Paquistão sem Benazir, as ilusões do Ocidente
Quase todas as suposições de Bush, Negroponte e seus acólitos eram baseadas em fatos sistemática e seletivamente retocados, distorcidos ou exagerados, a fim de evitar qualquer responsabilidade ocidental na crise do Paquistão. Agora que Pervez Musharraf fracassou no seu papel de homem chave dos EUA, estes podem mudar de peão este ano e voltar a depositar as suas esperanças no general Ashfaq Kayani, que já substituiu Musharraf como chefe do exército.
"Os casamentos arranjados podem ser um problema complicado. Concebidos primordialmente como instrumento de acumulação de riquezas, eles não servem para superar indesejáveis discussões amorosas nem para evitar aventuras amorosas clandestinas. Se é notório que os contraentes se detestam mutuamente, só um pai desapiedado, de sensibilidade embotada pela perspectiva do lucro imediato, insistirá num processo, cujo infeliz desfecho conhece perfeitamente. Que isto também é válido na vida política, é coisa que foi cristalinamente revelado pela recente tentativa de Washington de unir Benazir Bhutto e Pervez Musharraf. Quem fez o papel de firme e decidido pai único foi um desesperado Departamento de Estado – com John Negroponte no papel de diabólico intermediário e Gordon Brown no de cortesã amuada – assaltado pelo medo de não conseguir se impor aos noivos potenciais e ficar demasiado velho para se reciclar."
Escrevi este parágrafo inicial no longo ensaio para a London Review of Books no começo de dezembro. Que a violência tenha chegado a este ponto não me surpreende. O choque inicial do assassinato de Benazir Bhutto vai ficando para trás e torna-se necessária avaliar desapaixonadamente as suas prováveis conseqüências, evitando a piedade que invade as páginas dos grandes meios de comunicação globais. Praticamente tudo o que se escreve nos jornais ou mostram as televisões é enganoso e dir-se-ia concebido para eludir a discussão do que verdadeiramente está em jogo.
Por que Bush, Negroponte e seus acólitos britânicos estavam tão decididos a aplicar precisamente esse remédio à crise paquistanesa? O que pensavam conseguir? Que "mundo novo" tinham fantasiado?
Quase todas as suas suposições eram baseadas em fatos sistemática e seletivamente retocados, distorcidos ou exagerados, a fim de evitar qualquer responsabilidade ocidental na atual crise. Na medida em que, com pequenas e insignificantes variações, vinham a repetir tudo até à exaustão nos meios de comunicação globais, não será ocioso examinar cada um dos principais argumentos esgrimidos:
a) O Paquistão é um Estado nuclear, o único país muçulmano com armas atômicas e que fez testes nucleares. Se os jihadistas-Al Qaeda pusessem as mãos nessas armas havia o risco de um holocausto nuclear. É preciso apoiar Musharraf porque ele se opõe vigorosamente a essa possibilidade.
Recorde-se que o Paquistão aperfeiçoou o seu armamento nuclear nos anos 80, durante a ditadura do general Zia ul Haq, incondicional aliado de Washington e peça central da então chamada guerra contra o Império do Mal (a URSS) no Afeganistão. Os EUA estavam a tal ponto obcecados com o conflito com os russos que resolveram organizar uma rede jihadista global para recrutar militantes para a guerra santa no Afeganistão e olhar para outro lado face à pouco dissimulada construção dos silos nucleares paquistaneses.
As instalações nucleares estão sujeitas a um controle militar muito rígido. Não há a menor possibilidade de que um grupo extremista possa escapar ao controle de um exército de meio milhão de soldados. O Pentágono e a CIA sabem muito bem que a estrutura de comando militar do Paquistão nunca foi derrotada e que os generais dependem do financiamento e do armamento militar norte-americanos. Mês após mês, o exército paquistanês presta contas ao Centcom da Flórida (Comando Central estadunidense para Operações no Estrangeiro) das suas atividades na fronteira afegã. O exército como instituição responde a essas exigências, e não apenas os generais. E Musharraf já não tem a menor legitimidade neste tema pois abandonou o uniforme. Daqui a insistência de Bush para que o processo eleitoral seguisse o seu curso, apesar do boicote massivo, dos processos judiciais paralisados, da caluda dos meios de comunicação, da existência de importantes políticos sob prisão domiciliar e da execução pública da senhora Bhutto. Se Benazir Bhutto tivesse decidido boicotar as eleições (o que significaria romper o acordo com Washington), continuaria viva.
b) O Paquistão é um Estado em bancarrota, à beira do colapso e rodeado de jihadistas decididos e furiosos à espreita. Daí a exigência de uma alternativa não religiosa e o papel de Benazir Bhutto: ajudar Musharraf a conseguir um pouco da legitimidade de que precisa urgentemente.
O Paquistão não é um "Estado fracassado" no sentido em que o são o Congo ou o Ruanda. É um Estado que funciona mal, e nessa condição se manteve durante quase quatro décadas. Às vezes a situação é melhor, às vezes pior. No cerne do seu mau funcionamento está o domínio do país pelo exército, e cada novo governo militar só fez piorar a situação. Foi isso que impediu a estabilidade política e tornou impossível o aparecimento de instituições estáveis. E nisso os EUA têm responsabilidade direta, visto que sempre consideraram – e continuam a considerar – o exército como a única instituição que pode tratar, o pedregulho que contém as agitadas águas da represa.
Economicamente, o país se baseia, desequilibradamente, numa elite corrupta e ultra-rica, mas isso é do agrado do consenso de Washington. Por isso o Banco Mundial sempre foi pródigo em elogios às políticas de Musharraf.
A última crise é a conseqüência direta da guerra e da ocupação do Afeganistão pelas forças da Otan, que desestabilizaram a fronteira noroeste do Paquistão, gerando uma crise de consciência no seio do exército. É triste ser pago para matar camaradas muçulmanos nas áreas tribais fronteiriças entre o Paquistão e o Afeganistão. A conduta arrogante e humilhante dos soldados da Otan não ajuda nada a resolver os problemas entre ambos os países. O envio de tropas estadunidenses para treinar os militantes paquistaneses na contra-insurreição muito provavelmente inflamará ainda mais os ânimos. O Afeganistão só poderá ser estabilizado através de um acordo regional que envolva a Índia, a Rússia, o Irã e o Paquistão e que seja acompanhado da retirada total das tropas da Otan. As tentativas dos EUA para evitar isso reforçam a crise em ambos os países.
Musharraf fracassou no seu papel de homem chave dos EUA no Paquistão. Sua incapacidade em proteger Benazir Bhutto foi mal recebida em Washington, que pode mudar de peão este ano e voltar a depositar as suas esperanças no general Ashfaq Kayani, que já substituiu Musharraf como chefe do exército. Mais difícil será substituir Benazir Bhutto. Os irmãos Sharif não são confiáveis, e estão demasiado próximos dos sauditas. As eleições serão grosseiramente manipuladas, o que lhes retirará qualquer credibilidade. A escura noite está muito longe do fim.
* Escritor e ensaista anglo-paquistanês, editor da New Left Review; este artigo foi originalmente publicado em Sin Permiso (http://www.sinpermiso.info)