Entrevistas históricas: o escritor H.G. Wells entrevista Lenin

(o líder comunista e o escritor durante a entrevista)

Em BLOG

O britânico H.G.Wells (1866-1946) já tinha publicado seus famosos romancesA Guerra dos MundosA Ilha do Dr. Moreau e O Homem Invisível quando foi à Rússia, em outubro de 1920, e se encontrou com Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924), o líder da revolução ocorrida no país três anos antes. Wells nunca foi marxista nem acreditava na chegada do socialismo ao poder pela via revolucionária. Sim, era socialista, mas um socialista utópico.
No entanto, ganha visível simpatia e admiração intelectual por Lenin nesse encontro que um amigo em comum, o também escritor Máximo Gorki (1868-1936), tornou possível. Wells chega ressabiado, cheio de críticas ao que viu no país até ali e cético com o futuro da União Soviética, mas nada foi capaz de causar tensão entre os dois: o papo flui de maneira agradável até o fim. Era a segunda vez que Wells visitava a Rússia. Ainda iria lá mais uma vez em 1934, quando entrevistou Stalin, a quem também admirou, mas achou “rígido demais”.
A entrevista foi publicada no The Sunday Express (edição de domingo do Daily Express), entre vários artigos que Wells escreveu sobre a viagem. No ano seguinte, saiu em livro, com o título Russia In the Shadows (Rússia nas Sombras). A conversa com Lenin, que traduzi e transcrevo aqui quase na totalidade, ocupa o penúltimo capítulo do livro. A edição original pode ser encontrada online, em inglês. É uma narrativa fascinante, rica em descrições e muito saborosa, que nada deixa a desejar ao “new journalism” que surgiria apenas 40 anos depois. Espero que desfrutem.
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O Sonhador no Kremlin
Por H.G.Wells
Meu principal propósito ao ir de Petersburgo a Moscou era encontrar e conversar com Lenin. Eu estava muito curioso para vê-lo e estava disposto a ser hostil com ele. Encontrei uma personalidade totalmente diferente de tudo que eu esperava encontrar.
Lenin não é um escritor; seus trabalhos publicados não o retratam. Os pequenos panfletos e ensaios que circulam em Moscou com o seu nome, cheios de falsas ideias sobre a psicologia do trabalho no Ocidente e defensores obstinados da proposição impossível que é a profetizada revolução marxista que aconteceu na Rússia, mostram muito pouco da real mentalidade do Lenin que eu encontrei. De vez em quando há alguns momentos de inspirado brilhantismo, mas em geral estas publicações não mais que abordam as ideias e as frases do marxismo doutrinário. Pode ser que isso seja necessário. Talvez seja essa a única linguagem que o comunismo entenda; uma ruptura em um novo dialeto seria inquietante e desmoralizante. O comunismo de esquerda é a espinha dorsal da Rússia hoje; infelizmente é uma espinha dorsal sem partes flexíveis, uma espinha dorsal que não pode ser dobrada a não ser com extrema dificuldade e que deve ser dobrada mediante adulação e deferência.
Sob o brilhante sol de outubro, entre as folhas amarelas esvoaçantes, Moscou nos impressionou como sendo ao mesmo tempo mais relaxada e mais animada que Petersburgo. Há muito mais movimento de gente, mais comércio e um comparável número de droshkys (carruagens). Os mercados estão abertos. Não há a mesma ruína geral de ruas e casas. Há, isso é certo, muitos rastros dos desesperados enfrentamentos de rua dos princípios de 1918. Um dos domos da absurda catedral de São Basílio, exatamente do lado de fora do portão do Kremlin, estava amassado por um morteiro e ainda necessita conserto. Os bondes que encontramos não carregavam passageiros; estavam sendo usados para transportar comida e combustível. Neste aspecto Petersburgo parece melhor preparada do que Moscou.
As dez mil cruzes de Moscou ainda brilham à luz da tarde. Sobre um pináculo visível do Kremlin as águias imperiais estendem suas asas; o governo bolchevique tem estado muito ocupado ou muito indiferente para tirá-las dali. As igrejas estão abertas, as imagens de santos são uma indústria florescente, e os mendigos todavia cortejam a caridade nas portas. O famoso santuário milagroso da Madona Ibérica, do lado de fora da Porta do Salvador, estava particularmente cheio. Havia muitas mulheres do campo, incapazes de entrar na pequena capela, beijando as pedras do lado de fora.
Do lado oposto, em um painel de gesso colocado em frente a uma casa, está aquela agora célebre inscrição colocada por um dos primeiros governos revolucionários em Moscou: “A religião é o ópio do povo”. O efeito que a inscrição produz é enormemente reduzido pelo fato de que o povo na Rússia não pode ler.
