A carne é fraca?
Sim, a dieta vegetariana faz bem à saúde. Para isso, é preciso ter muita informação e suplementação adequada
Giuliana Reginatto
Banir o bife do prato, encher a geladeira de maçãs, alface e legumes. À primeira vista, o vegetarianismo parece ser apenas isso: uma dieta simples, cujo sucesso depende só de resistir às tentações da carne. Ser vegetariano, contudo, é uma opção mais complexa. Palavra de especialista. “Tirar a carne do cardápio não é garantia de alimentação saudável”, diz o nutricionista George Guimarães, pesquisador do tema.
Para preservar a saúde, o vegetariano deve se informar sobre o valor nutritivo dos alimentos, sozinho ou por meio de profissionais, de modo que consiga balancear sua refeição. “É trabalhoso, mas perfeitamente viável para todos: de atletas a executivos”, garante Guimarães. Experiência no assunto não lhe falta. Vegetariano desde os quatro anos, criou os filhos Lucas, 9 anos, e Lucius, 8, na mesma linha.
Os meninos da família Guimarães seguiram a linha vegana, uma das mais restritivas entre os vegetarianos, até os quatro anos: esse cardápio exclui, além das carnes, ovos e produtos à base de leite. “Por decisão da mãe, motivada pelo aspecto social, hoje eles são ovolactovegetarianos. Passaram a surgir situações complicadas: como ignorar o bolo da festinha do amigo, o queijo no macarrão na casa do colega?”, indaga.
Para Guimarães, crianças são mais sensíveis à questão. “Quando me dei conta de que comia bichos mortos, fiquei confuso”, lembra. O entretenimento infantil, aliás, já detectou esse viés emocional. No desenho Procurando Nemo há até um tubarão vegetariano. Em A Fuga das Galinhas, é impossível não vibrar quando as penosas vão à forra contra uma cruel exploradora de aves. Para os crescidinhos, vale a postura de Lisa, a pequena notável de Os Simpsons, que se recusa a comer ‘bichos mortos’.
Mesmo para um especialista em nutrição, apto a executar combinações certeiras entre os alimentos, há tarefas desafiadoras quando se trata de vegetarianismo. A principal delas é garantir o suprimento da vitamina B12. “Recomendamos, sobretudo ao vegano, fazer a suplementação da vitamina. Quanto ao ferro, feijão, melado de cana e castanhas são boas fontes.”
A orientação dietética de Guimarães encontra respaldo nas conclusões de vários profissionais da área médica: é consenso entre eles que a manutenção da saúde não depende do consumo de carne. Vegetarianos bem-informados costumam ser, aliás, menos suscetíveis a doenças cardiovasculares, diabete e certos tipos de câncer do que carnívoros. (leia mais no box na página seguinte).
Aliado à motivação nutricional, o argumento ecológico embutido na abstenção de carne tem ajudado a esverdear o prato de muita gente. Acusado de incentivar a devastação florestal e o efeito estufa, o comércio de carne tem recebido ataques até da ONU. No início do mês, a BBC divulgou um pronunciamento de seu principal cientista climático, Rajendra Pachauri, sobre o tema: “Comam menos carne. As pessoas estão reduzindo as jornadas de carro, ansiosas sobre suas pegadas de carbono, mas não percebem que mudar o que está no prato pode ter efeito maior”, disse.
No Brasil, o estilo verde tem despertado interesse. Segundo dados do grupo francês Ipsos, líder em pesquisas de opinião, 28% das pessoas entrevistadas no País disseram que “têm procurado comer menos carne”. Se o consumidor quer, o mercado oferece. O Carrefour, por exemplo, investe na linha Viver, com alimentos orgânicos, dietéticos ou à base de soja. Criada em 2006 com 80 produtos, dispõe hoje de 290 itens. Marcas famosas, como Sadia e Perdigão, já têm versões naturebas de suas delícias: de lasanhas sem queijo a hambúrguer de soja.
Veteranos do vegetarianismo, que descobriram o poder da comida da terra muito antes de a dieta cair nas graças de artistas e virar moda, comemoram o crescimento da onda verde. É o caso da cantora Patrícia Marx, que se interessou pelo assunto há 17 anos. “Há cinco anos não tinha isso tudo, ser vegetariano era mais difícil. O que me tocou, no início, foi o sofrimento dos animais, mas apesar da minha convicção, não fico fazendo sermão. Conto, porém, dos benefícios, inclusive estéticos: perdi sete quilos que jamais recuperei ao adotar essa dieta. Minha digestão melhorou, as dores de estômago sumiram”, relata.
