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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
terça-feira, 14 de agosto de 2007
A Barbárie nos Campos do Sul!
Audiência pública que discutiria situação fundiária na região Sul do Estado foi cancelada após confronto entre sem terra, fazendeiros e policiais. Vinte agricultores ficaram feridos e seis foram presos. Dois líderes sem terra estão desaparecidos.
Marco Aurélio Weissheimer
PORTO ALEGRE - Uma audiência pública marcada para discutir a situação dos acampamentos rurais na região sul do Rio Grande do Sul terminou em pancadaria na manhã desta quinta-feira, no município de Pedro Osório. Fazendeiros e agricultores sem-terra entraram em confronto, com um saldo de vários presos e feridos. Segundo a coordenação estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), vinte sem terra ficaram feridos e outros seis foram presos pela Brigada Militar, antes do início da audiência com representantes da Ouvidoria do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Ministério Público (estadual e federal), do governo estadual e da Assembléia Legislativa gaúcha.
Duzentas famílias acampadas ao lado da Fazenda da Palma viajaram a Pedro Osório para participar da audiência e foram recebidas com hostilidade por fazendeiros da região. Segundo o relato do MST, os acampados foram revistados e identificados antes de ingressar na cidade. Logo após, seguiram em caminhada pelo centro até Salão Paroquial, onde iria ocorrer a audiência. Na entrada do salão, fizeram um cordão de isolamento para se separarem dos fazendeiros que também estavam no local. Foi aí, segundo o MST, que a Brigada Militar começou a bater nas famílias.
Segundo a versão do tenente-coronel Valdoir Ribeiro, do comando da BM na região, os ruralistas estavam na via pública quando o MST chegou e começou a agredi-los. “A Brigada foi chamada para apartar e algumas pessoas acabaram com ferimentos leves”, disse o oficial à rádio Gaúcha. O deputado estadual Dionilso Marcon (PT) denunciou que foi agredido nas mãos pelos soldados e que sua assessora jurídica, Patrícia Couto, foi atingida com golpes de cassetete.
Conforme o relato da assessoria do deputado Marcon, os ruralistas tentaram impedir que os sem terra ocupassem o salão paroquial e exigiram a intervenção dos policiais. Um dos fazendeiros teria dito: “retirem esses sem terra daqui, pois somos nós que pagamos vocês”. Mais de 150 policiais teriam entrado, então, no salão paroquial e espancado dezenas de agricultores, juntamente com o paramentar e sua assessoria.
O parlamentar contestou a versão do subcomandante da Brigada Militar, coronel Paulo Roberto Mendes, que acusou os sem terra de portarem foices e facões. Marcon disse que os sem terra não estavam armados e foram revistados na entrada da cidade. “Falta isenção aos policiais militares da região”, acrescentou. “A Brigada tem muito mais compromisso com os fazendeiros que com a questão social”. A audiência pública, que discutiria a situação fundiária na região, não foi realizada.
O superintendente substituto do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Rio Grande do Sul, José Rui Tagliapietra, que estava em Pedro Osório para participar da audiência pública sobre a situação fundiária na região, condenou a truculência da Brigada Militar. Para ele, “a Brigada não estava preparada para tranqüilizar a situação e o ambiente que houve”.
O desembargador e ouvidor público federal, Gercino José da Silva Filho, que presidiria a audiência, foi ao hospital visitar os feridos e depois acompanhou os depoimentos dos agricultores na polícia. As pessoas agredidas anunciaram que denunciarão o ocorrido em uma audiência com o ouvidor agrário estadual, Adão Paiani, na próxima segunda-feira, em Porto Alegre. Após o conflito, os sem terra voltaram para o acampamento ao lado da Fazenda da Palma, de 9 mil hectares, cuja desapropriação é reivindicada pelo MST.
Os primos Leonardo e Lázaro Burscheidt, lideranças do acampamento dos sem terra na área da Fazenda Palmas seguiam desaparecidos até o final da tarde desta quinta-feira. Um deles aparece sendo gravateado por fazendeiros em uma foto publicada na revista eletrônica Pedro Osório.Net.
O deputado Dionilso Marcon e a deputada Stela Farias (PT), presidente da Comissão de Serviços Públicos da Assembléia Legislativa do RS, denunciaram o desaparecimento dos dois agricultores. Stela Farias cobrou do governo Yeda Crusius providências para a localização dos primos Burscheidt. “Esperamos que estes trabalhadores não estejam nas mãos de fazendeiros e que os representantes do governo do Estado na Assembléia tomem providências para a localização dos dois manifestantes”, afirmou a parlamentar petista.
Milionários e o Imposto sobre Grandes Fortunas | | | |
Roberto Saraiva Romera | |
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Entra governo, sai governo e não é discutida uma verdadeira reforma tributária no Brasil. No mês de março de 2007, o governo Lula sinalizou com mais uma proposta de reforma, visando a simples unificação de alguns impostos federais, estaduais e municipais.
Segundo estimativas do Ministério da Fazenda, o Brasil perde R$ 20 bilhões por ano em investimentos devido à irracionalidade do seu sistema tributário. Com este valor, seria possível superar as necessidades energéticas brasileiras e evitar a ocorrência de um novo racionamento.
O mais impressionante em todos os debates sobre a reforma tributária é que nunca tivemos a discussão do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), também chamado em alguns países de Imposto de Solidariedade sobre Grandes Fortunas.
Recente pesquisa realizada pelas consultorias Merrill Lynch e Cap Gemini indicou que o número de milionários no Brasil cresceu 10% em 2006 em relação à última pesquisa realizada em 2005 e está em 120.400 milionários.
Segundo a mesma pesquisa, milionário é todo aquele que possui 1 milhão de dólares líquido para investir. Assim, com sua aprovação, o IGF incidiria em um percentual muito pequeno da população brasileira e poderia contribuir para a redução da carga tributária de setores produtivos, propiciando um aumento na produção, no nível de contratação e até o repasse aos salários.
Não está se propondo um aumento da carga tributária, mas sim que esta seja concentrada no alto da pirâmide e que se desonere atividades produtivas, contribuindo assim para a racionalização e para o combate à regressividade do sistema tributário brasileiro.
A Constituição Federal define (art. 153) a competência da União para instituir o IGF, sendo para isto necessária uma lei complementar. Tal necessidade mostra-se um fator que dificulta a sua criação, pois poucos congressistas apresentariam um projeto para a regulamentação do IGF, tendo em vista que muitos membros do Congresso podem até ser enquadrados como milionários.
