PARAGUAI: VITÓRIA ESMAGADORA DO EX-BISPO FERNANDO LUGO LEVA MILHARES A CELEBRAR EM ASSUNÇÃO
Luiz Carlos Azenha
SÃO PAULO - A candidata do Partido Colorado, Blanca Ovelar, acaba de admitir a derrota em Assunção. Quando ela discursava, a Justiça Eleitoral do país vizinho já tinha contado os votos de mais de 80% das seções eleitorais. O ex-bispo Fernando Lugo, da Aliança Patriótica para a Mudança, tinha vantagem de cerca de 10%, quando as pesquisas de boca-de-urna indicavam que Lugo venceria por margem de 5%.
"O resultado é irreversível", afirmou Ovelar ao reconhecer a derrota. A vitória do ex-bispo foi mais ampla do que a mais otimista das previsões: Lugo obteve cerca de 40% dos votos, contra 30% do Partido Colorado. De acordo com a candidata, o partido terá a maior bancada no Congresso e o maior número de governos de departamentos. A ex-ministra da Educação não mencionou o atual presidente Nicanor Duarte Frutos no discurso. Eram 22:44 em São Paulo quando a Justiça Eleitoral paraguaia confirmou a vitória de Lugo, com comparecimento de 65% dos eleitores.
Com a vitória de Lugo, o Paraguai terá a primeira transição democrática entre dois partidos, depois de 61 anos de poder contínuo do Partido Colorado. Quando o resultado final ainda era incerto, o ex-bispo Fernando Lugo pediu a Deus uma benção aos paraguaios, prometeu acabar com o clientelismo político no país e, se dirigindo especificamente aos governos de outros países, disse que quer promover uma verdadeira integração regional e mundial.
Mais de 50 mil pessoas se reuniram no centro de Assunção para festejar a vitória do ex-bispo, um seguidor da Teologia da Libertação que ganhou com o apoio de uma ampla coalizão, que inclui do tradicional Partido Liberal ao Partido Tekojoja, ligado aos movimentos sociais.
Apesar da riqueza, que torna o Paraguai um dos principais "consumidores" de jipes importados per capita, o país tem mais de 2 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, um milhão delas na indigência.
Foi a conclusão de uma jornada política extraordinária. A Aliança que levou Fernando Lugo à vitória foi formada em 27 de agosto de 2007, portanto há menos de oito meses. Lugo foi suspenso pelo Vaticano por insistir em sua candidatura.
Ele fez campanha em torno de alguns temas: promover programas sociais para combater a pobreza e reduzir o número de paraguaios que procuram o "exílio econômico" especialmente na Argentina e na Espanha; enfrentar os latifundiários da soja, que promovem a destruição ambiental, especialmente nos departamentos que fazem frontreira com o Brasil; e conquistar o que definiu como "soberania energética", renegociando o tratado que define a parceria entre Brasil e Paraguai na usina hidrelétrica de Itaipu.
Ricardo Canese será um dos principais assessores de Lugo, que só assume o poder em agosto. Canese é autor do livro recém-lançado em português, “O Direito do Paraguai à Soberania”.
Reproduzo abaixo uma entrevista feita com ele pela agência Carta Maior:
Carta Maior – O Paraguai de hoje é resultado de um processo histórico que permitiu um único partido se manter no poder por várias décadas. O que a atual eleição tem de diferente?
Ricardo Canese – A ditadura do Partido Colorado e de setores conservadores paraguaios durou 35 anos. Tentamos muitas vezes desalojar Strossner, mas não conseguimos. Muitos tivemos que ir ao exílio, outros foram perseguidos ou morreram. Foi toda uma larga luta que não conseguimos vencer. Quando finalmente o povo estava talvez preparado para terminar com a ditadura, ela mesma se adiantou e garantiu um auto-golpe.
Na década de 80, sai o Strossner, entra um parente que mantém o stronismo sem ele. Seguiu a mesma máfia que utilizou o Partido Colorado, que é um partido tradicional e que tem raízes populares, apesar de oligárquico. Como todo partido tradicional, este também manipulou o povo. Desde 1989, todas as eleições foram fraudadas. E isso não somos nós que estamos dizendo, eles mesmos dizem isso. O senador Juan Carlos Galaverna disse que na primeira eleição de 1993 ele mesmo fez fraudes. Ele reconhece.
Carta Maior – As atuais eleições também serão fraudadas?
Ricardo Canese – Agora, isso vai acontecer de novo. Só que desta vez há uma real possibilidade de mudança, porque este modelo está desgastado. Em 2008, o Produto Interno Bruto per capita do Paraguai é inferior ao de 1981, ou seja, de 27 anos atrás. Por isso toda gente vai à Espanha e à Argentina, aqui a miséria se concentrou, se tornou mais grave. As pessoas abandonaram o campo e a pobreza na cidade é muito mais extrema. É todo um modelo que foi incapaz de resolver os problemas econômicos, sociais e institucionais. São um grupo mafioso e, para eles, as instituições não servem para nada.
Os empresários que entram em articulação com os grupos mafiosos estão sujeitos a esses grupos, e isso também não é nenhuma garantia. Esse é um modelo inviável. E aí que surge a figura de Fernando Lugo. As pessoas queriam algo novo, é uma demanda social. E também porque as pessoas sempre identificaram a cúpula dos partidos de oposição como parte do problema, e não parte da solução.
Carta Maior – E a aliança entre Aliança Patriótica para a Mudança, de Lugo, com o Partido Liberal?
