Política, psicopatologia e terrorismo**
A actividade separatista e terrorista na Bolívia, desencadeada pela oligarquia de Santa Cruz e dos distritos conhecidos como da «Meia-Lua», embora tivesse sido parcialmente desmantelada e derrotada não foi ainda destruída. Neste estudo, Marcos Domich, Professor da Universidade de La Paz e amigo e colaborador de odiario.info, disseca com profundidade toda a actividade separatista e terrorista dos distritos da «meia-lua» boliviana, as suas origens, fundamentos e as ligações da extrema-direita da Bolívia a Estados e redes terroristas internacionais.
Marcos Domich*
Uma característica central das personalidades, como a do finado Eduardo Rózsa Flores é, custe o que custar, a de aparecer em primeiro plano nas notícias. Ser o centro dos comentários, até das indignidades e das anedotas, é uma das suas maiores gratificações. Fiel a esta receita para a sua personalidade, Rósza – morto na madrugada de 16 de Abril – «vendeu-se» a si próprio muito antes da sua morte. Anunciava aos quatro ventos o que ia fazer. Sem quaisquer cuidados, lançou no espaço cibernético não apenas as suas intenções mas inclusivamente imagens em que aparecia armado até aos dentes. As fotografias tiradas em Santa Cruz, no Hotel Buganvillas e também no Stand da COTAS (cooperativa telefónica), foram presumivelmente colocadas por ele na Internet. Fê-lo na presunção que os serviços bolivianos de segurança não as encontrariam ou não lhes dariam importância. Tinha uma atitude de desprezo pelo «inimigo», que considerava «inferior» aos polícias. Um erro crasso que lhe custou a vida.
A estratégia da tensão e o poder mediático
Apesar dos múltiplos testemunhos e da infinidade de provas que foram exibidas, os meios de comunicação tiveram a capacidade de criar numa parte da opinião pública, convicções que nada têm a ver com a realidade dos factos. Quase três meses passados sobre os acontecimentos continuam, em uníssono, a falar de «presumíveis terroristas» ou, ainda pior, de «presumível grupo terrorista».
Os organismos de segurança e inteligência detectaram uns tempos antes a presença de elementos, sobretudo estrangeiros, que preparavam desencadear o terror através de uma multiplicidade de acções. A principal delas, remonta ao tempo do nascimento do fascismo: é o atentado com o uso de bombas, procedimento principal da «estratégia da tensão». Procura-se com isso que a população viva, particularmente de noite, um estado de tensão, de espera ansiosa, de pressentimento que a qualquer momento haja uma explosão. A ameaça deve ser sentido por qualquer pessoa e em qualquer parte. É típico que a ameaça se abata, indistintamente, sobre defensores ou opositores do regime. A bomba na casa do Cardeal Terrazas (na noite de 14 de Abril) tinha esse objectivo, além, naturalmente, da intenção de lançar a culpa para cima no governo, por acaso, «ateu e comunista».
Referiremos sinteticamente outros componentes que fazem parte da estratégia de tensão e que alguns autores (Eva Gorlinger entre outros) chamam de «golpe de estado em lume brando». Por áreas, estes componentes referem a perturbação da economia, da produção e distribuição de bens, sobretudo alimentos e produtos de amplo consumo; a insegurança económica e financeira; a instabilidade psicológica que origina a incerteza, o sentimento de falta de perspectivas e confiança no futuro. Mas, sobretudo, trata-se de criar um estado de espírito, um clima psicológico, tanto individual como colectivo, caracterizado pelo negativismo, pela falta de esperança, de desalento e da facilidade de reacção, da rejeição, do confronto com tudo o que provenha do governo.
O rumor
É uma componente importante deste clima psicológico. Pode assegurar-se que sem o boato não se podem criar os sentimentos de temor, a tensão psicológica propriamente dita: «estes índios podem fazer barbaridades»; a insegurança: «em qualquer momento podem fazer-nos mal, podem atacar-nos»; a incerteza: «pode acontecer qualquer coisa»; o risco: «vão-nos tirar a casa, o automóvel», etc.
Muitas vezes o rumor alimenta-se e encontra a sua confirmação nalguns actos que os meios de comunicação de direita se encarregam de engrandecer e difundir de forma pertinaz. Agressões (supostas e reais) a jornalistas, linchamento de cães (cidade de El Alto); ocupação de um imóvel de um opositor, etc. A esmagadora maioria destas acções são protagonizadas por elementos radicais e ultra-esquerdistas que não seguem qualquer disciplina sindical ou partidária. Mas também há que considerar a presença de infiltrados ou provocadores que sabem exactamente o efeito que procuram: questionar tudo o que faça ou anuncie o governo.
