Auditoria aponta que governos de SP, DF, MG e RS usaram recursos do
SUS para fazer ajuste fiscal
Leandro Fortes na
Carta Capital
Sem alarde e com
um grupo reduzido de técnicos, coube a um pequeno e organizado órgão de
terceiro escalão do Ministério da Saúde, o Departamento Nacional de
Auditorias do Sistema Único de Saúde (Denasus), descobrir um recorrente
crime cometido contra a saúde pública no Brasil. Em três dos mais
desenvolvidos e ricos estados do País, São Paulo, Minas Gerais e Rio
Grande do Sul, todos governados pelo PSDB, e no Distrito Federal,
durante a gestão do DEM, os recursos do SUS têm sido aplicados, ao longo
dos últimos quatro anos, no mercado financeiro.
A manobra
serviu aparentemente para incrementar programas estaduais- de choques de
gestão, como manda a cartilha liberal, e políticas de déficit zero, em
detrimento do atendimento a uma população estimada em 74,8 milhões de
habitantes. O Denasus listou ainda uma série de exemplos de desrespeito à
Constituição Federal, a normas do Ministério da Saúde e de utilização
ilegal de verbas do SUS em outras áreas de governo. Ao todo, o prejuízo
gerado aos sistemas de saúde desses estados passa de 6,5 bilhões de
reais, sem falar nas consequências para seus usuários, justamente os
brasileiros mais pobres.
As auditorias, realizadas nos 26
estados e no DF, foram iniciadas no fim de março de 2009 e entregues ao
ministro da Saúde, José Gomes Temporão, em 10 de janeiro deste ano. Ao
todo, cinco equipes do Denasus percorreram o País para cruzar dados
contábeis e fiscais com indicadores de saúde. A intenção era saber
quanto cada estado recebeu do SUS e, principalmente, o que fez com os
recursos federais. Na maioria das unidades visitadas, foi constatado o
não cumprimento da Emenda Constitucional nº 29, de 2000, que obriga a
aplicação em saúde de 12% da receita líquida de todos os impostos
estaduais. Essa legislação ainda precisa ser regulamentada.
Ao
analisar as contas, os técnicos ficaram surpresos com o volume de
recursos federais do SUS aplicados no mercado financeiro, de forma
cumulativa, ou seja, em longos períodos. Legalmente, o gestor dos
recursos é, inclusive, estimulado a fazer esse tipo de aplicação, desde
que antes dos prazos de utilização da verba, coisa de, no máximo, 90
dias. Em Alagoas, governado pelo também tucano Teotônio Vilela Filho, o
Denasus constatou operações semelhantes, mas sem nenhum prejuízo aos
usuários do SUS. Nos casos mais graves, foram detectadas, porém,
transferências antigas de recursos manipulados, irregularmente, em
contas únicas ligadas a secretarias da Fazenda. Pela legislação em
vigor, cada área do SUS deve ter uma conta específica, fiscalizada pelos
Conselhos Estaduais de Saúde, sob gestão da Secretaria da Saúde do
estado.
O primeiro caso a ser descoberto foi o do Distrito
Federal, em março de 2009, graças a uma análise preliminar nas contas do
setor de farmácia básica, foco original das auditorias. No DF, havia
acúmulo de recursos repassados pelo Ministério da Saúde desde 2006,
ainda nas gestões dos governadores Joaquim Roriz, então do PMDB, e Maria
de Lourdes Abadia, do PSDB. No governo do DEM, em vez de investir o
dinheiro do SUS no sistema de atendimento, o ex-secretário da Saúde
local Augusto Carvalho aplicou tudo em Certificados de Depósitos
Bancários (CDBs). Em março do ano passado, essa aplicação somava 238,4
milhões de reais. Parte desse dinheiro, segundo investiga o Ministério
Público Federal, pode ter sido usada no megaesquema de corrupção que
resultou no afastamento e na prisão do governador José Roberto Arruda.
