Lembro que nos setenta a imagem do Che, estampada no muro de algum lugar da avenida e algo desgastada pelo sol e a chuva, me aguardava todos os dias quando me dirigia à Escola. Anos depois, ao final dos oitenta, observei a mesma imagem, quando no meio da praça que leva seu nome – Praça Che – na Universidade Nacional de Bogotá, discutíamos em um encontro estudantil sobre a necessidade de lutar pela redução do valor das matrículas, nossa oposição à guerra contra a União Patriótica e a solidariedade mais efetiva com o movimento agredido pelo paramilitarismo. De volta a nossa Universidade, surgiu a idéia de desenhar um imenso Che em um dos muros centrais da Faculdade. Com um modelo pré-desenhado o trabalho foi mais simples do que pensávamos. Demoramos cerca de três horas – entre as 22 de segunda e a primeira hora da terça-feira. À manhã seguinte o Che estava lá, eterno. Os cabelos ao vento. O olhar no futuro. E não foram poucos os que vieram a dar os parabéns para a gente. Época de lutas na rua, "Livros Sim... Armas Não!", de música e sonhos, os que não se vão ainda que amadureçam e mudemos de cenário. Quarta feira, cedo chegamos à Faculdade. Para nossa surpresa: cadê o Che? Em seu lugar, a parede, agora pintada de branco, um branco intenso, para apagar qualquer sombra. Não pensamos muito, essa noite estava tudo pronto de novo. Na quinta, o Che estava lá. Montamos guarda a noite toda. Os porteiros não deixaram que ingressássemos na Universidade. Mesmo assim vigiávamos em sistema de rodízio. Descobrimos o que já sabíamos, a direção da faculdade contratou pintores para executar o serviço. Os pintores – três – foram convencidos de que não existiam condições objetivas para retirar a imagem, que passou a ser o símbolo da luta ideológica. Era questão de princípios: a pintura do Che era muito mais do que um capricho, pois representava o espírito de resistência organizada de um movimento estudantil que teimava em prosseguir, apesar das ameaças constantes à vida. E nada era mais vivo que o nosso Che. Aquele que, como todo que amamos, o consideramos nossa propriedade. Ao dia seguinte, festa na Faculdade, um grupo de alunos coletou mais de 1000 assinaturas para manter o Che. O resto foram reuniões, discursos, a Universidade sitiada, enfim, histórias a contar em outra oportunidade. A “luta ideológica” Sempre acho que, desde esse episódio, das clássicas formas de luta que se registram tradicionalmente na sociedade entre aqueles que impulsionam a transformação em prol do progresso e a justiça contra os que teimam em perenizar seus privilégios, a luta ideológica me pareceu a mais complexa. Isso porque a idéia é gerar uma consciência tal que motive ou bem seja uma atuação pela modificação ou uma pela conservação do status quo. Nesse campo ideológico, a reconstrução do passado de conquistas e experiências dos movimentos sociais e das constantes práticas políticas dos trabalhadores, camponeses, intelectuais, ou seja, do acervo de lutas dos povos, constitui um dever. Até porque as constantes pressões dos meios de comunicação – aqueles em mãos de transnacionais midiáticas e com laços indissolúveis com a esquematização e mantença do poder por minorias sociais - criam caos, semeiam confusões, distorcem realidades, acomodam fatos. Enfim, tentam sempre impedir o reconhecimento justo aos seres humanos que, para além da própria vida, permitem inspirar a atuação presente e, ainda, oferecer um caminho em perspectiva vitoriosa, com reflexões e ações que, embora desde outra época, ainda podem encontrar validez, quando interpretadas com criatividade, diante do flagrante desrespeito à dignidade humana. Não em vão divulgam valores a partir da promoção de certos heróis e falsos messias, proclamam símbolos que supostamente encarnam os desejos de todos Ainda que finjam de profetas, sabe-se do seu compromisso com poderosos esquemas. Tratam, assim, de moldar pensamentos de muitos, para sustentar ou dar estabilidade à situação que favorece apenas a uns quantos. O fenômeno não é novo. É mais uma constante histórica. O Império Romano mostrava Espartacus, o pastor trácio que lutava contra a escravidão desde o Monte Vesúvio, de maneira sistemática como um assassino, visando criar uma imagem profundamente negativa entre as chamadas personas livres. Em que pese a máquina de propaganda da minoria romana no poder, a força do exemplo de Espartacus tem sido permanente no desenvolvimento de outros episódios em que se pretende o reconhecimento ou ampliação dos direitos. Claro está que, no terreno da luta social, há os referentes legítimos, aqueles que os povos reconhecem, pessoas de carne e osso, que nascem e desenvolvem seu pensamento e ação nas mais difíceis circunstâncias. Como homens, seu diagnóstico sobre assuntos como a correlação de forças em determinado momento e espaço, sobre a conjuntura e a capacidade para agir em favor das mudanças, pode ser sempre discutido, – ao final, são homens, isso não desmerece sua atuação, pelo contrário, a dignifica ainda mais. Contudo, seu compromisso com a mudança histórica necessária, sua legitimidade ética, sua honestidade e transparência como atores históricos não admitem dúvidas. Esses aceleram o curso da história e fazem trânsito a ela e nela. Como o vitupério não faz efeito – insensível, brutal -, então um setor dos formadores de opinião a serviço de interesses bem conhecidos usa uma outra fórmula: pretende convertê-lo em ícone inofensivo, um mito ideológico do qual se retira seu profundo potencial