(…)
(Lenin e sua irmã em 1919)
Os arranjos prévios a meu encontro com Lenin foram tediosos e irritantes, mas no fim lá estava eu a caminho do Kremlin na companhia do Sr. Rothstein, uma velha figura dos círculos comunistas londrinos, e um camarada americano com uma câmera enorme que era também, suspeitei, um oficial do ministério das relações exteriores russo.
O Kremlin como eu lembrava em 1914 era um lugar muito aberto, tanto quanto o Castelo de Windsor, com peregrinos e turistas em grupos e casais passeando através dele. Mas agora é fechado e difícil de entrar. Houve uma grande confusão com passes e autorizações antes de que pudéssemos passar ainda pelos portões externos. E nós fomos checados e inspecionados em quatro ou cinco salas de guardas e sentinelas antes de sermos recebidos. Isto pode ser necessário para a segurança pessoal de Lenin, mas o coloca fora de alcance da Rússia e, mais grave talvez, se há de fato uma ditadura, isso põe a Rússia fora de seu alcance. Se as coisas são filtradas até ele, devem ser filtradas abaixo, e então podem vir muitas mudanças no processo.
Encontramos finalmente Lenin, uma pequena figura em uma grande mesa, numa sala bem iluminada com magnífica vista. Achei sua escrivaninha um tanto bagunçada. Sentei-me a um canto da mesa, e o homenzinho –seu pé mal tocava o chão quando ele se sentou na ponta da cadeira– virou-se para conversar comigo, colocando os braços ao redor e sobre uma pilha de papéis. Ele falava um inglês excelente, mas, pensei, era característico da atual condição das relações russas que o sr. Rothstein se metesse ocasionalmente na conversa, fazendo observações e oferecendo ajuda. Enquanto isso o americano começou a trabalhar com sua câmera, e, discreta mais persistentemente, tirava fotos. A conversa, entretanto, estava muito interessante para que isso pudesse ser um incômodo. Esquecemos os cliques bastante rápido.
Eu tinha vindo com a expectativa de discutir com um marxista doutrinário. Não encontrei nada parecido. Tinha ouvido falar que Lenin gostava de dar lições às pessoas; ele certamente não o fez nesta ocasião. Muito se falou de sua risada nas descrições, uma risada que poderia ser prazerosa a princípio e cínica ao final. Esta risada não apareceu. Sua testa me lembrou a de alguém –não pude lembrar quem, até que em uma outra tarde eu vi Sr. Arthur Balfour (ex-primeiro-ministro britânico) sentado e falando sob uma luz fraca. É exatamente a mesma abóbada, o crânio ligeiramente unilateral. Lenin tem uma agradável, mutável, face amorenada, com um vívido sorriso e o hábito (talvez por alguma dificuldade em enxergar) de apertar um olho quando pausa a conversação; ele não se parece muito com as fotografias que você conhece dele porque é uma dessas pessoas cuja mudança de expressão é mais importante que os rasgos; ele gesticulava um pouco com suas mãos sobre os papéis amontoados enquanto falava, e falava rapidamente, muito perspicaz sobre a sua matéria, sem nenhuma pose ou pretensão ou reserva, como um bom homem de ciências falaria.
(Lenin e Trotski no mural “O Homem, Controlador do Universo” do mexicano Diego Rivera)
Nossa conversa esteve alinhavada e unida por dois –como diria? –temas. Um, de mim para ele: “O que você acha que está fazendo da Rússia? Que tipo de Estado está tentando criar?” O outro, dele para mim: “Por que a revolução socialista não começa na Inglaterra? Por que vocês não trabalham pela revolução? Por que vocês não estão destruindo o capitalismo e estabelecendo o Estado Comunista?” Estes temas se entrelaçavam, afetavam um ao outro, iluminavam-se. O segundo trouxe de volta o primeiro: “Mas o que vocês estão fazendo da revolução socialista? Está sendo um sucesso?” E este de volta para o segundo: “Para ser um sucesso o mundo ocidental deve participar. Por que não o faz?”
