Esse conceito padrão da família nuclear, ao contrário do que Freud pensava, não é algo perpétuo e imutável mas, pelo contrário, como todas as outras relações sociais, são resultados de um processo histórico que, naturalmente, tem seu início, meio e fim. Essa concepção equivocada de Freud acabou por levá-lo, por exemplo, a estruturar toda uma teoria para explicar a formação do homem (o complexo de Édipo) nos seus primeiros anos de vida, que era extremamente ineficaz para explicar a formação da mulher. Freud não enxergou que a família nuclear era extremamente paternalista e machista, pois reduzia a mulher a um mero objeto sexual que não podia falar, pensar e muito menos participar da vida política e econômica da sociedade a qual pertencia. Os inúmeros casos de histeria de que sofriam as mulheres dos séc. XIX e início do XX, e que foram diagnosticados pelo próprio Freud, são hoje reconhecidos de forma irrefutável como distúrbios psicopatológicos decorrentes das situações de privação e de subserviência à que eram submetidas as mulheres daquela época.
Portanto, essa família nuclear é o resultado de um longo processo histórico que se formou e forjou várias de suas características durante o processo de colonização imposto pela Europa aos diversos povos de todos os outros continentes do globo. Já que os métodos usados para submeter esses outros povos (espoliação, violência física e psíquica, selvageria, assassinatos, etc.) também foram aplicados às mulheres, crianças e aos trabalhadores assalariados e camponeses, pertencentes às classes menos abastadas e, conseqüentemente, de menor relevância hierárquica na camada social do próprio território europeu. Isso fica ainda mais claro quando nos reportamos ao período da primeira Revolução Industrial, onde essa ordem é consolidada e pode-se ver o enclausuramento das mulheres e crianças nos lares burgueses e a exploração do trabalho de homens, mulheres e crianças nas fábricas, por períodos que alcançavam de 16 a 18 horas diárias de trabalho em condições desumanas. Obviamente, toda essa cultura de superioridade étnica, racial, moral, tecnológica e também divina, já que é o período em que a ética protestante se solidifica e trás a ideologia de que o homem, através do capital, tem a missão de terminar a obra de Deus na Terra, também iria se estender para o âmbito familiar. Como bem explicitou R. Kurz em seu livro, Os últimos combates:
? Porque havia degradado a si mesmo enquanto máquina social insensível, o homem branco colonizou a mulher como um animal hipersensível. Ela deveria responder por tudo que ele não mais podia sentir ou desfrutar: pelos sentimentos e pela dedicação afetiva, pela estética cotidiana e pela mobilização da sensualidade, enclausurada na prisão de segurança máxima da célula familiar modernizada em sua privacidade abstrata. Com isso, foram atribuídas à mulher as mesmas características reservadas aos selvagens, às pessoas de diferente cor de pele, à criança e aos culturalmente subordinados [...]?
Sendo assim, não há porque chorar o fim dessa instituição falida, covarde e despótica que é a família nuclear burguesa, já que a liberdade de inserção da mulher na sociedade como um todo é extremamente incompatível com essa forma familiar. E, nesse caso, não só a liberdade da mulher mas também da criança que se livra desse estigma de ter que encontrar todas as suas necessidades de formação moral, ética, sentimental, etc. apenas naqueles poucos membros da família que pensam ser suficientes para, neste ambiente privatizado e isolado, suprir todas essas necessidades da formação infantil sem que haja a integração com toda a comunidade. É bom lembrar que todas as teorias que tentaram descrever uma sociedade perfeita, desde Platão, Thomas Morus e Marx, apenas para citar alguns, eram radicalmente contra a instituição familiar como sendo um ambiente adequado e suficiente para a educação e a formação de homens e mulheres que visavam o bem comum. Platão, por exemplo, chegou a propor na sua obra, A República, que a mãe se quer conhecesse seu filho após o parto, sendo este colocado junto a outros recém-nascidos, a mãe deveria amamentar a qualquer um como se seu filho fosse, já que a formação da criança visava o bem de toda a Cidade Estado e não apenas o seu núcleo familiar. Já Marx, enxergou na família burguesa a degradação e a condição de subserviência e submissão da mulher em relação ao seu marido. Esta, era obrigada a abdicar de toda as suas vontades e desejos de realizações pessoais e/ou profissionais e se contentar em se realizar no sucesso e na competência do seu chefe (essa era a denominação para o homem: chefe de família) para ganhar dinheiro (o fim único e último da sociedade capitalista), garantindo o conforto e o sustendo do lar.
O mais impressionante foi a forma com que esse ideal de família se proliferou e se tornou hegemônica, a tal ponto, que a própria classe trabalhadora lutava e sonhava em alcançar aquele status de família burguesa, mesmo sendo seus interesses completamente antagônicos aos da burguesia. Como disse Mark Poster em seu livro, Teoria crítica da família:
? Ao contrário da burguesia liberal de uma época anterior, que se levantou contra a aristocracia em parte como um movimento de repulsa em face de sua vida familiar promíscua (época do Ancien Regime), a classe trabalhadora ou, pelo menos, importantes setores dela reconheceram a legitimidade moral da burguesia ao adotar a sua estrutura familiar. A classe trabalhadora européia e norte-americana não encontrou melhor forma de criar os filhos, repartir afeição e sexualidade entre os sexos e desfrutar as horas de lazer do que imitar ou aspirar aos padrões burgueses. A transformação da estrutura familiar da classe trabalhadora é um dos aspectos não-registrados do êxito político da democracia burguesa.?
Aproveitar esse momento em que o velho está morrendo para que o novo venha a nascer é imprescindível para que possamos fazer uma leitura dessas mudanças e possamos direcionar a sociedade para algo melhor e mais justo. Como costumava dizer o filósofo e matemático, Leibniz: ?O presente está sempre grávido do futuro.? Nesse caso, podemos dizer que a hora do parto já está chegando e que já entramos na fase das contrações. Mas, para não cairmos em mais um engodo como esse da família nuclear burguesa que acabamos de ver, devemos estar atentos a essas mudanças para que a nossa contaminação por novos valores e ideologias que são contrárias aos interesses de uma sociedade mais justa, igualitária e solidária, seja a menor possível; já que é praticamente impossível viver numa determinada época e pertencer a uma determinada sociedade sem ser influenciado por ela, seja para o bem ou para o mal; mas sem maniqueísmos.
Renato Prata Biar; historiador; Rio de Janeiro; RJ.