Fernando Henrique Cardoso perdeu a oportunidade de aprovar o IGF durante seus oito anos de governo; bastaria que se discutisse o Projeto de Lei de autoria do próprio FHC, feito quando este ainda era senador, em 1989.
Do início de 2006 até junho de 2007, a taxa Selic caiu de 17% para 12%, fato que teoricamente contribuiria para diminuição da riqueza dos milionários, que anteriormente ganhavam com a aplicação nos títulos da dívida pública. No entanto, com a queda dos juros, estes milionários migraram seus “investimentos” para operações mais rentáveis como o mercado de ações, fundos hedge e imóveis, fato que ajuda a aumentar a sua riqueza.
Por fim, o Brasil atravessa um momento oportuno para que o governo Lula proponha uma lei complementar regulamentando o Imposto sobre Grandes Fortunas, haja visto que possui um considerável apoio do Congresso Nacional e principalmente um apoio popular que aprovaria tal proposta.
Roberto Saraiva Romera é economista pela Fundação Santo André, mestrando em Economia e professor do Projeto Formare. Email: robertosaraivabr@yahoo.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email
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Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir
Nesta fase Sartre renunciou a hábitos burgueses como o de tomar banho e passou a fumar cachimbo, era visto nos cafés do Quartier Latin em animadas rodas de discussão filosófica, da qual não ousaria se aproximar quem não possuísse algo realmente inteligente a dizer.
A notável cumplicidade do casal permitia que dividissem não somente interesses e preocupações, mas também amantes. E essa liberdade era exercida mediante um pacto incomum: eles contavam tudo um para o outro.
Seu enterro foi um acontecimento que atraiu quase 25 mil pessoas. O cortejo percorreu o Quartier Latin e a Rive Gauche, lugares marcantes de sua vida, onde produziu, viveu e de onde concebeu o pensamento que seria de toda uma geração. Movimentos radicais em todo o mundo inspiraram-se em seus escritos, embora suas leituras sobre os fatos continuassem mais como idéia do que como realidade. "Aí estava de fato, uma existência fútil num mundo absurdo".
“Mantenho absolutamente a frase: não você se nasce mulher, torna-se. Tudo o que eu li, vi, e aprendi nestes últimos 30 anos confirmaram essa idéia. A feminilidade é fabricada, como aliás também se fabricam a masculinidade e a virilidade”.
Simone de Beauvoir é venerada pelas feministas, que a lêem e estudam, principalmente fora da França. A Simone de Beauvoir Society, com sede na Califórnia, realizou seu 14º colóquio em Roma, na Itália, em setembro de 2006. A jornalista Bénédicte Manier constatou que, na Índia, “em todas as discussões sobre as mulheres, ao cabo de dez minutos , as indianas citam Simone de Beauvoir”.
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segunda-feira, 13 de agosto de 2007
As novas armas biológicas
A Associação Médica Britânica (AMB) acaba de publicar um novo relatório sobre o “uso de drogas como armas” [1]. É a terceira publicação da entidade alertando para a militarização da medicina e seu potencial para criar novos artefatos de guerra. Mas até que ponto devemos nos preocupar com o avanço crescente da farmacologia tática?
O assunto esteve em cena pelo menos por quatro décadas. O especialista em armas químicas e biológicas Julian Perry Robinson, do Programa de Harvard-Sussex, relatou experimentos governamentais em seres humanos com as drogas alucinógenas incapacitantes LSD e BZ [2]; o uso de CS no campo de batalha do Vietnã; a pesquisa russa de codinome Bonfire, destinada a transformar os peptídeos humanos regulatórios em armas; o emprego de material químico em interrogatórios; e uma desconcertante linha de produtos psicoquímicos – paralisantes que interrompem a transmissão de impulsos nervosos, produtores de dor, irritantes baseados em componentes encontrados em fontes tão variadas quanto as urtigas (uruxiol) e o sapo comum (bufotenina) [3].
Mas a natureza altamente técnica dessa pesquisa restringiu o debate aos grupos envolvidos na criação de conhecimento organizado sobre armas não-convencionais, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o Fórum de Genebra, o Programa Harvard-Sussex e o Pugwash [4]. Enquanto isso, tem havido um interesse militar crescente pelas armas bioquímicas incapacitantes, à medida que o desenvolvimento das ciências da vida vem criando novas possibilidades. Essa pesquisa se acelerou depois do onze de setembro, com a liberação de recursos substanciais direcionados a tecnologias e armas que possam ser utilizadas em conflitos assimétricos, nos quais aliados e inimigos estão eventualmente misturados ou são indistinguíveis.
Revolução nas neurociências permite tratar doenças incuráveis ou... construir mentes sem medo e memória
A revolução que está ocorrendo nas neurociências tem clara ligação com o relatório da AMB. A genômica e a biologia de sistemas estão rompendo as fronteiras entre processos químicos e biológicos, que antes eram vistos como distintos. Agora, as moléculas podem ser reprojetadas racionalmente para afetar processos de biorregulação, como o funcionamento neurológico, cardiovascular etc. No passado, este era um procedimento experimental laborioso, mas agora a maior parte do trabalho pode ser computadorizada, de modo que os compostos bioativos mais promissores são identificados automaticamente, em uma velocidade prodigiosa.
Novos compostos podem ser projetados para agir como mecanismos de liberação que, por si sós, não causam doença. São produzidos rapidamente. E variantes desses novos agentes podem ser exploradas por meio da química combinacional, que se beneficia da alta capacidade de exame por varredura, investigando milhares de ligações potenciais. Enquanto isso, a genômica, a metodologia de microarray (utilizada para investigar a expressão simultânea de um grande número de genes) e a inteligência artificial fornecem previsões de toxicidade, evolução direcionada, proteômica (codificação de proteínas pelos genes), bioinformática e modelagem computadorizada de estruturas receptoras do cérebro.
Ninguém negaria tais facilidades à medicina e à indústria farmacêutica, pois apresentam um incrível potencial para curar doenças humanas e prolongar vidas ativas. Mas esta revolução das neurociências também traz o espectro da iminente militarização da biologia, acompanhado pelo circo de horrores de novos mecanismos para induzir paralisia, de técnicas avançadas de repressão, de tortura em massa, dor e terror.