Patrícia aderiu ao vegetarianismo de modo gradual. Aboliu primeiro a carne vermelha e, há nove anos, quando engravidou de Arthur, excluiu também aves e peixes. “Ficou mais fácil ser vegetariano. Encontro dezenas de restaurantes, há sanduíches vegetarianos até no supermercado. Esse estilo de vida vem conquistando o Brasil. Em 2002, quando morei em Londres, já havia até peito de peru feito de soja!”, lembra.
A ONU estima que 10% dos ingleses sejam vegetarianos. Para o Brasil, faltam dados específicos sobre o mundo verde. Há, porém, indicativos do crescente interesse pelo tema. “Recebo cerca de 5 mil visitas diárias em meu site, o vegetarianismo. Vejo uma demanda cada vez maior por informações”, diz a socióloga Marly Winckler, presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB).
Marly é gaúcha e aboliu a proteína animal há 25 anos, mas conta que antes foi até churrasqueira. “Tenho marca de cortes nos dedos. Quando mudei a dieta, vivia tendo de justificar minha escolha, me sentia um ET. Hoje é diferente: as pessoas é que tentam explicar porque ainda comem animais.”
Para evitar discussões indigestas, Marly escreveu em 1997 um livro introdutório ao assunto: Vegetarianismo - Elementos para uma conversa sobre. “Não gosto de patrulha. É preciso respeitar os demais. As pessoas já estão percebendo que há mais boi que gente no mundo. São 200 milhões! Falta conhecerem outros dados. Em estudos da SBV vimos, por exemplo, que o bandejão vegetariano traria uma economia de 30% para as empresas.”
No lar da apresentadora Fernanda Lima, o cardápio é meio a meio. “Só eu sou vegetariana. Meus filhos já começam a comer papinha de legumes cozidos em caldo de carne, mais tarde poderão escolher como querem se alimentar. Não é fácil ser vegetariano quando o sistema empurra você para o consumo exagerado de carnes. Essa foi uma das razões que me levaram a abrir o restaurante Maní, com 50% de opções vegetarianas e outros 50% de pratos com carnes”, conta.
Gaúcha, Fernanda é vegetariana há cinco anos e ainda se esforça para resistir aos prazeres da carne. “Foi difícil abandonar antigos hábitos. Gosto de churrasco e quando sinto o cheirinho me dá tanta vontade! O que incomoda é não saber quanto de hormônio é colocado nas carnes e quantas vezes aquilo já foi congelado e descongelado até chegar ao prato. Ao engravidar, senti muito desejo de carne e comi bastante. Aí, passava o dia sentindo um peso indigesto”, lembra. Ela percebeu, então, que a carne já passou do ponto em sua vida. “Sem carnes a digestão fica rápida e o intestino funciona perfeitamente”, conclui.
Para vegetarianos mais recentes, como Luis Godoy, 21 anos, que aderiu ao estilo há três anos, a geladeira sem carnes simboliza mais que uma dieta. Trata-se de um estilo de vida. “Vai além da tortura animal. O vegano colabora com o meio ambiente e com seu próprio corpo. Sinto a diferença na respiração, disposição e até no crescimento pessoal. Basta querer: hoje há muita informação.”
Amigos do publicitário Fábio Chaves, 26 anos, podem obter dados instantâneos sobre vegetarianismo. “Trago no bolso um folheto que fiz com dados da ONU. Não fico constrangido com piadas, o humor traz a chance de iniciar o assunto. Quando me perguntam sobre o porquê de não comer animais, eu rebato com outra questão: afinal, por que comê-los?”
OVOLACTOVEGETARIANO
A maior parte dos vegetarianos se enquadra nessa categoria. Inclui ovos e derivados de leite, o que diminui o risco de a pessoa vir a ter deficiência de proteína e cálcio. Há também o grupo dos lactovegetarianos, que admitem o consumo de derivados de leite, mas não incluem ovos na dieta. Já dentro da linha do ovovegetarianismo, o consumo de ovos é considerado permitido pelos adeptos.
FRUGÍVOROS
No frugivorismo, é permitido comer só frutas, nozes e alguns legumes. Há uma preocupação em não matar as plantas, consumindo só o que elas podem repor facilmente: os frutos. Existem ainda os simpatizantes do crudivorismo. Neste caso, nenhum dos alimentos, principalmente os brotos, são cozidos acima de 40ºC, ponto a partir do qual as enzimas dos vegetais começariam a ser destruídas.
