“Quando você abre a torneira e sai
água suja, o que você faz? Reclama para o órgão responsável pela
qualidade da água. E quando você liga a televisão ou o rádio e recebe
conteúdos ‘sujos’, de má qualidade, o que pode ser feito? Praticamente
nada”.
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação.
“A
luta pela democratização da mídia se insere em uma luta mais ampla,
pela garantia ao direito humano à comunicação e, conseqüentemente, por
uma sociedade justa e democrática, onde os direitos dos trabalhadores e
de toda a população sejam respeitados”.
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
A
batalha pela democratização dos meios de comunicação não comporta
ilusões e, muito menos, omissões. Diante do enorme poder da mídia
hegemônica, que manipula informações e deforma comportamentos, a luta
por mudanças profundas neste setor adquire um caráter estratégico. Não
haverá avanços na democracia, na mobilização dos trabalhadores por seus
direitos e na própria luta pela superação da barbárie capitalista, sem
enfrentar e derrotar a ditadura midiática. Hoje, esta batalha comporta
três desafios, que se inter-relacionam e se complementam.
O
primeiro é o da denúncia da “imprensa burguesa”. Não há como
democratizar os veículos sob o comando ditatorial dos Marinhos,
Civitas, Frias e demais barões da mídia. Eles serão sempre aparelhos
privados de hegemonia do capital. Qualquer ilusão neste campo seria
desastrosa para as forças políticas e sociais de esquerda. O segundo
desafio é o da construção e fortalecimento de veículos próprios das
forças engajadas na luta pela superação de todas as formas de
exploração e opressão. Sem construir instrumentos contra-hegemônicos de
qualidade não será possível vencer a disputa de idéias, de projetos e
de valores numa sociedade tão complexa como a brasileira.
Na contracorrente da lógica capitalista
Estes
dois desafios não negam, porém, a urgência de um terceiro: o da luta
pela democratização dos meios de comunicação. Na contracorrente da
lógica capitalista, é possível erguer barreiras ao poder da mídia
burguesa e construir políticas públicas que incentivem a diversidade e
pluralidade informativas e culturais, conforme apontam recentes avanços
na América Latina. Neste sentido, a Conferência Nacional de
Comunicação, antiga demanda dos movimentos sociais, pode ser uma
alavanca. Além de envolver amplos setores da sociedade neste debate,
num processo pedagógico sem precedentes na história, ela pode propor
medidas concretas que coíbam a ditadura midiática.
Várias
entidades progressistas estão inseridas nesta luta. O Fórum Nacional
pela Democratização da Comunicação (FNDC), criado em 1991, nasceu das
mobilizações por avanços na Constituição de 1988 e agrega várias
entidades [1]. O Coletivo Intervozes, fundado em 2003, reúne militantes
voluntários com reconhecida capacidade de elaboração. Já o Fórum de
Mídia Livre, lançado em março de 2008, articula jornalistas, acadêmicos
e veículos progressistas. A Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e
a Federação de Trabalhadores em Empresas de Rádio e Televisão (Fitert)
não limitam sua atuação à defesa dos interesses corporativos.
Destacam-se, ainda, a Associação Brasileira das Rádios Comunitárias
(Abraço) e a Associação Mundial das Rádios Comunitárias (Amarc), entre
outras organizações que priorizam a luta pela democratização da
comunicação.
Os partidos de esquerda também estão se dando
conta da importância desta frente de atuação. O PT, que sempre contou
com renomados intelectuais da área, realizou em 2008 sua 1ª Conferência
Nacional de Comunicação e apontou os caminhos para uma mídia
democrática [2]. Já o PCdoB aprovou, em novembro de 2007, resolução
específica com propostas concretas para o setor [3]. “A luta pela
democratização da mídia faz parte da jornada pela ampliação da
democracia como forma de alavancar a própria luta pela emancipação dos
trabalhadores”, explica Renato Rabelo, presidente do PCdoB. No caso do
PSB, vale citar a corajosa ação da deputada Luiza Erundina; já no PSOL,
o deputado Ivan Valente se destaca por suas denúncias das manipulações
midiáticas.
Há consenso entre estas forças políticas e sociais
que não basta somente o diagnóstico sobre os efeitos nocivos da mídia
hegemônica. Que ela não serve aos anseios dos trabalhadores, a história
comprova de maneira cabal. Que ela é altamente concentrada e
manipuladora, os fatos também evidenciam. Mais do que diagnosticar, é
urgente avançar na formulação de propostas concretas que visem superar
esta deformação na sociedade. Neste esforço, algumas proposições
adquirem força catalisadora, capaz de unir amplos setores na luta pela
democratização da comunicação. Na seqüência, apresento algumas delas,
não como pacote fechado, mas como um roteiro de reflexão.