Este uso perverso das neurociências pode não ficar restrito apenas aos oponentes do Estado. No Iraque, vimos as forças aliadas dos Estados Unidos utilizarem drogas para acentuar o estado de alerta de seus soldados. Em um futuro próximo, de acordo com Wheelis e Dando, poderemos presenciar soldados indo para a ação com agressividade e resistência ao medo, à dor e ao cansaço quimicamente aumentadas. E até mesmo com suas memórias desagradáveis removidas pela farmacologia militar [5].
Após o 11 de setembro, Europa derruba veto à pesquisa de armas capazes de afetar o cérebro
O relatório da AMB alerta para o fato de que, apesar das proibições das armas químicas e biológicas, os governos “demonstram considerável interesse na possibilidade de usar drogas como armas”. Parte desse interesse vem do desejo insatisfeito pelas assim chamadas “armas não-letais”. Parte decorre da mudança de atitude provocada pelo 11 de setembro. Antes disso, o Comitê de Assuntos Externos, Segurança e Política de Defesa do Parlamento Europeu tinha pedido uma “proibição global de qualquer trabalho de pesquisa e desenvolvimento, militar ou civil, que busque aplicar conhecimentos sobre o funcionamento químico, elétrico, ligado a vibrações sonoras ou outros meios do cérebro humano para o desenvolvimento de armas que possam permitir qualquer forma de manipulação de seres humanos” [6].
Depois do 11 de setembro, emudeceram as inquirições e críticas aos avanços indesejáveis das tecnologias de segurança de Estado nos EUA. Há muito menos pressão política sobre a responsabilidade do complexo de segurança industrial. E, em muitos sentidos, esse complexo está agora criando a agenda política [7]. É claro que tais desdobramentos não estão acontecendo apenas nos EUA e na Europa. A AMB alerta também para a pesquisa chinesa.
Para a organização, o uso militar de drogas levanta questões éticas cruciais, porque elas não são utilizáveis “sem gerar uma significativa mortalidade entre a população-alvo”. A droga que simplesmente tiraria as pessoas momentaneamente de ação, sem risco de morte, “não existe e é improvável que venha a existir em um futuro visível”.
Um caso emblemático e trágico: o uso de fentanil pelas tropas russas, na reação a atentado terrorista
As preocupações da AMB são múltiplas e universais, estendendo-se, para além da Grã-Bretanha, aos clínicos de toda parte. Elas dizem respeito, especificamente, a: 1.Envolvimento de médicos no planejamento e execução de ataque, usando drogas como armas; 2. Coleta de dados sobre os efeitos das armas em questão; 3. O papel da medicina e do saber médico no desenvolvimento de armas; 4. A dupla responsabilidade dos médicos – de um lado, não prejudicar pessoas; de outro, apoiar a "segurança nacional"; 4. O papel dos médicos no apoio à legislação internacional.
A relevância dessas preocupações veio à tona quando as Forças Especiais Russas utilizaram um anestésico do tipo fentanil para resgatar os reféns do cerco terrorista ao Teatro de Moscou, em 23 de outubro de 2002. Na ocasião, 130 dos 900 reféns morreram, na proporção de um para sete. As chamadas armas não-letais provaram ser letais – na realidade, mais letais do que as usadas em guerra, para as quais a taxa de mortalidade esperada é de um em 16. Este é um resultado importante a ser considerado, pois a participação dos médicos em semelhantes ações militares suscita questões éticas sobre seu papel e ressalvas quanto à adequação de seu treinamento para enfrentar tal tipo de ocorrência. No fim, ficou claro que participação médica foi muito mal-vista.
Há também alegações de que as autoridades, que ainda se recusam a identificar o produto usado, alteraram os certificados de óbito deliberadamente, para respaldar a idéia de que o material era inofensivo. Bem menos discutido foi o número de pessoas deixadas permanentemente inválidas por essa operação. Grupos em defesa das vítimas relataram 174 mortes e casos de invalidez permanente entre os sobreviventes [8]. O grupo também observou a liquidação de todos os tchetchnos suspeitos de terrorismo, reforçando a visão de que esses compostos podem facilitar a execução sumária, substituindo um processo legal.
Hipótese alarmante: potências militares poderiam terceirizar a pesquisa e produção das novas armas
Os médicos possuem altos padrões para indicar remédios e testes a pacientes. O relatório da AMB identifica uma potencial pressão futura dos fabricantes de armas sobre a indústria farmacêutica, com o objetivo de baixar esses padrões. Há repercussões de um alerta, publicado no Le Monde Diplomatique, em 2003, pela professora Chantal Bismuth e o coronel Patrick Barriot, de que as armas químicas de amanhã possam vir a ser encontradas nos catálogos de medicamentos [9].
A AMB cita um estudo do Centro de Pesquisa Aplicada da Faculdade de Medicina da Universidade de Pennsylvania que pede à indústria farmacêutica para levar em conta as milhares de drogas descartadas ou deixadas em prateleiras sem pesquisa concluída, devido a efeitos colaterais indesejados. O mesmo estudo identifica vários “produtos farmacêuticos órfãos”, com nove tipos diferentes de sistemas como neurotransmissor/receptor e outras classes de compostos, inclusive convulsivantes [10].
O que aconteceria se alguns países decidissem que tais armas químicas não precisam de testes clínicos? E, se esses testes forem realizados, como investigações em idosos, doentes e crianças poderiam ser permitidas por um comitê de ética médica? Uma preocupação de peso é que tal tipo de pesquisa possa ser “terceirizado” para um país onde dinheiro e capital político sejam mais importantes do que a ética médica. Trata-se de um ponto importante. Uma vez que a relutância em usar armas bioquímicas perigosas no contra-terrorismo ou na contra-insurgência tenha sido quebrada, é possível antever uma rápida evolução de novas variantes, com ampla gama de indução de efeitos de imobilização e dor. E o cenário de pesadelo de armas seletivas por etnia já foi apontado pela AMB, que lançou um grande alerta para o fato de estar em curso uma corrida às armas de avental branco. [11].
Sabe-se que pesquisadores militares estão estudando as propriedades da endotelina – uma cadeia de 21 aminoácidos, similar em estrutura a certos venenos de cobra – e toda uma nova classe de biorreguladores, com efeitos potenciais sobre o sistema circulatório. Entre outros compostos em análise, está a chamada “substância P”, uma taquiquinina que pode provocar intensa broncoconstrição.
