorrem no mundo. Poderia concordar que nenhuma ação militar deveria impedir essas mudanças. Diria inclusive que é essencial que não haja interferência de nosso país em países comunistas, a não ser por meio de intercâmbio e observação pacíficos.
Mas o mesmo vale para os países socialistas. Se há uma movimentação para impor ideias comunistas, fica difícil viver em uma atmosfera pacífica.
KRUSCHEV: Nós falamos sobre interferência, sra. Roosevelt, e a senhora sabe o que seu Departamento de Estado faz nesta esfera. Deixe o Sr. Dulles (então secretário de Estado, John Foster Dulles tinha uma postura fortemente anti-comunista) informar o que o Sr. Henderson (o diplomata Loy Henderson, sub-secretário de Estado) tinha em vista quando visitou a Turquia e o resto dos países do Extremo Oriente. O sr. Henderson tinha uma missão bem suja.
ROOSEVELT: Acho que a situação de todo o Oriente Próximo esteve bem ruim, mas nós pensamos que a União Soviética começou isso quando deixou que armas da Tchecoslováquia fossem para o Cairo. Hoje sabemos que eram soviéticas ou de aliados as armas usadas pelos egípcios.
O senhor sabe que durante longo tempo os egípcios vêm dizendo a Israel que iriam empurrá-los até o mar. Israel foi aceito como país pelas Nações Unidas. É um Estado que poderia ajudar, por possuir avançada tecnologia, a melhorar as condições de vida em todo Oriente Próximo se estas nações pudessem todas sentar juntas para uma discussão pacífica.
Mas agora vocês estão armando a Síria para preservar o que chamam de “neutralidade síria”.
Outro dia li no jornal que nós demos 117 milhões de dólares a Israel e que lhe dissemos para ocupar a zona desmilitarizada entre a Síria e Israel. Nós podemos ter dado o dinheiro, mas nunca dissemos para eles que ocupassem a zona. Estou segura disso.
Acredito que esta situação poderia ter sido infinitamente melhorada há muito tempo por ambos, soviéticos e nós. Por causa do fluxo de armas para o Egito e a Síria, agora sentimos que, quando outros países árabes pedem armas, nós temos de ajudá-los.
Meu sentimento é de que se nenhum de nós tivesse dado armas, mas ajudado a melhorar as condições de vida das pessoas, estaríamos fazendo algo útil. Hoje o que há é nada mais que uma corrida para ver qual de nós pode estar no prato de cima desta balança do poder militar.
(Kruschev foi fácil. A sogra de Eleanor, Sara, é que era osso duro de roer)
5 October 1957
CINCINNATI—Questionei Nikita S. Kruschev, líder do Partido Comunista da União Soviética, em minha entrevista com ele em Ialta, sobre a posição soviética no Oriente Próximo e ele acusou os Estados Unidos de vender primeiro armas a países nesta área. Aqui está a continuação da entrevista:
ROOSEVELT: Não podemos chegar a uma reconsideração de nossa inteira atitude no Oriente Médio?
KRUSCHEV: Sra. Roosevelt, a senhora não sabe das propostas que foram feitas pela União Soviética, de que nenhum país poderia vender armas a qualquer país do Oriente Próximo. Os EUA recusaram.
(Dr. David Gurewitsch, interrompendo: Recusamos somente após as armas já terem sido enviadas ao Egito e à Síria pela União Soviética. O equilíbrio já havia sido destruído.)
KRUSCHEV: O senhor é o chefe dos suprimentos militares, Dr. Gurewitsch? Não considero que o senhor conheça a situação exata.
ROOSEVELT: Não acho que nenhum de nós conheça a situação exata, mas isto poderia, de qualquer maneira, ser levado à conferência de desarmamento ou às Nações Unidas.
KRUSCHEV: Pergunto à senhora: Quem começou primeiro a vender armas para estes países? Nós ou vocês? O que me diz do Paquistão?
ROOSEVELT: Acho que foram vocês. O Paquistão não está no Oriente Próximo. É bem mais longe.
(Dr. Gurewitsch, interrompendo: A questão era: quem vendeu armas primeiro?)
ROOSEVELT: Eu diria que nós acreditamos que a União Soviética começou primeiro a vender armas a outros países. Acho que a única coisa que se pode fazer agora é levar a questão às Nações Unidas e tentar algum acordo
KRUSCHEV: A senhora não respondeu minha questão. Vocês não gostam de comunistas e eu não tenho nada contra isso, porque pode ser que eu não ame pessoas que estão em outros sistemas. Mas as pessoas precisam ser honestas. Por isso faço essa pergunta: quem vendeu primeiro armas a outros países e não só vendeu, mas entregou gratuitamente? Quem foi o primeiro?
Tenho muito respeito pela senhora e aprecio as atividades de seu grande marido, Franklin Roosevelt, mas o mundo inteiro sabe que os EUA começaram primeiro a fornecer armas, então eu esperava francamente ter uma conversa honesta. Do contrário não estaremos seguros sobre a interpretação desta conversa.