Antes de 1918 todo o mundo marxista pensava na revolução socialista como um fim. Os trabalhadores do mundo tinham que se unir, derrotar o capitalismo e serem felizes no final. Mas em 1918 os comunistas, para sua própria surpresa, se encontravam no comando da Rússia e desafiados a produzir seu milênio. Eles tinham, na continuidade das condições de guerra, no bloqueio, etcétera, uma pretensa desculpa para o atraso na produção de uma nova e melhor ordem social, mas é claro que começam a se dar conta do tremendo despreparo que implicam os métodos marxistas de pensamento. Em uma centena de pontos –já apontei o dedo em um ou dois deles –eles não sabem o que fazer. Mas o comunista comum simplesmente perde o controle se você se arrisca a duvidar que tudo está sendo feito, sob o novo regime, precisamente da melhor e mais inteligente maneira. Ele é como uma dona de casa irritadiça que quer que você reconheça que tudo está em perfeita ordem no meio de uma ação de despejo. É como uma dessas agora esquecidas “suffragettes” (mulheres que lutaram pelo voto feminino) que costumavam nos prometer o paraíso na Terra tão logo escapássemos da tirania das “leis feitas por homens”. Lenin, por outro lado, cuja franqueza muitas vezes deixa seus discípulos sem fôlego, recentemente desnudou a última pretensão de que a revolução russa seja algo mais do que a inauguração de uma época de experimentação sem limites. “Aqueles que estão engajados na formidável tarefa de vencer o capitalismo”, ele escreveu, “devem estar preparados para tentar método após método até achar aquele cujas respostas atendam melhor a seu objetivo”.
Iniciamos nossa conversa com uma discussão sobre o futuro das grandes cidades sob o comunismo. Eu queria ver até onde Lenin estava acompanhando a morte das cidades na Rússia. A desolação de Petersburgo me trouxe a compreensão de algo que eu nunca tinha me dado conta antes: que toda a forma e a existência de uma cidade são determinadas pelo comércio e pelo mercado, e que a abolição deles torna nove entre dez edifícios, em uma cidade comum, direta ou indiretamente sem significado ou sem uso. “As cidades ficarão muito menores”, ele admitiu. “Elas serão diferentes. Sim, bastante diferentes”. O que, eu sugeri, implicaria em um enorme desafio. Isto significaria riscar todas as cidades existentes e substituí-las. As igrejas e os grandes edifícios de Petersburgo se tornariam então como os de Novgorod o Grande (cidade russa) ou como os templos de Paestum (Grécia). A maioria das cidades se dissolveria. Ele concordou, bastante alegremente. Acho que o confortou achar alguém que entendesse a necessária consequência do coletivismo, o que até mesmo muitos de sua própria gente não conseguiam. A Rússia tem que ser reconstruída inteiramente, tem que se tornar uma nova coisa…
E a indústria também tem que ser reconstruída inteiramente?
Eu me dei conta do que já está acontecendo na Rússia? Da eletrificação da Rússia?
Lenin, que, como um bom marxista ortodoxo, rejeita todos os “utópicos”, sucumbiu afinal a uma utopia, à utopia dos eletricistas. Ele aposta suas fichas em um esquema de desenvolvimento de grandes estações de energia na Rússia para atender todas as províncias com luz, transporte e energia industrial. Dois distritos experimentais já foram eletrificados, ele disse. Alguém pode imaginar um projeto mais corajoso em uma terra enorme e plana, de florestas e camponeses ignorantes, sem energia hidráulica, e com o comércio e a indústria em seu último suspiro? Projetos de eletrificação parecidos estão em desenvolvimento na Holanda e estão sendo discutidos na Inglaterra e, nestes centros densamente povoados e industrialmente desenvolvidos, pode-se concebê-los como exitosos, econômicos e totalmente benéficos. Mas sua aplicação na Rússia representa um ganho ainda maior sobre a imaginação construtiva. Eu não consigo imaginar nada disso acontecendo nesta bola de cristal turva da Rússia, mas este pequeno homem no Kremlin pode; ele vê as decadentes ferrovias substituídas por um novo transporte elétrico, vê novas estradas se estendendo sobre o país, vê um novo e feliz comunismo industrial recomeçando. Enquanto conversávamos ele quase me persuadiu a compartilhar de sua visão.
“E você fará tudo isso com os camponeses fixados em sua terra?”
Mas não somente as cidades serão reconstruídas; toda a agricultura também será.
“Mesmo agora,” disse Lenin, “toda a produção agrícola da Rússia não vem dos camponeses. Nós temos agricultura em larga escala em alguns lugares. O governo já controla grandes propriedades com trabalhadores no lugar de camponeses, onde as condições são favoráveis. Isso pode ser ampliado, primeiro para outra província, e então para outra. Os camponeses em outras províncias, egoístas e ignorantes, não saberão o que está acontecendo até chegar sua vez…”
Pode ser difícil derrotar o campesinato russo em massa; mas por partes não há dificuldade. À menção dos camponeses a cabeça de Lenin chegou perto da minha; seu jeito de falar se tornou confidencial. Como se todos os camponeses pudessem ouvi-lo.