Em paralelo às drogas, surgem armas para transportá-las: bombas dispersoras, pistolas, micro-cápsulas...
Outros riscos em discussão referem-se a compostos bioquímicos que podem induzir doenças de aparecimento tardio, como o câncer do fígado, favorecendo atos de genocídio retardados por talvez vinte anos. De igual importância neste debate é o fato de que, além de as drogas serem pesquisadas para se tornarem armas, novas armas estão sendo projetadas para transportá-las ao alvo, como seringas voadoras estabilizadas, bombas para a dispersão de grandes quantidades de produtos químicos, pistolas de paintball modificadas, micro-cápsulas que soltam o produto químico quando pisadas, veículos não-tripulados etc. O caso mais recente é o acordo comercial entre as companhias norte-americanas Taser, fabricante de pistolas que dão eletrochoques, e a iRobot, fabricante de veículos de guerra não-tripulados para exploração de terreno [12]. É só uma questão de tempo para que os novos modelos desses veículos incorporem pistolas para lançar armas químicas e que estas armas tenham opções algorítmicas autônomas.
A AMB enfatiza corretamente suas preocupações legais por três razões. As normas legais internacionais que protegem a humanidade de veneno e da disseminação deliberada de doença, adotadas depois de décadas de negociação, correm o risco de ser enfraquecidas. A disponibilidade ampla, mas responsável, de drogas com potencial emprego militar inevitavelmente resultaria na chegada delas às mãos de agentes, estatais ou não, para os quais a mortalidade no meio da população-alvo não teria importância. Usar as drogas existentes como armas, com conhecimento de causa, significa subir ao topo de uma ladeira escorregadia, no fim da qual está o espectro da militarização da biologia, que poderia trazer a manipulação intencional das emoções, memória, resposta imunológica e até a fertilidade das pessoas.
E o horror continua. O Sunshine Project, dos Estados Unidos, revelou documentação de uma pesquisa norte-americana orientada para utilizar a mudança de orientação sexual como tática de luta [13]. Como o mundo reagirá se um Estado militarizado decidir alterar a química do cérebro feminino, para produzir civis hormonalmente receptivas ao estupro militar em massa?
O papel decisivo da Convenção de Armas Químicas, que deverá ser revista em 2008
A visão comum é que, se todas as armas químicas e biológicas são proibidas pelas convenções internacionais, então não há problema, Porém, mesmo aqui, existe uma brecha: a Convenção de Armas Químicas (CAQ), no artigo II(9)d, permite uma exceção para o controle de conflitos internos. Isso era visto, essencialmente, como autorização do uso de armas químicas policiais destinadas ao controle de multidões (como o gás lacrimogênio, por exemplo) e do uso de injeção letal destinada à execução legal. Contudo, o emprego de produtos incapacitantes como armas contra o terrorismo abriu uma significativa janela. A questão agora é saber que tipos de compostos, além do gás lacrimogênio padrão, são permitidos em ações de manutenção da paz. Essa brecha enfraquece potencialmente a Convenção de Armas Químicas [14].
De acordo com o professor Malcolm Dando, da Escola de Estudos para a Paz da Bradford University: “A melhor solução para as dificuldades com o artigo II.9(d) seria os Estados signatários concordarem que não existe permissão para o uso de produtos químicos além dos produtos-padrão para o controle de distúrbios. Contudo, se isso não for possível, os Estados signatários teriam que relatar regularmente quais produtos químicos para esse tipo de ação eles possuem, em que quantidades e com quais os dispositivos de disseminação”.
A Convenção de Armas Químicas vai ser revista em 2008. O relatório da AMB alcançará seu propósito se os negociadores que se encontrarem em Genebra no ano que vem escutarem o alerta de pôr a mão nesse assunto antes que seja tarde demais.
[1] British Medical Association: “The use of drugs as weapons: the concerns and responsibilities of healthcare professionals”, 2007. Disponível em http://www.bma.org.uk/ap.nsf/Content/drugsasweapons
[2] Benzilato de quinuclidinil, uma droga que pode causar delírio durante dias.
[3] Robinson, Julian Perry: “Disabling Chemical Weapons: A Documentary Chronology of Events, 1945-2003)”, 2004. Documento de trabalho não publicado, Programa de Havard-Sussex.
[4] Em 1955, Bertrand Russel e Joseph_Rotblat criaram, na cidade canadense de Pugwash, uma conferência para trabalhar contra as ameaças de conflitos mundiais.
[5] Wheelis, M. e Dando, M.: “Neurobiology: a case study of the imminent militrarisation of biology”, em International review of the Red Cross, vol.87, no. 859, pp.553-571, 2005.
[6] Parlamento Europeu, Comitê de Assuntos Externos, Segurança e Política de Defesa: Report on the Environment, Security and Foreign Policy (Relatora Mrs. Maj. Britt Theorin), PE 227.710/fin, 14 de janeiro de 1999, p.10.
[7] Para uma excelente análise desta vertente, ver Hayes, B.: “Arming Big Brother: the EU’s security research programme”, TNI/Statewatch, Amsterdam, 2006. http://www.statewatch.org/news/2006/apr/bigbrother.pdf
[8] Burban, L., Gubareva, S., Karpova, T., Karpov, N., Kurbatov, V., Milovidov, D., Finogenov, P.: ‘Investigation Unfinished’, Regional Public Organization for Support of Victims of Terrorist Attacks, Moscou, 2006. Disponível em russo no site: http://www.pravdabeslana.ru/nordost/doklad.zip. Há também uma versão reduzida em inglês (sem apêndices) em: http://www.pravdabeslana.ru/nordost/dokleng.doc-> http://www.pravdabeslana.ru/nordost/dokleng.doc]
[9] Chantal Bismuth e Patrick Barriot, "A falsa retórica da classificação de armas", Le Monde Diplomatique Brasil, maio de 2003
[10] Lakoski, J., Bosseau, M.W., Kenny, JM.: “The advantages and limitations of calmatives for use as a non-lethal technique”, College of Medicine Applied Research Laboratory, Pennsylvania State University, 2000.
[11] Para uma revisão abrangente desses fatos, ver Davison, N., Lewer N.: Research Report no 8, Bradford Non-Lethal Weapons Research Project, 2006.
