Antes que seja tarde, isto é, antes que vire o ano e uma nova onda de efémerides venha nos forçar a uma nova onda de aplausos, vale a pena reparar num aniversário que foi passando sem maiores comentários. No mínimo, uma grosseria, pois estamos falando dos cem anos de cinco senhoritas sem igual: as Demoiselles d’Avignon que Pablo Picasso terminou de pintar no ateliê do Bateau Lavoir, em Paris, no verão de 1907.
Não é um quadro qualquer, como sabe qualquer manual de história da arte ou guia de viagem a Nova York, onde as moças fixaram domicílio desde 1937. As Demoiselles são uma das obras centrais da pintura moderna e, na verdade, de todo a aventura modernista nas artes. Mas tratar a tela feito (mais) um monumento maciço não ajuda a entender por quê.
Primeiro, porque as Demoiselles são, como dizia o historiador Giulio Carlo Argan, “a primeira ação de ruptura” tanto na carreira de Picasso como “na história da arte moderna”. Mas também porque nem sempre gozaram da fama de agora: se a composição do quadro foi marcada por idas e vindas, a primeira recepção crítica não teve nada de efusiva. Voltar à história do quadro pode ajudar a entendê-lo, até porque sua força visual tem muito a ver com a muita história que ele traz entranhada em si.
Picasso passou o verão de 1906 com Fernande Olivier no lugarejo espanhol de Gósol, um período fertilíssimo em que levou adiante seu interesse pelas artes primitivas (ibérica, africana e oceânica), desenhou uma série de retratos de um ancião local, Josep Fontdevila, misto de camponês e contrabandista, fez estudos de teoria das proporções humanas e realizou uma série em torno a Fernande – bustos e nus dos quais deriva uma tela que contém a semente temática das Demoiselles.
É o Harém, hoje no Museu de Arte de Cleveland: num recinto em tons de ocre e rosa, uma poderosa figura masculina reclina-se contra a parede, segurando um porrón (uma frasco de vinho de formas fálicas) e contemplando um grupo de quatro mulheres que se despem e se oferecem a seu olhar. O gênero “cena de bordel” não tinha nada de novo, e o Harém não é exatamente uma grande obra; mas a tela dá início, nesse âmbito temático, a um diálogo intenso com outros pintores, que chegará ao ápice no ano seguinte: sem falar dos traços difusos dos temas mundanos e tons cromáticos de Toulouse-Lautrec, não há como deixar de notar ecos bem nítidos do Banho turco (1862), a fantasia orientalista de Ingres que Picasso vira no Salão de Outono de 1905, e da recente Alegria de Viver (1905-1906) de Matisse, tela com que Picasso logo travará um verdadeiro duelo.
Em meados de agosto, Picasso e Fernande voltaram a Paris, fugindo da febre tifóide que irrompera em Gósol. O primeiro fruto parisiense dos esboços feitos no lugarejos é a reelaboração do Retrato de Gertrude Stein (Metropolitan Museum, Nova York), que o pintor iniciara no inverno anterior: o busto da escritora (e colecionadora) norte-americana ganha traços maciços e recurvos; o rosto, sobretudo, afasta-se do registro mimético para ganhar contornos de máscara, à maneira das estátuas ibéricas de Osuna e Cerro de los Santos. O mesmo vale para os Dois Nus (MoMA. Nova York), da mesma época, em que Picasso parece reler as Cinco Banhistas (Kunstmuseum, Basiléia) e A Tentação de Santo Antônio (Coleção Bührle, Zurique) de Cézanne; desta última, sobretudo, Picasso toma um motivo: a figura da esquerda que entreabre uma cortina rumo a um cômodo que não se chega a ver.
Pouco depois, os dois veios se reúnem. O esforço de “simplificação”, de “primitivação” da linguagem plástica, que ganha corpo com o contato com as artes da África Negra e do Pacífico Sul das coleções do Museu do Homem (muito embora, mais tarde, tentasse empurrar essa data para o fim do ano seguinte), associa-se ao tema do bordel numa série de esboços que Picasso começa no inverno de 1906-1907 e que o levarão às Demoiselles d’Avignon.