1- Fortalecer a radiodifusão pública
Como
descrito no terceiro capítulo, a radiodifusão brasileira adotou o
modelo privado made in EUA, diferentemente de várias nações nas quais a
rede pública tem forte influência. O caso mais famoso é o da BBC de
Londres, que se projetou na II Guerra Mundial, é gerida por um conselho
autônomo e produz programas de qualidade [4]. Na França, quatro redes
integram o seu sistema público. Na Alemanha, ARD e ZDF têm 14 emissoras
locais e o seu conselho, com 77 membros, reúne partidos e movimentos
sociais. Mesmo nos EUA, a PBS possui um conselho independente com 27
membros e congrega 354 retransmissoras. Já a APT, segunda maior rede
pública do país, tem um orçamento de US$ 2 bilhões e retransmite a sua
programação para 356 emissoras locais.
No Brasil, o modelo
público nunca vingou. A única iniciativa mais ousada neste campo
ocorreu no governo de Getúlio Vargas com a criação da Rádio Nacional,
que teve expressiva audiência. O espectro eletromagnético, um bem
público e finito, tornou-se um bem privado dos barões da mídia,
autênticos “latifundiários do ar”. No caso da TV, o setor privado detém
cerca de 80% das emissoras, 90% da audiência e 95% das receitas
publicitárias. Principal veículo de comunicação de massas, sua
influência na sociedade é arrasadora. Censo do Ibope de 2005 revelou
que 93,1% dos domicílios no país tinham aparelhos de televisão, número
superior aos lares com geladeiras. Apontou ainda que 81% dos
brasileiros assistem TV diariamente, passando 3,9 horas diárias, em
média, presos às telinhas.
Fruto do ascenso democrático, o
artigo 223 da Constituição de 1988 fixou a complementaridade dos
sistemas privado, público e estatal. Na prática, porém, nunca houve
investimento nos setores não comerciais. Nos anos do neoliberalismo,
ainda houve o desmanche do pouco que existia. Em 1995, com a aprovação
da Lei da TV a Cabo, as redes privadas foram obrigadas a reservar cinco
canais estaduais para o uso do Executivo, Legislativo, Judiciário, um
canal comunitário e outro universitário. Mesmo assim, eles padecem da
falta de recursos e foram excluídos da TV aberta. “O espaço conquistado
está esvaziado, falido, pouco qualificado ou mesmo reproduzindo a
lógica mercantil das grandes emissoras” [5].
Só após sofrer
brutal bombardeio midiático na eleição de 2006, o presidente Lula
decidiu investir na construção de uma rede pública nacional de
televisão e rádio. A criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC),
que gerencia a TV Brasil, oito emissoras de rádio e uma agência
noticiosa, sinalizou uma mudança de postura do governo. Inaugurada em
dezembro de 2007, a TV Brasil dá os primeiros passos na construção de
uma emissora sem fins lucrativos. Seu conselho curador é presidido pelo
economista Luiz Gonzaga Belluzzo; já sua ouvidoria, dirigida pelo
jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, é um mecanismo de fiscalização da
sociedade. Ela também constrói a sua própria rede nacional,
fortalecendo as estruturas de 95 emissoras estaduais.
Exatamente
por seu papel democratizante, a EBC sofre o cerco dos donos da mídia e
ainda corre riscos. Tudo é feito para limitar o seu alcance e asfixiar
seu financiamento. Antes mesmo de ser lançada, ela foi alvo de intensa
oposição. A Folha de S.Paulo, por exemplo, publicou uma série de
artigos para desqualificá-la e seu editorial arrematou: “Lula e o PT
querem deixar sua marca particular no telecoronelismo criando um canal
do Executivo; a proposta é descabida” [6]. Os ataques visaram confundir
os conceitos entre rede estatal e pública, e contaram com a descarada
ajuda do ministro Hélio Costa, ex-funcionário da TV Globo e porta-voz
dos radiodifusores [7].