Paramilitarismo
Um elemento quase infalível é a presença na via pública de grupos de choque. Sem muitas variantes organizativas, é o que no fascismo italiano chamavam fasci di combattimento, as formações que praticavam o squadrismo, isto é, principalmente a violência nas ruas; o que hoje se denomina paramilitarismo. A sua base fundamental foi a desempoeirada Unión Juvenil Cruceñista (UJC). Fundada na década de cinquenta do século XX, confundia-se com os «Camisas Brancas», a formação militarizada [esquadrista] da Frente Socialista Boliviana (FSB).
A UJC foi autora dos actos de violência de Agosto-Setembro de 2008. O governo contabilizou a ocupação de 70 edifícios de serviços e empresas estatais. Os casos mais patéticos foram a ocupação do edifício da ENTEL [Empresa telefónica de rede fixa] e das instalações do canal estatal de TV em Santa Cruz.
A UJC não actuou apenas em Santa Cruz. Executou acções em Trinidad, Cobija e Tarija. Ajudou à organização de grupos idênticos, reforçava-os e treinava-os. Há agora a evidência absoluta que estiveram em Sucre em 24 de Maio de 2008, quando vexaram e ridicularizaram camponeses quechuas, num dos piores episódios racistas que há memória na Bolívia. Também se conhece quem os financiava, obviamente a cúpula empresarial de Santa Cruz. Não deixaram de lançar a mão sobre os recursos financeiros das prefeituras e também de outras instituições públicas. Está provada que as recolhas de dinheiro se centralizavam em «La Torre», uma espécie de direcção clandestina dos conspiradores. No entanto, o volume de acções, dos seus movimentos, de aquisições e gastos sugere outros financiamentos mais importantes e que não podem vir daqui, mas dos habituais canais externos. Entre as muitas denúncias há uma muito estranha. Testemunhas – convocadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Deputados – confessaram que foram utilizados dinheiros da Universidade de S. Francisco Javier de Chuquisaca e que as autoridades do departamento canalizaram ajudas da USAID (N. do T.: Agencia dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional) para apoio aos movimentos violentos.
Conhece-se a existência de um Conselho Supremo de Defesa que seria o cérebro político de todo o movimento que se encobre com o manto da luta autonomista. Mencionaram-se Costas, Marinkocic, Dabdoud, Nayar como os principais elementos. No entanto, recorreu-se a artimanhas legais para não apresentar estes factos ao Procurador principal que investiga o caso.
As investigações, as confissões dos implicados e os testemunhos envolveram vários militares na reserva e reformados. Fala-se de 9 generais e outros dois oficiais de menor patente. Alguns destes resguardaram-se na explicação de terem sido chamados para assessorar a «defesa de Santa Cruz»… perante a possibilidade de ataques de indígenas e camponeses sem terra. Não é difícil deduzir que os militares retirados têm velhos vínculos com os militares no activo. Na verdade, surgiram os primeiros indícios de que se estavam a criar ligações com militares no activo. O tráfico de armas e inclusivamente o desaparecimento destas de estabelecimentos militares, tinha a ver com essas ligações.
Não faltaram atentados contra meios de comunicação tanto estatais institucionais e independentes, como privados. Os últimos estão contabilizados e os meios de comunicação privados agitam-nos sempre que há oportunidade, como ataques à liberdade de imprensa. Em contrapartida nada dizem dos oficiais e institucionais, que ultrapassam os segundos nos efeitos destruidores sofridos. Houve agressões a jornalistas de ambos os lados. Contudo, neste caso também é incomparável a forma como procederam contra os meios oficiais. Em Panati, o sul do país, mercenários ao serviço dos latifundiários, tentaram queimar viva uma jornalista.
Além dos detalhes ilustrados, outras áreas atrás mencionadas oferecem exemplos irrefutáveis da aplicação da estratégia de tensão. Em 2008 deram-se inopinadas subidas de preços de artigos de largo consumo como óleo alimentar, arroz, produtos de carne e o pão. A subida era acompanhada do açambarcamento dos produtos e especulação nos preços. Entre os estragos no aparelho produtivo estatal apontamos a danificação e dinamitação de gasodutos. É de sublinhar que a sabotagem económica, por sorte, não teve grandes efeitos nem causou prejuízos consideráveis. A condenação popular e as medidas do governo conjuraram-nas em pouco tempo.