[12] http://uk.biz.yahoo.com/28062007/290/taser-international-forms-strategic-alliance-irobot.html
[13] http://www.sunshine-project.org/incapacitants/jnlwdpdf/
[14] Para uma análise clara destes temas ver Pearson, A: “Incapacitating bio-chemical weapons: science, technology, and policy for the 21st Century”, Non Proliferation Review, vol. 13, no 2, julho de 2006, pp. 151-179.
domingo, 12 de agosto de 2007
Wassily Kandinsky
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Joana de Angelis
A natural transformação social, decorrente dos efeitos da ciência aliada à tecnologia a partir do século 19, impôs que o individualismo competitivo pós renascentista cedesse lugar ao coletivismo industrial e comunitário da atualidade.
A cisão decorrente do pensamento cartesiano, na dicotomia do corpo e da alma, ensejou uma radical mudança nos hábitos da sociedade, dando surgimento a uma série de conflitos que irrompem na personalidade humana e conduzem a alienações perturbadoras.
Antes, os tabus e as superstições geravam comportamentos extravagantes, e a falsa moral mascarava os erros que se tornavam fatores de desagregação da personalidade, a serviço da hipocrisia refinada.
A mudança de hábitos, no entanto, se liberou o homem de algumas fobias e mecanismos de evasão perniciosos, impôs outros padrões comportamentais de massificação, nos quais surgem novos ídolos e mitos devoradores, que respondem por equivalentes fenômenos de desequilíbrio.
Houve troca de conduta, mas não de renovação saudável na forma de encarar-se a vida e de vivê-la.
De um lado, a ciência em constante progresso, não se fazendo acompanhar por um correspondente desenvolvimento ético-espiritual, candidata-se a conduzir o homem ao niilismo, ao conceito de aniquilamento.
Noutro sentido, o contubérnio subjacente, apresenta um elenco exasperador de áreas conflitantes nas guerras e ameaças de guerras que se sucedem, nas variações da economia, nos volumosos bolsões de miséria de vária ordem, empurrando o homem para a ansiedade, a insegurança, a suspeição contumaz, a violência.
A fim de fugir à luta desigual — o homem contra a máquina — os mecanismos responsáveis pela segurança emocional levam o indivíduo, que não se encoraja ao competitivismo doentio, à acomodação, igualmente enferma, como forma de sobrevivência no báratro em que se encontra, receando ser vencido, esmagado ou consumido pela massa crescente ou pelo desespero avassalador.
Estabelece algumas poucas metas, que conquista com relativa facilidade, passando a uma existência rotineira e neu-rotizante, que culmina por matar-lhe o entusiasmo de viver, os estímulos para enfrentar desafios novos.
Rotina é como ferrugem na engrenagem de preciosa maquinaria, que a corrói e arrebenta.
Disfarçada como segurança, emperra o carro do progresso social e automatiza a mente, que cede o campo do raciocínio ao mesmismo cansador, deprimente.
O homem repete a ação de ontem com igual intensidade hoje; trabalha no mesmo labor e recompõe idênticos passos; mantém as mesmas desinteressantes conversações: retorna ao lar ou busca os repetidos espairecimentos: bar, clube, televisão, jornal, sexo, com frenético receio da solidão, até alcançar a aposentadoria.. - Nesse ínterim, realiza férias programadas, visita lugares que o desagradam, porém reúne-se a outros grupos igualmente tediosos e, quando chega ao denominado período do gozo-repouso, deixa-se arrastar pela inutilidade agradável, vitimado por problemas cardíacos, que resultam das pressões largamente sustentadas ou por neuroses que a monotonia engendra.
O homem é um mamífero biossocial, construído para experiências e iniciativas constantes, renovadoras.
A sua vida é resultado de bilhões de anos de transformações celulares, sob o comando do Espírito, que elaborou equipamentos orgânicos e psíquicos para as respostas evolutivas que a futura perfeição lhe exige.
O trabalho constitui-lhe estímulo aos valores que lhe dormem latentes, aguardando despertamento, ampliação, desdobramento.
Deixando que esse potencial permaneça inativo por indolência ou rotina, a frustração emocional entorpece os sentimentos do ser ou leva-o à violência, ao crime, como processo de libertação da masmorra que ele mesmo construiu, nela encarcerando-se.
Subitamente, qual correnteza contida que arrebenta a barragem, rompe os limites do habitual e dá vazão aos conflitos, aos instintos agressivos, tombando em processos alucinados de desequilíbrios e choque.
Nesse sentido, os suportes morais e espirituais contribuem para a mudança da rotina, abrindo espaços mentais e emocionais para o idealismo do amor ao próximo, da solidariedade, dos serviços de enobrecimento humano.
O homem se deve renovar incessantemente, alterando para melhor os hábitos e atividades, motivando-se para o aprimoramento íntimo, com conseqüente movimentação das forças que fomentam o progresso pessoal e comunitário, a benefício da sociedade em geral.
Face a esse esforço e empenho, o homem interior sobrepõe-se ao exterior, social, trabalhado pelos atavismos das repressões e castrações, propondo conceitos mais dignos de convivência humana, em consonância com as ambições espirituais que lhe passam a comandar as disposições íntimas.
O excesso de tecnologia, que aparentemente resolveria os problemas humanos, engendrou novos dramas e conflitos comportamentais, na rotina degradante, que necessitam ser reexaminados para posterior correção.
O individualismo, que deu ênfase ao enganoso conceito do homem de ferro e da mulher boneca, objeto de luxo e de inutilidade, cedeu lugar ao coletivismo consumista, sem identidade, em que os valores obedecem a novos padrões de crítica e de aceitação para os triunfos imediatos sob os altos preços da destruição do indivíduo como pessoa racional e livre.
A liberdade custa um alto preço e deve ser conquistada na grande luta que se trava no cotidiano.
Liberdade de ser e atuar, de ter respeitados os seus valores e opções de discernir e aplicar, considerando, naturalmente, os códigos éticos e sociais, sem a submissão acomodada e indiferente aos padrões de conveniência dos grupos dominantes.
A escala de interesses, apequenando o homem, brinda-o com prêmios que foram estabelecidos pelo sistema desumano, sem participação do indivíduo como célula viva e pensante do conjunto geral.
Como profilaxia e terapêutica eficaz, existem os desafios propostos por Jesus, que são de grande utilidade, induzindo a criatura a dar passos mais largos e audaciosos do que aqueles que levam na direção dos breves objetivos da existência apenas material.