VEGETARIANO RESTRITO
Não comem alimentos de origem animal em nome da saúde. Entre eles há os veganos, os mais radicais. Rejeitam carne, ovo, derivados de leite e produtos que imponham algum sacrifício ao animal: de mel a blusas lã - e até extratos à base de gordura animal presentes em certos cosméticos. Mais que dieta, veganismo é um estilo de vida. Alguns sequer vão ao cinema pois a película contém gelatina.
MACROBIÓTICA
Baseia-se na filosofia chinesa das forças complementares: yin e yang. O ‘yin’ é a força feminina e representa a tranqüilidade. O ‘yang’ é o lado masculino, a agressividade. Juntas, formam um todo equilibrado. Açúcar, chá, álcool, café e leite são alimentos ‘yin’. Entre os ‘yang’ estão queijos duros, peixe, ovos. Há alimentos com equilíbrio entre as forças: cereais integrais, frutas, sementes e legumes.
VERMELHO
Cardiologista e nutrólogo do Hospital do Coração, Daniel Magnoni confirma que a dieta vegetariana reduz a exposição a doenças cardiovasculares e diabete, mas alerta: “Carnes fornecem ferro, zinco e selênio em maior quantidade”, diz. Segundo ele, “dependendo do conhecimento científico do vegetariano, há grande risco de anemia e desnutrição.” Doutora em ciência dos alimentos pela USP e presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação, Silvia Cozzolino não indica a dieta para crianças. “A carne é essencial no crescimento. A criança com genética para medir 1m80 pode estacionar no 1m65, por exemplo. Além disso, o sistema imune fica mais vulnerável na falta de zinco. Para quem exclui leite, vale saber que ele é a melhor fonte de cálcio. Em adultos vegetarianos, fizemos estudos sobre níveis de zinco e ferro. Metade das mulheres mostraram carência nesses minerais. Por outro lado, sabemos que o churrasco libera substâncias cancerígenas. O bom é comer carne com moderação .”
VERDE
Coordenador do departamento de medicina da Sociedade Vegetariana Brasileira, Eric Slywitch garante que o único nutriente que pede atenção na falta de carne é a vitamina B12. “A falta dela existirá em toda dieta desequilibrada, com ou sem carne”, diz. Em compensação, os benefícios proporcionados pelos vegetais, segundo ele, compensam o cuidado com a B12. “O vegetariano tem diminuído em 88% o risco de câncer de intestino grosso e em 54% no caso do câncer de próstata”, afirma. Sobre a crítica contra a carência de ferro , Slywitch acredita haver exageros. “A carne tem cerca de 40% de ferro-eme, que é melhor absorvido pelo corpo, mas ela perde muito dele em seu congelamento e preparo. O ferro não-eme, de vegetais como feijão, é de absorção mais difícil, mas isso pode melhorar com boas combinações. Se o ferro for ingerido com vitamina C, há mais absorção; se for com chá preto há menos”, ensina. Mais dicas constam no livro dele: ‘Como combinar alimentação sem carne’, de 2006.
Congresso Vegetariano
Mais que aprender sobre nutrição, o vegetariano ganha dotes culinários espontaneamente. Afinal, para fugir do alface com tomate não raro é preciso ter doses de criatividade para cozinhar a própria comida. Este é o caso de Maria Laura Packer (foto), vegetariana há 27 anos. No 2º Congresso Vegetariano Brasileiro, que neste ano está sediado no Campus do Centro Universitário de Belo Horizonte e começa na próxima quinta-feira, ela traz receitas surpreendentes, com direito a tortas e brigadeiro - tudo sem leite ou ovos, já que Maria Laura, 49 anos, é vegana.
Autora do livro Vegetarianismo - Sustentando a Vida, Laura ministra cursos sobre ioga e vegetarianismo há 20 anos. “Não é só uma dieta, o veganismo envolve uma visão sociocultural do mundo, leva a novos interesses, traz uma busca espiritual muito grande. Nós nos transformamos naquilo que comemos. Se como algo fruto da crueldade, isso repercute na minha matéria mental. Não é à toa que o mundo anda tão violento e reativo. Pelo bem-estar pessoal, por ecologia ou pelos animais, o vegetarianismo é um ato de compaixão”, conclui. O congresso termina no próximo domingo.