Precisões sobre o terrorismo
Quando se trata este tema, depois de definir o terrorismo, o mais importante é recordar a posição dos marxistas sobre ele. O terrorismo é, inapelavelmente, uma expressão da luta de classes. Qualquer que seja o seu sinal, sempre expressará os interesses de um grupo social ou de uma classe inteira, mesmo que esse procedimento não conduza precisamente a consecução dos objectivos a que se destina. Isto é sobretudo visível numa forma de terrorismo que pratica a ultra esquerda. Esta prática nunca conduziu, em parte alguma do mundo, a qualquer coisa de plausível. Pelo contrário, voltou-se sempre contra os seus executores, desprestigiou a causa que diziam defender e aumentou a violência da resposta das classes dominantes. Esta é uma norma desde os tempos do terrorismo individual, desde as bombas dos anarquistas, os assassínios de nacionalistas extremistas, até aos tempos contemporâneos, se pensarmos, por exemplo, no «Sendero Luminoso» no Peru. Não poucas vezes a reacção assumiu a forma de terrorismo de Estado. Outros traços deste tipo de terrorismo é que se tornam funcionais ao domínio opressor, desorganizam as fileiras da revolução e, em vez de educar os revolucionários na realização do trabalho de massas, desilude-os e até os transforma em renegados anticomunistas.
Resumindo: Desde os tempos de Marx e Engels e da I Internacional, sempre os comunistas rejeitaram o terrorismo como método de luta política, de luta de classes. É legítimo perguntar se se recusa também o «terrorismo vermelho», sobretudo se tivermos em conta os tempos da CHEKA e de Derzhinski [1]. Não se pode dar uma resposta simplista. Há que ter em conta as condições históricas em que surge a Revolução de Outubro, o cerco imperialista, o rebentar da contra-revolução, o assédio dos exércitos brancos de Wrangel, de Kolchak y Denikin; os levantamentos dos kulaks, a intervenção de 14 Estados contra o nascente poder soviético. Não houve outro caminho se não o de apelar à violência revolucionária para se defender da brutal agressão. Se houve «terror vermelho» foi como resposta ao «terror branco». Sobretudo depois da Revolução de Outubro, o terrorismo converte-se em instrumento das classes dominantes que vêem ameaçado o seu poder ou, o que é o mesmo, na prática contra-revolucionária, enfrentando governos progressistas ou revolucionários que afectem os seus interesses. Em ambos os casos reagem da forma mais contundente e violenta contra os que ameaçam liquidá-los historicamente, transformando a base social e superando sobretudo as relações sociais de produção e o sistema de propriedade dos meios de produção.
Desde a Revolução de Outubro a violência reaccionária assumiu a forma de acção política que se conhece com o nome de fascismo. Nenhum movimento contra-revolucionário deixou de recorrer a formas organizativas, linguagem, simbologia e procedimentos fascistas. Inclusive fê-lo desde o poder, sob a forma de terrorismo de Estado.
Por último, é necessário examinar a visível semelhança externa entre a prática terrorista da extrema-direita e a da ultra esquerda. Para isso socorremo-nos da análise política, do sociológico até que se torne imprescindível a análise sóciopsicológica. Só examinaremos dois momentos deste último. A personalidade, tanto do terrorista de extrema-direita como do ultra esquerdista, caracteriza-se pela sua hostilidade a toda a interdição ética, a todo o valor moral: rejeita-as por vulgares e está afastado das actividades produtivas [2].
Os mesmos autores ampliam esta caracterização no campo sócio-psicológico: o neofascista e o terrorista de ultra esquerda são afins pela sua sensualidade caótica, por pensarem que tudo é admitido; pela tendência para negarem histérica e agressivamente a realidade, incapazes de apreenderem o conteúdo e o destino de uma rebelião sem limites. E acrescentam: São pessoas impulsivas, praticam o culto do chefe e, em alguns casos, assumem eles mesmos esse papel. São portadores típicos da consciência pequeno-burguesa, intrinsecamente desgarrada, que salta de um ao outro extremo.
Estas considerações um poucas longas permitem-nos abordar com maior base teórica o processo terrorista que estava a começar a desenvolver-se no país com o comando dirigido por Eduardo Rózsa Flores.
Como era Rózsa?
No começo, e enquanto se mantinha a reserva sobre os resultados das investigações, lançou-se um mar de especulações sobre os seus antecedentes e a sua personalidade. Já veremos qual é o peso real desta faceta. O que a direita quis explorar foi o facto de o seu pai, imigrante judeu húngaro, ter sido militante comunista e Eduardo ter vivido muitos anos na Hungria socialista. Junto da sua família, que emigrou para lá depois do golpe de Estado de Banzer, depois de passar pelo exílio no Chile de Allende. Inclusive, foi militante da Juventude Comunista Húngara.
Abordando as coisas de um modo responsável, há dados e testemunhos de pessoas que conheceram Eduardo e muitos antecedentes para esboçar o seu perfil psicológico (e até psicopatológico), com uma boa margem de exactidão. E a melhor fonte é o próprio. Graças ao seu blogue há muito material para a análise. Uma fonte muito confiável e séria, é a sua irmã Sílvia, com as suas declarações ao jornalista Justiniano do El Deber de Santa Cruz [4].
