Carnaval espiritual |
Escrito por Frei Betto - Correio da Cidadania | |
Neste Carnaval anseio por folias interiores, de maravilhas
indescritíveis, de sinuosos alaridos, de magnificências a dispensar
ruídos e palavras. Quero toda a avenida regida por inequívoco silêncio,
o baile imponderável em gestos rituais, a euforia estampada em cada
sorriso.
Rasgarei a fantasia de minhas pretensões e, despido de hipocrisias,
deixarei meu eu mais solidário desfilar alegre pelas recônditas
passarelas de minha alma.
Fecharei os ouvidos à estridência dos apitos e, mente alerta,
escutarei o ressoar melódico do mais íntimo de mim mesmo. Deixarei cair
as máscaras do ego e, nas alamedas da transparência, farei desfilar,
soberba, a penúria de minha condição humana.
Aplaudirei os sambistas com fogo nos pés e as mulatas eletrizadas
pelo ritmo da batucada. Mas não me deixarei arrastar pelo bloco da
concupiscência. Inebriado pelo ritmo agônico da cuíca, serei o mais
iconoclasta dos discípulos de Momo, recolhido ao vazio de minha própria
imaginação.
Neste Carnaval serei figurante na escola da irreverência e desfilarei
pelas ruas meu incontido solipsismo, até cessar a bateria que faz
dançar os fantasmas que me povoam. Envolto na desfantasia do real,
atirarei confetes aos foliões e perseguirei os vôos das serpentinas
para que impregnem de colorido as diatribes de meu ceticismo.
No estertor da madrugada, farei ébrias confidências à Colombina e,
Arlequim apaixonado, ofertarei as pétalas que me recobrem o coração.
Não porei olhos no desfile da insensatez, nem abrirei alas à luxúria do
moralismo. Quando a porta-bandeira desfraldar encantos, ficarei
ajoelhado na ala das baianas para reverenciar o Almirante Negro.
Ao eco dos tamborins, esperarei baixar a sofreguidão que me assalta,
buscarei a euforia do espírito no avesso de todas as minhas crenças,
exibirei em carros alegóricos as íngremes ladeiras da montanha dos sete
patamares.
Darei vivas à vida severina, riscarei Pasárgada de meu mapa e, ainda
que não me chame Raimundo, farei da rima solução de tantos impasses
nesse devasso mundo. Expulsarei de meu camarote todos os incrédulos do
Pai Nosso cegos aos direitos do pão deles.
Revestido de inconclusas alegorias, sairei no cordão das premonições
equivocadas e, vestido de Pierrô, aguardarei sentado na esquina que a
noite se dissolva em epifânica aurora.
Ao passar o corso da incompletude, abrirei as gaiolas da compaixão para
ver o céu coberto pela revoada de anjos. Trocarei as marchinhas por
aleluias e encharcarei de perfume os monges voláteis incrustados em
minhas imprudências.
Olhos fixos no esplendor das batucadas siderais, contemplarei o desfile
fulgurante dos astros na Via Láctea. Verei o sol, mestre-sala,
inflamar-se rubro à dança elíptica da cabrocha Terra. Se Deus der as
caras, festejarei a beatífica apoteose.
No cortejo dos Filhos de Gandhy, evocarei os orixás de todas as crenças
para que a paz se irradie sobeja. Do alto do trio elétrico, puxarei o
canto devocional de quem faz da vida a arte de semear estrelas.
Entoado o alusivo, darei o grito da paz, pronto a fazer da comissão
de frente o prenúncio do inefável. No reverso do verso, cunharei
promissoras notícias e, no quesito harmonia, farei a víbora e o
cordeiro beberem da mesma fonte.
Meu enredo terá a simplicidade de um haicai, a imponência de um
poema épico, a beleza das histórias recontadas às crianças. De
adereços, o mínimo: a felicidade de quem pisa os astros distraído.
Farei da nudez a mais pura revelação de todas as virtudes; assim,
ninguém terá vergonha de mostrar o que Deus não teve de criar, e a
culpa será redimida pelo amor infindo. A rainha da bateria virá tão
bela quanto uma vitória-régia pousada numa lagoa despudoramente
límpida. Sua beleza interior suscitará assombro.
A evolução da escola culminará em revolução: a fantasia se fará
realidade assim como o sertão há de vir amar e o mar de ser tão
pellegrinamente pão do espírito.
Neste Carnaval não haverei de me embriagar de etílicos prazeres nem
me deixarei arrastar pelos clóvis a disseminar o medo entre alegrias.
Irei aos bailes rituais e me submeterei às libações subjetivas,
ofertarei ao Mistério cálices de clarividências e iluminuras gravadas
em hóstias.
Enclausurado na comunhão trinitária, ingressarei na festa que se faz de
fé e na qual toda esperança extravasa no amor que não conhece dor.
Então a palavra se fará verbo, o verbo, carne, e a carne será
transubstanciada em festival perene – Carnaval.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de "O
amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade" (Agir), entre
outros livros – http://www.freibetto.org/
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