Como Washington atiça o Irã
Selig S. Harrison - LeMondeDiplomatique
Na luta que se trava no seio do governo Bush, em relação à política face ao Irã, dois campos se definem com clareza. De um lado, o vice-presidente Richard Cheney e seus aliados no Pentágono e no Congresso, com o incentivo do Comitê Israelense-Americano de Assuntos Públicos, não só desejam que os EUA bombardeiem a unidade de enriquecimento de urânio em Natanz mas também apóiam ataques aéreos a bases militares iranianas próximas da fronteira com o Iraque. De outro lado, a secretária de Estado Condoleezza Rice deseja continuar na via diplomática, reforçando e alargando as negociações com Teerã, iniciadas no final de maio, em Bagdá. Porém, o preço que Condoleezza teve que pagar por adiar a ação militar foi participar de um compromisso perigoso: a intensificação de operações clandestinas destinadas a desestabilizar a República Islâmica, formalizadas por meio de decreto presidencial no final de abril.
Ações clandestinas para derrubar o regime de Teerã foram colocadas em prática de forma intermitente ao longo da última década. No entanto, até este momento, a CIA operara sem decretos, utilizando-se de subterfúgios. Por exemplo, o Paquistão e Israel forneciam armas e fundos a grupos insurgentes no sudeste e noroeste do Irã, onde as minorias étnicas baluque e curda, muçulmanas sunitas, há tempos combatem o poder central, persa e xiita. A autorização presidencial de abril permite a intensificação das operações “não-letais” conduzidas diretamente por agências norte-americanas. Além da transmissão de propaganda, de uma campanha midiática de desinformação e do uso de exilados iranianos, baseados nos EUA e na Europa, em protestos políticos, o novo programa privilegia a guerra econômica — principalmente a manipulação das taxas cambiais e outras medidas destinadas a perturbar as atividades bancárias e comerciais do Irã.
Considerada confidencial, a nova estratégia não se manteve secreta por muito tempo, depois de informada aos comitês de inteligência das duas câmaras do Congresso, como determina a lei. Em minha recente estada em Teerã, esse era o assunto de todas as rodas. Para minha surpresa, tanto os conservadores quanto os reformistas concordavam que o decreto surgiu em um momento bastante impróprio, diante de uma real oportunidade de cooperação com os Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão. Membros graduados do Ministério das Relações Exteriores, do Conselho de Segurança Nacional e do gabinete do presidente Mahmud Ahmadinejad, bem como instituições de pesquisas simpáticas ao governo, estimam que a estabilidade no Iraque e no Afeganistão é de interesse do Irã e que a cooperação com os Estados Unidos é possível. Mas somente se, em contrapartida, houver um acordo gradual entre Washington e Teerã, com o fim das políticas norte-americanas direcionadas à “mudança do regime” iraniano.
No Iraque, “os EUA são como uma raposa presa em uma armadilha”, observou Amir Mohiebian, editor do diário conservador Reselaat. “Por que libertarmos a raposa, se ela pode acabar nos comendo? Claro que, se os EUA alterarem sua política, existe espaço para cooperação”. No outro lado do espectro jornalístico, Mohammed Adrianfar, editor do Hammihan, que apóia o ex-presidente Akbar Hashemi Rafsanjani [1], disse que “a atmosfera está propícia para dar início a negociações e relações”. E prosseguiu: “O povo quer estabilidade. O slogan ‘Morte aos EUA’ não funciona, e nossos líderes sabem disso. É irônico que dois governos inimigos tenham tantos interesses em comum no Iraque e no Afeganistão.”
Embora não se discuta se o Irã ajuda as milícias xiitas no Iraque — e, caso ajude, quais delas — Alaeddin Borujerdi, chefe do Comitê de Relações Exteriores do Majlis (Parlamento), criticou a indulgência dos EUA para com os afiliados do partido Baath e outros sunitas. Deixou claro que Teerã espera uma predominância xiita, como pré-requisito para estabilidade em Bagdá e para um eventual acordo com Washington.
