República Popular da China: 60 anos
A experiência histórica do país é extremamente valiosa para demonstrar que não existem modelos de revolução
Por Wladimir Pomar
Em
dezembro de 1949, a China assistiu à fundação da República Popular, com
a vitória do Exército Popular de Libertação sobre os exércitos
comandados pelo Guomindang. A nova república implantou a reforma
agrária, com a nacionalização da terra e sua entrega, em usufruto, a
mais de 150 milhões de camponeses. Além disso, denunciou os tratados
desiguais que, por mais de um século, permitiram às potências
imperialistas espoliar e humilhar a China.
As propriedades das empresas imperialistas, assim como dos chineses que haviam colaborado com os agressores japoneses, foram nacionalizadas. Mas os empresários nacionais mantiveram suas propriedades, em concordância com o Programa da Nova Democracia. Proposto pelo Partido Comunista, em 1946, esse programa previa uma aliança de longo prazo com o empresariado nacional, para desenvolver a capacidade produtiva de uma China ainda pobre e atrasada.
A nova república, mesmo confrontada com a destruição de mais de 20 anos de guerras, assim como com o bloqueio das potências imperialistas e com as ameaças da Guerra da Coréia e de guerra nuclear, conseguiu reconstruir o país e garantir, num primeiro momento, os direitos humanos básicos de alimentação, moradia, educação e saúde.
Para manter a soberania recuperada, proteger-se contra as ameaças da Guerra Fria, e avançar em suas propostas de ingressar numa sociedade socialista, a República Popular necessitava industrializar o país. Porém, sem contar com riquezas acumuladas, nem com capitais externos, o caminho que lhe restou foi contar com os próprios esforços e uma pequena ajuda da União Soviética, em projetos e técnicos, para construir a base de sua indústria pesada.
Desvios de rota
Nessas condições, era inevitável ocorrer desequilíbrios. Também era inevitável que camponeses e operários reclamassem que seu sobre-trabalho fosse desviado para produzir aço, máquinas e fábricas, ao invés de produzir bens que lhes propiciasse um melhor padrão de vida. Paralelamente, ressurgiu uma intensa luta de classes, opondo camponeses pobres a camponeses abastados, tendo como fulcro o usufruto da terra, que tendia a ser dominado pelos mais ricos, detentores de saber e de relações sociais antigas.
Os desequilíbrios na economia, a luta de classes no campo, as tentativas da burguesia nacional de lucrar com a especulação de alimentos, os movimentos contra-revolucionários, que tentavam se aproveitar das dificuldades do novo regime, as ameaças da Sétima Frota dos Estados Unidos e dos exércitos do Guomindang, no estreito de Taiwan, a Guerra Fria e sua ameaça nuclear, tudo isso dificultava o desenvolvimento econômico e social chinês, impondo-lhe desafios de toda sorte.
Foi num quadro como esse que a República Popular acabou por se desviar do Programa da Nova Democracia. Os movimentos massivos das Cem Flores, Comunas Populares, Grande Salto Adiante e Quatro Modernizações, expressaram apenas as tentativas contraditórias de desenvolver as forças produtivas, com ou sem o concurso da burguesia e de formas capitalistas de propriedade.
O mais radical de todos esses movimentos massivos foi a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976, que levou ao limite a idéia da socialização completa da propriedade, da abolição do mercado, e da participação democrática direta das massas no poder, na suposição de isso permitiria desenvolver as forças produtivas. Mais uma vez, como em todas as grandes revoltas da história chinesa, o igualitarismo econômico e social camponês foi a força propulsora que levou massas de milhões a desafiar o Partido Comunista e o poder instaurado em 1949.
Debate sobre a experiência histórica
Após passar por todas essas experiências, e realizar uma avaliação histórica sobre elas, a República Popular ingressou, entre 1976 e 1978, numa retirada parcial, no estilo da Grande Marcha, para superar os elementos de instabilidade política e ideológica, encaminhar a solução dos problemas mais aflitivos do povo, e realizar as “quatro modernizações”, retornando ao Programa da Nova Democracia.