ROOSEVELT: Estamos falando do Plano Marshall?
KRUSCHEV: Não importa se é o Marshall ou qualquer outro plano. Eu sei que os EUA armaram todos os nossos inimigos.
ROOSEVELT: A ênfase do plano Marshall era no desenvolvimento econômico dos países.
KRUSCHEV: Armas são ajuda econômica?
ROOSEVELT: Concordo que muitos países no Ocidente receberam armas, e vejo agora que a União Soviética sente que foram fornecidas contra seu país. Mas nós, nos EUA, diríamos que tínhamos chegado a um ponto em que começamos a sentir que a União Soviética possuía intenções militares contra o Ocidente.
KRUSCHEV: Para que as armas foram fornecidas? Nós nunca as usamos na hora do chá.
ROOSEVELT: Acho que nossa primeira suspeita surgiu na época do “Bloqueio de Berlim”, quando os soviéticos pareciam estar tentando nos expulsar de lá (entre junho de 1948 e maio de 1949, suprimentos foram entregues via aérea em Berlim Ocidental, já que os soviéticos bloquearam o acesso rodoviário, ferroviário e hidroviário à cidade). Garanto ao senhor que nós cometemos erros, mas acho que vocês também. Estando aqui, me dei conta de que seu povo não quer a guerra.
KRUSCHEV: Se a senhora diz que o povo não quer a guerra, quem quer, seus representantes?
ROOSEVELT: O governo, talvez, já que faz coisas, em ambos os lados, que acreditam ser em defesa do povo. Isto acontece em seu país e provavelmente no nosso.
KRUSCHEV: Isto acontece no seu país.
ROOSEVELT: Se é assim, também no seu.
KRUSCHEV: Não no meu, definitivamente.
ROOSEVELT: Ah, acontece. Governos são muito parecidos.
KRUSCHEV: Existem sinais. Há lógica; existe o histórico, então precisamos checar. Que tropas se aproximaram da fronteira? Os soviéticos se aproximaram da fronteira americana? Foram os americanos que se aproximaram da fronteira soviética. Sim, eles estão lá.
ROOSEVELT: Nós não tentamos entrar na União Soviética.
KRUSCHEV: Tentaram.
ROOSEVELT: Não tentamos. Mas isso poderia ser tomado somente como uma atitude defensiva se tivéssemos alguma forma de coexistência amigável. Não podemos continuar nos armando de ambos os lados. Poderíamos trabalhar por um maior intercâmbio de pessoas em todos os níveis para conseguir um maior entendimento?
KRUSCHEV: Estou surpreso, sra. Roosevelt. Talvez a senhora não esteja muito bem informada sobre a situação. Nós nunca nos recusamos. Nós sempre permitimos que as pessoas viessem aqui, mas vocês nunca deram vistos a nossos cidadãos.
ROOSEVELT: Nós nem sempre permitimos que comunistas venham aos EUA nem vocês sempre permitem que pessoas deixem seu país, mesmo que conseguíssemos vistos para eles.
KRUSCHEV: Conte-nos sobre alguém que não fosse autorizado a entrar aqui.
ROOSEVELT: Não estou dizendo que vocês não permitem que pessoas venham a URSS, mas vocês levam muito tempo para garantir seus vistos.
Do seu lado, vocês não querem aceitar nossas impressões digitais. E nós não vemos nenhum problema em tomar impressões digitais. O que nos preocupa é a dificuldade das pessoas que querem deixar a União Soviética, até mesmo para visitas.
KRUSCHEV: Nós autorizamos todo mundo a vir aqui, não importa o quanto ele desgoste da União Soviética, para ver como é. Não temos medo.
ROOSEVELT: Eu poderia resumir o sentimento do povo dos EUA dizendo que o que os soviéticos fizeram em Berlim originaram nossas desconfianças. Coréia do Norte, Vietnã do Norte, Egito e Síria se somaram a elas. Os mal-entendidos cresceram e há medo em ambos os lados. Temos que fazer algo para criar confiança. Uma coisa que pode ser feita é um intercâmbio maior de pessoas.
KRUSCHEV: Concordo totalmente, Sra. Roosevelt.
(Eleanor recebe Kruschev na biblioteca Franklin D. Roosevelt em 1959)
ROOSEVELT: O senhor tem alguma sugestão ou alguma pergunta para mim?
KRUSCHEV: Nós colocamos várias vezes nossas propostas. Mas os EUA estão acostumados a ditar, a ordenar, então falam somente sobre as condições que irão aceitar. Quero esclarecer em termos de palavras e ações. Onde estão as tropas e de quem são as tropas?