Entre as provocações, apoio a grupos classificados como "terroristas"
Segundo os dois editores citados e várias autoridades, a melhor forma de os norte-americanos começarem a retroceder de sua política de “mudança de regime” seria o fim da milícia persa de exilados, conhecida como Mujahidin-e-Khalq (MEK), baseada no Iraque e apoiada pelos EUA. A MEK apoiou Saddam Hussein na guerra entre o Iraque e o Irã, de 1980 a 1988, e seus 3.600 combatentes, muitos deles mulheres, permaneceram em território iraquiano. Conforme fontes dos EUA, desde a invasão do Iraque, as agências de inteligência norte-americanas desarmaram os combatentes, mas mantiveram intactas as bases da MEK próximas à fronteira iraniana, usando espiões da organização para missões de sabotagem e espionagem no Irã e para interrogar iranianos acusados de ajudar as milícias xiitas do Iraque. A MEK também é responsável pela transmissão de propaganda política por rádio e TV. Até pouco tempo, suas estações transmitiam para o Irã, a partir do Iraque. Porém a pressão iraniana sobre o governo de Bagdá forçou a mudança para Londres. Ironicamente, quando o moderado Mohammed Khatami foi eleito presidente do Irã, em 1997, o Departamento de Estado norte-americano protagonizou um gesto conciliador, listando a MEK como organização terrorista e imputando-lhe violações em massa dos direitos humanos – imputação que ainda permanece.
A desmobilização das forças paramilitares da MEK seria uma maneira eficaz de mostrar que Washington está pronto para dar início a um acordo com Teerã, sugere Abbas Maleki, consultor do Conselho de Segurança Nacional. Pois a organização é o único grupo exilado militarizado que tenta derrubar a República Islâmica, e também o preferido do lobby para “mudanças de regime no Irã” ativo em Washington. Alireza Jaffarzadeh, líder do Conselho Nacional de Resistência do Irã, a fachada política da MEK, aparece regularmente no canal conservador Fox News, como especialista em Irã, com um papel similar ao de Ahmad Chalabi durante os preparativos para a invasão do Iraque: o de mobilizar o apoio do Congresso e da mídia para uma ação militar contra o Irã.
Como ficou demonstrado pela classificação da MEK entre as organizações terroristas, o governo Clinton esperava uma abertura diplomática em direção ao Irã. Assim, quando Newt Gingrich, então presidente republicano da Câmara dos Representantes, conseguiu a aprovação de um crédito de US$18 milhões para ações clandestinas “não-letais” destinadas a “forçar a substituição do regime no Irã”, a Casa Branca chamou a CIA à prudência. Porém, o governo Bush rapidamente mudou o curso dos acontecimentos. Cheney concordava com a meta de “mudança de regime” de Gingrich, e convenceu aqueles que duvidavam dessa meta de que a pressão sobre Teerã fortaleceria os EUA nas negociações para pôr fim ao programa iraniano de enriquecimento do urânio. Primeiro, o governo reacendeu e expandiu os planos dormentes para ações clandestinas “não-letais”, contidas no plano de Gingrich. Em seguida, em fevereiro de 2006, conseguiu a aprovação do Congresso para a liberação de uma verba de US$75 milhões a ser usada em um programa aberto do Departamento de Estado destinado a “promover a abertura e a liberdade” no Irã. Por fim, determinou meios secretos de atacar o regime militarmente, sem a necessidade de um decreto presidencial formal.
O modo mais simples de se conseguir isso era fazer com que o Paquistão e Israel armassem e financiassem grupos insurgentes já existentes nas áreas balúchis e curdas, por meio de relações bem enraizadas entre os EUA, o Serviço Secreto Paquistanês (ISI – Interservices Intelligence Directorate) e o serviço secreto israelense (Mossad).
Movimento mais recente: Washington arma grupos dissidentes e separatistas
O ISI canalizou o envio de armas e capital a um grupo dissidente balúchi já estabelecido, o Jundullah, que causou alto número de baixas em uma série de ataques contra unidades da Guarda Revolucionária Iraniana, ocorridos em Zahedan e áreas do sudeste iraniano em 2006 e 2007. Os EUA não tentaram esconder seu apoio ao Jundullah. Em 2 de abril de 2007, o programa Voz da América entrevistou o líder da milícia, Abdulmalek Rigi, apresentando-o como “líder do movimento de resistência popular no Irã”.
Como autor de um livro sobre os balúchis [2], tenho muitos contatos com esse povo, e, em recente encontro em Dubai, alguns dos meus conhecidos apresentaram diversos fatos que comprovam a ligação de Rigi com o ISI. Correspondentes da rede de televisão norte-americana ABC, em reportagem no território paquistanês, informaram que “fontes da inteligência dos EUA e do Paquistão reconheceram o apoio do ISI ao Jundullah” [3].