Apesar das críticas a Mao Zedong, a necessidade de perseverar na linha que toma as massas como centro das preocupações, e no estilo de trabalho, que toma a prática como critério da verdade, criados por Mao, foram considerados decisivos para emancipar as mentes, combinar democracia e centralismo, e distinguir as contradições dentro do povo das contradições entre o povo e o inimigo.
Além disso, houve o reconhecimento de que, apesar de todos os avanços, a China ainda era um dos países mais pobres do mundo. Suas forças científicas, tecnológicas e educacionais estavam 20 a 30 anos atrás dos países desenvolvidos. A China possuía uma população imensa, com pouca terra arável. Então, como modernizar a China e, ao mesmo tempo, dar trabalho e bem-estar à sua enorme população? Como evitar que as “quatro modernizações” criassem uma imensa população excedente e pobre? As experiências de desenvolvimento do mundo capitalista apontavam para uma crescente massa de desempregados, o que ia contra os princípios socialistas.
Essas preocupações levaram a República Popular a ancorar-se nos princípios ideológicos e políticos que haviam orientado seus fundadores. Isto é, ter como princípios cardeais na definição das políticas de modernização o caminho socialista, o regime democrático popular, a direção do Partido Comunista, e o guia teórico do marxismo e do pensamento Mao Zedong.
A China só se recuperara como nação ao enveredar pelo caminho socialista. Assim, embora as reformas representassem um recuo estratégico, este podia transformar-se em ofensiva, desde que almejasse uma civilização com um alto nível cultural e ideológico, tendo como suporte uma civilização material forte. Neste sentido, o combate aos crimes econômicos tornou-se vital. Não seria possível enfrentar a corrupção, nem os distúrbios, pequenos e grandes, causados pelo processo de modernização, sem uma forte adesão ideológica ao socialismo, ao regime democrático popular e à liderança do PC.
Reajustamentos preliminares
Em 1978 e 1979, em pleno curso do debate sobre a experiência histórica da revolução e da República Popular, a China adotou reajustamentos importantes na agricultura e em sua política de abertura ao exterior.
Na agricultura, que sempre foi o fundamento da nação chinesa, foram elevados os preços pagos aos produtores agrícolas e permitiu-se que os próprios camponeses organizassem sua produção e pudessem vender livremente seus excedentes. Isto levou à retomada da economia agrícola familiar, substituindo paulatinamente as comunas populares, e resultou na elevação da produção agrícola, de 304 milhões para 450 milhões de toneladas.
Paralelamente a isso, após o salto em sua abertura ao exterior, em plena vigência da Revolução Cultural, quando os Estados Unidos e a maioria dos países ocidentais reconheceram a existência de uma só China e a República Popular como seu governo legítimo, a partir de 1979, a República Popular passou a permitir investimentos estrangeiros em seu território, com a criação das Zonas Econômicas Especiais e dos Portos Abertos. Durante mais de uma década, os investimentos estrangeiros limitaram-se e essas zonas, tendo como condição se associarem a uma empresa nacional, aportarem novas tecnologias, e exportarem a produção.
A nova Grande Marcha
No processo de reformas, iniciado em 1980, a República Popular optou por um programa gradual. Tendo por base experimentos variados, por meta uma economia moderadamente desenvolvida em duas décadas e, por perspectiva, 30 a 50 anos de desenvolvimento progressivo, a China iniciou as reformas agrícolas em 1980, a as reformas urbanas na indústria, comércio, finanças, serviços, educação etc, em 1984.
As reformas utilizam várias combinações estratégicas. Elas relacionam planejamento e mercado, propriedade social e propriedade privada, trabalho intensivo e capital intensivo, tecnologias baixas e altas, protecionismo e livre comércio, e regulação e desregulação. O mercado voltou a ser a base do cálculo econômico e o principal regulador dos preços e das demandas produtivas. Mas o Estado, através do planejamento, retifica os desvios do mercado e o orienta de acordo com as estratégias da construção econômica e das reformas.