A primeira versão mais coerente, em grafite e pastel – Estudante de Medicina, Marinheiro e Cinco Nus em um Bordel (Kunstmuseum, Basiléia) –, é uma composição horizontal e panorâmica: um grupo de cinco mulheres nuas ao redor de um marinheiro sentado a uma mesa e segurando o quase proverbial porrón de vinho, mais um estudante que abre uma cortina e entra pela esquerda.
Muitos elementos do quadro final já estão aí: as cinco prostitutas, a cortina que se abre, o vaso de flores em primeiro plano, a figura quase atlética mais ao fundo, a mulher de cócoras bem à frente. Mas esta é apenas uma parada provisória em meio a um verdadeiro surto gráfico, que na contagem final tomará dezesseis cadernos de desenho (“Je suis le CAHIER”, escreveu Picasso na capa de um deles).
Há muito de convencional e, portanto, de seguro nessa primeira versão narrativa e alegorizante, que logo sugere um contexto explicativo ao espectador. As cinco mulheres olham para a esquerda, para o estudante que presumivelmente as surpreendeu em meio à lide; este, por sua vez, parece estacar diante da visão que se abre para ele; e o contraste entre as duas figuras masculinas e seus atributos opostos (porrón e livro) logo se deixa ler como cifra alegórica (aliás, sabemos pelos cadernos que o estudante carrega ora um livro, ora um crânio, sugerindo o tema do memento mori).
Picasso trabalha e retrabalha cada uma das figuras no estilo “ibérico” desenvolvido no ano anterior. Faz o mesmo com o conjunto da cena, procurando um efeito de maior unidade compositiva. Nesse processo, por exemplo, as cortinas de fundo vão ganhando relevo e feição cônica, tornando a cena mais fechada e mesmo opressiva – na contramão da Alegria de Viver de Matisse, mas no mesmo rumo da Visão Apocalíptica de El Greco (Metropolitan Museum, Nova York), que Picasso vira pouco antes. Mas o resultado mais notável desse trabalho de compactação é, com certeza, o sumiço progressivo dos dois homens: primeiro, o estudante, substituído pela prostituta da esquerda, que avança para o proscênio e se encarrega de abrir a cortina; depois, o marinheiro. Restam as cinco mulheres – como eram cinco as banhistas de Cézanne.
Não se trata aqui de mera subtração. Excluídas as duas figuras masculinas, as prostitutas já não têm a obrigação narrativa de se dispor ao redor de um e de olhar para o outro. À maneira de um retrato de grupo holandês, como percebeu Leo Steinberg, mas também à moda da fotografia etnográfica, como rematou Carlo Ginzburg, elas agora se dispõem quase em fileira, mostrando-se, exibindo-se frontalmente – e para o espectador.
Em junho de 1907, Picasso toma mais uma decisão crucial ao abandonar a disposição horizontal dos estudos e finalmente começar a pintar sobre uma tela grande, verticalizada e quase quadrada. E é sobre a tela, sem muitas antecipações nos desenhos preparatórios, que vai se produzir a mais espantosa das metamorfoses. Se as figuras da esquerda e do centro mantêm as feições ibéricas que tinham nos cadernos, as duas prostitutas da esquerda ganham traços afro-oceânicos, mais “primitivos”, em ângulos fortes que parecem menos pintados que talhados em madeira – veja-se o fantástico seio quadrangular da demoiselle em pé, à direita, ou a torção violenta de sua companheira acocorada à direita.
Não são rostos, são máscaras. E máscaras de horror, que contrastam violentamente com os traços afinal graciosos das cariátides ibéricas à esquerda. Algo do memento mori da primeira versão permanece nesse contraste ou, melhor, nessa fusão de apelo erótico e ameaça teratológica. Mas isso não se dá mais numa narrativa alegórica a ser decifrada por um espectador douto. Como disse Leo Steinberg, é como se a cena inicial tivesse sofrido uma rotação de 90 graus: agora somos nós, e não o estudante, que deparamos a cena infernal no interior do bordel.