A EBC é uma conquista das forças
progressistas na luta contra a ditadura midiática. Ela deve ser
fortalecida e aperfeiçoada. Isto não a exime dos problemas, que
decorrem da sua própria origem conflituosa no interior do governo e de
impasses no seu projeto editorial, entre outras lacunas. Os seus
recursos são escassos, menos de 5% na comparação com a receita da Rede
Globo, e a TV Brasil sequer é transmitida em canal aberto. Seu conselho
curador, indicado pelo presidente Lula, não contempla a diversidade dos
movimentos sociais. Estes e outros problemas comprometem a sua
autonomia de gestão e de financiamento, marcas que distinguem a rede
pública da estatal, e dificultam que ela tenha maior visibilidade na
sociedade. Mudanças são necessários e urgentes.
As propostas
unitárias apresentadas pelos movimentos sociais no 1º Fórum de TVs
Públicas, em maio de 2007, continuam atuais: instalação de um “conselho
representativo, plural e autônomo, com maioria da sociedade civil, como
instância decisória”; “igualdade de participação e respeito à
diversidade (regional, mulheres, negros) no seu conselho”; “fomento à
produção independente, ampliando a presença desses conteúdos na sua
grade de programação”; maior disponibilidade de “verbas do orçamento
público no seu financiamento e proibição da publicidade comercial, mas
garantido as produções compartilhadas, o apoio cultural e a publicidade
institucional”; “que os canais públicos, que hoje são garantidos pela
Lei do Cabo, estejam em sinal aberto”.
2- Revisar os critérios das concessões
Desde
o início das transmissões de rádio, em 1922, e de televisão, nos anos
1950, o processo de concessão de outorgas às emissoras sempre foi
influenciado pelo poder econômico dos donos da mídia e por suas
relações promíscuas com o Estado. Concedidas sem qualquer critério
objetivo, as outorgas beneficiaram os mesmos grupos empresariais, o que
reforçou a propriedade cruzada e a concentração no setor. Nesta longa
trajetória monopolista, as redes privadas desrespeitaram as tímidas
legislações existentes. Na prática, os barões da mídia exercem uma
autêntica ditadura midiática, ficando acima das leis, das normas
constitucionais e do próprio Estado de Direito.
A Constituição
de 1988, por exemplo, proíbe a formação dos monopólios, exige a
produção de conteúdos regionais, obriga que as emissoras tenham
finalidades educativas, culturais e artísticas e determina que elas
expressem a diversidade de pensamento na sociedade. Como nunca foram
regulamentados, estes princípios progressistas viraram letra morta. O
atual processo de outorga e de renovação das concessões, com prazo de
15 anos para as TVs e de dez anos para as rádios, é uma verdadeira
caixa-preta. A sociedade não exerce qualquer controle sobre este bem
público. O Congresso Nacional, que a partir da Constituição de 1988
virou co-responsável pelas concessões e renovações, não cumpre seu
papel, submetendo-se à pressão e chantagem dos barões da mídia.
Qualquer
questionamento a estas distorções é tachado como “atentado à liberdade
de imprensa” pela mídia hegemônica. Ela omite que vários países exercem
o direito democrático, inclusive, de não renovar concessões que ferem
sua legislação. Até os EUA, nação badalada pela mídia servil, controlam
os seus meios de comunicação de massas. A Administração Federal de
Comunicações (FCC) cancelou 141 concessões de rádio e TV entre 1934 e
1987. Em 40 desses casos, ela nem esperou que expirasse o prazo da
concessão. Já o governo britânico revogou a licença da OneTV, em agosto
de 2006; da StarDate, em novembro de 2006; e do canal de televendas
Auctionword, em dezembro de 2006. A Espanha revogou, em julho de 2005,
a concessão da TV Católica. E a França cancelou a licença da TF1, em
dezembro de 2005, por ela ter negado o Holocausto.
Na defesa
da democracia e da autêntica liberdade de expressão, o país necessita
ser mais rigoroso na análise das concessões e renovações das outorgas.
É preciso exigir o cumprimento das normas constitucionais e das leis
vigentes. Várias redes privadas desrespeitam o limite mínimo de tempo
de 5% para o jornalismo e máximo de 25% para a publicidade. Ainda
veiculam merchandising, o comercial disfarçado, o que vetado pelo
Código de Defesa do Consumidor. A maioria não exibe o conteúdo
educativo exigido pelo Constituição; quando exibe é em horários de
baixa audiência. O lobby da mídia também sabotou a classificação
indicativa, medida essencial para o resguardo do Estatuto da Criança e
dos Adolescentes. Num desrespeito à legislação, várias emissoras de
rádio e televisão são dirigidas por “laranjas” de políticos com
mandato.
