Elaine Tavares - jornalista
Por isso, na Telesur, os correspondentes falam do jeito da sua gente e, fundamentalmente, mostram as notícias que nunca sairiam nos canais comerciais. Lutas de trabalhadores, movimentos sociais, protestos, ações afirmativas, documentários sobre a história da vida e das lutas dos empobrecidos, filmes que não passam nos circuitos dominados pelas mega-empresas estrangeiras, documentários sobre as culturas locais, sobre artistas populares, enfim, a vida mesma, e não o seu pastiche.
Além disso, um dos pilares da produção da Telesur são os trabalhos independentes e comunitários, ou seja, a televisão sendo feita pelas gentes comuns, pelos comunicadores populares, pelos movimentos em luta. Esse é um diferencial importantíssimo. Segundo o presidente Hugo Chávez, autor da idéia, é fundamental que as pessoas se sintam responsáveis pela produção do que sai na TV. Não é à toa que boa parte dos jornalistas venezuelanos fazem ferrenha oposição ao presidente, porque, segundo eles, isso acaba tornando o trabalho profissional do jornalista algo descartável. Polêmico, Chávez enfrenta o debate e mostra claramente o papel que esta parte do jornalismo vem cumprindo na sociedade venezuelana. Desde sempre, o jornalismo que se expressa nas grandes redes comerciais nada mais é do que porta-voz do poder econômico. A vida do povo venezuelano não aparece na televisão, daí a necessidade deste mesmo povo tomar nas mãos a tarefa de contar sua história. Isso não significa que a Telesur não tenha jornalistas, muito pelo contrário. A rede diferencia muito bem o que é o setor de jornalismo e os programas que trabalham na linha documental, onde então aparecem os trabalhos feitos de forma independente e comunitária. Por isso, todo o protesto dos jornalistas cortesãos do poder econômico e das multinacionais é meio vazio de sentido.
Mas, é justamente essa diversidade de olhares e a proposta de libertação da palavra que tornam a Telesur uma rede maldita. Nos Estados Unidos, já estão a todo o vapor dentro do Senado, as propostas de terrorismo cósmico. Ou seja, existe até um projeto de lei, do congressista representante do estado da Flórida, Connie Mack, que exige dos Estados Unidos uma ação de interferência no sinal de satélite da Telesur, para evitar, assim, que a rede transmita idéias anti-americanas. Isso sem falar nas propostas de criar canais exclusivos de transmissão desde os Estados Unidos para a Venezuela, fomentando o ódio a Chávez. O trágico de tudo isso é que a gente ouve todos os dias nas redes de televisão brasileiras, todo o tipo de absurdo contra Chávez e seu governo, mas sobre essas arbitrariedades estadunidenses não há quem diga qualquer palavra. Os Estados Unidos podem usar seu braço midiático armado, a CNN, para difundir o terror, o preconceito e o ódio. Para eles tudo está liberado. Mas, Hugo Chávez precisa ser detido. Ele é o louco. Assim, enquanto os congressistas estadunidenses tramam contra a América Latina (porque a Telesur hoje já se expandiu por mais países como a Bolívia, o Equador e a Nicarágua), as redes comerciais e todas as mídias se empenham em incutir o ódio a tudo que venha da Venezuela, menos o petróleo, é claro.
E o Brasil?
O governo de Luis Inácio desde o começo da proposta chavista se comprometeu a dar apoio logístico, mas a intenção era de também criar um canal estatal internacional. O presidente brasileiro parece não suportar ter perdido a dianteira de uma idéia tão inovadora quanto a que teve o seu colega venezuelano. E tanto fez que, no ano de 2006, conseguiu colocar no ar, também por 24 horas, a TV Brasil, que é uma cópia mal-acabada do projeto da Telesur, visto que tem o propósito de chegar também nos demais países latino-americanos. A diferença que Luis Inácio pretendeu imprimir no seu canal foi a de não ser uma emissora estatal e sim pública, o que teoricamente a colocaria nas mãos da sociedade e não do governo. Assim, para os que acusam Chávez de ser um ditador, fica também muito cômodo fazer comparações com a TV brasileira e dizer que lá, na Venezuela, a informação é manipulada e controlada pelo presidente, enquanto que aqui, não.