Rózsa Flores era uma personalidade pouco comum. Entre os seus antecedentes encontra-se uma mistura de bizarros traços psicológicos e uma tumultuosa actividade. O que surge em primeiro lugar é uma transbordante megalomania. No seu blogue apresenta-se assim: «O comandante Eduardo Rózsa é um dos latino-americanos mais surpreendentes do século XXI» (supostamente publicado por Imagem Comunicação Revolucionária (ICR, Caracas) e na revista húngara «Kapu».
Esta auto-avaliação é confirmada pela sua irmã que lhe atribuiu o traço principal da sua auto-avaliação: «considerava-se superior (…) tinha necessidade de protagonismo… queria ser líder».
Tudo isto tem profundas raízes no seu desenvolvimento psicológico e um peso importante no que, na literatura sobre o tema, se denomina a «socialização política» [5]. Desde pequeno que era demasiado inquieto. Jogava com o risco, gostava de bordejar o perigo; era ousado, temerário e protagónico. Esta conduta configura um síndrome próximo da hyperkinesis (hiperactividade). A ua vida familiar não foi simples. É provável que as manifestações do seu carácter tivessem provocado uma distanciação e mesmo alguma frieza, que exacerbava o seu perfil de pessoa necessitada de reconhecimento e talvez afecto. No entanto, isso era compensado pela sua própria sobrevalorização pessoal. Segundo se conseguiu apurar, durante vários anos, cerca de dez, esteve de relações cortadas com os seus pais.
Não se conhecem etapas datadas de uma sua possível presença em centros de inteligência. Diz-se que esteve alguns meses numa academia em Moscovo denominada Dezhinsky. Também se sabe (e está comprovado) que esteve numa academia militar húngara da qual foi expulso por indisciplina. Em todo o caso, isto apenas confirma as facetas, digamos, difíceis da sua personalidade.
Uma que chama a atenção é a sua estranha versatilidade política e ideológica. De marxista e membro da Associação da Juventude Comunista Húngara passou ao catolicismo mais conservador, tendo aderido à Opus Dei. Não está claro quando nem onde, mas parece evidente que chegou ao islamismo. Ao que parece, levado por uma constante ânsia de aventura, as suas mutações ideológicas têm a ver com a sua passagem por países onde se professava maioritariamente as ideologias que foi adoptando. Assim, depois de viver na Hungria, na época socialista passou pela Albânia, predominantemente muçulmana. Esteve depois nas muito católicas Espanha e Croácia e culminou as suas mutações regressando ao islamismo na Hungria. Na sua entrevista, agora chamada de «testamento», com o jornalista Andras Kepes, é o próprio Rózsa que explica estas oscilações. Quando o entrevistador lhe pergunta como é que militou na Juventude Comunista Húngara e ao mesmo tempo já sustentava ideias anti-socialistas, Rózsa afirmou que a sua personalidade «estava desviada» , dando a entender que uma coisa era a sua apresentação oficial e outra era o seu pensamento real.
Na revista húngara Hetek há um extenso artigo que, com o título «A Bizarra Vida e Morte de Eduardo Rózsa Flores», sintetiza alguns aspectos do seu trajecto pessoal e político. Com o desaparecimento do campo socialista (1988-9) os seus pais e irmã regressaram Bolívia, enquanto Eduardo ficou na Europa onde se ligou a organizações da extrema-direita húngara como a Szekely Régio e o partido neonazi Jobbik, que tem uma milícia ilegal, a «Legião Húngara». Ligou-se também à Lelkusmeret 88 (Consciência 88) que representa a minoria húngara que quer romper com a Roménia. Foi ligado a estas organizações que foi, depois de passar pela Albânia, até Espanha. Daqui parte para a Croácia como repórter da «Vanguarda», onde acaba por se enrolar na nascente milícia separatista croata. Aqui, diz ter comandado uma «Brigada Internacional» com 380 homens. Provavelmente, e este é um dado importante, ligou-se ali à organização «Ante Gotovina», criada e assim chamada em homenagem a um general croata, preso em 2005 nas Canárias e transferido para Haia para ser julgado no Tribunal Internacional, por crimes de guerra na ex-Jugoslávia.