Diante destes e outros abusos, é inadmissível que as
outorgas e renovações sejam dadas de forma automática, sem consulta à
sociedade. Em vários países existem ouvidorias públicas para receber
críticas e analisar as concessões; muitos promovem audiências sobre o
tema. Em casos extremos, diante do desrespeito às leis, vários governos
simplesmente revogam as concessões. A não renovação é um ato
democrático, como admite a União Internacional das Telecomunicações
(UIT), que “reconhece em toda sua amplitude o direito soberano de cada
Estado de regulamentar o setor, devido à importância crescente das
telecomunicações na salvaguarda da paz e do desenvolvimento econômico e
social” [8].
3- Rever os critérios da publicidade oficial
A
publicidade é a principal fonte de recursos da mídia hegemônica. O
faturamento com anúncios publicitários, que superou R$ 21,4 bilhões em
2008, garante os investimentos neste setor de alta tecnologia e os
lucros dos empresários, reforçando os impérios midiáticos. Nada é dado
de graça, como costuma tergiversar a Associação Brasileira de Rádio e
Televisão (Abert) para se contrapor ao controle público. A exibição
“gratuita” do conteúdo é paga pela publicidade e os altos custos de
produção e veiculação são repassados ao preço da mercadoria. Além de
seduzir o consumidor, o anúncio cumpre o papel ideológico de “vender”
um estilo de vida, individualista e consumista.
Para o
sociólogo Pedro Hurtado, “a publicidade, à margem da sua finalidade
comercial, é pura e dura propaganda do modo de vida e de pensamento
inerente à ideologia social predominante na atualidade: o
consumismo-capitalismo. A publicidade não apenas vende produtos, mas
também impõe um modo de vida, valores morais e culturais, códigos
simbólicos e, em definitivo, uma ideologia... O consumismo é uma forma
de pensar segundo a qual o sentido da vida consiste em comprar objetos
e serviços. Esta forma de pensar se converte na principal ideologia que
sustenta o sistema capitalista” [9].
Se a correlação de forças
na sociedade não possibilita, ainda, adotar medidas mais rigorosas de
controle da publicidade comercial, o atual estágio das lutas sociais no
país já permite, ao menos, rediscutir os critérios de distribuição das
verbas publicitárias dos governos. Afinal, este dinheiro é oriundo dos
tributos da sociedade. O montante de recursos é expressivo e serve para
“alimentar cobras”. Os barões da mídia que abocanham estes recursos
públicos são os mesmos que pregam golpes, desestabilizam governos,
criminalizam as lutas dos trabalhadores e idolatram o “deus-mercado”. A
publicidade oficial reforça a monopolização do setor, quando poderia
servir para estimular a diversidade e pluralidade informativas numa
sociedade mais democrática.
De forma discreta, o governo Lula
promoveu algumas mudanças nesta área. Ele descentralizou a distribuição
das verbas oficiais. “Os comerciais do Palácio do Planalto atingiram no
ano passado 5.297 veículos de comunicação. O número representa uma alta
de 961% sobre os 499 meios que recebiam dinheiro para divulgar
propaganda do governo Lula em 2003, quando o petista tomou posse”,
resmungou a Folha [10]. A descentralização da publicidade oficial
diminuiu o montante abocanhado por poucos barões da mídia. Irritados,
eles agora criticam a rotulada “bolsa-mídia de Lula”, afirmando que ela
serve para “alimentar a rede chapa-branca do governo” [11].
Apesar
da gritaria, a administração direta e indireta é uma das maiores
anunciantes do país. Os gastos publicitários dos governos FHC e Lula
oscilaram entre R$ 900 milhões e R$ 1,2 bilhão. O pico de FHC foi em
2001, com R$ 1,114 bilhão em anúncios; em 2008, o governo Lula investiu
R$ 1,027 bilhão. Isto sem contabilizar os custos da produção dos
comerciais e os gastos com os patrocínios nas áreas de esporte, cultura
e outras – que atingiu R$ 918 milhões em 2008. A soma de publicidade e
patrocínio injetou quase R$ 2 bilhões na mídia. Na comparação com a
iniciativa privada, o maior anunciante em 2008 foi a Casas Bahia, com
R$ 3,2 bilhões; o segundo lugar ficou com a Unilever, dona das marcas
Kibon, Omo, Dove e Rexona, que gastou R$ 1,75 bilhão.