De sua parte, o Mossad possui contatos há cinco décadas nas áreas curdas do Irã e do Iraque. E, durante o reinado do xá Reza Pahlevi, utilizou seus agentes no Irã para desestabilizar os territórios curdos iraquianos. Considerando-se tal cenário, é possível acreditar nas informações de Seymour Hersh, de que o Mossad oferece “equipamento e treinamento” ao grupo curdo do Irã Pejak [4] – mesmo que o Pejak esteja ligado ao grupo curdo da Turquia PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), rotulado por Washington e Ancara como organização terrorista. Jon Lee Anderson entrevistou uma antiga autoridade curda do Iraque, que disse que o Pejak opera a partir de bases no Curdistão iraquiano, e realiza ataques no Irã com o “apoio secreto dos EUA” [5].
Em termos econômicos, a mais importante ameaça latente contra Teerã é a província sudoeste do Khuzestão, responsável por 80% da produção petrolífera do país. Os xiitas árabes do Khuzestão têm a mesma identidade étnica e religiosa dos xiitas árabes da bacia de Shatt-al-Arab no Iraque, e sua capital, Ahwaz, está a apenas 120 quilômetros a leste de Basra, onde as forças britânicas no Iraque estão aquarteladas. Considerando-se a história, não é surpreendente que Teerã acuse a Grã-Bretanha de usar Basra como base de inteligência para disseminar o descontentamento no Khuzestão. Com o apoio das forças e dos interesses britânicos em relação ao petróleo, os príncipes árabes do Khuzestão separaram-se da Pérsia, em 1897, e estabeleceram um protetorado controlado pela Grã-Britânica (o Arabistão), que a Pérsia reconquistou somente em 1925. Segundo acusações de grupos separatistas, embora a maior parte da receita petrolífera do Irã seja produzida no Khuzestão, Teerã rejeita oferecer uma participação em recursos para o desenvolvimento econômico à província. Até o momento, as facções separatistas não criaram uma força militar unificada, como o Jundullah do Baluchistão, e não há evidências de ajudas estrangeiras. No entanto, essas mesmas facções ensaiam, periodicamente, ataques a instalações de segurança do governo e bombardeiam unidades de produção de petróleo. Muitas, ainda, transmitem propaganda política em árabe a partir de pontos no exterior que não são claramente identificados.
Como a ação dos EUA favorece... a linha-dura iraniana
O Movimento Nacional pela Liberação de Ahwaz, que defende a independência, opera a Ahwaz TV, canal por satélite cuja tela exibe um número de fax que tem o código de área da Califórnia [6]. Outro canal por satélite, a Al-Ahwaz TV, igualmente transmitida por exilados iranianos na Califórnia, está ligada à Sociedade de Amizade entre Grã-Bretanha e Ahwaz, que defende a autonomia regional para a província, em um Irã federativo [7].
Aproximadamente metade (US$36 milhões) da verba de US$75 milhões liberada em 2006, nos EUA, é usada nos programas operados pelos EUA Voz da América e Radio Farda e nas instalações de transmissões anti-regime, como a Ahwaz TV, administradas por exilados iranianos nos EUA, Canadá e Grã-Bretanha. Outros US$20 milhões são gastos com entidades não-governamentais de defesa de direitos humanos no Irã e nos EUA. O subsecretário de Estado dos EUA, Nicholas Burns, afirmou que, devido à “dificuldade de entrada de recursos dos EUA no Irã”, resultado do “rígido tratamento do governo iraniano ao povo iraniano”, os Estados Unidos estão “atuando junto a organizações árabes e européias para apoiar os grupos democráticos no interior do país” [8]. Conforme relatou um iraniano, que no ano passado participou de seminário com apoio dos EUA, em Dubai, o evento “parecia um acampamento de treinamento para revolucionários, no estilo James Bond” [9]. Quatro participantes iranianos foram presos posteriormente.