A estrutura de propriedade mantém o setor público (estatal e coletivo) como principal. Ao mesmo tempo, garante o funcionamento de empresas individuais e privadas, nacionais e estrangeiras, assim como mistas. Ao completar 60 anos, a República Popular da China deve possuir mais de 30 milhões de empresas individuais e privadas, 250 mil empresas sino-estrangeiras e estrangeiras, 680 mil cooperativas, e cerca de 10 milhões de empresas de propriedade pública (estatais e coletivas). Estas últimas respondem por mais de 45% do PIB.
As reformas tinham como meta dobrar o PIB entre 1980 e 1990 e dobrá-lo novamente entre 1990 e 2000, tendo por base o PIB de 1980. Entre 2000 e 2010 o PIB deve ser dobrado novamente, mas desta vez tendo por base o PIB de 2000. Quanto à distribuição da renda, ela deveria acompanhar de perto o crescimento da economia, de tal modo que em 2000 não houvesse mais nenhum chinês abaixo da linha da pobreza e, em 2010, as camadas inferiores da população estejam vivendo um padrão médio comparável ao dos belgas.
Em 1995, a China quadruplicou seu PIB, alcançando em 2000 uma cifra superior a 1,2 trilhão de dólares em termos de paridade cambial, ou cerca de 5 trilhões de dólares em termos de paridade de poder de compra. Enquanto a economia cresceu a uma média de 8% a 9%, durante 20 anos, a renda da população urbana e rural cresceu a uma média de 5% a 6%. Das 250 milhões de pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza, em 1990, restaram menos de 20 milhões na passagem do século. E a meta de dobrar novamente o PIB até 2010, isto é, quase 2,5 trilhões de dólares, pela paridade cambial, e cerca de 12 trilhões de dólares, pela paridade de poder de compra, está sendo alcançada antes do prazo.
No entanto, como os próprios chineses reconhecem, ainda há um longo caminho a percorrer. Seu ponto de partida estava historicamente muito atrasado. A imensidão de sua população dilui qualquer produção bruta, por mais elevada que seja. E a paz, que tanto necessitam para levar a bom termo seu programa, não depende apenas deles.
Problemas do século 21
A China possuí mais de um bilhão e trezentos milhões de habitantes, ou 22% da população do globo. Desta população, 56% estão concentradas nas zonas rurais, cuja terra arável compreende apenas 7% do planeta.
No processo de modernização, a pressão sobre a produção agrícola aumentou, enquanto as periferias das cidades, as novas estradas, avenidas, fábricas e zonas habitacionais avançaram sobre as terras agrícolas, reduzindo as áreas de cultivo. Apesar disso, a China deu um salto em sua produção de grãos, chegando a 510 milhões de toneladas.
Porém, as tecnologias tradicionais não são mais capazes de fazer com que a produção agrícola da China cresça a uma taxa mínima de 1% ao ano. Isto só será possível elevando a produtividade, com o uso da ciência e da tecnologia, o que está acarretando um crescente excesso de mão-de-obra agrícola. Para evitar desemprego e êxodo massivos no rumo das cidades, a República Popular está empenhada, desde 2006, num vasto programa de modernização das zonas rurais.
Ele abrange a construção das infra-estruturas educacional, de saúde, cultural, de transportes, energia e telecomunicações, a universalização dos sistemas educacionais e de saúde pública, pensões, aposentadorias e seguro desemprego, e a consolidação do sistema de empresas industriais, comerciais e de serviços, nos cantões e povoados rurais.
Estas empresas são responsáveis por mais de 50% do valor da produção rural e pelo emprego de mais de 130 milhões de trabalhadores.