Quase a
totalidade da publicidade oficial engorda os bolsos dos barões da
mídia. O governo Lula nunca teve a coragem para investir em veículos
alternativos e estes estão à míngua. Até a revista Carta Capital, que
adota uma linha jornalística mais independente, sofre com esta tibieza,
como crítica Mino Carta [12]. A desculpa usada pelo governo é que ele
adota critérios mercadológicos, medidos pela audiência e tiragens. Com
esta postura aparentemente “neutra”, o governo reforça a monopolização
do setor. É urgente redefinir os critérios para a publicidade oficial.
Países como a Itália e a França adotam normas legais para incentivar a
diversidade e pluralidade informativas, barateando os custos de
impressão e garantindo cotas de publicidade para veículos alternativos.
O
Fórum de Mídia Livre defende o estabelecimento de critérios
democráticos e transparentes de distribuição dos recursos oficiais, e
não apenas a partir da reprodução da lógica mercadológica. “O Estado
não vende mercadoria, presta serviço publico. O critério de veiculação
não deve ser o da circulação, pois este está ligado à lógica da
audiência como mercadoria. A mídia comercial vende audiência, isto é,
circulação ou pontos de Ibope, remunerando seus fatores de produção em
função da receita que o anunciante lhe proporciona devido ao público
que pode atingir. Ora, o Estado não precisa se subordinar a tais
critérios. O Estado não vende nada, apenas presta contas, logo pode e
deve chegar ao cidadão através de muitos canais pelos quais o cidadão
se informa”, explica Marcos Dantas, professor da PUC/RJ e integrante da
coordenação do movimento [13].
4- Estimular a radiodifusão comunitária
A
radiodifusão comunitária é recente no país e já demonstrou o seu
potencial prático na luta pela democratização das comunicações. Ela dá
voz a quem não tem voz. Permite que as comunidades “excluídas”
expressem seus anseios e reivindicações, divulguem suas criações
culturais, prestem serviços à população. Essa experiência no Brasil
surgiu no início dos anos 1980, ainda na fase sombria da ditadura
militar, e só foi reconhecida legalmente em 1998 – na Bolívia, as
rádios comunitárias surgiram na década de 1950 no bojo das greves dos
mineiros; já no Chile, elas contribuíram para as vitórias da Unidade
Popular, a coalizão socialista de Salvador Allende.
Temendo a
sua concorrência, a radiodifusão comunitária é alvo da fúria da mídia
hegemônica. Já os governos, sob pressão dos empresários, investem para
criminalizá-la. O governo Lula foi até mais realista do que o rei,
batendo recorde de perseguição. Segundo pesquisa da Abraço, de 2002 a
2007, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Polícia
Federal fecharam mais de 15 mil rádios comunitárias. “Também foram
abertos mais de 20 mil processos e cerca de 5 mil militantes foram
condenados judicialmente por tentar exercer o direito de livre
expressão”. O atual ministro das Comunicações, Helio Costa, dono da
rádio Sucesso FM, de Barbacena (MG), vetou todos os projetos de avanço
neste setor e “recrudesceu o fechamento das emissoras” [14].
Além
da repressão, tudo é feito para inviabilizar a legalização da
radiodifusão comunitária. A burocracia é infernal, com inúmeros
obstáculos administrativos. Estudo feito pelo Sistema de Controle de
Radiodifusão, em novembro de 2006, apontou a existência de 13.595
pedidos de rádios comunitárias acumulados no Ministério das
Comunicações – três vezes mais do que os 4.400 verificados no início de
2003. José Sóter, dirigente da Abraço, critica os burocratas do
ministério, “subservientes à Associação Brasileira de Emissoras de
Rádio e Televisão (Abert) e aos interesses dos monopólios da
comunicação, e a falta de gente que esteja comprometida com a
efetivação do serviço de radiodifusão comunitária como política pública
de comunicação” [15].
Estudo recente, no qual foram
pesquisadas 2.205 rádios comunitárias autorizadas pelo Ministério das
Comunicações (80,44% do total das legalizadas), ainda aponta para outro
grave perigo: o de que estas concessões sejam utilizadas como moeda de
barganha, servindo a políticos fisiológicos e credos religiosos. A
pesquisa indica que “a maioria das rádios comunitárias funciona no país
de forma ‘irregular’ porque não se logrou ser devidamente autorizada;
e, entre a minoria autorizada, mais da metade opera de forma ilegal.
Entre as 2.205 rádios pesquisadas, foi possível identificar vínculos
políticos em 1.106 – ou 50,2% delas... Há, também, um número
considerável de rádios com vínculos religiosos: 120 delas, ou 5,4% do
total”. Este deformação revelaria a existência de um “coronelismo
eletrônico de novo tipo, envolvendo as outorgas de rádios comunitárias”
[16].