Voltando ao começo da análise da personalidade de Eduardo Rózsa, as suas ligações e função política na sociedade, reafirmamos a sua caracterização como um sujeito possuído de uma ambição ilimitada de protagonismo e de poder que caracterizamos como síndrome timocrátio [6]. Este não um transtorno psiquiátrico e não deve ser confundido, por exemplo, com um delírio de grandeza. Porém, ele é próprio da personalidade limítrofe do psicopata. Esta condição, no caso de Rózsa, recaía numa pessoa de um alto coeficiente de inteligência, o que lhe possibilita, e também o leva e explica as suas incursões em várias actividades intelectuais: escritor, poeta, cineasta, actor e jornalista, entre as que se conhecem. No jornal Nepszabadzag qualificaram-no de «aventureiro talentoso».
No entanto, é necessária uma advertência. O fascismo, o terrorismo de direita encontram os mais aptos para o seu desenvolvimento, precisamente em personalidades do tipo da de Rózsa. Pode haver nestes uma componente endógena, porém eles são, antes de tudo o mais, um produto social.
Presença e missão de Rózsa na Bolívia
Um dos primeiros a caracterizar a vinda de Rózsa a Santa Cruz, foi o jornalista húngaro Zoltan Brady, director da revista Kapu. Sobre Rózsa escreveu, textualmente: «foi para a Bolívia para lutar contra o governo comunista e pela independência de Santa Cruz». Outro jornalista, Philip Sherwell, que o conheceu pessoalmente, disse que na guerra separatista da Croácia foi como «Kurtz», o sombrio personagem da novela «Coração de Obscuridade» do novelista Conrad.
Mas é a divulgação do vídeo, gravado com Kepes em Setembro de 2008, o que desmoronou as débeis linhas de defesa dos separatistas e da direita, não apenas de Santa Cruz mas nacional. Nessa entrevista-testamento [8], Eduardo Rózsa disse que ia para Santa Cruz «para armar a resistência», defendendo a autonomia e que, no seu caso, «procuraria a independência fundando um novo país». O conhecimento de tão explícitas expressões provocaram um terramoto na opinião pública nacional e internacional, tendo ficado evidenciado ao que vinham Rózsa e os membros do seu comando: a lançar a confusão no país, derrubar o actual governo, liquidar o Presidente e, finalmente, como é óbvio, a dividir a Bolívia.
Da entrevista de Kepes é fácil passar a outros ícones do seu blogue e determo-nos no ícone que conduz a uma espécie de logótipo da «meia-lua», onde se podem ler os propósitos (secessionistas) dos que falam de autonomia.
Antiguidade das tendências separatistas
As referências anteriores obrigam-nos a retroceder no tempo e ver como são profundas as tendências secessionistas. Sem essas referências, estas ideias estão abundantemente expostas, articuladas e argumentadas por Enrique de Gandía. No livro, que já conta mais de 70 anos [9], coloca com franqueza os fundamentos da sucessão: «Os exemplos da Europa (…) demonstram-nos – em todos os tempos – que as fronteiras se rompem quando não coincidem com os limites etnográficos dos povos e não se ajustam à tradição da história» (meu sublinhado). (…) Santa Cruz de la Sierra com o Beni está chamada a ser uma República independente entre o Paraguai, o Brasil, e a Bolívia, com um futuro cheio de agradáveis promessas» (págs. 7 e 8). Faz cálculos da extensão dessa grandeza: «a nova República (…) formada pelos ex-departamentos de Santa Cruz e de Beni, (teria) aproximadamente 612.751,06 quilómetros quadrados». A Bolívia ficaria reduzida a 415.213 km2 (op. Cit., p. 263).
Não nos propomos discutir os argumentos «históricos e legais» do autor separatista. Apenas queremos sublinhar a confissão de parte que nos revela a prova. Ao falar de limites etnográficos a pretensão está clara: quer separar-se do desfiladeiro «turbulento e anárquico», como o postulou anos mais tarde o chefe falangista Mário Gutiérrez Gutiérrez que, de passagem, aludiu às origens «andaluzes» dos crioulos de Santa Cruz, assinalando-lhes atributos de trabalho e nobreza de espírito que não tinha os bascos ou os galegos.
Na obra de Gandía não podiam faltar referências aos símbolos e ao hino de Santa Cruz. Mas o livro deste autor é difícil de encontrar. Aconselhamos a visitar o registo de Rózsa na Internet e aí se encontrarão as mesmas referências que, não sendo casuais, traduzem a mesma concepção. O remate final de toda esta concepção é completado no sitio da «Nación Camba», onde se explica que procuram «A tomada da totalidade do Poder», criando «uma revolução social camba» para garantir os seus objectivos: libertarem-se do micro imperialismo andino», etc., etc.
