Ao longo do tumultuado período encravado entre a Primeira Guerra Mundial e a vitória dos Aliados em 1945, a fúria e a desordem dos mercados haviam colocado em risco a ordem social e econômica. Esse intervalo histórico foi marcado por instabilidades monetárias e cambiais devastadoras transmitidas por circuitos financeiros internacionais.
As disputas comerciais e as desvalorizações competitivas promoveram a contração do comércio internacional e os países envolvidos tratavam de despejar o desemprego no território do vizinho. Tudo isso em meio à intensificação dos conflitos sociais. A luta política, cada vez mais radicalizada entre a extrema-esquerda e a ultradireita, foi coroada com os espinhos da experiência nazi-fascista. Neste clima cresceu o convencimento de que o capitalismo, entregue à sua própria lógica, era uma ameaça à vida civilizada.
No pós-guerra, para evitar a repetição do desastre era necessário, antes de tudo, constituir uma ordem econômica internacional capaz de alentar o desenvolvimento. Em primeiro lugar, remover os obstáculos à expansão do comércio entre as nações e conceber regras monetárias aptas a garantir a confiança na moeda-reserva e, ao mesmo tempo, impedir o ajustamento deflacionário do balanço de pagamentos. Tratava-se, portanto, de erigir um ambiente econômico internacional destinado a propiciar um amplo raio de manobra para as políticas nacionais de desenvolvimento, industrialização e progresso social.
As novas instituições e as políticas econômicas do Estado Social estavam comprometidas com a manutenção do pleno emprego, com a atenuação, em nome da igualdade, dos danos causados ao indivíduo pela operação sem peias do “mecanismo econômico”. Eric Alliez escreveu que, durante mais de duas décadas, realizou-se a criação de um mundo fundado sobre o direito ao trabalho, que tinha como objetivo o pleno emprego, o crescimento dos salários reais.
Já nos anos 50, tempo de esplendor e glória do ideário keynesiano, o libertarianismo de Friedrich Hayek e, mais tarde, o monetarismo de Milton Friedman desataram a ofensiva contrária “aos inimigos da liberdade econômica”. Não eram ouvidos nem cheirados.
Os libertários saíram da tumba, ressuscitados pelos miasmas da “estagflação” do fim dos anos 60 e início dos 70. A partir de perspectivas teóricas distintas, os espectros do mercadismo passaram a rondar o chamado “consenso keynesiano”.
Para eles, as proezas da “era dourada” revelaram-se um doloroso engano. Engano que fez prosperar o famigerado populismo econômico, uma forma perversa de politização à outrance da economia. Parafraseando Eric Hobsbawm, a recomendação dos conservadores era dar “adeus a tudo aquilo” e, com urgência, empreender as reformas necessárias para restabelecer o funcionamento dos verdadeiros mecanismos econômicos, os únicos aptos a garantir a liberdade do indivíduo e promover a estabilidade e o crescimento a longo prazo.
Na visão liberal-conservadora, os propósitos de proteger o cidadão contra os azares e as incertezas do mercado terminariam por suscitar efeitos contrários aos pretendidos. A despeito das diferenças analíticas e de método, Hayek e Friedman sustentavam que os “anos gloriosos” estavam fadados inexoravelmente ao fracasso em sua insana tentativa de interferir nos movimentos “naturais” dos mercados. As políticas monetárias acomodatícias, combinadas com pactos “corporativistas” entre as classes sociais e grupos de interesses, levariam inevitavelmente ao baixo dinamismo e à inflação crônica e elevada.
Logo depois, os novo-clássicos, escorados na hipótese das expectativas racionais, reforçaram as tropas do reformismo liberal. Expediram uma sentença condenatória ainda mais dura contra a intervenção do Estado, ao proclamar a ineficácia das políticas fiscal e monetária em sua vã pretensão, assim diziam, de limitar a instabilidade cíclica e promover o crescimento da economia.
Os governos logo haveriam de aprender: os agentes racionais que povoam os mercados sabem exatamente qual é a estrutura da economia e, usando a informação disponível, são capazes de antecipar sua evolução provável. Não se deixam enganar, nem por um momento, pelo velho truque de estimular a atividade econômica com os anabolizantes nominais da política monetária leniente. Caso insistam nessa prática, políticos e burocratas voluntaristas, em vez de mais empregos, conseguirão apenas mais inflação, salvo na hipótese improvável de que possam surpreender e tapear permanentemente os sagazes agentes privados, implacavelmente racionais.