Apesar das diferenças ainda existentes entre a renda rural e urbana, a melhoria geral da renda no país pode ser medida pelas mudanças na estrutura de consumo. Na estrutura alimentar, diminuiu o consumo de cereais e cresceu o de carnes, ovos, leites, verduras e frutas. O consumo de roupas passou dos modelos simples para os variados, ao mesmo tempo em que no varejo aumentou o consumo de roupas prontas e caiu o de tecidos. Das “quatro velhas peças” de consumo - bicicleta, relógio, máquina de costura e rádio - os chineses passaram primeiro para as “seis novas peças” - televisor, geladeira, lavadora, gravador, ventilador e máquina fotográfica. E, a partir do final dos anos 1990, incorporaram o telefone, computador, moradia e turismo.
Nesta nova Grande Marcha, a China se transformou na principal fábrica do mundo. Introduziu uma nova configuração produtiva, contribuiu para o controle mundial da inflação, e jogou papel importante em colocar no mercado global cerca de 40% da população do planeta. Por outro lado, do mesmo modo que ritmos lentos de crescimento, ritmos muito rápidos têm causado instabilidade social. O crescimento médio de cerca de 10%, entre 1980 e 2008, foi o mais elevado da história chinesa após 1949, e da história mundial no período de 1980 a 2008. Ele permitiu melhorar o padrão de vida e tornar mais sólidos os fundamentos econômicos do país, mas colocou em tensão a infra-estrutura, pressionou os preços, causou pressões inflacionárias, e criou condições para o surgimento de surtos de instabilidade política, como o de 1989. E acarretou novos problemas ambientais, riscos financeiros, corrupção e disparidades regionais e entre pobres e ricos.
Por isso, ao completar 60 anos, a República Popular se esforça para adotar a “construção verde” como centro dos projetos econômicos. Ela tem fechado empresas e minas poluidoras, obrigado a realização dos estudos de impacto ambiental, desenvolvido métodos de monitoramento, conservação e recuperação ambiental, imposto compensações pelo uso de recursos e por danos causados ao meio ambiente, e quer reduzir o consumo de energia em 20%, até 2010.
Ela também segue na política de redistribuição de renda, através dos aumentos salariais, universalização das aposentadorias, pensões e seguros-desemprego, elevação do padrão de vida dos 20 milhões que ainda vivem abaixo da linha da pobreza, garantia dos direitos dos trabalhadores migrantes, e elevação das taxas pagas pelas classes de renda mais alta, para estender e baratear os serviços públicos.
Durante a crise global iniciada em 2008, a China se empenhou em reduzir os riscos globais, reiterando sua política de coexistência pacífica, aprofundando as reformas de seu sistema financeiro, diminuindo o desequilíbrio no comércio internacional do país, através do aumento das importações, e constituindo fundos financeiros para projetos no exterior.
Ela também tem reiterado que persiste na extensão dos direitos democráticos, reforçando o sistema de congressos populares, e ampliando os sistemas de cooperação multipartidária, consulta política, e auto-gestão nos níveis primários da sociedade.
Embora já seja o segundo país em PIB pela paridade do poder de compra, a República Popular assegura que a China ainda é um país em desenvolvimento. Reitera que se encontra na fase primária de seu socialismo. E que, paralelamente ao desenvolvimento das forças produtivas, se empenha em construir uma sociedade harmônica, como base de uma civilização política e culturalmente avançada.
Nessas condições, em 60 anos de existência, a República Popular da China apenas parece haver encontrado o caminho para alcançar seus objetivos de transitar da revolução democrático popular para o socialismo. Seus êxitos e seus riscos são de igual magnitude. Embora tenha avançado muito rapidamente no desenvolvimento de suas forças produtivas, sua contrapartida foi o ressurgimento, na China, de uma classe burguesa detentora de meios de produção.