A conexão ústacha
Um aspecto pouco estudado é o das conexões políticas internacionais entre organizações e militantes do fascismo balcânico com a América Latina. Na Bolívia é bastante conhecida a presença de nazis e pró nazis ainda antes da II Guerra Mundial. Há uma rede de nexos orgânicos inocultáveis, tal como as marcas da influência que exerceram, sobretudo os nazis, os fascistas italianos e os falangistas espanhóis em certos círculos da política boliviana. Menos conhecidas são as ligações e a influência que tiveram os eslavos croatas filiados em organizações de extrema-direita.
Em 1941 deu-se a invasão da Alemanha nazi ao então reino da Jugoslávia. Não faltaram organizações jugoslavas que se puseram ao lado dos invasores e que se converteram em colaboracionistas. A organização mais importante, deste jaez, é a que se conhece pelo apelativo de ústachas. Sob a ocupação nazi criaram na Croácia um Estado denominado “Nezavisna Drzava Hrvatska” (Estado Croata Independente), em Abril de 1941 [9]. Sob a protecção nazi, este Estado foi governado por Ante Pavelic.
Não cabe aqui descrever nem analisar detalhadamente o que sucedeu nesse território até 1944. Basta dizer que o regime quissling encabeçado por Pavelic foi um dos mais cruéis do seu género. Pavelic bebeu a ideologia fascista, sobretudo na vizinha Itália, durante os anos 30.
Em 1945, depois da derrota nazi às mãos dos aliados e fundamentalmente do Exército Vermelho, Pavelic fugiu e refugiou-se na Argentina. Neste país encontrou não só refúgio como uma extraordinária tolerância e até cobertura. Eram os temos do muito popular peronismo e, simultaneamente, suspeito no plano internacional. Pavelic, que se presume ter escapado depois de esvaziar os cofres do Estado Croata, converteu-se no líder dos nazi-fascistas que chegaram à Argentina. Com elementos alemães, italianos, franceses e outros, mas principalmente romenos da «Guarda de Ferro» e do Partido Nacionalista Húngaro, pretenderam criar uma estrutura tipo «internacional negra». Os propósitos desta internacional foram há já algum tempo revelados por Hugo Roberts Barragán [10]. Este afirma que o próprio Paz Estenssoro recebeu promessas de ajuda para tomar o poder, a troco de fazer da Bolívia um centro de irradiação do nacionalismo. Soube-o por um enviado de Paz Estensoro a Buenos Aires e que Roberts identifica como Mario Busch. Pode tratar-se da mesma pessoa que colaborou com a FSB e que, por isso mesmo, foi preso em Curahuara de Carangas (Oruro) e que Walter Vasquez Michel identifica como Manolo Reina, um argentino-croata.
As simpatias de Pavelic por Paz Estenssoro terminaram abruptamente em 1952 quando este, sob pressão das massas, nacionalizou as minas e decretou a reforma agrária. Os círculos ústachas, tal como a direita, sobretudo falangistas, começaram a dar apelidar o novo governo de «movicomunista». A Falange Socialista Boliviana (FSB), assumiu o papel de vanguarda da contra-revolução e organizou a resistência frontal ao regime de Paz Estenssoro e do MNR. Unzaga denunciou como comunista o governo do MNR num «congresso mundial anticomunista» realizado no Brasil em 1956.
É óbvio que o pertinaz Pavelic viu, tal como Klaus Barbie, os membros da Falange como os eleitos para levar à prática os seus planos de manter vivas não só as ideias fascistas, mas sobretudo os seus métodos políticos. É por isso que o chefe falangista se entrevista com Pavelic em Buenos Aires por volta dos anos 1954-56. É igualmente provável que tenha recebido promessas de ajuda para derrubar o governo «movicomunista».
Neste caso temos um actor e testemunha excepcional: Walter Vasquez Michel [12], falangista de primeira água, perseguido e brutalmente torturado pela polícia política, recluso no campo de concentração de Curahuara. Por decisão de Únzaga entrevistou-se com o chefe ústacha, que o levou a participar numa cerimónia onde prevaleciam estandartes e cores nazis e ressoava o conhecido «heil» e a saudação romana das concentrações castanhas. Também se viam cruzes potenzadas (N. do T.: cruz em forma de T), um dos símbolos dos ústachas.
Golpismo separatista
Vasquez Michel afirma que teve assessoria ústacha para alguns golpes de Estado planeados pelo falangismo, particularmente os que se apoiaram nas forças da direita oriental que, então, tinha criado os comités cívicos como escudo para as suas actividades contra-revolucionárias.