transformador. Assim, aventureiro irracional ou romântico ou até inatingível para o comum dos mortais são adjetivos nesse sentido, como se a aventura e o romance não fossem inerentes ao ser humano ou como se sua vida tivesse transcorrido fora da história. Não, nada há fora da história e, nela, Che, assim como naquele tempo de estudante, continua vivo. Na verdade, não sem certa alegria constatamos que, se há quem tem necessidade de falar tão mal de alguém cuja morte faz 40 anos neste 09 de outubro, então, não há melhor reconhecimento de que seu pensamento, ação, sonhos, imagem e representação persistem ao tempo. No caso, não somente isso acontece, mas Che é ainda escandalosamente ameaçador para aqueles assentados nas galerias atuais do mais selvagem dos modelos econômicos. Assim, a lembrança na nossa época não é melancólica, mas profundamente alegre. Como tampouco a reflexão sobre o vigor do pensamento de Che é uma retrospectiva dogmática ou uma leitura mecânica, mas apenas a constatação de que a apropriação criativa das experiências é uma virtude para todos os que pretendem contribuir a novos tempos. Do nascimento à medicina O caso é que, como se sabe, Che nasce no inverno austral de 1928 na Mesopotâmia Argentina, na antiga região Guarani, de sangre irlandesa e espanhola. Aos dois anos, após uma pneumonia, descobre-se a asma que, aliada ao mate, serão seus companheiros por toda a sua existência. Sua primeira infância em Alta Gracia, na Serra de Córdoba, transcorre em um cenário no qual se misturam a austera elegância pós-colonial e o surgimento de uma classe operária, que prontamente é marginalizada. Ainda que alguns, dentre eles o próprio pai - Ernesto Guevara Lynch –, reconheçam a preocupação do Che com a questão social desde os tempos de juventude, é sabido que ele rejeitava essa idéia: “No tuve nunca preocupaciones sociales durante la adolescencia ni participé mínimamente en la lucha política y estudiantil en Argentina”, diz em carta ao escritor Lisandro Otero, em 1963. Como atesta seu amigo de sempre, Alberto Granado, o que nunca poderia ter rejeitado, ainda que quisesse - e nem sequer por excesso de modéstia -, era sua vocação pela leitura. Pré-adolescente asmático, sem poder realizar grandes esforços físicos, a doença o obrigava a permanecer tranqüilo, o tempo que aproveitava para ler obras de aventuras e personagens míticos. Desfilaram ante seus olhos Julio Verne, Alexandre Dumas e Emilio Salgari. Leu, também, o "Pequeno Príncipe" de Saint-Exupery ao tempo que mostrava notável interesse pela arqueologia e a antropologia. Depois, as leituras de Paul Verlaine, de Baudelaire e Sartre, diretamente do francês e acompanhadas dos comentários da sua mãe – Célia de la Serna –, marcariam um aprimoramento da sua sensibilidade. Caminhou, andou de bicicleta, praticou rúgbi, natação e alpinismo, estudou grafologia e decidiu-se primeiro a estudar engenharia, até que, em 1947, se inscreve na Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires. Paciente de um famoso alergista da época – o Dr. Salvador Pisani –, passou, pouco depois, a ser seu colaborador. Quando em dezembro de 1951 inicia sua viagem com Granado pela América Latina na motocicleta batizada como "A Poderosa", é indubitável que as motivações da leitura o acompanham, ainda que a desculpa oficial seja a visita a alguns leprosários com o objetivo de desenvolver pesquisas sobre alergias e vacinas. O desejo de conhecer o continente, de procurar o sentido da sua própria liberdade, será determinante no futuro e, nesse processo, suas leituras mudam, ligadas agora mais a conhecer a literatura hispano-americana. Conhece a América desde o Chile até a Venezuela e, de volta a Buenos Aires, forma-se em medicina para, em julho de 1953, partir novamente, agora com preocupações que conjugam a ciência e o desenvolvimento do social. De fato, a visão da difícil realidade econômica dos povos da América o impacta desde a sua primeira viagem e inspiram novos horizontes temáticos. Tudo o que é humano interessa, os ritos, as tradições, as lendas. Daí suas visitas a Machu Picchu, mas também às ruínas do antigo Império Maia na Guatemala em 1954 e às do Império Asteca em 1955. Na Guatemala, no início de 1954, começa a trabalhar no projeto de escrever uma obra sobre a função do médico na América Latina. É a época de Jacobo Arbenz, o presidente que nesse país centro-americano promove um processo de reformas democráticas. Che prontamente se dispõe a trabalhar com o governo, até que a intervenção da CIA dará lugar ao golpe de Estado que conduzirá o Coronel Castillo Armas ao poder. Refugiado na embaixada Argentina, obtém uma bolsa para realizar estágio no Hospital Geral de México. Em carta a sua mãe, em abril de 1954, declara: “De dos cosas estoy seguro: la primera es que si llego a la fase auténticamente creativa, entre los 30 y 35 años, mi ocupación exclusiva o al menos la principal será la física nuclear, la genética o una materia de este tipo, que reagrupe muchas de las cosas más interesantes del conocimiento; la segunda es que América Latina será el teatro de mi aventura con un peso mucho más grande de lo que había creído” . No México, em 1955, Che começa a colaborar com um grupo de exilados cubanos que preparam a expedição à ilha, no intuito de lutar contra a ditadura de Fulgêncio Batista. Ali, nesse instante, define-se muito de seu futuro, mas também do futuro de outros muitos. Essa é uma história que também merece ser lembrada. Pietro Alarcón, advogado, colombiano, é professor da PUC-SP. |