ROOSEVELT: Se pudéssemos parar de pensar por um momento sobre armas atômicas, ainda assim teríamos na URSS um exército de prontidão tão grande que poderia mover-se rapidamente pela Europa, e isso faz os europeus ficarem temerosos se não possuem nenhuma defesa.
KRUSCHEV: Houve um tempo em que na Alemanha, na Inglaterra e na França não havia nenhum exército americano e nosso exército era muito maior, mas nós não fizemos nada. Não somos estúpidos ao ponto de fazer truques. Nunca tentamos nada contra estes países.
ROOSEVELT: Quando você lê um jornal na União Soviética, vê muito poucas notícias sobre o estrangeiro. Todas as menções sobre os EUA são sobre alguma coisa ruim que aconteceu lá. Por exemplo, as únicas notícias que vi foi o que ocorreu em Little Rock, Arkansas, sobre integração (racial) nas escolas, mas este problema afeta 7 de 48 estados.
KRUSCHEV: Mas estes sete Estados são os EUA da América.
ROOSEVELT: Somente uma parte pequena.
KRUSCHEV: Nós temos também repúblicas pequenas. Elas integram a URSS e são iguais em direitos.
ROOSEVELT: Nós não temos controle central, então nossos Estados possuem direitos específicos.
KRUSCHEV: Em nosso país, cada república tem seus próprios direitos. Elas são independentes. Mas vamos voltar à questão que a sra. falou: vocês dizem alguma coisa boa sobre a URSS em seus jornais?
ROOSEVELT: Acho que tem melhorado, e não há toda essa vilanização que encontro nos jornais aqui. Mas gostaria de dizer que não sinto antagonismo conosco entre o povo. Eles são muito afetuosos e receptivos.
ROOSEVELT: Vocês estão ansiosos por um maior intercâmbio econômico?
KRUSCHEV: Sim, estamos. Não porque necessitamos, mas porque o intercâmbio econômico é a melhor maneira de intensificar as relações. Vocês não querem ter relações comerciais com nosso país porque não querem nos dar segredos militares. Mas não importa, porque nós temos armas atômicas. Não vamos comprar armas de vocês, mas ficaríamos contentes de fazer negócios.
(Aqui Dr. Gurewitsch interrompeu e disse: O que mais pode ser feito para melhorar nossas relações?)
ROOSEVELT: É o que estou mais ansiosa para descobrir.
KRUSCHEV: Diga a verdade para o povo dos EUA. Diga a verdade sobre o governo soviético e sobre nosso país. Vocês odeiam comunistas.
ROOSEVELT: Eu não odeio os comunistas enquanto povo. O que acontece é que acredito que, através de uma democracia livre, se desenvolve um povo mais independente e forte e se dá a eles a oportunidade de conquistar mais. É uma opinião pessoal e posso entender bem a crença socialista, mas isso não significa que eu queira ver esta crença espalhada utilizando métodos de propaganda que não são sempre abertos e legítimos –por métodos ocultos.
Estou bastante aberta a que ambos possamos fazer o possível para provar, no futuro, que do nosso jeito é melhor. Mas sinto que temos de achar um método para conseguir relações mais amigáveis ou isto acabará numa guerra que nenhum de nós quer.
(Dr. GUREWITSCH, interrompendo: O senhor acabou de dizer: “Nós amamos a paz mas estamos convencidos de que o comunismo irá se espalhar pelo mundo.” Como isto será feito pacificamente? Ou o senhor reconhece que uma ideia oposta tem alguma chance ou simplesmente borra a oportunidade de coexistência. O senhor precisa aceitar que as duas coisas podem   continuar, ainda que não cheguem jamais a um ponto comum.)
KRUSCHEV: Muitas pessoas acreditam que o comunismo é melhor que o sistema que existe hoje.
(Dr. GUREWITSCH de novo: Não há uma contradição no que o senhor está dizendo? Conversamos sobre coexistência e no mesmo minuto o senhor diz que está convencido de que o comunismo se espalhará pelo mundo. Vocês não estão fazendo todo o possível para acelerar este processo?)
KRUSCHEV: Oh, não, não há contradição. O que eu disse sobre o comunismo se espalhar é como falar sobre as leis da natureza. Estou firmemente convencido de que é o curso natural da história e não tem nada que ver conosco convivendo pacificamente juntos e parando de tentar destruir-nos um ao outro.
ROOSEVELT: Ambos sabemos, então, que as bombas são perigosas e que podem aniquilar o mundo.
KRUSCHEV: Somos a favor do desarmamento completo. Não necessitamos armas se vocês aceitarem nossa existência e pararem de interferir onde querem.
ROOSEVELT: Nós também somos pelo desarmamento, mas é preciso que haja alguma inspeção internacional.
KRUSCHEV: Nós aceitamos a inspeção, mas primeiro tem que haver confiança e depois inspeção. O sr. Dulles quer inspeção sem confiança.
ROOSEVELT: Acho que a confiança e a inspeção tem que vir juntas. Precisamos começar e gradualmente ampliar nossos planos.