No entanto, a frente contra-revolucionária não tinha uma compreensão homogénea sobre o objectivo final da conspiração. Apareceram diferenças entre o ramo oriental e a ocidental FSB. A primeira era muito mais próxima dos ânimos separatistas do Comité Cívico. Foi assim que para a junta [cabildo] de Dezembro de 1957 se preparou o que havia de ser uma virtual declaração de independência. Então, os contactos de Gutiérrez Gutiérrez com círculos oficiais brasileiros tinham conhecido um enorme avanço e prometida uma ajuda que inclusivamente podia ser militar. Únzaga foi informado desta medida extrema por Fausto Medrano, dirigente dos Camisas Brancas de Santa Cruz e do movimento universitário. Então, o chefe falangista ordenou a retirada de toda a cooperação com o Comité Cívico, facto em que participa Walter Vasquez Michel. No entanto, o complôt continuaria e rebentaria em Março de 1958.
Virtualmente os «cívicos», a União Juvenil de Santa Cruz (UJC) e as brigadas falangistas tomaram por algum tempo o controlo da cidade, dando largas à sua acção separatista. Tentou-se (sob assessoria ústacha?) transformar o putsch em movimento guerrilheiro. Mas a aventura terminou tragicamente para os revoltosos, caíram dois jovens num combate travado fundamentalmente com milícias camponesas.
Esta informação é um importante dado histórico até agora pouco conhecido. Primeiro, confirma a realidade de as tendências separatistas serem muito antigas, permanentes e contarem com apoios externos, entre eles de elementos reaccionários croatas e, internamente, das oligarquias locais. Segundo, há uma regularidade na exacerbação daqueles desejos secessionistas: a presença de governos progressistas ou de esquerda. Não se pode negar que nos primeiros anos depois de Abril de 1952 foram anos de inegáveis mudanças de conteúdo progressista, antilatifundista e antimonopolista. Depois chegaram os governos militares progressistas de Ovando e Torres e o governo da UDP de Siles Suazo. Este, só pela presença de comunistas no governo, converteu-se numa espécie de capa vermelha contra a qual investia a reacção em geral e com força a oligarquia de Santa Cruz.
Balanço preliminar
Um balanço preliminar da situação jurídica e política do tratamento do caso do terrorismo na Bolívia mostra que a conspiração, com o desmantelamento do comando Rózsa, a investigação dos seus contactos e a rede da conspiração significaram um grave desaire para os implicados e, temporariamente, malogrou os seus planos. Tardarão algum tempo a recompor-se completamente, embora haja sinais frescos das suas tentativas de reactivação.
Na realidade a direita e a extrema-direita sofreram uma derrota importante e renovaram as manobras e a chicana jurídicas para converter os processos judiciais num labirinto kafkiano; eludir o castigo da lei pelos seus actos terroristas e pelas suas tentativas de provocar uma confrontação que derivasse para uma guerra civil.
Por fim, deve responder-se sistematicamente à infinidade de dúvidas que semeia a oposição mais recalcitrante apoiada, mais em razões válidas no domínio mediático. Entre outras, podia a polícia, conhecendo as fotos e vídeos, tentar prendê-los sem uma irrupção de surpresa nos quartos que ocupava o comando Rózsa no Hotel Las Américas? É óbvio que não. Não se viu muitas vezes os operacionais da polícia espanhola quando prendem etarras? Fazem-no no pleno cumprimento das prescrições do ofício (encapuçados, com ordem de disparar, etc.). Porém, contrariando o bom senso, há os que afirmam que os mortos na acção policial «foram assassinados». É uma pobre maneira de tentar esconder o êxito que foi o desmantelamento do comando terrorista dirigido por Rózsa.
À laia de epílogo
Até à linha anterior escrevemos sem conhecer as declarações de Júlio César Alonso. Torna-se impossível não as comentar, apesar de isso atrasar a publicação de «Marxismo Militante» (N. do T.: Revista teórica marxista dirigida por Marcos Domich onde este texto também será publicado). Os seus contundentes relatórios e entrevistas sobre a presença de mercenários e execução de actos terroristas constituíram uma incalculável contribuição para o esclarecimento dos factos analisados, agora nas mãos da Procuradoria e da Comissão da Câmara de Deputados.
Alonso é um investigador com larga experiência e tem conhecimento directo dos sucessos do terrorismo e dos seus executores em 10 frentes de guerra: entre outras, Bósnia-Herzegovina, Croácia, Kosovo, Angola, Congo, Sudão, Chechénia e Geórgia. Ele confirma de modo irrefutável que Rózsa foi contratado, pelo menos com mais uma dezena de homens, para organizar uma milícia que, em nome da defesa de Santa Cruz, na realidade, provocasse uma guerra civil que acabasse com a integridade territorial da Bolívia.
Confirma também as características pessoais de Rózsa, as suas «extravagâncias», a sua egolatria e sobretudo o que, com mais propriedade, podemos agora definir: sofria de uma completa anomia, isto é, ausência absoluta, nos seus actos e no seu pensamento de valores éticos. Esta caracterização não é muito difundida na psiquiatria forense e na psicologia jurídica. Esta última definia antes uma conduta desse tipo como «loucura moral». Mais actual é falar de psicopatia ou de uma personalidade limítrofe. É lamentável que estes traços de anormalidade recaiam numa personagem de notável inteligência, o que também não é uma raridade clínica.