Não é apenas a organização material da sociedade que você tem de construir, argumentei, mas a mentalidade de todo o povo. Os russos são, por hábito e tradição, negociantes e individualistas; suas almas devem ser remodeladas para este novo mundo ser conquistado. Lenin me perguntou o que eu tinha visto do trabalho educativo que está sendo feito. Elogiei algumas das coisas que vi. Ele assentiu e sorriu com prazer. Tem uma confiança ilimitada em seu trabalho.
“Mas são apenas esboços e começos”, eu disse.
“Em dez anos volte e veja o que nós fizemos na Rússia”, ele respondeu.
(o escritor H.G.Wells em sua biblioteca)
Em Lenin eu me dei conta de que o comunismo podia ser, a despeito de Marx, enormemente criativo. Após estes fanáticos chatos da guerra de classes que encontrei entre os comunistas, homens previsíveis tão estéreis quanto o sílex, após numerosas experiências com o orgulho treinado e vazio do devoto homem marxista, este impressionante homenzinho, com sua franca admissão da imensidade e complicação do projeto do comunismo e sua singela concentração sobre a concretização dele, foi muito revigorante. Ele pelo menos tem a visão de um mundo transformado a planejar e construir de novo.
Ele queria mais das minhas impressões sobre a Rússia. Eu lhe disse que achei que em muitos lugares, e mais particularmente na Comuna de Petersburgo, o comunismo estava se impondo muito forte e rapidamente, e destruindo antes de estar pronto para reconstruir. Eles destruíram o comércio antes que estivessem prontos para o racionamento; a organização cooperativa foi  destroçada em vez de ser utilizada, e coisas assim. Isso nos trouxe à nossa diferença essencial, à diferença entre o coletivista evolucionário e o marxista, à pergunta se a revolução é, afinal, necessária, se é necessário destruir um sistema econômico completamente antes que um novo possa começar. Eu acredito que através de uma intensa campanha educativa o sistema capitalista existente pode ser civilizadoem um sistema coletivista mundial; Lenin, por outro lado, se prendeu anos atrás aos dogmas marxistas da inevitável guerra de classes, à derrota da ordem capitalista como prelúdio para a reconstrução, à ditadura do proletariado e coisas do gênero. Ele tinha que argumentar, portanto, que o capitalismo moderno é incuravelmente predatório, perdulário e impossível de reeducar, e que até que ele seja destruído irá continuar a explorar a humanidade estupidamente e sem rumo, que lutará e se prevenirá contra qualquer administração de recursos naturais que seja para o bem geral, e que, porque é essencialmente uma disputa, inevitavelmente fará guerras.
Eu era, admito, um osso duro de roer. De repente, ele sacou o novo livro de Chiozza Money, The Triumph of Nationalisation, que tinha evidentemente lido com muito cuidado. “Veja, se você começa a ter um bom trabalho de organização coletiva com interesse público, os capitalistas destroem de novo. Eles aniquilaram seus estaleiros nacionais; eles não irão deixar vocês trabalharem seu carvão economicamente”. Ele deu um tapinha sobre o livro. “Está tudo aqui”.
E contra o meu argumento de que as guerras vieram do imperialismo nacionalista e não da organizacão capitalista da sociedade ele saiu-se com esta: “Mas o que você pensa do novo imperialismo republicano que vem até nós da América?”
Aqui o Sr. Rothstein interveio em russo com uma objeção a que Lenin não deu importância.
E a despeito da súplica do Sr. Rothstein por reserva diplomática, Lenin continuou a explicar os projetos com os quais pelo menos um americano procurava deslumbrar a imaginação de Moscou. A assistência econômica para a Rússia e o reconhecimento do governo bolchevique. Uma aliança defensiva contra a intervenção japonesa na Sibéria. Uma estação naval na costa da Ásia, e arrendamentos a longo prazo, por 50 ou 60 anos, dos recursos naturais do Kamchatka e possivelmente de outras largas regiões na Rússia asiática. Bem, eu acho que isso seria para a paz? Não seria nada mais que o começo de um novo conflito mundial? O que achariam os imperialistas britânicos deste tipo de coisa?
Sempre, ele insistiu, o capitalismo compete e disputa. É a antítese da ação coletiva. Não pode evoluir para a unidade social ou mundial.
Mas alguma potência industrial poderia vir e ajudar a Rússia, eu disse. Ela não pode se reconstruir agora sem essa ajuda…
Nossos múltiplos argumentos findaram inconclusivamente. Nos despedimos de forma amistosa, e eu e meu colega fomos colocados para fora do Kremlin barreira após barreira, da mesma maneira como entramos.