Estratégia do grande capital fundiário é negar a existência da questão agrária
correio da cidadania - Guilherme C. Delgado
Problemas agrários e conflitos sociais envolvendo populações rurais
são tão antigos no Brasil quanto a história colonial, iniciada pela
ocupação das terras e escravização das populações indígenas. Nessa
época a violência e o escravismo da população rural originária e
daquela trazida da África caracterizavam a própria índole do projeto
colonial.
Por outro lado, uma “Questão Agrária” nacional, caracterizada como
um problema político em aberto na agenda política do Estado brasileiro,
é bem mais recente – anos 60 do século XX. Nesse interregno de meio
século houve, sob signo da mudança da estrutura agrária, muita pressão,
conflito e repressão, além de alguma alteração formal no estatuto do
direito da propriedade fundiária. O Estatuto da Terra de 1964 e a
Constituição Federal de 1988 são expressão dessa mudança formal no
princípio jurídico da terra como bem social e não como bem de mercado,
como assim estabelecia a Lei de Terras de 1850. Mas somados os 45 anos
de vigência conjunta, seja do Estatuto da Terra, seja da Constituição
de 1988, constata-se que substantivamente não houve mudança no direito
agrário.
Esse divórcio da política agrária relativamente aos fundamentos do
direito agrário não é efeito sem causa. Reflete uma estratégia privada
dos grandes proprietários fundiários, associados ao grande capital e ao
Estado, produzindo e reproduzindo no Brasil a chamada “modernização
conservadora” da agricultura, no âmbito da qual se nega
peremptoriamente a existência de uma questão agrária nacional.
O fato, empiricamente indiscutível, de prevalecer uma estrutura
agrária altamente concentrada, calcada em direitos de propriedade que
se arrogam absolutos, tem conseqüências sociais, ambientais e políticas
perversas para a maioria da população rural e para país como um todo.
Mas sua conversão em “Questão Agrária” requer explicitação do que e de
quem estarão implicados nesta problemática.
Questão agrária atual
A primeira e principal demarcação do problema em foco coloca-se sob
a perspectiva desigual de como são afetados pela estrutura agrária
atual os proprietários da riqueza social, os trabalhadores e a
sociedade brasileira em seu conjunto.
No passado (anos 60), a esquerda partidária (Partido Comunista)
defendia a tese de que a estrutura agrária brasileira constituía
obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo na
agricultura. Essa tese tinha por referencial o capital e não o trabalho
como cerne da Questão Agrária. A história do último meio século, sob a
égide da “modernização conservadora”, é bastante elucidativa para
desmenti-la.
Por outro lado, se a leitura do problema é feita sob a perspectiva
do mundo do trabalho rural e do conjunto da sociedade brasileira,
haverá sim uma Questão Agrária em aberto em pleno século XXI, com
tendência de se agravar no tempo. O cerne da questão é precisamente a
implicação negativa da “modernização conservadora” (mudança técnica sem
mudança na estrutura agrária) para a ocupação dos trabalhadores e
agricultores familiares, para o manejo ecologicamente sustentável do
meio ambiente e para a distribuição da renda e da riqueza geradas no
espaço rural. Tudo isto tem significado social concreto: relações
sociais civilizadas ou o império da barbárie dos “donos do poder” e da
riqueza territorial.
No século XXI, a política de modernização técnica da agricultura,
sem mudança na estrutura agrária, agora etiquetada de agronegócio,
ganha reforço a partir da crise cambial de 1999, que aprofunda o
processo de “primarização” do comércio exterior brasileiro.
Nesse contexto, relança-se a tese da exportação de commodities’ a
qualquer custo (soja, milho, carnes, açúcar, etanol, celulose de
madeira, matérias primas minerais etc.), como via de escape ao déficit
cumulativo e crescente da Conta de Transações com o Exterior. O
aparente sucesso desta tese, com a reversão do déficit entre 2003 e
2007, esconde o fato notório do seu recrudescimento e agravamento a
partir de 2008, puxado pela remessa de rendimentos do capital
estrangeiro. Este aqui ingressou e continua a ingressar sob o abrigo da
liberalização financeira, permitindo até que se formassem “Reservas
Externas”, ao custo de uma acentuada elevação das “Remessas de
Rendimentos”. Mas continua em vigência o regime de primarização do
comércio exterior, impelido pela liberalização financeira, calibrando a
aliança do grande capital, da grande propriedade fundiária e do Estado
para um projeto sem futuro para o Brasil.
Os indicadores de agravamento da questão agrária
Os indicadores de avanço das exportações primárias dos últimos oito
anos revelam crescimento forte dos produtos “básicos” e
“semi-elaborados”, que, representando 44% da Pauta de Exportações entre
1995 e 1999, saltam para 57% em 2008. Medidas em dólares correntes,
essas exportações primárias aproximadamente quadruplicam no período em
exame. Praticamente no mesmo período, o Censo Agropecuário de 2006,
confrontado com o Censo de 1996, revela aumento dos índices de
concentração fundiária e redução de 7,6% no Pessoal Ocupado na
Agricultura. Este último dado, também levantado pelo IBGE, anualmente,
por meio das Pesquisas por Amostragem de Domicílios, confirma
continuamente neste decênio a redução do emprego rural, “pari-passu” à
extensiva expansão das ‘commodities’.
O indicador de desmatamento florestal, inevitável com a acelerada
expansão da pecuária e das “commodities” agrícolas, aparece
periodicamente nas imagens de satélite, suscitando aceso debate entre
ambientalistas e ruralistas, que, contudo, não vai às causas do
problema.
Há vários outros indicadores afetados pela atual expansão agrícola
acelerada: aumento da grilagem de terras, agora amparada por favores
oficiais; perda de eficácia do manejo e conservação dos recursos
hídricos; perda de biodiversidade em razão da expansão da monocultura.
Mas é principalmente o aumento da morbidade face ao rápido aumento das
doenças laborais e a violência que permeia as relações
semi-clandestinas de trabalho volante os focos dos indicadores mais
perversos desse processo de expansão agrícola.
Todos esses indicadores de uma Questão Agrária politicamente
incidente sobre o mundo do trabalho, o meio ambiente e a sociedade em
geral praticamente não repercutem na agenda do Congresso Nacional, nem
nas pautas da grande mídia. Ao contrário, cogita-se mesmo é de
retroceder a aplicação dos dispositivos constitucionais que prevêem a
observância do “Grau de Utilização” das terras, conforme a atual Lei
Agrária de 1993, a prevalecer o Projeto de Lei da senadora Katia Abreu,
já aprovado na Comissão de Agricultura do Senado.
Há uma certa nostalgia no agir político da nossa elite ruralista
relativamente às práticas ‘normais” do estatuto colonial. Tratam a
sociedade brasileira como uma grande barbárie em pleno século XXI, sob
cumplicidade ou omissão de muitos que perderam a esperança.
Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.