A desenvoltura das propostas evangélicas facilita a ruptura da rotina, dando saudável dinâmica para uma vida integral em favor do homem-espírito eterno e não apenas da máquina humana pensante a caminho do túmulo, da dissolução, do esquecimento.
sábado, 11 de agosto de 2007
Muçulmanos contra a Al-Qaeda
Dois incidentes ilustram as divergências crescentes no seio dos movimentos islâmicos armados. No Waziristão do Sul, uma zona tribal do Paquistão situada na borda da fronteira afegã, talibãs locais perpetraram, em março de 2007, um massacre de combatentes estrangeiros do Movimento Islâmico do Uzbequistão, filiado à Al-Qaeda. Quase simultaneamente, ferozes combates opunham o Exército Islâmico no Iraque ao ramo local da Al-Qaeda. Duas visões – duas maneiras de conceber o combate islâmico – confrontam-se cada vez mais violentamente.
Desde 2003, voluntários estrangeiros afluem ao Paquistão e ao Iraque. Porém, em vez de satisfazer aos dirigentes dos talibãs e aos grupos de resistência islâmicos autóctones, esse afluxo de combatentes ligados ao takfirismo – uma ideologia que considera os “maus muçulmanos” seus principais inimigos (ler, nesta edição, Takfirismo, uma ideologia messiânica) – provocou mal-estar e sofrimento. Combatendo governos muçulmanos, esses militantes desencadearam o caos nas mesmas populações que diziam defender.
Durante três anos, entre 2003 e 2006, a própria complexidade da situação nesse vasto teatro de guerra, composto pelo Waziristão do Norte, Waziristão do Sul, Afeganistão e Iraque, reforçou a influência doutrinária da Al-Qaeda e reduziu os grupos autóctones ao silêncio. No Waziristão, zelotas takfiristas favoreceram o surgimento de enclaves islâmicos, que escaparam da jurisdição do Paquistão e alimentaram ações armadas nos grandes centros urbanos, com o objetivo último de desencadear um levante contra o regime militar pró-ocidental de Islamabad. Em resposta, o exército paquistanês conduziu operações sangrentas, massacrando centenas de não-combatentes, entre os quais mulheres e crianças, alimentando assim o furor dos extremistas. Já na época, muitos dirigentes talibãs reconheciam, reservadamente, que os takfiristas estavam se desviando, ao abandonar a estratégia exclusivamente anti-ocidental, pregada por Osama Bin Laden nos anos 1990, e ao transformar sua guerra de resistência nacional contra a ocupação estrangeira em um ataque ao poder militar do Paquistão.
No Iraque, tafkiristas visam os xiitas, e esquecem de lutar contra norte-americanos
No Iraque, Abu Mussab Al-Zarkawi, um dos principais dirigentes takfiristas, que deixara o Waziristão para ir a esse país às vésperas da invasão norte-americana, tornou-se o responsável mais visível da resistência. Zarkawi declarara publicamente fidelidade a Bin Laden. Em torno dele haviam-se agrupado militantes, na maioria estrangeiros, que constituíam o ramo iraquiano da Al-Qaeda. A situação no Iraque logo iria se assemelhar às do Waziristão e do Afeganistão.
Depois da queda de Saddam Hussein, as forças de resistência locais levaram algum tempo para se mobilizar. Precisaram de vários meses para organizar as diversas tribos, grupos religiosos fragmentados, membros do Baas, o antigo partido de Saddam Hussein, e oficiais da extinta Guarda Republicana em unidades eficientes de combate. Nesse ínterim, os combatentes estrangeiros, vindos dos quatro cantos do mundo muçulmano sob os estandartes negros da Al-Qaeda, constituíram um majlis alchoura (conselho) e deram prova de uma eficácia que os grupos locais ainda não demonstravam. Nessas condições, estes últimos não podiam expressar suas reservas à ideologia takfirista. Alguns já haviam tido a oportunidade de deplorar os métodos da Al-Qaeda, que, embora sunita como eles, deixava a luta contra o ocupante norte-americano para atacar lugares sagrados dos xiitas.
No entanto, com o anúncio feito pela Al-Qaeda, no fim de 2006, da criação de um emirado “ideologicamente puro” no Iraque, a estratégia dos grupos autóctones foi totalmente submetida à ideologia takfirista e a seu programa fratricida. A guerra contra a ocupação transformou-se em uma miríade de lutas sectárias. Mas os germes da ruptura entre os combatentes “internacionalistas” e a resistência autóctone estavam semeados.
Divisões têm origem na luta islâmica contra presença soviética no Afeganistão
Para compreender essas divergências, é necessário examinar as circunstâncias particulares que contribuíram para as transformações ideológicas da Al-Qaeda, quando da jihad contra a ocupação soviética no Afeganistão, durante os anos 1980, e depois. Os árabes que haviam afluído àquele país com o intuito de se juntar à resistência local dividiam-se em dois campos: “iemenita” e “egípcio”.
Os zelotas religiosos, enviados ao Afeganistão por seus imãs, pertenciam ao primeiro. Quando não estavam combatendo, passavam os dias em atividades rudes, cozinhando para si mesmos e dormindo logo após a isha, a última prece do dia. Com o fim da jihad afegã, voltaram ao seu país ou se misturaram à população local, no Afeganistão ou no Paquistão, onde muitos se casaram. Nos meios da Al-Qaeda, estes eram qualificados como dravesh – os que gostam da vida fácil.
O campo “egípcio” compunha-se dos mais politizados e ideologicamente motivados. A maioria era afiliada aos Irmãos Muçulmanos [1], mas rejeitava a via parlamentar preconizada por essa organização. Para os partidários dessas idéias, homens muitas vezes instruídos – médicos, engenheiros etc – a jihad afegã constituía um forte cimento. Muitos eram antigos militares que haviam aderido ao movimento clandestino Jihad Islâmica, do doutor Ayman al-Zawahiri (que viria a ser o braço direito de Bin Laden). Foi esse o grupo que assassinou Anuar Sadat em 1981, para puni-lo por ter assinado a paz com Israel em Camp David, três anos antes. Todos estavam convencidos de que os Estados Unidos e os “governos fantoches” do Oriente Médio eram os responsáveis pelo declínio do mundo árabe.
No campo egípcio, depois da isha, debatia-se sem cessar sobre o futuro. Os dirigentes inculcavam nos adeptos a necessidade de investir energia nas forças armadas de seu próprio país e de cultivar ideologicamente os melhores cérebros.