KRUSCHEV: Ótimo. Só gradualmente isso pode acontecer.
ROOSEVELT: O senhor concordaria com uma inspeção limitada se nós começássemos?
KRUSCHEV: Mas eu concordei. É o que propusemos, inspeção em portos, rodovias, estradas, aeroportos, e tem que ser uma inspeção entre nações. Mas em resposta a sua proposta, o Sr. Dulles fez um pronunciamento que soou tão forte como se tivesse fazendo propaganda da bomba atômica, tentando fazer disto algo palatável. Ele fala de uma bomba limpa, como se fosse possível algo assim. Guerra é uma coisa suja.
Mas vocês recusam nossa sugestão. Vocês insistem neste negócio dos aviões e em olhar nossas fábricas. Vocês sabem que estes foguetes fizeram a situação mais aterrorizante. Agora podemos destruir países em poucos minutos. Quantas bombas são necessárias para destruir a Alemanha Ocidental? Quantas para destruir a França? A Inglaterra? Somente umas poucas. Nós temos agora a bomba H e foguetes. Não precisamos nem mesmo enviar nenhum bombardeiro.
ROOSEVELT: E logo pequenos países terão bombas atômicas.
KRUSCHEV: Por que não? As pesquisas continuam, eles estão aprendendo. Temos que estar juntos para que não ocorra a guerra. Precisamos assinar algum acordo agora.
ROOSEVELT: Seu povo certamente quer paz, e posso assegurar que o nosso também.
KRUSCHEV: A senhora acha que nós, o governo, queremos a guerra?
ROOSEVELT: Não são as pessoas que fazem as guerras, mas os governos. E então persuadem as pessoas que são por uma boa causa, para sua própria defesa. Estes argumentos podem ser feitos tanto por nosso governo como pelo seu.
KRUSCHEV: Certo. Podemos dizer que tivemos uma conversa amigável?
ROOSEVELT: Podemos dizer que tivemos uma conversa amigável, mas divergimos.
KRUSCHEV: Bem, não atiramos um no outro.
Isto foi realmente o fim do que posso transmitir a vocês em termos de citações. Houve, porém, uma discussão muito interessante sobre um tema de grande interesse, porque é sobre o Oriente Próximo. Então dedicarei minha próxima coluna a esta parte da conversa, apesar de não citar as palavras exatas do Sr. Kruschev.
(NOTA DO EDITOR: Como a Sra. Roosevelt está sendo pressionada continuamente a revelar informações sobre sua entrevista com Nikita S. Kruschev e não quer fazê-lo antes de que apareça em sua coluna, o resto da entrevista está aqui. Por isso está maior do que usualmente.)
(O célebre aperto de mão com Kennedy em Viena, em 1961…
…mas pelo visto ele gostou mais de Jackie)
8 October 1957
DETROIT—Uma das questões que submeti ao sr. Kruschev após a gravação ter terminado era sobre sua atitude a respeito da situação do Oriente Próximo e o tratamento dos judeus na União Soviética, como também sobre alguns de seus pronunciamentos sobre o Estado de Israel.
O sr. Kruschev pareceu muito ansioso para nos fazer entender que um comunista não poderia ser um anti-semita. Comunismo é o oposto a todo tipo de discriminação por raça ou religião e se um membro do partido se revelasse um anti-semita, ninguém o cumprimentaria. Se Karl Marx era judeu, como poderíamos acreditar que algum comunista poderia ser anti-semita? Seu próprio filho, que foi morto na guerra, ele nos disse, era casado com uma judia. Na União Soviética, continuou, os judeus recebem todas as oportunidades para se educar e assegurar posições na vida. Ele então disse que os soviéticos votaram a favor da criação do Estado de Israel, mas no momento acham que Israel deveria mudar sua política e ser menos agressivo.
Sugeri que o fato de a União Soviética ter dado armas para a Síria seja uma das razões para que Israel se sinta inseguro e por isso se mostre agressivo. Ele se inflamou e disse que existem 80 milhões de árabes e 1 milhão de israelenses, então se Israel continuar sua política será destruído. Quem atacou o Egito?, ele perguntou. Não foram a Grã-Bretanha, a França e Israel?
Respondi que tínhamos de separar a atitude de Israel da francesa e da britânica. Israel ouvira durante um ano dos egípcios que quando eles estivessem completamente armados pelos soviéticos iriam empurrar os israelenses até o oceano. Então a ação de Israel foi de auto-defesa, porque não podiam esperar até que o ataque contra eles estivesse pronto. Prova disso foi que, no deserto do Sinai, os israelenses encontraram mais de 50 milhões de dólares em material militar que tinha sido fornecido pelos soviéticos ou por seus aliados.