Para complicar ainda mais o quadro, o setor passa por um
processo de mutação tecnológica para sua digitalização. O Ministério
das Comunicações, dominado pelos barões da mídia, já anunciou que
prefere o padrão digital dos EUA, o IBOC. Várias rádios foram
autorizadas a realizar testes com o novo padrão, criando um fato
consumado – sem qualquer consulta à sociedade. Além de ser propriedade
de uma única empresa, que cobrará elevados royalties, essa tecnologia
ocupa o espectro de forma predatória, fechando espaços para as
transmissões. Ele inclusive avança sobre fatias de freqüências ocupadas
pelo sistema analógico. Ao encarecer os equipamentos e restringir as
transmissões, esse padrão de digitalização poderá asfixiar a
radiodifusão comunitária no país.
Ao invés de ser criminalizada,
a radiodifusão comunitária deveria ser incentivada pelos poderes
públicos. Diante do golpismo da ditadura midiática, ela é uma arma
contra-hegemônica decisiva na defesa da democracia. O Estado deveria
baratear seus equipamentos e promover oficinas para capacitar os
radiodifusores. Mudanças na legislação deveriam garantir o aumento do
número de freqüências das emissoras e ampliar o limite da área e o
potencial de seu alcance – hoje restrito a um quilometro. A urgente
criação de um sistema brasileiro de rádio digital serviria para evitar
a monopolização do setor. Além disso, o poder público deveria garantir
os meios de sustentação financeira destes veículos, investindo na
construção de conteúdos de qualidade e plurais, e criar barreiras para
coibir sua apropriação por setores fisiológicos e para garantir o seu
caráter laico.
Para agilizar a legalização das rádios, a FNDC
propõe medidas simples, como a descentralização dos processos de
concessão, redução dos prazos de tramitação e zoneamento da
radiofreqüência para definir o canal e a potência para cada localidade.
Já a Amarc defende mudanças urgentes no marco regulatório. Entre outros
pontos, ela propõe que “as comunidades organizadas e entidades sem fins
lucrativos tenham direito a usar a tecnologia de radiodifusão
disponível, tanto analógica como digital”; que “os meios comunitários
tenham assegurada a sua sustentabilidade econômica, independência e
desenvolvimento”, por meio de patrocínios e publicidade oficial; e a
criação “de fundos públicos para assegurar o seu desenvolvimento” e de
“políticas públicas que desonerem ou reduzam o pagamento de taxas e
impostos, incluindo o uso de espectros” [17].
5- Investir na inclusão digital
Criada
nos EUA para fins militares e impulsionada pelos circuitos financeiros
do capitalismo, a internet tem transformado o mundo das comunicações.
Os mais otimistas chegam a falar numa “revolução”, que permitiria a
democratização da produção de conteúdos e da sua difusão. Outros, mais
cautelosos, apontam que a tendência monopolista do capital já se faz
sentir na centralização dos portais da internet, além do que o capital
imporá formas de controle. O projeto do senador tucano Eduardo Azeredo,
já batizado de AI-5 digital, confirma este perigo, a exemplo do ataques
desferidos pelo presidente-terrorista George Bush e pelo fascistóide
Nicolas Sarkozy na França.
Independentemente das tendências
futuras, a internet já provoca enormes abalos no setor. Vários jornais
e revistas perderam tiragens, faliram ou viraram online. A própria
linguagem da televisão é afetada por esta nova forma de comunicação,
mais ágil e interativa. Muitos protestos políticos, a partir da
manifestação contra a globalização neoliberal que paralisou Seattle em
1999, já são convocados por sítios e blogs progressistas. Manipulações
da mídia hegemônica são desnudadas na internet. De 1999 a 2006, mais de
47 milhões de blogs entraram no ar. Neles circulam 1,2 milhão de novos
artigos por dia, ou 50 mil por hora, escritos por cerca de 35 milhões
de pessoas.
Entusiasta da internet, Bernardo Kucinski afirma que
ela “é a maior revolução nas comunicações desde a invenção de
Gutenberg. Não admira que tenha reaberto uma nova era de encantamento
do ser humano com a comunicação e com a arte de escrever... Na
articulação das ONGs e dos movimentos sociais, a internet tem tido
papel decisivo, recuperando com grande vantagem o antigo papel
atribuído por Lênin à imprensa como ‘organizadora do movimento
operário’. Na era da globalização, ela se tornou uma organizadora da
cidadania, como expressa o Fórum Social Mundial. Este certamente não
teria existido sem a internet. Ela também deu viabilidade técnica ao
exercício da democracia direta e acesso direto do cidadão aos serviços
do Estado” [18].