Assim, a experiência histórica da República Popular da China é extremamente valiosa para demonstrar que não existem modelos de revolução, nem de construção socialista. E que a construção de uma nova sociedade, a partir de uma sociedade capitalista atrasada, talvez seja ainda mais complexa, mesmo após uma revolução, porque não se pode destruir por decreto uma formação econômica e social que ainda não esgotou todas as suas possibilidades históricas.
Wladimir Pomar é escritor e analista político
As propriedades das empresas imperialistas, assim como dos chineses que haviam colaborado com os agressores japoneses, foram nacionalizadas. Mas os empresários nacionais mantiveram suas propriedades, em concordância com o Programa da Nova Democracia. Proposto pelo Partido Comunista, em 1946, esse programa previa uma aliança de longo prazo com o empresariado nacional, para desenvolver a capacidade produtiva de uma China ainda pobre e atrasada.
A nova república, mesmo confrontada com a destruição de mais de 20 anos de guerras, assim como com o bloqueio das potências imperialistas e com as ameaças da Guerra da Coréia e de guerra nuclear, conseguiu reconstruir o país e garantir, num primeiro momento, os direitos humanos básicos de alimentação, moradia, educação e saúde.
Para manter a soberania recuperada, proteger-se contra as ameaças da Guerra Fria, e avançar em suas propostas de ingressar numa sociedade socialista, a República Popular necessitava industrializar o país. Porém, sem contar com riquezas acumuladas, nem com capitais externos, o caminho que lhe restou foi contar com os próprios esforços e uma pequena ajuda da União Soviética, em projetos e técnicos, para construir a base de sua indústria pesada.
Desvios de rota
Nessas condições, era inevitável ocorrer desequilíbrios. Também era inevitável que camponeses e operários reclamassem que seu sobre-trabalho fosse desviado para produzir aço, máquinas e fábricas, ao invés de produzir bens que lhes propiciasse um melhor padrão de vida. Paralelamente, ressurgiu uma intensa luta de classes, opondo camponeses pobres a camponeses abastados, tendo como fulcro o usufruto da terra, que tendia a ser dominado pelos mais ricos, detentores de saber e de relações sociais antigas.
Os desequilíbrios na economia, a luta de classes no campo, as tentativas da burguesia nacional de lucrar com a especulação de alimentos, os movimentos contra-revolucionários, que tentavam se aproveitar das dificuldades do novo regime, as ameaças da Sétima Frota dos Estados Unidos e dos exércitos do Guomindang, no estreito de Taiwan, a Guerra Fria e sua ameaça nuclear, tudo isso dificultava o desenvolvimento econômico e social chinês, impondo-lhe desafios de toda sorte.
Foi num quadro como esse que a República Popular acabou por se desviar do Programa da Nova Democracia. Os movimentos massivos das Cem Flores, Comunas Populares, Grande Salto Adiante e Quatro Modernizações, expressaram apenas as tentativas contraditórias de desenvolver as forças produtivas, com ou sem o concurso da burguesia e de formas capitalistas de propriedade.
O mais radical de todos esses movimentos massivos foi a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976, que levou ao limite a idéia da socialização completa da propriedade, da abolição do mercado, e da participação democrática direta das massas no poder, na suposição de isso permitiria desenvolver as forças produtivas. Mais uma vez, como em todas as grandes revoltas da história chinesa, o igualitarismo econômico e social camponês foi a força propulsora que levou massas de milhões a desafiar o Partido Comunista e o poder instaurado em 1949.
Debate sobre a experiência histórica
Após passar por todas essas experiências, e realizar uma avaliação histórica sobre elas, a República Popular ingressou, entre 1976 e 1978, numa retirada parcial, no estilo da Grande Marcha, para superar os elementos de instabilidade política e ideológica, encaminhar a solução dos problemas mais aflitivos do povo, e realizar as “quatro modernizações”, retornando ao Programa da Nova Democracia.