O sr. Kruschev se esquivou desta. Quando adicionei que acho que ele está equivocado ao dizer que Israel era agressivo, porque necessita paz mais que qualquer outro lugar no mundo para fortalecer seu país, ele se virou para mim e disse: “Os EUA estão fornecendo armas a Israel”. Aqui o dr. Gurewitsch interrompeu e disse: “Mas você lembra que os EUA votaram com vocês na questão de Suez?”
O sr. Kruschev respondeu que lembrava muito bem, mas que era evidente que os EUA queriam ficar bem com os dois lados. Eles não queriam perder os árabes por causa do petróleo, e os árabes entenderam isso muito bem. Então virou-se para mim para dizer quão estúpida ele achava a ideia de que existia anti-semitismo na União Soviética. Eu não sabia que havia muitos judeus em altas patentes no exército soviético, incluindo um general judeu, e que havia um judeu enterrado dentro dos muros do Kremlin?
Pensei que poderia adotar suas táticas de ataque nesse momento, e disse: “De qualquer maneira, senhor, é muito difícil para qualquer judeu deixar a União Soviética se ele desejar se estabelecer em Israel ou até mesmo visitar o país”.
“Eu sei”, respondeu o sr. Kruschev sem hesitar; “mas chegará o tempo em que qualquer um que queira ir poderá fazê-lo”.
Eu disse então que achava que a União Soviética poderia ajudar se estivessem querendo trabalhar ao lado dos Estados Unidos para conseguir um entendimento entre Israel e os países árabes. Israel estava dispostoa sentar com os representantes árabes e tentar resolver suas dificuldades, mas os árabes sempre se recusaram.
O sr. Kruschev respondeu que sabia muito bem que os árabes cometiam erros; mas nós precisamos lembrar que a União Soviética agia por uma classe, não por um Estado. Israel consiste em todos os tipos de classes; os soviéticos podiam agir pelos socialistas em Israel, não pelo Estado! (Presumo que quando o sr. Kruschev falou em “socialistas”, quis dizer comunistas.)
(Eleanor e os direitos do homem)

Não há dúvida que os soviéticos estão tentando integrar os judeus completamente. Inclusive estão orgulhosos do fato de permitirem a várias repúblicas manter suas próprias culturas, sua própria arte e linguagem. Mas os judeus na União Soviética não estão numa república à parte; eles estão espalhados em diferentes cidades. Acho que os soviéticos sentiram que poderiam fazer bom uso dos cérebros dessas pessoas, mas eles os querem como comunistas, não como um povo com uma cultura diversa e talvez com outra crença política. É por isso que não existe um teatro judeu na União Soviética. Eles permitem que atendam à sinagoga, assim como permitem que as pessoas vão às igrejas ortodoxas ou batistas. Cada uma destas religiões pode manter um certo número de rabinos ou ministros. Mas não há uma escola judaica para crianças, já que eles querem que os judeus frequentem escolas soviéticas comuns.
É bem verdade que os judeus ocupam altos postos nos ministérios entre doutores, professores, cientistas, etc. Mas a cultura judaica certamente não é encorajada, e estou segura de que um número significativo de judeus ficaria feliz de obter permissão para visitar Israel por algum tempo. Teremos que esperar para saber quando a promessa do Sr. Kruschev de que “o tempo virá” será cumprida (isso só acontece a partir de 1969, quando os judeus soviéticos passam a ter direito à emigração. Já era presidente da URSS Leonid Brejnev, que substituiu Kruschev).

domingo, 3 de março de 2013

Cebes denuncia: Pacote de estímulo a planos privados de saúde é mais um golpe no SUS


do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), via e-mail

O Sistema Único de Saúde — SUS — tem sofrido sucessivas derrotas, sendo uma das mais emblemáticas e dolorosas a indigesta aprovação da Emenda Constitucional-29 sem a destinação dos necessários 10% da Receita para a saúde.
No dia 27/02/2013 a Folha de São Paulo 1/1-Cotidiano (FSP) publicou matéria intitulada “União quer ampliar acesso a Planos de Saúde”, segundo a qual a Presidenta Dilma estaria negociando com as grandes empresas do setor privado da saúde (Qualicorp, Bradesco e Amil) medidas de redução de impostos, ampliação de financiamento para infraestrutura hospitalar e solução para as dívidas das Santas Casas. Segundo o jornal, o objetivo seria o de facilitar o acesso das pessoas aos planos privados de saúde com o compromisso de elevar o padrão de atendimento, anunciando que setores do governo celebram esse pacote como uma nova marca para a saúde.
A notícia de um “pacote  com medidas de estímulo” às empresas de planos e seguros do setor privado da saúde é mais um golpe no SUS, além de ser uma medida inconstitucional. A Constituição Federal de 1988 Art. 199 § 2º afirma que “É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”. Os planos e seguros de saúde são empresas que, por sua própria natureza, visam o lucro acima de tudo, independente de jogar com a saúde e a vida das pessoas. Constituem-se em um poderoso e lucrativo setor sem compromissos com indicadores de saúde e sem controle social.