Talibãs afegãos afastam-se da Al-Qaeda e se aproximaram do Paquistão
Nas origens da Al-Qaeda encontra-se o Maktab Al-Khadamat (Agência de Serviços), criada por Abdallah Azzam a partir de 1980, a fim de apoiar a resistência afegã. O fundador veio a falecer em 1989 num atentado [2]. Bin Laden, um de seus principais discípulos, sucedeu-o à frente do movimento, para transformá-lo na Al-Qaeda.
“A maioria dos combatentes ’iemenitas’ – guerreiros bastante rústicos, cuja única ambição era o martírio – deixou o Afeganistão depois da queda do governo comunista”, explicou, durante uma entrevista recente em Amã, o filho do fundador do Maktab Al-Khadamat, Hudaifa Azzam. “Os ‘egípcios’ ficaram, pois suas ambições políticas continuavam insatisfeitas. Mais tarde, juntaram-se a Bin Laden, que voltara do Sudão em 1996, e começaram a convertê-lo à visão takfirista — pois, até então, seu pensamento era inteiramente voltado para a luta contra a hegemonia norte-americana no Oriente Médio”.
Hudaifa Azzam passou quase vinte anos junto aos militantes árabes no Afeganistão e no Paquistão. “Quando encontrei Bin Laden em Islamabad, em 1997, ele estava acompanhado do somaliano Abu Obadia e dos egípcios Abu Haf e Saiful Adil, os três pertencentes ao campo ‘egípcio’. Percebi então que as idéias extremistas destes últimos tinham influência sobre ele. Em 1985, quando meu pai pediu a Bin Laden que fosse ao Afeganistão, ele respondeu que iria apenas com a permissão do rei Fahd, da Arábia Saudita, que, na época, ele ainda honrava com o título de Wali al-Amr (“Autoridade Suprema”). Depois do 11 de setembro, quando denunciou os dirigentes sauditas, pude medir o quanto o campo ‘egípcio’ o havia influenciado”.
Era essa, portanto, a situação quando, no início de 2006, mais de 40 mil combatentes aguerridos de origem árabe, tchetchna e uzbeque, ao lado dos waziristaneses e de outros militantes paquistaneses vindos das cidades, reuniram-se no Waziristão do Sul e do Norte. A liderança talibã viu-se diante de um dilema, pois a maioria desses militantes preferia combater as forças armadas paquistanesas na zona tribal a lutar contra a ocupação do Afeganistão.
Novos confrontos pareciam inevitáveis. A cúpula talibã entendeu que o conflito punha em risco a grande ofensiva contra as forças da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), preparada para a primavera de 2006, e que era preciso desmontá-lo o mais rapidamente possível. O mulá Muhammad Omar, chefe em fuga dos talibãs, enviou o mulá Dadullah (um dos melhores comandantes do sudoeste do Afeganistão, morto em maio de 2007) para persuadir os talibãs paquistaneses e as facções da Al-Qaeda a se concentrarem nessa ofensiva, em vez de desperdiçarem suas forças. A mediação resultou, sim, num acordo de paz, mas entre os talibãs da zona tribal e as forças armadas paquistanesas. Tal acordo, firmado em 5 de setembro de 2006, previa, principalmente, a dispensa de todos os combatentes estrangeiros. O cessar-fogo permitiu ao poder paquistanês tecer sólidos laços com os líderes talibãs nos dois Waziristãos. Esses líderes receberam quantidades consideráveis de armas e dinheiro, além de lisonjeiros convites em Islamabad.
O acordo assinado resultava da constatação feita pela direção dos talibãs: depois de cinco anos de colaboração com a Al-Qaeda, a resistência no Afeganistão estava num impasse. Certamente ela havia se tornado mais forte. Mas os talibãs não puderam atingir nenhum objetivo estratégico maior, como teria sido a tomada de Kandahar ou o cerco de Kabul. Os comandantes talibãs perceberam que sua organização não podia esperar ganhar uma batalha contra o poder do Estado. A solução consistia, portanto, em encontrar outros recursos, de origem governamental. Voltaram-se então, naturalmente, para seu antigo protetor, o Paquistão. Daí o acordo de 5 de setembro.
O acordo resiste, apesar das provocações dos partidários de Bin Laden
Os líderes talibãs, tanto no Waziristão quanto no Afeganistão, estavam satisfeitos com o compromisso e pouco criticaram a expulsão dos combatentes estrangeiros. Supunha-se que eles fossem se juntar em massa à resistência afegã. Não estavam descontentes tampouco por se livrarem da Al-Qaeda e dos elementos que desenvolviam uma estratégia global, desviando-os do combate contra as forças da OTAN.
Em contrapartida, o acordo era inaceitável para os “guerreiros planetários” da Al-Qaeda, que sonhavam com um conflito regional em várias frentes, conduzido a partir das bases novamente estabelecidas no Waziristão. A perspectiva de pequenas escaramuças no Afeganistão pouco compensava seu sonho de uma vitória brilhante sobre a direção paquistanesa, muçulmana não-praticante. Além disso, a Al-Qaeda pensava em se beneficiar com novos trunfos.
Os dirigentes da rede terrorista logo entenderam que os acordos entre o Paquistão e os talibãs constituíam uma ameaça. Temiam também que os talibãs fossem emboscados pelos serviços de informações paquistaneses. Procuraram, então, sabotar a trégua, explorando divergências entre os signatários. Uma dessas oportunidades lhes foi oferecida pelo bombardeio de um campo de treinamento no Waziristão do Sul pela aviação paquistanesa, em 17 de janeiro de 2007, causando a morte de vários combatentes estrangeiros. Baitullah Mehsud, um dos raros dirigentes talibãs no Waziristão do Sul, denunciou os acordos, considerando que o Paquistão os havia violado. Tahir Yaldeshiv, conhecido militante uzbeque e ideólogo takfirista baseado no Waziristão do Sul, logo lhe deu apoio, despachando mais de uma dezena de grupos de kamikazes a fim de espalhar o terror nos centros urbanos paquistaneses. O balanço foi pesado para a população civil, mas os acordos sobreviveram, apesar das preocupações do presidente Pervez Musharaff com o seminário da Mesquita Vermelha (Lal Masjid) de Islamabad, que procurava impor uma islamização ao estilo talibã na capital.
