Cooperifa: leia o livro, veja o filme e ouça o disco
Série de obras artísticas celebra os saraus que ajudaram a construir o conceito de cultura periférica — e o mundo de iniciativas que está surgindo a partir deles. Trabalhos ressaltam opinião da jornalista Eliane Brum: "A Cooperifa é um abalo sísmico a partir de uma esquina de quebrada"
Eleilson Leite
O Sarau da Cooperifa, que acontece todas as quartas-feiras no Bar do Zé Batidão, Chácara Santana, periferia da Zona Sul de São Paulo, não pára de surpreender. Não bastasse a ousadia de sua existência e longevidade (comemora sete anos neste inverno), esses poetas acabam de ter sua história registrada em livro e filme documentário. Sergio Vaz, criador e criatura deste Sarau, lançou, no dia 20 de agosto, o livro Cooperifa – Antropofagia Periférica, dentro da Coleção Tramas Urbanas, da Editora Aeroplano, do Rio de Janeiro.
Já o filme, Povo Lindo, Povo Inteligente – O Sarau da Cooperifa, lançado no dia 1º de setembro, no Cinesesc, foi dirigido por Sergio Gagliardi e Maurício Falcão, numa produção da DGT Filmes. As duas obras somam-se ao CD Sarau da Cooperifa, lançado em 2006 pelo Itaú Cultural, que reproduziu em estúdio a magia da poesia declamada por 26 poetas cooperiféricos. Este CD, por sua vez, foi precedido pela coletânea Rastilho de Pólvora, lançada no finalzinho de 2005, com o apoio da mesma instituição. Esgotada há muito tempo, essa coletânea já está com os originais prontos para lançamento de um segundo volume.
Sergio Vaz escreveu um livro de memória, uma autobiografia poética. Ele parte de sua infância, a vida na periferia, a escola, futebol, os primeiros bailes, o trampo no bar de seu pai, o mesmo bar do Zé Batidão. Então, a adolescência inocente encontra-se com a adulto insurgente. Veja. Depois de serem despejados do Garajão, bar no Taboão da Serra onde o Sarau firmou-se nos dois primeiros anos, Vaz não teve dúvida: Zé Batidão. O atual proprietário do bar comprou o estabelecimento do pai do Sergio Vaz ainda na década de 1990, e lá o poeta fez alguns eventos no início de sua carreira literária, anterior à Cooperifa — inclusive o lançamento de seu terceiro livro, Pensamentos Vadios. O Zé acolheu os poetas e até viabilizou um transporte para a galera vir do Taboão. Não saíram mais de lá. Essa e outras histórias, contadas no livro, ganham imagem no filme.
Generoso, Sergio Vaz dá nome a todos e todas que fazem a história da Cooperifa. Não passavam de quinze, na primeira noite, ainda em Taboão da Serra. Já eram multidão quando o sarau aportou na periferia sul de São Paulo
Centrado na figura de Sergio Vaz, o livro não deixa de registrar a participação dos que estavam junto dele. Generoso que é, o poeta dá nome a todos e todas que fizeram e fazem a história da Cooperifa. Na primeira noite do recital de poesia, ele dá a escalação do time. Não passava de 15 pessoas. Quando o sarau aportou no Zé Batidão, a lista de nomes era infindável, e ocupa quase uma página do livro. Estão quase todos lá, segundo Vaz, que já não confia tanto na lembrança. O livro é saboroso. É daquelas obras que a gente lamenta quando chegam ao fim, como a de um amigo que nos fazia uma boa companhia e de repente se foi. Vaz escreve poesia em prosa. Para quem tem o prazer de conhecê-lo, é como se estivéssemos ouvindo tudo pessoalmente. Ele só não registra bem as datas deixando a mim, historiador de formação, um tanto aflito.
O documentário aborda o Sarau a partir do depoimento de alguns de seus freqüentadores. As câmeras partem do cotidiano de cada um, seja em suas casas, seja no trabalho; persegue o poeta até a Cooperifa e registra o êxtase que é, para um autor, declamar um poema diante de uma platéia sedenta, atenta e rigorosa. Cada poesia provoca uma avalanche de aplausos. Captadas com enorme sensibilidade, as imagens do filme Povo Lindo, Povo Inteligente revelam a fúria, a doçura, a alegria, o escárnio, a paixão e todos os sentimentos que afloram em quem declama e em quem ouve a poesia. É muito bonito.