Quem precisa urgente de “estímulo” é o SUS, que contrário do que prevê a Constituição, está se tornando complementar às instituições privadas na prestação de serviços, sobretudo na atenção medica especializada e hospitalar. O atual governo pode passar para a história como um dos responsáveis pela extinção da possibilidade e viabilidade do SUS como um sistema público universal  que deve oferecer atenção integral.
O CEBES, diante da notícia veiculada manifesta profunda preocupação com a hipótese que esta noticia seja de fato configurada como estratégia de governo e, tal como todo o movimento sanitário, encontra-se em alerta máximo contra essa iniciativa que compromete irreversivelmente o Sistema Único de Saúde como projeto de saúde para a sociedade brasileira.
É preciso lembrar o Governo de que a ampliação da oferta de planos de saúde para a classe media constitui um atentado ao direito à saúde e um retrocesso na consolidação do SUS como sistema universal, integral e de qualidade, além de representar uma perversa extorsão para a população que paga barato, mas tem plano com cobertura de atendimento restrita que não dá conta das necessidades de saúde das pessoas. É falacioso e desonesto atribuir mérito da desoneração do SUS a esta estratégia da expansão da oferta de planos privados.
O Movimento Sanitário integrado por intelectuais, pesquisadores, estudantes, gestores, profissionais de saúde, movimentos sociais de usuários do SUS e ativistas, vem reclamando por mais recursos orçamentários para o SUS por constatar a precariedade da assistência oferecida fruto, dentre outras causas secundarias, do baixo investimento publico no setor saúde.
Nosso objetivo é consolidar o SUS constitucional que a população brasileira conquistou onde saúde é um direito universal e um dever do Estado. Por isso nossa posição é radicalmente contraria à expansão do mercado privado da saúde que se apresenta hoje financeirizado  e comprometido eticamente com os interesses do capital, sem nenhuma responsabilidade sanitária. Da mesma forma seremos implacáveis na defesa de que seja cessada a sangria das transferências de recursos públicos para o setor privado, especialmente com a compra de serviços, em detrimento de ampliar a oferta de serviços públicos.
O Brasil precisa de um projeto estratégico de fortalecimento e consolidação do SUS, a noticia veiculada pela FSP leva à constatação de que, de forma deliberada ou não, prevalece sobre a saúde uma visão fiscalista, em que o fomento do mercado de planos aparece como solução “pragmática” para desonerar as contas públicas compondo o ideário de setores economicistas da atual coalizão governamental.
Em termos concretos, como desdobramento desse cenário político-ideológico, o subfinanciamento do SUS e a captura da ANS revelam uma opção pelo crescimento e pela autorregulação do mercado de planos de saúde, valorando positivamente o subsistema privado e a estratificação de clientela. Um desvio, ou melhor, um erro estratégico que fere de morte o artigo 196 da Constituição.
O elevadíssimo custo dos  sistemas privados de saúde em países capitalistas que não contam com sistema públicos universais integrais como   é o caso americano, tem induzido uma ampliação da intervenção governamental. Essa experiência deveria ser exemplar na defesa e fortalecimento do sistema publico brasileiro. Ao contrário, no Brasil, após a extinção da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) – uma vitória da oposição em fins de 2007 – observa-se no interior do governo Dilma, um franco interesse em ampliar os incentivos governamentais para o setor privado, apesar deste já contar com subsídios escandalosos.
Em razão das atuais circunstâncias históricas, o CEBES não acredita nem aposta que as relações mercantis do setor saúde poderão ser extintas por decreto e, nessa perspectiva dirigimos nossa mobilização para que as eleições presidenciais de 2014 constituam um momento oportuno para reagregar o bloco histórico identificado com os direitos sociais, com o SUS universal e com uma reforma sanitária que tenha como norte a solidariedade e os direitos sociais como referencia civilizatória.

O neoimperialismo na África

Do redecastorphoto
África e AFRICOM: “Neoimperialismo e a arrogância da ignorância”
Franklin C. Spinney*, Counterpunch
Africa and AFRICOM: “Neo-Imperialism and the Arrogance of Ignorance”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Muitos norte-americanos não veem o quão profundamente os EUA estão-se envolvendo militarmente no turbilhão de conflitos que varrem a África Saariana e Subsaariana. O caos está mapeado a seguir:

Embora relatos recentes tendam a concentrar-se na tentativa dos franceses para expulsar para fora do Mali a Al Qaeda no Maghreb Islâmico [Al Qaeda in Islamic Maghreb (AQIM) – esforço que pode já se estar convertendo em complexa guerra de guerrilhas, a operação francesa não passa de versão, em pleno século 21, de disputa, à maneira do século 19, pelos recursos da África. É política que, do ponto de vista dos EUA, relaciona-se, bem provavelmente, ao “pivô em direção à China”, dado o crescimento do mercado e a presença chinesa na África no campo da ajuda humanitária. Juntos, a disputa feroz e o “pivô” bastarão para desencadear no Pentágono um movimento de sequestro, no curto prazo, de todos os conflitos, com a correspondente cascata de dinheiro antevista no longo prazo.