Essa
constatação deixou em alerta o Ministério da Saúde. As demais equipes
do Denasus, até então orientadas a analisar somente as contas dos anos
2006 e 2007, passaram a vasculhar os repasses federais do SUS feitos até
2009. Nem sempre com sucesso. De acordo com os relatórios, em alguns
estados como São Paulo e Minas os dados de aplicação de recursos do SUS
entre 2008 e 2009 não foram disponibilizados aos auditores, embora se
tenha constatado o uso do expediente nos dois primeiros anos auditados
(2006-2007). Na auditoria feita nas contas mineiras, o Denasus detectou,
em valores de dezembro de 2007, mais de 130 milhões de reais do SUS em
aplicações financeiras.
O Rio Grande do Sul foi o último estado a
ser auditado, após um adiamento de dois meses solicitado pelo
secretário da Saúde da governadora tucana Yeda Crusius, Osmar Terra, do
PMDB, mesmo partido do ministro Temporão. Terra alegou dificuldades para
enviar os dados porque o estado enfrentava a epidemia de gripe suína.
Em agosto, quando a equipe do Denasus finalmente desembarcou em Porto
Alegre, o secretário negou-se, de acordo com os auditores, a fornecer as
informações. Não permitiu sequer o protocolo na Secretaria da Saúde do
ofício de apresentação da equipe. A direção do órgão precisou recorrer
ao Ministério Público Federal para descobrir que o governo estadual
havia retido 164,7 milhões de recursos do SUS em aplicações financeiras
até junho de 2009.
O dinheiro, represado nas contas do governo
estadual, serviu para incrementar o programa de déficit zero da
governadora, praticamente único argumento usado por ela para se
contrapor à série de escândalos de corrupção que tem enfrentado nos
últimos dois anos. No início de fevereiro, o Conselho Estadual de Saúde
gaúcho decidiu acionar o Ministério Público Federal, o Tribunal de
Contas do Estado e a Assembleia Legislativa para apurar o destino tomado
pelo dinheiro do SUS desde 2006.
Ainda segundo o relatório, em
2007 o governo do Rio Grande do Sul, estado afetado atualmente por um
surto de dengue, destinou apenas 0,29% dos recursos para a vigilância
sanitária. Na outra ponta, incrivelmente, a vigilância epidemiológica
recebeu, ao longo do mesmo ano, exatos 400 reais do Tesouro estadual. No
caso da assistência farmacêutica, a situação ainda é pior: o setor não
recebeu um único centavo entre 2006 e 2007, conforme apuraram os
auditores do Denasus.
Com exceção do DF, onde a maioria das
aplicações com dinheiro do SUS foi feita com recursos de assistência
farmacêutica, a maior parte dos recursos retidos em São Paulo, Minas
Gerais e Rio Grande do Sul diz respeito às áreas de vigilância
epidemiológica e sanitária, aí incluído o programa de combate à Aids e
outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Mas também há dinheiro
do SUS no mercado financeiro desses três estados que deveria ter sido
utilizado em programas de gestão de saúde e capacitação de profissionais
do setor.
Informado sobre o teor das auditorias do Denasus, em
15 de fevereiro, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco
Batista Júnior, colocou o assunto em pauta, em Brasília, na terça-feira
23. Antes, pediu à Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do
Ministério da Saúde, à qual o Denasus é subordinado, para repassar o
teor das auditorias, em arquivo eletrônico, para todos os 48
conselheiros nacionais. Júnior quer que o Ministério da Saúde puna os
gestores que investiram dinheiro do SUS no mercado financeiro de forma
irregular. "Tem muita coisa errada mesmo."
No caso de São Paulo,
a descoberta dos auditores desmonta um discurso muito caro ao
governador José Serra, virtual candidato do PSDB à Presidência da
República, que costuma vender a imagem de ter sido o mais pródigo dos
ministros da Saúde do País, cargo ocupa-do por ele entre 1998 e 2000,
durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Segundo dados da auditoria
do Denasus, dos 77,8 milhões de reais do SUS aplicados no mercado
financeiro paulista, 39,1 milhões deveriam ter sido destinados a
programas de assistência farmacêutica, 12,2 milhões a programas de
gestão, 15,7 milhões à vigilância epidemiológica e 7,7 milhões ao
combate a DST/Aids, entre outros programas.