Minha impressão em Teerã foi de que os esforços, secretos ou não, para desestabilizar a República Islâmica e pressioná-la economicamente em prol do abandono do programa nuclear foram contra-producentes por quatro motivos:
1. Deram, aos conservadores da linha-dura, uma desculpa para atacar tanto iranianos que trabalham internamente, buscando liberalizar o regime, quanto indivíduos com dupla cidadania, iraniana e norte-americana, como Haleh Esfandiari, do Centro Internacional de Acadêmicos Woodrow Wilson, que permaneceu preso por três meses, sob vagas acusações de espionagem;
2. Com a ajuda à insurgência de minorias étnicas, os EUA permitiram que o presidente Ahmadinejad se mostrasse defensor da maioria persa (as minorias constituem 44 % da população, sendo que a maior delas, a dos Azeris – 24 % –, passou pelo processo de assimilação, enquanto que os rebeldes – baluques, curdos e árabes do Khuzestão – estão dolorosamente divididos entre separatistas e aqueles que defendem a reestruturação em um Irã federativo);
3. Ahmadinejad pôde culpar as pressões econômicas externas pelos problemas econômicos que são, principalmente, resultado de sua má administração;
4. A negociação de compromissos para a estabilização do Iraque e do Afeganistão é possível, mas com a condição de que se ponha fim aos esforços de subversão e que o presidente Bush não coloque em execução sua ameaça de 28 de agosto, de “responder às atividades mortíferas de Teerã” no Iraque.
"Qual a vantagem de agitar o pano vermelho, como numa tourada"?
Porém, mesmo se a pressão diminuir, um compromisso nuclear definitivo é pouco provável, diante da ausência de mudanças na postura de segurança dos EUA no Golfo Pérsico. Uma suspensão das atividades de enriquecimento de urânio pelos iranianos em Natanz poderá ser obtida, se Israel aceitar a interrupção simultânea de seu reator em Dimona [10].
“Como podemos negociar a desnuclearização, se vocês enviam ao Golfo porta-aviões que, até onde sabemos, estão equipados com armas nucleares táticas?”, perguntou Alireza Akbari, ministro adjunto da Defesa no governo moderado de Khatami. “Como podem esperar que negociemos se vocês não discutem Dimona?”
As pressões, secretas ou não, que até agora foram aplicadas ao Irã servem apenas para enfurecer os iranianos de todas as tendências, fortalecendo os conservadores da linha-dura. É certo que as pressões econômicas são mais eficientes do que a ajuda secreta aos insurgentes. Porém, dos 40 bancos europeus e asiáticos que fazem negócios com o Irã, somente sete cortaram relações com o país, em resposta às sanções dos EUA. De qualquer forma, o Irã vem, cada vez mais, conduzindo seus negócios internacionais por meio de 400 instituições financeiras baseadas em Dubai — em sua maioria árabes. Considerando que as transações entre o Irã e os Emirados Árabes Unidos, incluindo Dubai, chegaram a quase US$11 bilhões neste ano, o subsecretário do Tesouro dos EUA, Stuart Levey, falou em vão quando ameaçou, com represálias, as empresas que faziam negócios com o Irã, em discurso proferido em Dubai, no dia 7 de março. O governo tenta colocar em prática medidas mais contundentes contra as empresas ligadas à Guarda Revolucionária e às bonyads — fundações dirigidas por clérigos. Porém, seu impacto até o momento foi limitado.
Comparando os EUA ao toureiro em uma tourada, um respeitado embaixador europeu que reside há anos em Teerã perguntou tristemente: “Qual é o objetivo disso tudo? Qual é a vantagem de se agitar o pano vermelho? Só enfurece o touro, cada vez mais. Não o mata”.
[1] No início de setembro de 2007, Rafsanjani foi eleito dirigente da assembléia de religiosos encarregada de designar o Guia Supremo (atualmente o ayatollah Ali Khamenei) e supervisionar sua ação.
[2] Afghanistan’s Shadow: Baluch Nationalism and Soviet Temptations, Carnegie Endowment for International Peace, 1980
[3] Brian Ross e Christopher Isham, ABC News, 3 de abril de 2007
[4] Seymour Hersh: “The Next Act,” The New Yorker, 27 de novembro de 2006.
[5] Jon Lee Anderson: “Mr. Big,” The New Yorker, 5 de fevereiro de 2007.
[6] BBC World Media Monitoring, 4 de janeiro de 2006.
[7] Al-Ahwaz News , British-Ahwaz Friendship Society, 11 de fevereiro de 2006
[8] Conselho de Relações Exteriores, Nova York, 11 de outubro de 2006.
[9] Negar Azimi: “The hard realities of soft power”, New York Times Magazine, 24 de junho de 2007.
[10] Para saber mais sobre o compromisso nuclear no Irã, ver Selig Harrison: “The Forgotten Bargain”, World Policy Journal, 2006.