Apesar das críticas a Mao Zedong, a necessidade de perseverar na linha que toma as massas como centro das preocupações, e no estilo de trabalho, que toma a prática como critério da verdade, criados por Mao, foram considerados decisivos para emancipar as mentes, combinar democracia e centralismo, e distinguir as contradições dentro do povo das contradições entre o povo e o inimigo.
Além disso, houve o reconhecimento de que, apesar de todos os avanços, a China ainda era um dos países mais pobres do mundo. Suas forças científicas, tecnológicas e educacionais estavam 20 a 30 anos atrás dos países desenvolvidos. A China possuía uma população imensa, com pouca terra arável. Então, como modernizar a China e, ao mesmo tempo, dar trabalho e bem-estar à sua enorme população? Como evitar que as “quatro modernizações” criassem uma imensa população excedente e pobre? As experiências de desenvolvimento do mundo capitalista apontavam para uma crescente massa de desempregados, o que ia contra os princípios socialistas.
Essas preocupações levaram a República Popular a ancorar-se nos princípios ideológicos e políticos que haviam orientado seus fundadores. Isto é, ter como princípios cardeais na definição das políticas de modernização o caminho socialista, o regime democrático popular, a direção do Partido Comunista, e o guia teórico do marxismo e do pensamento Mao Zedong.
A China só se recuperara como nação ao enveredar pelo caminho socialista. Assim, embora as reformas representassem um recuo estratégico, este podia transformar-se em ofensiva, desde que almejasse uma civilização com um alto nível cultural e ideológico, tendo como suporte uma civilização material forte. Neste sentido, o combate aos crimes econômicos tornou-se vital. Não seria possível enfrentar a corrupção, nem os distúrbios, pequenos e grandes, causados pelo processo de modernização, sem uma forte adesão ideológica ao socialismo, ao regime democrático popular e à liderança do PC.
Reajustamentos preliminares
Em 1978 e 1979, em pleno curso do debate sobre a experiência histórica da revolução e da República Popular, a China adotou reajustamentos importantes na agricultura e em sua política de abertura ao exterior.
Na agricultura, que sempre foi o fundamento da nação chinesa, foram elevados os preços pagos aos produtores agrícolas e permitiu-se que os próprios camponeses organizassem sua produção e pudessem vender livremente seus excedentes. Isto levou à retomada da economia agrícola familiar, substituindo paulatinamente as comunas populares, e resultou na elevação da produção agrícola, de 304 milhões para 450 milhões de toneladas.
Paralelamente a isso, após o salto em sua abertura ao exterior, em plena vigência da Revolução Cultural, quando os Estados Unidos e a maioria dos países ocidentais reconheceram a existência de uma só China e a República Popular como seu governo legítimo, a partir de 1979, a República Popular passou a permitir investimentos estrangeiros em seu território, com a criação das Zonas Econômicas Especiais e dos Portos Abertos. Durante mais de uma década, os investimentos estrangeiros limitaram-se e essas zonas, tendo como condição se associarem a uma empresa nacional, aportarem novas tecnologias, e exportarem a produção.
A nova Grande Marcha
No processo de reformas, iniciado em 1980, a República Popular optou por um programa gradual. Tendo por base experimentos variados, por meta uma economia moderadamente desenvolvida em duas décadas e, por perspectiva, 30 a 50 anos de desenvolvimento progressivo, a China iniciou as reformas agrícolas em 1980, a as reformas urbanas na indústria, comércio, finanças, serviços, educação etc, em 1984.
As reformas utilizam várias combinações estratégicas. Elas relacionam planejamento e mercado, propriedade social e propriedade privada, trabalho intensivo e capital intensivo, tecnologias baixas e altas, protecionismo e livre comércio, e regulação e desregulação. O mercado voltou a ser a base do cálculo econômico e o principal regulador dos preços e das demandas produtivas. Mas o Estado, através do planejamento, retifica os desvios do mercado e o orienta de acordo com as estratégias da construção econômica e das reformas.