Ainda em São Paulo, o
Denasus constatou que os recursos federais do SUS, tanto os repassados
pelo governo federal como os que tratam da Emenda nº 29, são
movimentados na Conta Única do Estado, controlada pela Secretaria da
Fazenda. Os valores são transferidos imediatamente para a conta, depois
de depositados pelo ministério e pelo Fundo Nacional de Saúde (FNS), por
meio de Transferência Eletrônica de Dados (TED). "O problema da saúde
pública (em São Paulo) não é falta de recursos financeiros, e,
sim, de bons gerentes", registraram os auditores.
Pelos cálculos
do Ministério da Saúde, o governo paulista deixou de aplicar na saúde,
apenas nos dois exercícios analisados, um total de 2,1 bilhões de reais.
Destes, 1 bilhão, em 2006, e 1,1 bilhão, em 2007. Apesar de tudo,
Alckmin e Serra tiveram as contas aprovadas pelo Tribunal de Contas do
Estado. O mesmo fenômeno repetiu-se nas demais unidades onde se
constatou o uso de dinheiro do SUS no mercado financeiro. No mesmo
período, Minas Gerais deixou de aplicar 2,2 bilhões de reais, segundo o
Denasus. No Rio Grande do Sul, o prejuízo foi estimado em 2 bilhões de
reais.
CartaCapital solicitou esclarecimentos às
secretarias da Saúde do Distrito Federal, de São Paulo, de Minas Gerais e
do Rio Grande do Sul. Em Brasília, em meio a uma epidemia de dengue com
mais de 1,5 mil casos confirmados no fim de fevereiro, o secretário da
Saúde do DF, Joaquim Carlos Barros Neto, decidiu botar a mão no caixa.
Oriundo dos quadros técnicos da secretaria, ele foi indicado em dezembro
de 2009, ainda por Arruda, para assumir um cargo que ninguém mais
queria na capital federal. Há 15 dias, criou uma comissão técnica para,
segundo ele, garantir a destinação correta do dinheiro do SUS para as
áreas originalmente definidas. "Vamos gastar esse dinheiro todo e da
forma correta", afirma Barros Neto. "Não sei por que esses recursos
foram colocados no mercado financeiro."
O secretário da Saúde do
Rio Grande do Sul, Osmar Terra, afirma jamais ter negado atendimento ou
acesso à documentação solicitada pelo Denasus. Segundo Terra, foram os
técnicos do Ministério da Saúde que se recusaram a esperar o fim do
combate à gripe suí-na no estado e se apressaram na auditoria. Mesmo
assim, garante, a equipe de auditores foi recebida na Secretaria
Estadual da Saúde. De acordo com ele, o valor aplicado no mercado
financeiro encontrado pelos auditores, em 2009, é um "retrato do
momento" e nada tem a ver com o fluxo de caixa da secretaria. Terra
acusa o diretor do Denasus, Luís Bolzan, de ser militante político do PT
e, por isso, usar as auditorias para fazer oposição ao governo. "Neste
ano de eleição, vai ser daí para baixo", avalia.
Em nota enviada
à redação, a Secretaria da Saúde de Minas Gerais afirma estar
regularmente em dia com os instrumentos de planejamento do SUS. De
acordo com o texto, todos os recursos investidos no setor são
acompanhados e fiscalizados por controle social. A aplicação de recursos
do SUS no mercado financeiro, diz a nota, é um expediente "de ordem
legal e do necessário bom gerenciamento do recurso público". Lembra que
os recursos de portarias e convênios federais têm a obrigatoriedade
legal da aplicação no mercado financeiro dos recursos momentaneamente
disponíveis.
Também por meio de uma nota, a Secretaria da Saúde
de São Paulo refuta todas as afirmações constantes do relatório do
Denasus. Segundo o texto, ao contrário do que dizem os auditores, o
Conselho Estadual da Saúde fiscaliza e acompanha a execução orçamentária
e financeira da saúde no estado por meio da Comissão de Orçamento e
Finanças. Também afirma ser a secretaria a gestora dos recursos da
Saúde. Quanto ao investimento dos recursos financeiros, a secretaria
alega cumprir a lei, além das recomendações do Tribunal de Contas do
Estado. "As aplicações são referentes a recursos não utilizados de
imediato e que ficariam parados em conta corrente bancária." A
secretaria também garante ter dado acesso ao Denasus a todos os
documentos disponíveis no momento da auditoria.