Picasso anula a distância, a mediação entre o espectador e a cena. Um dos responsáveis é certamente o tratamento do espaço, que deixa de ser, como bem notou Argan, um elemento passivo e infinito que harmoniza as figuras: “o fundo se aproxima, engasta-se à força entre as figuras, divide-se em inúmeros planos duros e agudos”. Esse espaço volumétrico projeta as figuras para fora do quadro. E, de modo complementar, um detalhe vem confirmar essa impressão: a mesa redonda dos esboços torna-se uma cunha triangular que penetra, visual e metaforicamente, no espaço das Demoiselles e nos arrasta para seu interior.
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Foi esse o quadro que os visitantes puderam ver no Bateau Lavoir no verão de 1907. O embaraço foi geral. O grupo mais próximo a Picasso – Max Jacob, Guillaume Apollinaire, André Salmon –, que acompanhara a gênese do quadro e o batizara, para uso próprio, de O Bordel Filosófico (provavelmente vinculando a narrativa alegórica à obra do Marquês de Sade, que Apollinaire andava redescobrindo), não sabe o que dizer. Braque e Matisse, em visitas ao ateliê, ficam consternados diante da violência da tela. Mas cabe ao marchand Daniel-Henry Kahnweiler a sentença que selará a fortuna imediata da obra: o quadro é inacabado, a tela ficou a meio-caminho de uma transição estilística que não chegou a se consumar. Ou que ainda não se consumou: anos mais tarde, num livro influente sobre o cubismo, Kahnweiler dirá que o quadro é um prenúncio da abstração cubista que está por eclodir, mas que já se manifesta nas figuras da direita e, mais que tudo, na fruteira central do quadro de 1907.
O fato é que as Demoiselles praticamente somem pelos trinta anos seguintes. Em 1910, o jornalista norte-americano reproduz o quadro em seu artigo “The Wild Men of Paris” para a revista Architectural Record; longos quinze anos depois, André Breton faz o mesmo na revista La Révolution surréaliste, de circulação mais que restrita. Pior, o quadro foi exposto uma única vez, num salão de quinze dias que Salmon organizou em julho de 1916. O mesmo Salmon batizou-as então como Les Demoiselles d’Avignon, título de que Picasso jamais gostou e cujo sentido permanece equívoco: referência à rua de Barcelona em que Picasso comprava materiais de pintura, na versão mais pudica; menção a um bordel localizado ora na mesma rua, ora na cidade francesa de Avignon, na versão mais apimentada; ou lembrança de uma piada de ateliê que identificava as prostitutas às mulheres do grupo de amigos e as punha sob a tutela imaginária da avó de Max Jacob, que era de Avignon.
A partir de 1921, Breton faz campanha para tirar as moças do estúdio de Picasso, afinal convencendo o colecionador Jacques Doucet a adquirir as Demoiselles. Integrada à coleção em 1924, a tela só pode ser vista com hora marcada. Uma tentativa de doá-la ao Louvre não chega a bom termo; finalmente, em 1937, o quadro é comprado pela Galeria Seligmann, que em seguida o doa ao Museu de Arte Moderna de Nova York.
Só então, aos trinta anos de idade, tem início a celebridade mundial das Demoiselles, celebradas por Alfred Barr Jr., diretor do MoMA, como primeira grande pintura da arte contemporânea. Mas, vale notar, o elogio de Barr se faz nos mesmos termos de Kahnweiler. O quadro, ainda visto como incompleto, vale como arauto da modernidade e da abstração, especialmente em seus veios cubista e nègre, e nessa condição será estampado em inúmeros catálogos e monografias.