Esta “essência libertária”, porém, pode ser
castrada pela exclusão digital, alerta Sérgio Amadeu, outro entusiasta
da internet. “Quanto custa se conectar à sociedade da informação? Para
acessar a internet, a rede mundial de computadores, é preciso pagar
mensalmente um provedor de acesso e o gasto com a conta telefônica.
Além disso, é preciso ter um computador que custa mais de mil reais. Em
um país com quase um terço da sociedade abaixo da linha da pobreza,
gastar algo em torno de 40 reais por mês pelo uso mínimo de conexão e
conta telefônica é impossível para a maioria da população. Essa é a
nova face da exclusão social”, explica didaticamente [19].
Para
superar este gargalo, ambos concordam que o Estado deve ter papel
pró-ativo. Não dá para deixar esta tecnologia nas mãos “invisíveis” do
deus-mercado. Entre outras medidas, é urgente regular o setor para
universalizar o acesso à internet, visando a sua gratuidade. O preço da
banda larga no país é dos mais altos no mundo devido à
desregulamentação das telecomunicações [20]. É preciso também uma
política mais ofensiva para baratear os aparelhos, inclusive superando
a “ditadura de Bill Gates” através do software livre. Segundo a PNAD de
2004, somente 16,6% das residências brasileiras tinham computadores.
Dados do Ibope de 2007 revelaram que apenas 14,1 milhões dos lares
tinham acesso à internet. “Devemos elevar a questão da inclusão digital
e da alfabetização tecnológica à condição de política pública”, defende
Sérgio Amadeu.
6- A urgência do novo marco regulatório
Estas
e outras mudanças colocam a urgência de um novo marco regulatório para
o setor. A atual legislação é ultrapassada, datada de 1962, carregada
de vícios e não dá respostas aos vertiginosos avanços tecnológicos na
área. Além de coibir os monopólios e regulamentar outros princípios da
Constituição de 1988, como o que garante o respeito à pluralidade de
opiniões, a nova legislação deve enfrentar os desafios do futuro. O
processo de convergência digital, no qual as corporações multinacionais
avançam sobre a mídia, torna este debate ainda mais atual. Hoje é
preciso impor regras para evitar a desnacionalização do setor e para
garantir a produção e a cultura nacionais.
Apesar das
restrições do padrão japonês adotado pelo governo, a nova legislação
deve regular a implantação da TV e da rádio digital, protegendo o
conteúdo nacional e explorando seu potencial na promoção da diversidade
e da inclusão social. Ela não pode depender do resultado da disputa
entre as operadoras de telefonia e os barões da mídia. “No bojo da
convergência tecnológica, o instinto de sobrevivência dos
radiodifusores e a ânsia pela entrada no mercado do conteúdo
audiovisual das chamadas teles deverão ser a força motriz da mudança na
legislação... É preciso garantir que o campo não seja ocupado apenas
pela polarização radiodifusores x teles, mas pelo conjunto dos atores
que tem propostas para a reformulação legal”, alerta Jonas Valente [21).
O
novo marco regulatório deve fixar políticas públicas que garantam o
acesso da população aos avanços tecnológicos. O Brasil ainda está muito
atrasado neste campo, seja no acesso à internet, às salas de exibição
de cinema ou mesmo à telefonia. “Em 1997, o numero de telefones por 100
habitantes era de 11,7%; em 2004, passou para 29%. Apesar de a
telefonia chegar praticamente a todos os 5.484 municípios, nos 5 mil
mais pobres ela é a mesma de antes da privatização; 11% ou 7,5 milhões
de linhas... Assim, grandes parcelas da população estão excluídas dos
avanços tecnológicos. Esse quadro, já amplamente diagnosticado pelo
governo Lula, impõe a necessidade de um novo modelo institucional”, que
garanta o “adequado equilíbrio entre os sistemas privado, público e
estatal” e evite “a concentração da propriedade”, propõe Israel Bayma
[22].
A nova legislação também deveria fixar mecanismos
democráticos de controle social dos meios de comunicação. Ignacio
Ramonet, diretor do jornal Le Monde Diplomatique, defende a criação de
observatórios de mídia nas escolas e espaços públicos para monitorar o
que é divulgado. “A informação, como os alimentos, está contaminada.