A estrutura de propriedade mantém o setor público (estatal e coletivo) como principal. Ao mesmo tempo, garante o funcionamento de empresas individuais e privadas, nacionais e estrangeiras, assim como mistas. Ao completar 60 anos, a República Popular da China deve possuir mais de 30 milhões de empresas individuais e privadas, 250 mil empresas sino-estrangeiras e estrangeiras, 680 mil cooperativas, e cerca de 10 milhões de empresas de propriedade pública (estatais e coletivas). Estas últimas respondem por mais de 45% do PIB.
As reformas tinham como meta dobrar o PIB entre 1980 e 1990 e dobrá-lo novamente entre 1990 e 2000, tendo por base o PIB de 1980. Entre 2000 e 2010 o PIB deve ser dobrado novamente, mas desta vez tendo por base o PIB de 2000. Quanto à distribuição da renda, ela deveria acompanhar de perto o crescimento da economia, de tal modo que em 2000 não houvesse mais nenhum chinês abaixo da linha da pobreza e, em 2010, as camadas inferiores da população estejam vivendo um padrão médio comparável ao dos belgas.
Em 1995, a China quadruplicou seu PIB, alcançando em 2000 uma cifra superior a 1,2 trilhão de dólares em termos de paridade cambial, ou cerca de 5 trilhões de dólares em termos de paridade de poder de compra. Enquanto a economia cresceu a uma média de 8% a 9%, durante 20 anos, a renda da população urbana e rural cresceu a uma média de 5% a 6%. Das 250 milhões de pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza, em 1990, restaram menos de 20 milhões na passagem do século. E a meta de dobrar novamente o PIB até 2010, isto é, quase 2,5 trilhões de dólares, pela paridade cambial, e cerca de 12 trilhões de dólares, pela paridade de poder de compra, está sendo alcançada antes do prazo.
No entanto, como os próprios chineses reconhecem, ainda há um longo caminho a percorrer. Seu ponto de partida estava historicamente muito atrasado. A imensidão de sua população dilui qualquer produção bruta, por mais elevada que seja. E a paz, que tanto necessitam para levar a bom termo seu programa, não depende apenas deles.
Problemas do século 21
A China possuí mais de um bilhão e trezentos milhões de habitantes, ou 22% da população do globo. Desta população, 56% estão concentradas nas zonas rurais, cuja terra arável compreende apenas 7% do planeta.
No processo de modernização, a pressão sobre a produção agrícola aumentou, enquanto as periferias das cidades, as novas estradas, avenidas, fábricas e zonas habitacionais avançaram sobre as terras agrícolas, reduzindo as áreas de cultivo. Apesar disso, a China deu um salto em sua produção de grãos, chegando a 510 milhões de toneladas.
Porém, as tecnologias tradicionais não são mais capazes de fazer com que a produção agrícola da China cresça a uma taxa mínima de 1% ao ano. Isto só será possível elevando a produtividade, com o uso da ciência e da tecnologia, o que está acarretando um crescente excesso de mão-de-obra agrícola. Para evitar desemprego e êxodo massivos no rumo das cidades, a República Popular está empenhada, desde 2006, num vasto programa de modernização das zonas rurais.
Ele abrange a construção das infra-estruturas educacional, de saúde, cultural, de transportes, energia e telecomunicações, a universalização dos sistemas educacionais e de saúde pública, pensões, aposentadorias e seguro desemprego, e a consolidação do sistema de empresas industriais, comerciais e de serviços, nos cantões e povoados rurais.
Estas empresas são responsáveis por mais de 50% do valor da produção rural e pelo emprego de mais de 130 milhões de trabalhadores.
