A crise nossa de cada dia
Entre as pessoas de esquerda e os lutadores anti-sistémicos costuma predominar a ideia de que a crise actual é uma crise "deles", do capital e dos capitalistas, que tem consequências dramáticas sobre o mundo do trabalho. Mais difícil é aceitar que atravessamos, também, uma crise "nossa", dos modos e estratégicas em que vimos compreendendo o modo de dominação e as saídas possíveis num sentido emancipatório.
Se nos apoiarmos numa certa leitura de Marx, podemos concluir que estamos perante uma crise fenomenal de superprodução, uma vez que o capitalismo conseguiu produzir montanhas de mercadorias que não podem ser adquiridas pela população, o que só pode ser resolvido mediante a destruição das mercadorias sobrantes e dos milhões de postos de trabalho que as produzem. Esta análise põe em lugar destacado as leis da economia política, muito em particular a tendência decrescente da taxa de lucro, como centro de gravitação do declínio da acumulação de capital.
Se nos apoiarmos na leitura de Marx, podemos concluir que a crise em curso se deve a uma insuficiente subordinação do trabalho ao capital, o que faz com que este fuja para outros espaços geográficos à procura de novas formas de acumulação, como a que David Harvey baptizou "acumulação por despossessão", que inclui o sobredimensionamento do sistema financeiro e o conjunto de receitas neoliberais que se aplicaram sob o impulso do Consenso de Washington. Esta leitura destaca o papel da luta de classes, tanto na gestação como na resolução das crises, que se considera como chave mestra da ordem (e do caos) social.
Não se trata de optar uma ênfase ou outra. Ambas atravessam de modo contraditório a obra de Marx. Contudo, entre economistas, políticos e militantes costuma predominar o primeiro olhar, positivista digamos, que tende a priorizar a crise como algo essencialmente alheio cujas consequências são pagas pelos de baixo. Diante de nós estão a acumular-se algumas evidências que nos deveriam levar a navegar por aquela definição de Marx que sustenta que "a história de todas as sociedades é a história da luta de classes".
Nas últimas semanas alguns destacados funcionários do governo estado-unidense e directores de multinacionais asseguraram que há sintomas de que a crise chegou ao fundo ou está em vias de ser superada. As bolsas estão a recuperar-se lentamente, o consumo em algumas rubricas mostra sintomas de reactivação e certos sectores da produção estariam novamente a levantar voo. Contudo, as quebras continuam, os défices aprofundam-se e, sobretudo, as taxas de desemprego não param de crescer. Um sector nada desprezível dos de cima mostra-se optimista e apenas esse dado torna-se preocupante, pois revela que o que eles entendem por sair da crise é muito diferente do que sentem e aspiram os de baixo.
A crise actual é uma excelente oportunidade para reforçar a subordinação do trabalho, como a classe dominante tem procurado fazer desde a enorme crise do fordismo e do taylorismo da década de 60.
Neste ponto, e por doloroso que seja, devemos reconhecer que, mais de um ano depois de instalada a crise, não existiram reacções importantes dos trabalhadores. Ainda que seja possível e desejável que isso aconteça, não há indícios fortes a indicar que essa tendência se vá modificar. Sem potentes e contínuos movimentos e levantamentos, o capital poder dormir tranquilo e conduzir a crise de modo a que reforce o ponto central dos seus objectivos de classe: uma maior domesticação do trabalho.
Aqui cabem duas apreciações. Por um lado, a longa experiência sindical não serviu para reforçar as tendências operárias para superar o capitalismo e, pelo contrário, aprofundou a aspiração a integrar-se no sistema do modo mais favorável possível. A impressão dominante é que não se trata sequer de mudar equipes dirigentes, uma vez que é a própria "forma sindicato" que mostra limites consistentes. Neste sentido, a experiência latino-americana, onde nenhuma das já importantes lutas contra o neoliberalismo foi protagonizada pelo movimento sindical, pode servir de orientação. Os trabalhadores levantaram-se sob outras identidades (como moradores, imigrantes, pobres, desempregados...), mas o eixo das suas lutas não se centrou no lugar de trabalho solidamente dominado pelo patronato.
A segunda questão relaciona-se com o Estado e a democracia representativa. O grosso das lutas conduzidas pelas esquerdas centram-se em exigências aos estados ou para ganhar espaços mediante a participação em processos eleitorais, como vem fazendo a esquerda revolucionária francesa com grandes expectativas de acumular votos e cargos públicos para continuar a luta em melhores condições.
Ambas as lógicas, a sindical e a estatista, estão inspiradas na acumulação de forças, um conceito simétrico ao de acumulação de capital, que na história das lutas dos oprimidos mostrou enormes limitações no caminho rumo à emancipação. Poderiam dar-se muitos mais exemplos (o conceito de organização, o papel da tomada do poder estatal, a relação entre local e global, as transições, etc) que ilustram que a famosa crise não é só "deles" e sim nossa também, do conjunto de teses, das formas de compreender a sociedade e das práticas cunhadas desde a revolução francesa.
Não há um caminho traçado para sair deste labirinto, em grande medida porque sabemos que é mais fácil sair do erro que da confusão. A única coisa segura é que só um amplo e multifacético conjunto de levantamentos, rebeliões e insurreições, à escala local e global, pode permitir encontrar caminhos necessariamente novos para fazer da crise uma via de superação do capitalismo. O restante haverá que reapreendê-lo, porque em tempos de confusão sistémica impõe-se criar novas formas de acção.
O original encontra-se em http://www.jornada.unam.mx/2009/05/08/index.php?section=opinion&article=042a1pol
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