Por três décadas, essa será a visão canônica do quadro, desafiada apenas, se esse é o termo, por uma tela de 1948, Três Mulheres, em que De Kooning revisita a tela de Picasso fora do registro da abstração. Mas o golpe mais decisivo contra a interpretação de Kahnweiler e Barr só virá em 1972, por obra de um longo ensaio, “O Bordel Filosófico”, em que Leo Steinberg cumpriu magistralmente a árdua tarefa de mostrar, primeiro, que a pintura não era inacabada e, segundo, que de todo modo não era possível lê-la apenas na chave da abstração.
O ensaio de Steinberg abriu um novo estágio de compreensão das Demoiselles. Sob sua influência, organizou-se em 1988 uma grande exposição no Museu Picasso de Paris, toda ela dedicada ao quadro e à sua gênese. O catálogo ultrapassava as 700 páginas. Exibiram-se as centenas de desenhos e versões preparatórias, bem como as obras de outros artistas com que a tela dialoga, de El Greco a Matisse, do Déjeuner sur l’herbe de Manet às máscaras africanas do Museu do Homem.
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O ensaio de Steinberg – base de muito do que o leitor acaba de percorrer – mostrou conclusivamente que a tal “incoerência estilística” da composição era um efeito desejado e visado por Picasso nas semanas decisivas de trabalho sobre a própria tela, no verão de 1907. Mas a análise da composição não se esgotava em si mesma, mas servia ainda a uma reinterpretação, agora psicanalítica, das Demoiselles.
Longe de ser apenas um prelúdio à aventura cubista e abstracionista, o quadro de Picasso servia-se desse vocabulário incipiente para quase literalmente descortinar uma vista assombrosa da psique humana e, em especial, da natureza ambígua da vida sexual, a igual distância de Eros e Tânatos. A ambigüidade das senhoritas, femininas e masculinas, graciosas e monstruosas, forçava o espectador a uma visão frontal e nua desse “horror primordial”. A cena clássica de bordel cede lugar a uma imagem letal, que teria suas raízes biográficas no horror de Picasso à doença venérea que o assombrava por então – pelo menos se dermos fé à imaginação de Steinberg.
A solução psicanalítica fez fortuna desde então – com destaque para um artigo influente de 1988, em que o crítico francês Yves-Alain Bois, à luz da exposição de Paris, reformulou a hipótese biográfica de Steinberg em termos mais ousados e universais: as Demoiselles seriam o retorno (visual) do reprimido, na forma de cabeças de Medusa que encenariam a noção freudiana de “terror à castração”, arrancando o espectador de sua posição de segurança óptica e erótica.
Estamos nesse pé instável e interessante, no limiar de mais cem anos para decifrar, se for possível, o segredo das Demoiselles. Se for possível e se for o caso, pois há algo de ligeiramente frustrante no empenho de dar um nome cabal, de interpretar taxativamente o sentido do quadro – passando sempre, vale notar, por certa preponderância que se concede ao elemento monstruoso das senhoritas à direita em prejuízo da graça quase helênica das outras à esquerda. Talvez fosse o caso de dar um passo aquém ou além da interpretação psicanalítica, para recobrar o que Steinberg e Bois nos ajudaram a ver: que, mais do que incorrer em contradições, o quadro as encena e faz delas seu meio de se afirmar como imagem poderosa.
Ou, melhor dizendo, imagem dialética, síntese compositiva de contrários que não se anulam nunca: o “ibérico” e o “africano”, para começar, mas também a figuração e a abstração, primitivismo e cubismo, graça e horror, clássico e moderno. Uma tensão que marca o diálogo (e dialética supõe diálogo) de Picasso com a tradição pictorial, feita de admiração e agressão, citação e paródia; que determina sua recusa a se deixar inserir num tempo, numa escola ou num movimento; e que força seus espectadores a um diálogo também infinito com a obra-prima de 1907. Razão a mais para que vejamos as Demoiselles como anjos ou esfinges tutelares da pintura do século XX. Como disse Michel Leiris, grande amigo de Picasso e autor de A idade viril (1939), a prostituição é “parente próxima da profecia”.