Ricardo Canese – O Partido Liberal só está apoiando Lugo porque suas bases o obrigaram. Vamos deixar isso claro, inclusive porque está claro para o Movimento Tekojoja. A cúpula liberal teve que apoiar Fernando Lugo, ou todas suas bases ficariam com ele. Essa foi a situação real. Como são políticos e realistas, e não querem perder as bases, bueno, resolveram apoiar Fernando Lugo. O que aconteceu aqui foi uma rebelião popular democrática, onde o fenômeno Lugo é a rebelião das bases. Muitos colorados o apóiam também. O setor colorado não amarrado, porque é necessário que se entenda que aí há muito funcionalismo público, por exemplo. Organizações populares que estão pressionadas e dependentes das ações do governo.
Carta Maior – E como a candidatura de Fernando Lugo representa todos estes setores?
Ricardo Canese – É fundamental a presença de Lugo porque ela levanta o debate social e institucional, o debate da renovação dos partidos políticos. Trata-se justamente de um elemento inovador. E vamos entrar no principal aspecto que é o social. No Paraguai, a esquerda nunca teve peso. De alguma maneira, os movimentos populares tinham, mas não politicamente. As pessoas aqui parecem ter uma orientação de esquerda, mas na hora de votar, votam na direita. Isso se rompe agora e permite que a esquerda tenha peso nesta eleição. O Tekojoja é o maior grupo de esquerda, junto com outros grupos que formam uma espécie de bloco. É a primeira vez que isso acontece na história do Paraguai.
Carta Maior – A questão da soberania energética é crucial para o Paraguai. Como este debate acontece aqui e como pretendem levá-lo ao Brasil?
Ricardo Canese – Já temos esse processo um pouco encaminhado. Nós discutimos o tema da soberania hidroelétrica desde a década de 70, quando se firmou o tratado de Itaipu. Outras coisas tomaram força faz alguns anos. Eu fui ao Fórum de São Paulo, creio que em 2002, e fizemos essa discussão com o pessoal do Jubileu Sul. Quando Lugo ainda era bispo, lançamos uma campanha de recuperação da soberania hidroelétrica.
Depois, o Tekojoja relançou essa campanha. Já temos um caminho percorrido, por isso Itaipu entrou no debate político. Inclusive isso obrigou os outros candidatos a se definirem. Alguns mudaram de postura. Lino Oviedo dizia que seria um embaixador verde-amarelo, que não queria incomodar o Brasil. Esse senhor faz uma confusão mental entre o Brasil e seus amigos empresários na fronteira. Agora começou a dizer que temos que renegociar a situação. Tirou fotos ao lado do Lula e botou Lugo ao lado de Hugo Chávez e Evo Morales. Na realidade, é divertido.
Respeitamos muito Evo e Chávez, mas até por uma questão de tempo, decidimos ir visitar Lula e Cristina Kirchner durante essa campanha e não fomos visitar os outros dois presidentes. Estivemos com Lula faz dez dias, mais ou menos, e já vemos avanços importantes. Lula garantiu uma mesa de diálogo e vamos discutir esta questão com o Brasil no mais alto nível.
Aqui, o mais forte é que o povo vai se mobilizar. Se o Lugo ganhar neste domingo vai haver uma mobilização pela recuperação da soberania hidroelétrica. Possivelmente, vamos estabelecer um referendo, que não nos garante nenhum direito, mas que demonstra a vontade do povo sobre essa questão. As pessoas vão ver que é factível que se recupere a soberania hidroelétrica. Isso vai ser um feito. Nós temos muita confiança de chegar a um acordo aceitável para ambas as partes com Lula.
Carta Maior – Para onde o capital proveniente de Itaipu seria revertido? É possível resumir os três pontos mais nevrálgicos da sociedade paraguaia?
Ricardo Canese – Toda a questão social, de direitos humanos, ou seja, educação, saúde, habitação e saneamento. Segundo, obras públicas que melhorem a infra-estrutura e criem postos de trabalho. Nós temos como proposta fundamental trabalho digno. Eu acho que o Estado tem que intervir fortemente nos problemas do nosso país como a falta de emprego.
E aqui não são obras desnecessárias, há obras fundamentais, de transporte e saneamento que demandam um grande investimento e que vão potencializar o turismo, a produção e, ao mesmo tempo, vão gerar emprego. E terceiro, criar um fundo para potencializar a produção. E quando falamos nisso, queremos dizer reforma agrária. E não é somente a terra, mas sim a assistência técnica, o crédito, a comercialização. Criar bases de industrialização. Acreditamos muito em cooperativas manejadas pelos próprios campesinos. Seriam estes três eixos principais: direitos sociais, infra-estrutura e produção.
Carta Maior – E como o governo pretende tratar a questão dos “brasiguaios”?
Ricardo Canese – Esse é um tema que conversamos também com o Partido dos Trabalhadores (PT). Quando estivemos com o Fernando Lugo no Brasil falamos com Lula e com o PT. Precisamos tratar de vários temas, o tema da energia, dos brasiguaios e o tema de Ciudad del Leste. Quanto aos brasiguaios, tem que haver uma solução em respeito aos diretos sociais dos trabalhadores das plantações. E sobre a destruição do meio ambiente. Nós queremos que se cumpra a lei. E isso não somente com os brasiguaios, ou seja, há latifundiários paraguaios também. Se você desflorestou, tem que reflorestar com espécies nativas, não com outra coisa. O cuidado com os cursos de água também é fundamental. E, depois, vamos ver se deixamos a lei mais estrita ainda.
Outro ponto grave é o uso de veneno, que às vezes chega ate a casa do campesino. Vamos buscar que os produtores de soja diversifiquem a produção e criem boas oportunidades de emprego para a população circundante. Acreditamos que se possa ir pacificando a área, porque as tensões são preocupantes.