Ano passado, Craig Whitlock do Washington Post ofereceu um mosaico do envolvimento dos EUA na África e publicou uma série de excelentes reportagens. O mapa a seguir apresentado:


é uma espécie de resumo das matérias de Whitlock (e outros), com informes para serem distribuídos às populações muçulmanas na África Central. Considerem-se as distâncias envolvidas nesse enxame de bases (os pontos vermelhos): só a distância entre as bases distribuídas no eixo noroeste-sudoeste no continente africano é maior que a distância entre New York e Los Angeles. Considerem-se as diferenças étnicas e tribais entre Burkina Faso e Quênia, para nem falar das diferenças internas, dentro desses países. E lembrem que praticamente todo o norte da África, do Marrocos ao Egito, é mais de 90% muçulmano.
Por mais que a correlação entre populações muçulmanas e as atividades de intervenção norte-americana nesse mosaico de diferenças culturais sugira um leque de diferentes mensagens para diferentes públicos, só uma generalização é absolutamente garantida, dada a história recente das intervenções norte-americanas: a presença continuada e o envolvimento crescente do Comando dos EUA na África, AFRICOM, só fará inflamar cada vez mais o relacionamento dos EUA com o Islã militante e, talvez, também com número imensamente maior de islamistas moderados.
Mas consideremos outras possibilidades, para que a loucura se generalize. Por exemplo: considerado o resultado da recente aventura líbia, os islamistas de mentalidade conspiracionista do norte da África (e – porque não? –, também muitos moderados), com queda para ler tendências no formato das nuvens, bem poderão interpretar a corrente de bases do AFRICOM na África Subsaariana como os tijolos iniciais de um covil gigante, que lá estará para acomodar uma nova geração de neocolonialistas europeus, que atacarão do norte, obedecendo à doutrina do presidente Obama que manda “liderar pela retaguarda”. Claro, dadas as distâncias envolvidas e a porosidade que aquelas distâncias implicam, tais divagações de mentes paranóicas não passam de tolices, de um ponto de vista militar.
Mas, se se considera a trilha de mentiras assassinas que os EUA deixaram no Iraque; de incompetência, no Afeganistão; e de arrogante indiferença à sorte dos palestinos, que os EUA comprovaram, ao construir processos de paz que só facilitaram o crescimento de colônias israelenses ilegais, num roubo continuado de terras, por Israel, que se arrasta já por 40 anos, esse tipo de caracterização será moída no moinho da propaganda, como reles fulminações de mentes paranoicas. E, lembre: você é paranoico, mas, nem por isso, os EUA deixarão de sair, armados até os dentes, para acabar com você.
Outro sentido da natureza metastática do envolvimento dos EUA na África pode ser inferido da carregada, terrorista-cêntrica, embora cuidadosamente construída verborragia das “respostas preparadas” que o general de exército David M. Rodriguez entregou à Comissão dos Serviços Armados do Senado, como material de apoio ao que disse, dia 12/2/2013, ao ser confirmado como novo comandante do Comando dos EUA na África, AFRICOM. Convido os leitores a, pelo menos, passar os olhos naquele documento revelador.
As “ameaças” terroristas na África Subsaariana, evidentemente tão tentadoras para os neoimperialistas do AFRICOM, não existem isoladamente. Todas são intimamente conectadas à insatisfação étnico/tribal na África – tema ao qual Rodriguez alude, mas que absolutamente não analisa; nem o general nem seus “sabatinadores” senatoriais, naquele jogo cuidadosamente coreografado de perguntas e respostas.
Muitas dessas tensões, por exemplo, são, em parte, legado das fronteiras artificiais criadas pelos intervencionistas europeus no século 19. Aqueles intervencionistas deliberadamente traçaram fronteiras para misturar grupos étnicos, tribais e religiosos; assim contavam facilitar as políticas coloniais de “dividir para governar”. Os colonialistas do século 19 seguidamente exacerbaram deliberadamente as animosidades locais, impondo grupos minoritários em posições política e economicamente vantajosas, o que fazia crescer as ondas de descontentamento e revide. Stálin, aliás, usou a mesma estratégia nos anos 1920s e 1930s para controlar as repúblicas soviéticas muçulmanas, na região antes conhecida como Turquestão, na Ásia Central. Na URSS, o posicionamento dessas fronteiras artificiais entre aqueles novos “-stões” era amplamente conhecido como “pílulas de veneno” de Stálin.