Neste ponto é bom retomar a velha parábola dos dois filhos que Jesus conta nos evangelhos. O pai manda o filho trabalhar na vinha. Um diz: sim, pai. E não vai. O outro diz: não vou, seu velho chato. E vai. No caso das televisões em questão acontece a mesma coisa. A Telesur é uma rede multi-estatal, portanto, controlada pelos governos. Deveria assim, ser controlada pelos governos. Mas, pelo menos na Venezuela o controle quem tem – cada dia mais - é o povo organizado. É dele que saem as produções e tudo o que se faz sai na TV. Já no Brasil, a TV pública acaba de anunciar o seu Conselho Curador. Foi todo ele escolhido arbitrariamente pelo presidente Luis Inácio, assim como a diretora da TV também o foi. E vale lembrar que a pessoa escolhida para comandar o canal “público” é uma ex-alta-funcionária da Globo.
O Conselho Curador definido pelo presidente tem 15 membros que, segundo ele, bem representam a sociedade brasileira. São eles: Ângela Gutierrez, empresária e colecionadora de arte, Cláudio Lembo, ex-governador de São Paulo (DEM, antigo PFL)), Delfim Netto, ex-deputado federal, Ima Vieira, diretora do Museu Paraense Emílio Goledi, Isaac Pinhanta, professor indígena, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, empresário e consultor da Rede Globo, José Martins, engenheiro mecânico, José Paulo Cavalcanti, advogado e jornalista, Lúcia Willadino Braga, diretora da Rede Sarah de Hospitais, Luiz Edson Fachin, professor de Direito da Universidade Federal do Paraná, Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, Maria da Penha Maia, biofarmacêutica cearense, MV Bill, rapper e militante do movimento negro, Rosa Magalhães, carnavalesca, e Wanderley Guilherme dos Santos, professor de teoria política da UFRJ. Além deles os ministros os ministros da Educação, Fernando Haddad, da Ciência e Tecnologia, Sérgio Resende, e da Cultura, Gilberto Gil, também estarão entre os integrantes do Conselho Curador.
Segundo a assessoria do presidente, o eclético conselho está baseado na diversidade regional e na pluralidade. Uma boa olhada nos nomes e já se pode perceber quais as forças que vão exercer a hegemonia desta propagada “pluralidade”. Boni, ex da Globo e dono de TV, Delfim, o ministro da ditadura, Lembo, do velho PFL, enfim, raposas cuidando o galinheiro. Como o ministro das comunicações também é cria da Globo, qual será a linha que a TV Brasil seguirá? Alguém arrisca um palpite?
E a sociedade espera
No meio desse turbilhão, enquanto também se discute de maneira subterrânea a TV digital, a sociedade e os movimentos organizados parecem adormecidos. São tantos os prejuízos causados às gentes que não há pernas para travar todas as lutas. Assim, acabam-se fazendo as batalhas mais imediatas como as que dizem respeito à sobrevivência. Lutas contra a reforma da Previdência, defesa da universidade pública, por moradia, reforma agrária, enfim, os eternos problemas estruturais que seguem aprofundando o abismo entre os ricos e empobrecidos. Do ponto de vista corporativo, a categoria dos jornalistas vem discutindo a questão da TV pública e não é de hoje que tem exigindo do governo a realização de uma Conferência Nacional de Comunicação para discutir a comunicação no seu todo. Mas, até agora, o governo se mantém surdo e nada da conferência.
No caso da TV Brasil as polêmicas são grandes. Na verdade, apesar de o canal já estar no ar, o Congresso Nacional ainda não aprovou a sua criação e o governo o mantém sob medida provisória (na Venezuela isso seria considerado autoritário e anti-democrático). Havia uma expectativa com relação ao Conselho Curador, pois este será o órgão deliberativo de todo o processo da TV Brasil, e acreditava-se que esse conselho pudesse ser definido de maneira mais aberta, acolhendo entidades e movimentos sociais. Agora, com a escolha partindo diretamente do presidente, fica uma certa perplexidade. Quem afinal pode garantir que este grupo, saído da manga de Luis Inácio, de fato representa a pluralidade?