Um desavisado ficaria surpreso ao ver qualquer dos protagonistas do filme declamandos poema num Sarau. Estão lá a Rose (musa da Cooperifa), falando de sua relação com a poesia da mesa do escritório onde trabalha como secretária. Ela, que no começo não se arriscava nos versos, foi se soltando e se envolveu tanto com a literatura que voltou a estudar. Rose relata com especial encanto o dia em que anunciou que ficaria afastada dos encontros poéticos, por causa das aulas. O Sarau da Cooperifa transforma vidas.
Assim como o filme, o livro do Vaz traz diversos poemas transcritos — dele e de muitos poetas. São obras impregnadas pelo objeto de observação: a poesia e a memória. A lembrança é um fio que não tem fim, um novelo perpétuo
Jairo Barbosa, taxista de profissão, hoje educador na Fundação Casa, também dá seu depoimento, no sentido da mudança de perspectiva que teve ao começar a freqüentar o Sarau. Já o "seu" Lourival, aposentado que fez 70 anos em 2008, conta o quanto se delicia com o ato de declamar sua poesia. Casulo é outra figura. O cara é funileiro, tem um fusca customizado, para usar um termo na moda, chega no sarau com uma leveza de espírito cativante e manda uma poema de crítica social contundente sem perder a ternura. É bola num canto e goleiro no outro; o povo vai ao delírio.
Assim como o filme, o livro do Vaz traz diversos poemas transcritos — dele e de muitos poetas. São obras documentais, porém impregnadas pelo objeto de observação: a poesia e a memória. A lembrança é um fio que não tem fim, um novelo perpétuo, uma história puxa a outra. Quando nos damos conta, estamos tão envolvidos que nos sentimos parte do lemos ou vemos. Sergio Vaz, Maurício Falcão e Sergio Gagliardi conseguiram o que queriam. Juntaram memória e literatura numa sinergia perfeita e envolvente.
É certo que nada supera a realidade. Portanto, leiam o livro, vejam o filme, ouçam o CD, mas não deixem de ir à Cooperifa. Lá a gente entende o que a jornalista Eliane Brum diz em mágicas palavras, no seu depoimento no livro do Sergio Vaz: “Não é sempre que a gente testemunha a história em curso, percebe o instante exato em que o mundo balança. A Cooperifa é isso, um abalo sísmico a partir de uma esquina de quebrada”. Não é sempre que um movimento cultural consegue a façanha de produzir tanto. E a Cooperifa é uma árvore frondosa de abundantes frutos. Muitos outros movimentos começaram a partir dela ou dela se serviram para se afirmarem.
A idéia contemporânea de cultura de periferia deve muito à Cooperifa. Felizmente isso está registrado, graças à generosidade de pessoas e instituições que se juntam ao movimento para fortalecer sua autonomia e não para se apropriar ou tutelar. Assim acontece com a DGT, Editora Aeroplano, Itaú Cultural, Sesc, Global Editora, Ação Educativa, Casa das Rosas, ASSAOC, prefeituras de Taboão da Serra e Suzano — entre outras instituições públicas e privadas, com ou sem fins lucrativos. A Cooperifa, graças principalmente à liderança e capacidade de negociação de Sergio Vaz, consegue agregar apoiadores que se tornam parceiros, que depois se tornam amigos e que, enfim, se tornam parte do movimento.
A Cooperifa concede, desde 2005, um simpático prêmio no final do ano a todos os que contribuíram para uma periferia melhor. Quando a Ação Educativa recebeu pela primeira vez a homenagem, dissemos lá que os prêmios servem para distinguir as pessoas — ou seja, colocá-las em outro plano, acima dos demais. O Prêmio Cooperifa, não. Ele serve para colocar a gente no mesmo nível dos demais, fazendo parte de um grupo onde ninguém é mais que ninguém, uma família. E a família Cooperifa não para de crescer. O livro e filme que acabam de sair vão servir para agregar mais e mais gente e fortalecer ainda mais esse movimento. Preparem-se. Vem muito mais por aí. Sergio Vaz e sua trupe são muito abusados.