Envenena o espírito, polui nossos cérebros, nos manipula, nos intoxica,
tenta instilar em nosso inconsciente idéias que não são nossas”. Daí a
urgência de um “quinto poder” fiscalizador [23]. No mesmo rumo, é
preciso reativar o Conselho de Comunicação Social, previsto na
Constituição, mas que está esvaziado. Há ainda a proposta dos
sindicatos de jornalistas da criação dos conselhos de redação, como
instrumento de luta da categoria e também como contraponto à
manipulação, à censura e à pressão dos donos da mídia.
Como
conclui Marcos Dantas, a comunicação passa por aceleradas mudanças. Em
curto espaço de tempo, nada será como antes neste setor. A televisão,
por exemplo, “não será apenas esta que temos: aberta, unidirecional,
oferecida por grandes grupos empresariais e sustentadas pela grande
publicidade. A TV poderá ser também local ou comunitária, via
internet”. O rumo das mudanças dependerá da correlação de forças na
sociedade e da construção de um novo marco regulatório e legal. “Na
verdade, o capitalismo desenvolveu essas tecnologias e vai moldando os
seus usos, ao seu gosto. Nada impede, porém, que o povo trabalhador
possa disputá-las, delas se apropriar e a elas dar novos e mais
democráticos rumos” [24].
NOTAS
1- James Görgen. “Como domar essa tal de mídia?”. Cartilha nº 1 da FNDC.
2- Caderno da 1ª Conferência Nacional de Comunicação. Diretório Nacional do PT, abril de 2008.
3- “O PCdoB e a luta pela democratização da mídia”. Resolução da 8ª reunião do Comitê Central, outubro de 2007.
4- Laurindo Lalo Leal Filho. Vozes de Londres. Memórias brasileiras da BBC. Edusp, SP, 2008.
5-
Valério Cruz Brittos e Rafael Cavalcanti Barreto. “O potencial
democrático e sua redução à mercadoria”. Observatório da Imprensa,
14/10/08.
6- “Aparelho na TV”. Editorial da Folha de S.Paulo, 19/03/07.
7- “TV do Executivo: uma ação contra o Fórum de TVs Públicas”. Intervozes, março de 2007.
8- Ernesto Carmona. “Salvador Allende se revolve na tumba”. Correio da Cidadania, 12/07/07.
9- Pedro Hurtado. “Prohibir la publicidad en los medios de comunicación de masas”. Rebelion, 20/12/08.
10- Fernando Rodrigues. “Propaganda de Lula chega a 5.297 veículos”. Folha de S.Paulo, 31/05/09.
11- Fernando de Barros e Silva. “O bolsa-mídia de Lula”. Folha de S.Paulo, 01/06/09.
12- Mino Carta. “A vitória de Lula é a derrota da mídia”. Entrevista para o sítio Fazendo Media, 03/11/06.
13-
Jonas Valente. “Fórum lança manifesto em defesa do fortalecimento da
mídia livre”. Observatório do Direito à Comunicação, 24/10/08.
14- Gustavo Gindre. “Os rumos do Ministério das Comunicações”. Fazendo Media, 27/11/06.
15- Laura Schenkel. “Governo acumula 14 mil pedidos de abertura de rádios comunitárias”. Boletim da FNDC, 09/12/06.
16- Venício A. de Lima e Cristiano Aguiar Lopes. “Rádios Comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)”.
17- “Audiência discute padrão para rádio e televisão comunitária”. Agência Adital, 27/10/09.
18- Bernardo Kucinski. Jornalismo na era virtual. Editoras Perseu Abramo e Unesp, SP, 2005.
19- Sérgio Amadeu da Silveira. Exclusão digital. Editora Perseu Abramo, SP, 2005.
20- Elvira Lobato. “Disputa de teles distorce preço da internet”. Folha de S.Paulo, 17/08/08.
21- Jonas Valente. “Lei Geral é a bola da vez, afirmam especialista do setor”. Carta Maior, 23/03/07.
22- Israel Bayma. “Uma proposta para a construção democrática da lei geral de comunicação eletrônica”. 02/08/06.
23- Ignacio Ramonet. “O quinto poder”. Caminhos para uma comunicação democrática. Jornal Le Monde Diplomatique, SP, 2007.
24- Marcos Dantas. Uma agenda democrática para as comunicações brasileiras. Cadernos da Fisenge, RJ, 2008.
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Extraído do quinto e último capítulo do livro "A ditadura da mídia",
publicado pela Associação Vermelho e Editora Anita Garibaldi. Para
adquirir seu exemplar, entrar em contato com Eliana Ada no endereço
eletrônico - livro@vermelho.org.br