Uma das representantes do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Vera Canabrava, diz que a nomeação do conselho poderia ter contemplado uma representação mais coletiva da sociedade, mas, em linhas gerais, a idéia da TV Brasil é bastante bem vinda. Segundo ela, não é hora de jogar pedra no governo e sim lutar pela Conferência Nacional de Comunicação, que pode dar diretrizes mais democráticas para o setor.
Já Bia Barbosa, do grupo Luta Fenaj, oposição à atual direção da Federação dos Jornalistas, questiona de forma muito dura o processo como a TV Brasil vai sendo construída. “Vários debates feitos pelos jornalistas e pela sociedade já indicavam a necessidade deste conselho ser escolhido pelas entidades do movimento social. Não o foi. Além disso, a composição mostra empresários, quadros conhecidos da direita tradicional, gente ligada a Globo etc..., e há uma completa ausência de representantes dos movimentos sociais organizados”. Ela deixa claro que o grupo não é, em hipótese alguma, contrário a idéia da TV Brasil. Muito pelo contrário, apóia e quer ver crescer a proposta de uma TV verdadeiramente pública. Mas, insiste que o modelo de gestão da TV Brasil está longe de ser o ideal. “A medida provisória que criou a televisão é muito clara: quem indica direção e conselho é o presidente. Fala que a próxima gestão será submetida a uma consulta pública, mas não estabelece como”.
Tanto o FNDC quando o Luta Fenaj estão na luta pela realização da Conferência Nacional de Comunicação, mas é óbvio que não dá para jogar para este fórum, que ninguém sabe quando vai acontecer, as discussões acerca da TV Brasil, como bem lembra Bia Barbosa. É preciso que não só os jornalistas e comunicadores, envolvidos visceralmente no caso, mas também os sindicatos e os demais movimentos sociais sejam capazes de fazer uma reflexão crítica acerca do que significa esta emissora de televisão e sobre como ela deve ser gerida, visto que é pública e não estatal.
Os desafios
A proposta de uma TV pública é, em si, um avanço, mas sem o controle da população sobre ela, muito pouco pode significar. Não basta apenas a luta contra a baixaria ou por uma regulamentação de horários nos quais determinados conteúdos não podem ser veiculados. A população brasileira, assim como a da América Latina, não por sua vontade, mas por conta de séculos de exploração e domínio das elites predadoras, é praticamente oral. Absorve as informações muito mais pelo ouvido (rádio e TV) do que pela leitura. Então, não compreender a importância deste debate acerca das emissões televisivas pode significar uma derrota para a cultura e para a política nacional.
Neste sentido, é fundamental que os sindicatos e movimentos populares mantenham sua atenção neste processo e protagonizem ações concretas de tomada de controle. Uma TV pública é mantida pelo dinheiro de todos os contribuintes e quem deve ter o controle, de fato, é o povo, não o governo. O desafio está em se definir mecanismos reais para o exercício deste controle. Não pode ser o presidente que de sua cabeça tire os nomes daqueles que vão compor o conselho que dará a direção ao trabalho. Esse conselho deve ser expressão das forças vivas que atuam na sociedade.
E para que não venham os adversários de sempre atirando pedra, e acusando de sectarismo aos críticos do presidente, poder-se-ia até admitir que o primeiro conselho fosse escolhido assim, por Luis Inácio, mas pelo menos deveria ser provisório, até que as entidades e movimentos que são protagonistas da vida política pudessem discutir e deliberar sobre isso. Aí sim seria possível dizer que existe uma TV pública no Brasil. Caso contrário é estatal, sob o controle das forças que controlam o governo.
Na Venezuela, a Telesur, que é um projeto multi-estatal não escamoteia. Está a serviço dos governos, mas estes exercem um “poder obendencial”, ou seja, mandam obedecendo aos desejos das gentes. E caminham num processo cada vez mais participativo. Cometem equívocos aqui e ali, mas estão encarnados no povo. E o povo, por sua vez, se faz protagônico. Aí reside, talvez, a diferença.