Adital
Conceito: eutanásia
A palavra eutanásia foi criada no século XVII, pelo filósofo inglês Francis Bacon. Na sua etimologia estão duas palavras gregas - ευ "bom" e θάνατος equivalente a "morte". Em sentido literal, ευθανασία - eutanásia significa "boa morte", "morte apropriada", "morte tranqüila".
Contemporaneamente, o termo eutanásia passou a designar a morte deliberadamente causada a uma pessoa que sofre de enfermidade incurável ou muito penosa, para suprimir a agonia demasiado longa e dolorosa, do chamado paciente terminal. O seu sentido ampliou-se passando a abranger o suicídio, o suicídio assistido, etc.
A eutanásia leva à discussão sobre o direito de uma pessoa por fim à própria vida, valendo-se de outra pessoa. Podemos indagar se haveria apenas uma faculdade, ou um direito juridicamente tutelado, isto é, que possa ser coercitivamente exigido. No mundo jurídico, se alguém tem um direito, pode socorrer-se do processo, para fazê-lo valer. Para que uma pessoa que não consegue por seus próprios meios extinguir a própria vida possa ter concretizado o seu intento, outra precisa ter o dever de realizá-lo.
Surge, então, a questão: a quem caberia realizar essa ação destinada a eliminar o sofrimento de um doente, causando sua morte? Na concepção de Bacon, que cunhou o termo eutanásia, seria dever do médico acalmar os sofrimentos e as dores, mesmo quando esse alívio sirva para trazer uma morte doce e tranqüila.
A posição do filósofo inglês representa uma quebra na ética médica baseada na tradição hipocrática, que impõe ao médico o dever de proteger e preservar a vida humana. Ao se aceitar a eutanásia como ato médico, os médicos e outros profissionais terão também a tarefa de causar a morte. Até hoje, os médicos juram abster-se de toda ação ou omissão, com intenção direta e deliberada de por fim a uma vida humana.
A vida humana é tida no seu todo como um bem fundamental e o filme trabalha bem duas características fundamentais da existência humana: a racional e a emocional. Lançado em contexto europeu, na Espanha, no ano 2004, trata-se de um drama com duração de 125 minutos. Foi vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Ramón Sampedro é um personagem que luta para ter o direito de pôr fim à sua própria vida. Na juventude ele sofreu um acidente, que o deixou tetraplégico e preso a uma cama por 28 anos. Lúcido e extremamente inteligente, Ramón decide lutar na justiça pelo direito de decidir sobre sua própria vida, o que lhe gera problemas com as Leis do Estado, com a igreja, com a sociedade e até mesmo com os seus familiares.
Em sua situação fica evidente o que Maria do Céu Patrão Neves menciona como alguns paradigmas ou tendências da Bioética (1): o mais nítido é o Principialismo, sobressaindo o princípio da autonomia, expresso pelo ator principal Ramón Sampedro. O vínculo desse paradigma se dá, em parte, com o do Liberalismo, que coloca o indivíduo como ponto de partida numa atitude de não comprometimento com o outro.
Não menos nítida é a tendência Personalista da Bioética na inserção e cuidados de toda a família se envolvendo, ao ajudar, doando a própria vida, no intuito de gerar bem-estar ao ente-querido tetraplégico. Ou pode-se considerar o princípio da beneficência, do Principialismo? Não importa, a família vivia e estava disposta a viver, em função do "enfermo" como revelava o irmão mais velho. O pai sente-se transtornado e resignado com a decisão do filho; no entanto, respeita. A cunhada de Ramón, Manuela, e o sobrinho, Javi, não medem esforços para que tudo ocorra no tempo certo.
Outros paradigmas são perceptíveis na presença infeliz do religioso, jesuíta, ao abordar friamente a questão. Sua participação se dá de maneira, maldosamente exposta pelo diretor do filme, para expressar o posicionamento da Igreja: a declaração do padre, feita na TV, é um caso típico da tendência Casuística, e o que seria para tornar um encontro reservado aos dois tetraplégicos, Ramón e o padre, trouxe um distanciamento ainda maior dado aos debates entre teorias frias (religiosa/tomista e laica com tendência ateísta), quando na verdade exigia outro comportamento.
Percebe-se a presença do paradigma Científico, como no caso do Direito, vivido pela personagem Júlia, ao acompanhar o caso. Pode-se perguntar: teria Júlia, com mescla de profissionalismo e sentimentos amorosos, dado a Ramón alguma esperança? O que se sabe é que a doença degenerativa dela não retardou a agravar-se.
Também a presença do paradigma Libertador é notável, no qual a partir do diálogo franco com a personagem Rosa, Ramón vai fazendo-a encarar a vida de modo diferente. Isto nos leva a pensar numa perspectiva Feminista, ou seja, na sinceridade mútua do diálogo, Rosa descobre valores profundos que é capaz de fazer até mesmo o que antes não estava disposta. Faz pelo amor desinteressado que descobriu.
Bioética, Legislação e Autonomia dos Indivíduos
Diante de várias tendências, retrato da diversidade ou pluralidade de pensamentos do nosso tempo, a Bioética sente-se desafiada a ser uma ciência interdisciplinar que abarca a todas, com responsabilidade e neutralidade, sem pretensas verdades ou falácias e imposições, mas por consenso, um parecer razoável e eficaz para o momento e o contexto. Ela é chamada a auxiliar nas decisões que envolvem os diversos interesses. No filme estão os interesses de Ramón (como indivíduo em estado lúcido), da família, dos amigos, da Igreja e do Estado.
Convém deixar claro o paradoxo do Estado laico moderno que prega a emancipação do indivíduo, mas que determina por sua Lei a situação desses mesmos indivíduos. Pertencer ao Estado laico não significa poder exercer a autonomia e a liberdade em extremos. Então poderia perguntar: até onde vai a autonomia do sujeito? Seria ela limitada pelo direito? De qual país? Ou a reflexão Ética e Bioética estão atreladas à concepção de direito? Seria neste caso as leis estatais uma imposição à reflexão ética? A ética seria refletida, mas limitada às jurisprudências nacionais? À essa diversidade cultural Engelhardt propõe a reflexão dos "estranhos morais" (2), e sobre as situações a Bioética tende a lançar luz, sem eximir os aspectos normativos e legais.
Também as normas religiosas e de outras instituições presentes na sociedade são condicionantes. Neste caso, onde fica, de fato, a liberdade da pessoa? Talvez na clandestinidade, onde Ramón encontrou o seu subterfúgio, resolvendo o seu problema e deixando a estrutura persistir. Contudo sua atitude serve para questioná-la. A dignidade, termo cristão, estava para Ramón em exercer sua liberdade humana, enquanto no "discurso cristão" (3) está em "viver bem" não obstante às circunstâncias.
Notas:
(1) Filme MAR ADENTRO; AMENÁBAR, Alejandro e BARDEM, Javier; Espanha; 2004; 125 min. NEVES; Maria do Céu Patrão; A Fundamentação Antropológica da Bioética; http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v4/fundament.html
(2) NGELHARDT Jr. H. Tristram; Fundamentos da Bioética; são Paulo: Loyola; 2004.
(3) LEPARGNEUR, Hubert; "Dignidade... Alma secreta da Bioética?"; In. GARRAFA, Volnei; PESSINI, Leo; Bioética: Poder e Injustiça; São Paulo: Loyola; 2003; p. 481-486.
* Presbítero da Diocese de Colatina. Mestrando pelo Centro Universitário São Camilo