Apesar das diferenças ainda existentes entre a renda rural e urbana, a melhoria geral da renda no país pode ser medida pelas mudanças na estrutura de consumo. Na estrutura alimentar, diminuiu o consumo de cereais e cresceu o de carnes, ovos, leites, verduras e frutas. O consumo de roupas passou dos modelos simples para os variados, ao mesmo tempo em que no varejo aumentou o consumo de roupas prontas e caiu o de tecidos. Das “quatro velhas peças” de consumo - bicicleta, relógio, máquina de costura e rádio - os chineses passaram primeiro para as “seis novas peças” - televisor, geladeira, lavadora, gravador, ventilador e máquina fotográfica. E, a partir do final dos anos 1990, incorporaram o telefone, computador, moradia e turismo.
Nesta nova Grande Marcha, a China se transformou na principal fábrica do mundo. Introduziu uma nova configuração produtiva, contribuiu para o controle mundial da inflação, e jogou papel importante em colocar no mercado global cerca de 40% da população do planeta. Por outro lado, do mesmo modo que ritmos lentos de crescimento, ritmos muito rápidos têm causado instabilidade social. O crescimento médio de cerca de 10%, entre 1980 e 2008, foi o mais elevado da história chinesa após 1949, e da história mundial no período de 1980 a 2008. Ele permitiu melhorar o padrão de vida e tornar mais sólidos os fundamentos econômicos do país, mas colocou em tensão a infra-estrutura, pressionou os preços, causou pressões inflacionárias, e criou condições para o surgimento de surtos de instabilidade política, como o de 1989. E acarretou novos problemas ambientais, riscos financeiros, corrupção e disparidades regionais e entre pobres e ricos.
Por isso, ao completar 60 anos, a República Popular se esforça para adotar a “construção verde” como centro dos projetos econômicos. Ela tem fechado empresas e minas poluidoras, obrigado a realização dos estudos de impacto ambiental, desenvolvido métodos de monitoramento, conservação e recuperação ambiental, imposto compensações pelo uso de recursos e por danos causados ao meio ambiente, e quer reduzir o consumo de energia em 20%, até 2010.
Ela também segue na política de redistribuição de renda, através dos aumentos salariais, universalização das aposentadorias, pensões e seguros-desemprego, elevação do padrão de vida dos 20 milhões que ainda vivem abaixo da linha da pobreza, garantia dos direitos dos trabalhadores migrantes, e elevação das taxas pagas pelas classes de renda mais alta, para estender e baratear os serviços públicos.
Durante a crise global iniciada em 2008, a China se empenhou em reduzir os riscos globais, reiterando sua política de coexistência pacífica, aprofundando as reformas de seu sistema financeiro, diminuindo o desequilíbrio no comércio internacional do país, através do aumento das importações, e constituindo fundos financeiros para projetos no exterior.
Ela também tem reiterado que persiste na extensão dos direitos democráticos, reforçando o sistema de congressos populares, e ampliando os sistemas de cooperação multipartidária, consulta política, e auto-gestão nos níveis primários da sociedade.
Embora já seja o segundo país em PIB pela paridade do poder de compra, a República Popular assegura que a China ainda é um país em desenvolvimento. Reitera que se encontra na fase primária de seu socialismo. E que, paralelamente ao desenvolvimento das forças produtivas, se empenha em construir uma sociedade harmônica, como base de uma civilização política e culturalmente avançada.
Nessas condições, em 60 anos de existência, a República Popular da China apenas parece haver encontrado o caminho para alcançar seus objetivos de transitar da revolução democrático popular para o socialismo. Seus êxitos e seus riscos são de igual magnitude. Embora tenha avançado muito rapidamente no desenvolvimento de suas forças produtivas, sua contrapartida foi o ressurgimento, na China, de uma classe burguesa detentora de meios de produção.
Assim, a experiência histórica da República Popular da China é extremamente valiosa para demonstrar que não existem modelos de revolução, nem de construção socialista. E que a construção de uma nova sociedade, a partir de uma sociedade capitalista atrasada, talvez seja ainda mais complexa, mesmo após uma revolução, porque não se pode destruir por decreto uma formação econômica e social que ainda não esgotou todas as suas possibilidades históricas.
Wladimir Pomar é escritor e analista político