Outro facto a ressaltar é que cada frase de Alonso sublinha que os «contratadores» de Rózsa sabiam perfeitamente que traziam para o país um perito em provocar guerras civis e com o objectivo de o dividir. Os seus métodos brutais têm no Massacre de Porvenir (departamento de Pando) uma amostra do modo como se pode acender a chama de um confronto sangrento e onde a instigação ao ódio racial é inocultável.
Foi muito esclarecedor as características da guerra dos Balcãs e a implosão da Jugoslávia com e pela intromissão de potências estrangeiras, da NATO e dos serviços de inteligência correspondentes; e a reorganização e rearmamento das organizações fascistas. A propósito, deve esclarecer-se se houve algum governo boliviano anterior que tivesse estado comprometido no tráfico de armas para a Croácia. O governo argentino de Menem já se sabe que esteve.
Por último, há que ressaltar que a ultra direita e os meios de comunicação por ela controlados sofreram uma derrota mais. Derrubou-se sem atenuantes a sua táctica perversa e a sua estratégia antinacional. A única coisa que há a esperar é que a Justiça boliviana seja implacável na aplicação do castigo correspondente aos operacionais que estão soltos, aos financiadores e à extrema-direita que, na defesa dos seus mesquinhos interesses, não hesitaram em tentar lançar a Bolívia num banho de sangue. É a hora de aprovar legislação especificamente antiterrorista, anti-racista e antifascista que, como na maioria dos países do mundo, penaliza a sua simbologia, a sua propaganda e as suas organizações.
Notas:
[1] Por sus iniciales en ruso la Comisión Extraordinaria (Cheresbichaynaya Komisia) fue el primer órgano de seguridad soviético y lo presidió F. E. Derzhinski
[2] Ver: Sherkovin, Pankov y col. El terrorismo político, inculpación al imperialismo. Ed. Progreso, Moscú, 1983.
[3] Casi al cerrar la presente edición hizo su aparición en el escenario informativo el periodista-investigador español Julio César Alonso. Durante 14 años ha seguido, entre otros mercenarios y terroristas, a Rózsa. En el epílogo de este artículo agregaremos algunos de sus importantes aportes al tema en tratamiento.
[4] Casi al cerrar la presente edición hizo su aparición en el escenario informativo el periodista-investigador español Julio César Alonso. Durante 14 años ha seguido, entre otros mercenarios y terroristas, a Rózsa. En el epílogo de este artículo agregaremos algunos de sus importantes aportes al tema en tratamiento.
[5] Shestopal, E. B. Personalidad y Política (en ruso) Ed. “Misl”, Moscú, 1988.
[6] También denominado síndrome timárquico (gobierno de la ambición). Ver: Domich, M. La degradación timárquica del líder y del Estado. Rev. “Temas Sociales” Nº 14. Ed. UMSA, 1990.
[7]. C. Alonso afirma que el verdadero testamento está en manos de dos periodistas croatas y debe publicarse a los seis meses de su muerte.
[8] J. C. Alonso afirma que el verdadero testamento está en manos de dos periodistas croatas y debe publicarse a los seis meses de su muerte.
[9] Mladen Stefanovich. Zbor Dimitrija Loticha (“El Comando Dimitri Lotich”), Ed. Narodna Kniga, Beograd, 1984, en serbio p. 97 a 108.
[10] Por sus iniciales en ruso la Comisión Extraordinaria (Cheresbichaynaya Komisia) fue el primer órgano de seguridad soviético y lo presidió F. E. Derzhinski.
[11]Ver: Sherkovin, Pankov y col. El terrorismo político, inculpación al imperialismo. Ed. Progreso, Moscú, 1983.
[12] El Ing. Vásquez Michel, en 1967, canceló su militancia en FSB a la que había servido con valentía y lealtad. Su honestidad e inocultada identificación con la causa popular y socialista, hizo que se convirtiera en seguidor de Marcelo Quiroga Santa Cruz y le ayudara a fundar el Partido Socialista. Vásquez entregará en breve sus memorias y nos ha hecho participes de algunos de sus contenidos. Hacemos público nuestro reconocimiento a este adelanto generoso.
* Marcos Domich é Profesor da Universidade de La Paz e amigo e colaborador de odiario.info.
** Sobre este assunto ver «Sobre a ligação Ústacha da rede fascista», Marcos Domich, odiario.info de 28 de Maio de 2009.
Tradução de José Paulo Gascão