Se os acordos sobreviveram foi porque convinham a ambas as partes. Eles permitiam aos dirigentes paquistaneses construir uma estratégia capaz de fazer face à ação da Al-Qaeda na zona tribal. Por outro lado, eram uma resposta à desilusão dos talibãs, cansados da estratégia global da Al-Qaeda, considerada monomaníaca, que servira apenas para enfraquecer a resistência afegã. Haji Nazir, comandante talibã pouco conhecido, cortejado e alimentado com dinheiro e armas pelos serviços de segurança paquistaneses, tornou-se rapidamente o homem forte do Waziristão do Sul. Nazir deixou a escolha aos combatentes estrangeiros: serem desarmados ou irem reforçar a ofensiva contra as tropas da OTAN no Afeganistão. Como se podia prever, eles rejeitaram a oferta. E um confronto armado, em março de 2007, fez mais de 140 mortos, na maior parte originários da Ásia central. No Waziristão do Norte, houve incidentes do mesmo tipo.
Os comandantes talibãs precisaram levantar o cerco aos militantes estrangeiros e permitir-lhes seguir qualquer destino de sua escolha. Estes preferiram ir para o Iraque, nova terra prometida, em vez de para o Afeganistão.
Suspeita: ao dividir os árabes no Iraque, a Al-Qaeda estaria trabalhando para os EUA?
A Al-Qaeda começou a enviar combatentes dos dois Waziristão para o Iraque imediatamente depois da invasão norte-americana de 2003. Esse movimento foi acelerado pelas divergências ideológicas e estratégicas que a opunham aos talibãs. “Logo que foi nomeado administrador do Iraque, Paul Bremer [3] dissolveu todas as forças de segurança do país”, lembra Muhammad Bashar Al-Faidy, dirigente da Associação dos Ulemas Muçulmanos, um dos atuais integrantes da resistência anti-norte-americana. “Fomos então visitá-lo em delegação e o alertamos contra essa decisão, que iria permitir que todos atravessassem nossas fronteiras. Deveríamos ter preservado ao menos os guardas de fronteira. Bremer não concordava: para ele, todas as forças de segurança estavam com Saddam. Logo, os iraquianos assistiram, impotentes, a um afluxo de todo tipo de indivíduos sem escrúpulos, terroristas da Al-Qaeda ou vindos do Irã, que se juntaram no Iraque em torno de objetivos próprios”. Ele conclui: “Hoje, creio que essa política de Bremer era conscientemente destinada a atrair os militantes da Al-Qaeda para o Iraque, onde ele pensava que fosse mais fácil matá-los ou capturá-los do que no Afeganistão ou no Waziristão [4].
Todavia, enquanto a Al-Qaeda se esforça para tomar a direção da luta e convertê-la à sua visão global, os dirigentes iraquianos da resistência, movidos antes de tudo por objetivos nacionalistas, preocupam-se cada vez mais e gostariam de se livrar desses combatentes estrangeiros. Indícios dessas dissensões foram recentemente relatados pela mídia árabe. A rede de televisão Al-Jazira transmitiu, em abril de 2007, as palavras de Ibrahim Al-Shammari, porta-voz do Exercito Islâmico, sobre sua ruptura com a Al-Qaeda. Os objetivos dos dois movimentos são tão diferentes, afirmou, que, em certas circunstâncias, o Exército Islâmico preferiria tratar com os Estados Unidos.
A esse respeito, Al-Faidy não tem meias palavras: “Todos os elementos estrangeiros que se integraram às milícias irregulares são uma maldição para a resistência. Eles se obstinam em querer controlar o Iraque para levar à frente seu próprio projeto. A Al-Qaeda foi infiltrada por numerosos serviços de informações, sem falar de seus desvios religiosos, como o takfirismo. Afinal de contas, é o povo iraquiano que está pagando um pesado tributo. O mesmo se dá com as milícias xiitas apoiadas pelos serviços iranianos. Elas querem dominar o sul do Iraque e já assassinaram, até o momento, cerca de trinta xeques. Os xeques dessa região gostariam de se juntar à resistência contra o ocupante, mas as atividades dessas milícias apoiadas pelo Irã os impedem”.
Segundo o dirigente da associação dos ulemas, a maior parte das operações de envergadura montadas no Iraque é realizada pelos grupos nacionais de resistência. Mas, como estes são lentos em reivindicá-las, os meios de comunicação internacionais os atribuem freqüentemente à Al-Qaeda. “Até mesmo James Baker [5]”. ]] admite que a Al-Qaeda é apenas um elo modesto da resistência. Pagamos hoje o preço de ter aceito a Al-Qaeda dentro da resistência, num primeiro impulso de entusiasmo. Depois da invasão norte-americana, queríamos convencer todo mundo a se juntar à luta contra o invasor. Quando chegaram ao Iraque os primeiros combatentes da Al-Qaeda, nós os recebemos de braços abertos. Mas, hoje, tudo o que eles fazem prejudica seriamente a resistência”.
Seja a resistência iraquiana sejam os talibãs ou outros grupos que aceitaram a Al-Qaeda em suas fileiras, todos agora pagam o preço.
[1] A Organização dos Irmãos Muçulmanos foi criada em 1928, no Egito, por Assam Al-Banna. Disseminou-se depois pelo mundo árabe. Ler «Une internationale en trompe-l’œil”, de Wendy Kristianasen, Le Monde Diplomatique, edição francesa, abril de 2000.
[2] O assassinato continua um mistério. Segundo alguns, Bin Laden teria sido o mandante, depois de divergências surgidas entre os dois homens.
[3] Paul Bremer foi procônsul dos Estados Unidos no Iraque, entre maio de 2003 e junho de 2004.
[4] Outra possibilidade a ser considerada é que Bremer pretendesse se valer da Al-Qaeda para debilitar a posição dos xiitas no Iraque – o que, de fato, viria a ocorrer. As relações entre a Al-Qaeda e o governo Bush ainda estão por ser esclarecidas (nota da edição brasileira impressa)
[5] Alusão às conclusões do Relatório Baker-Hamilton, The Irak Study Group Report, publicado nos Estados-Unidos em dezembro de 2006, que levanta uma série de propostas para a política norte-americana no Iraque. Representantes democratas e republicanos participaram da redação, mas suas principais conclusões foram rejeitadas pelo presidente Bush. Pode ser consultado em: www.usip.org/isg/iraq_study_group_report/report/1206/index.html