Quando começou o estouro da bolha financeira nos Estados Unidos, em setembro de 2008, algum economista disse que a vida de todos ia mudar, e muito. Criou-se a impressão de que “nada será como antes”. Mas a extensão dessa frase só vai sendo percebida aos poucos, embora cada vez que ela se esclareça um pouco mais, os efeitos comprovados têm uma dimensão catastrófica ou, no mínimo, espetacular.
Durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso percebia-se um dos índices da “quebradeira Brasil” no fenômeno do “abre-fecha, fecha-abre”. A avenida Corifeu de Azevedo Marques, perto de onde eu vivia, no Butantã, em São Paulo, era um dos locais onde mais se observava esse fenômeno. A avenida era o reino do pequeno comércio, um viveiro de pizzarias com entrega em domicílio, frango assado, armarinhos, farmácias, chaveiros, oficinas, papelarias, lojinhas de todo tipo, além dos tradicionais barzinhos e das padarias.
E naqueles anos, entre 1998 e 2002, praticamente todo o dia um novo pequeno negócio abria e um antigo pequeno negócio fechava. Era uma nova forma de alta-rotatividade. Os que fechavam se viam na contingência de ter de impedir o crescimento das dívidas; os que abriam, muitas vezes eram movidos pela esperança de recém-desempregados de darem um uso promissor para seu fundo de garantia, ou outra indenização que recebessem.
Agora aqui em Berlim onde vivo, e em outras cidades europeias, vê-se um fenômeno mais radical. Os pequenos negócios não desfrutam da proteção dispensada às grandes empresas e grandes bancos; com eles está ocorrendo o simples fecha-fecha. É um espantoso rosário de quebradeiras, de lojas de todo o tipo que liquidam tudo porque vão fechar. Há as grandes lojas também: duas cadeias de lojas de departamento já anunciaram que vão fechar em breve.
E esse novo tipo de “quebra-quebra” sem pancadaria vai provocando um outro, o da deflação: as lojas que não estão quebrando têm de baixar seus preços porque as outras baixaram. Se baixam os preços, diminuem o número de empregados. Resultado: há estimativas de que o atual número de desempregados na Alemanha, aproximadamente 3,5 milhões num universo de quase 45 milhões de potenciais trabalhadores ativos, pule para 5 milhões em menos de um ano.
A tal ponto chegou a situação que Frank Walter Sternmeier, líder do Partido Social Democrata (SPD), cujas chances nas próximas eleições de setembro são reduzidas (com cerca de 23% ou 24% das intenções de voto), decidiu alavancar seu partido com a promessa de criar 4 milhões de novos postos de trabalho nos próximos anos. Esse patamar de insolvência atinge duramente os jovens, e não só na Alemanha. Faz tempo que os jovens – sobretudo os casais jovens que começam a planejar ou a ter filhos – não procuram mais um “emprego” propriamente, mas um “trabalho”. Qual a diferença? Um “emprego” é algo que se projeta no tempo de modo mais duradouro; um “trabalho” é algo mais imediato, ou simplesmente pré-datado: com frequência as ofertas são de “trabalho por um ano”, “por seis meses”, e esses são postos disputados avidamente por cada vez mais concorrentes.
É muito mais comum do que antes os relacionamentos amorosos já começarem ou continuarem à distância. A mãe e o filho, por exemplo, moram numa cidade, num país, e o pai em outro, e com frequência esses endereços mudam ao longo do ano. Por razões de amizade estive num aniversário, no último fim de semana, onde quase todos os casais jovens estavam vivendo de alguma forma essa nova circunstância. Dois dos pares que lá estavam, por exemplo, eram vítimas da circunstância agora cada vez mais comum de dormirem empregados e acordarem desempregados, sem mais nem menos, aliás, com muito menos do que mais, sem direitos, porque as condições de trabalho foram severamente atingidas pelos processos de desregulamentação em escala europeia.
Em alguns países (e na Alemanha é o caso) ainda existe um sistema de previdência social sólido, embora isso também tenha passado por reduções significativas. Um dos casais, com filho pequeno, estava na circunstância da jovem esposa trabalhar em Berlim e o jovem pai ir passar seis meses na Islândia, pois lá pintara um emprego provisório, com esse prazo, e essa era uma oportunidade que não podia ser desperdiçada.
Enquanto isso, a fama do Brasil só cresce no mundo, pois para todo o lado para onde a gente se vire, leem-se elogios ao desempenho brasileiro, como um dos países em que as reações à crise foram das mais imediatas e das mais promissoras, mesmo no curto prazo. Fica a pergunta no ar, porque nunca é demais acautelar-se: será que para nós aquele “efeito Corifeu de Azevedo Marques” é coisa do passado mesmo? Esse certamente será um dos temas decisivos na próxima eleição – não me refiro apenas à alemã, mas à brasileira também, cuja “dança de salão” já começou e no ano que vem vai para as ruas.