A gente do
Haiti é gente de muito valor. Foi o único país, no mundo, em que os
escravos fizeram uma revolução contra seus senhores e venceram. Foi em
1791, logo depois da revolução francesa. A ilha caribenha ferveu em
desejos de liberdade e o povo armado - mais de 500 mil negros num
espaço onde viviam apenas 32 mil brancos - botou os colonizadores
franceses para correr. Toussaint de Loverture, Dessalines, Alexandre
Pétion. Gigantes da luta de libertação que, com suas idas e vindas,
erros e acertos, fizeram do Haiti, com a força das gentes, uma nação
livre, digna, soberana. Primeiro país abaixo do Rio Bravo a se fazer
independente em 1801. Petión acolheu Bolívar e foi o responsável pela
virada na cabeça do libertador. Deu a ele guarida, ajuda e só pediu em
troca que ele libertasse os escravos da América do Sul. Bolívar mudou.
Mais
tarde, as lutas intestinas revolveram o país e várias lideranças
passaram pelo poder, até que no início do século XX o mal fadado
vizinho do norte, os Estados Unidos, decidiu intervir no país para
cobrar dívidas, uma história muito conhecida pelos países
latino-americanos. Desde aí, o povo do Haiti sofreu fortes reveses,
culminando com a dinastia Duvalier, sanguinária ditadura de pai e
filho, que perdurou de 1957 até 1986. Regime de terror, tortura e
perseguições, enfrentado com valentia pela população, que pagou caro
por isso. A esperança veio em 1990 quando o povo elegeu Jean Aristide,
um padre ligado a teologia de libertação. Mas, de novo, os Estados
Unidos meteu o bedelho na vida do país, evitando que por ali tremulasse
alguma bandeira vermelha. A eles, no Caribe, já bastava Cuba. Sem
grandes riquezas para serem cobiçadas, a gente do Haiti sofreu
“preventivamente”. Em 2004, depois de idas e vindas, com o apoio dos
EUA, Jean Aristide se elege novamente, mas é deposto em seguida por um
golpe, igualmente apoiado pelos EUA, mergulhando novamente o país num
caos político.
É quando entram as “forças de paz” da ONU,
ocupando o Haiti a pedido dos Estados Unidos. Vários países, tendo
Brasil à frente, enviaram suas tropas, alegando que estavam ajudando a
manter a ordem, De novo, o povo do Haiti ficava sob a tutela das armas
alheias, como se não fosse capaz de definir por si mesmo o seu destino.
Desde aí o país está ocupado militarmente, com denúncias diárias de
mortes, torturas, estupros, violências de toda ordem. Morte diária,
cotidiana, naturalizada. Estas não saem nos jornais. Contra elas não
gritam os Casoys, os Bonners e outras bocas alugadas.
Agora, não
bastasse toda esta história de dominação, o Haiti sofre uma tragédia
natural, uma a mais, nem tão natural, já que é resultado da destruição
que vem sendo imposta ao planeta pela ganância dos donos do capital.
Milhares de pessoas estão mortas, ceifadas num único dia. Tragédia
massiva. Então os jornais se inundam de matérias sobre a ajuda
humanitária. Países de todas as cores enviam remédios, alimentos. A
Globo e CNN destacam a ajuda estadunidense, “governo tão bom”, o mesmo
que deixou a míngua os atingidos do Katrina. As pessoas choram diante
da TV, organizam ajuda solidária nos seus bairros, observam aliviadas a
humana bondade da França, da Alemanha e até do FMI (pasmem) que decidem
doar alguns punhados de dólares. Falam ainda da providencial presença
dos “cascos azuis”, soldados da ONU, que estão ajudando no resgate das
vítimas, no auxílio aos feridos, etc...
Sim, me compadeço com a
tragédia haitiana deste triste 13 de janeiro. Mas, com Venezuela, com
Cuba e com outros tantos lutadores sociais tenho feito isso desde que
as forças da ONU entraram no país a pedido dos EUA. Contra Lula
gritando pela retirada das tropas, e com Fidel e Chávez, entendendo que
se alguma ajuda precisava o povo da ilha caribenha era a de médicos,
engenheiros, professores, dentistas, enfim, gente que amparasse e
fortalecesse as gentes. Não soldados armados para reprimir, matar,
mutilar, torturar, estuprar. Doem em mim, sim, as mortes massivas deste
dia 13, mas me doem também, com igual força, as mortes cotidianas,
recorrentes e naturalizadas no Haiti, no Afeganistão, no Rio de
Janeiro, em São Paulo, na periferia de Florianópolis. A ajuda
humanitária nestes dias de inferno pós-terremoto não pode ser uma mera
musculação de consciência daqueles que doam um quilo de arroz e dormem
tranqüilos. Há que se comprometer com a proposta de mudança e
libertação. A tragédia haitiana é muito maior do que este terremoto de
13 de janeiro. O terremoto da dependência, da subordinação, da
superexploração do trabalho, da ocupação armada é cotidiano, e já dura
tempo demais. O país está em escombros e não é de hoje. Ajudar as
vítimas da catástrofe do tremor é urgente e necessário, mas não dá para
saudar os algozes. Estes que posam de bons moços, enviando alguns
dólares, são os responsáveis pelo terremoto cotidiano. Isso não podemos
esquecer!