A crise dos reféns na usina de gás no leste da Argélia, em janeiro passado, ilustra algumas dessas complexidades de profundas raízes culturais que sempre há nesses conflitos. Akbar Ahmed escreveu sobre isso, em mais um de uma série de ensaios fascinantes publicados por Al-jazeera. Essa série de matérias – que considero muito importantes – baseiam-se nas pesquisas para seu novo livro, no prelo, The Thistle and the Drone: How America’s War on Terror Became a War on Tribal Islam [O cacto/cardo e o drone: como a Guerra ao Terror, dos EUA, converteu-se em guerra contra o Islã tribal], a ser publicado em março, nos EUA, pela Brookings Institution Press.
O embaixador Akbar Ahmed é ex-alto comissário do Paquistão no Reino Unido, e ocupa agora a cátedra, apropriadamente batizada Cátedra Ibn Khaldun de Estudos Islâmicos da American University em Washington, D.C.. Considerado um dos pais da moderna historiografia e das ciências sociais, Ibn Khaldum é um dos especialistas mais influentes, no campo da historiografia, na natureza espontânea do tribalismo e de seu papel na construção da coesão social. O núcleo duro do trabalho do professor Ahmed acompanha essa inspiração. Visa a explicar porque a insatisfação espalha-se tão amplamente em todo o antigo mundo colonial, e como, parcialmente, tem raízes numa complexa história da opressão de grupos étnicos e em rivalidades tribais, em toda aquela região. Assim se criou uma teia de tensões entre os fracos governos centrais dos países ex-colônias e os grupos e tribos minoritários que os cercam.
Ahmed diz que essas tensões foram exacerbadas pela resposta militar que os EUA deram ao 11/9. Explica por que as intervenções militares pelos EUA e outras potências europeias ex-coloniais só farão crescer a tensão que já existe entre os governos centrais daqueles países e os grupos oprimidos.
Dentre outras coisa, Ahmed, talvez inadvertidamente, constrói uma crítica devastadora ao fracasso dos EUA, que não souberam respeitar os critérios de qualquer grande estratégia sensível, na reação ao 11/9. Ao confundir um crime horrendo, com ato de guerra, e declarar guerra global ao terror, sem final previsto; e ao conduzir aquela guerra nos termos de uma grande estratégica classicamente falhada, que assumia que “quem não está conosco está contra nós”, os EUA não apenas criaram inimigos que se multiplicam mais depressa do que seria possível matá-los; também, ao fazê-lo, os EUA, sem avaliar qualquer consequência, exacerbaram conflitos locais altamente voláteis, incrivelmente complexos, de raízes locais profundíssimas; assim, os EUA contribuíram para desestabilizar porções gigantescas da Ásia e da África.
Sem avaliar consequências? É dizer pouco. Considere, leitor, o seguinte: muitos leitores, aqui, já ouviram falar de AQIM e, provavelmente, também dos tuaregues. Mas quantos algum dia ouviram falar dos berberes cabila e de sua história na Argélia? (Eu, nunca.) Pois, como ensina o professor Ahmed, os berberes cabila são os fundadores da AQIM – fundação que tem raízes profundas nos seus padecimentos históricos. Assim sendo, a AQIM é mais do que simples “desdobramento” da al-Qaeda.
Nada disso aparece nas respostas do general Rodriguez, apesar de fazer repetidas referências à AQIM e à Argélia. Tampouco se aprenderão essas coisas daqueles senadores, ou de suas perguntas.
Pode-se confirmar pessoalmente, em casa.
Faça uma pesquisa de palavras no pacote de perguntas e respostas do general Rodriguez: ninguém jamais encontrará ali nem vestígios da complexa história que Ahmed explica em seu ensaio para Aljazeera,“The Kabyle Berbers, AQIM, and the search for peace in Algeria” [Os berberes cabila, AQIM e a busca de paz na Argélia]. (Tente, por exemplo, encontrar as palavras AQIM, Kabyle, Berber, history, Tuareg, tribe, tribal conflict, culture, etc. ou use a própria imaginação).
Além de perceber o muito que não se discutiu, observe também como o contexto centrado em ameaças que cerca todas as palavras sempre salta à vista. Compare a esterilidade de tudo que Rodriguez diz e a riqueza da análise de Ahmed. E tire suas próprias conclusões. E lembre: “AQIM” é apenas um dos verbetes, no portfólio de ameaças com que o AFRICOM trabalha. E o quanto nós não sabemos, sobre os outros verbetes?
Como Robert Asprey mostrou em seu clássico War in the Shadows [Guerra nas sombras], em que estuda 2000 anos da história das guerras de guerrilha, o erro mais frequente, sempre cometido por quem pretenda intervir, vindo de fora, numa guerra de guerrilha, é sucumbir à tentação de deixar que a “arrogância da ignorância” modele seus esforços militares e políticos.
Apesar de a arrogância da ignorância já afirmada e reafirmada no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque e na Líbia... já começa a parecer que a conclusão intemporal de Asprey será mais uma vez reafirmada na África.