No início dos anos 80, a turma da economia da oferta dizia ainda mais: a sobrecarga de impostos sufocava os mais ricos e desestimulava a poupança, o que comprometia o investimento e, portanto, reduzia a oferta de empregos e a renda dos mais pobres.
As práticas neocorporativistas, diziam eles, criavam sérias deformações “microeconômicas” ao promover, deliberadamente, intervenções no sistema de preços, nas taxas de câmbio, nos juros e nas tarifas. Com o objetivo de induzir a expansão de setores escolhidos ou de proteger segmentos empresariais ameaçados pela concorrência, os governos distorciam o sistema de preços e, assim, bloqueavam os mercados em sua nobre e insubstituível função de produzir informações para os agentes econômicos.
Tais violações das regras de ouro dos mercados competitivos culminavam na disseminação da ineficiência e na multiplicação dos grupos “predadores de renda”, que se encastelavam nos espaços criados pela prodigalidade financeira do Estado.
Para acrescentar ofensa à injúria, os mercados de trabalho, castigados pela rigidez nominal dos salários e por regras políticas hostis ao seu bom funcionamento – como a do salário mínimo –, não podem mais exprimir o preço de equilíbrio desse fator de produção, por meio da interação desembaraçada das forças da oferta e da demanda.
Em matéria financeira, a teoria dos “mercados eficientes” pretendia ensinar que todas as informações relevantes sobre os “fundamentais” da economia estão disponíveis em cada momento para todos os participantes dos mercados que avaliam os títulos de dívida e os direitos de propriedade.
A ação racional dos agentes, diante das informações existentes, seria capaz de orientar a melhor distribuição possível dos recursos entre os diferentes ativos. Essa teoria procurava afirmar que, em condições competitivas, não podem existir estratégias “ganhadoras” capazes de propiciar resultados acima da média.
Na última semana, em meio a mais uma hemoptise dos mercados infectados, o consultor Rod Arnott arengava para uma platéia de 200 acadêmicos, gente da área financeira. Perguntou aos ouvintes se acreditavam na Hipótese dos Mercados Eficientes. Ninguém levantou o braço. Em seguida, indagou qual deles utilizava a desditosa hipótese em seus artigos, assumindo que ela seja verdadeira. Quase todos levantaram as mãos.
Nos idos de 1994, Matt Ridley, conhecido zoólogo e economista diletante, autor de vários ensaios científicos, proclamou, em uma de suas inúmeras catilinárias contra o Estado: “A pouco conhecida Nona Lei da Termodinâmica ensina que quanto mais um grupo se apropria do dinheiro do contribuinte, mais ele demanda e mais ele reclama”. Bravo!
Sucessor do pai como presidente do Northern Rock, Ridley foi dispensado da função em outubro de 2007, quando o banco declarou-se insolvente, afogado em empréstimos podres. O governo inglês injetou 16 bilhões de libras nos cofres do Northern e, logo depois, viu-se obrigado a estatizar o falecido.
A revista The Economist rezou o epitáfio do ex-banqueiro Ridley: “Ele seguiu um modelo agressivo de negócios, cruzou os dedos e apostou que a liquidez estaria sempre ali”.
Quando o negócio foi à garra, seu colega de estudos na universidade, o celebrado George Monbiot, não deixou barato: “O libertário foi obrigado a recorrer ao abominável Estado”. Fontes bem informadas atestam que Ridley passou a concentrar suas energias no estudo de animais mais previsíveis do que os enigmáticos mercados superalavancados das “securities” e dos derivativos.
Tal como a Hipótese dos Mercados Eficientes, a ideologia neoliberal estrebucha, alvejada por sua própria fuzilaria. Os tiros ricocheteiam na realidade da finança desregulada. Conservadores e progressistas clamam pela imposição de regras para conter os desvarios dos mercados. As crises financeiras multiplicam-se desde os anos 80. Se a freqüência dos episódios compromete o prestígio dos curandeiros dos mercados desimpedidos, ainda não abalroou o poder dos patrões da finança e de seus aliados nos bancos centrais. É cedo para programar as exéquias do neoliberalismo.
original em: CartaCapital