Os recentes desenvolvimentos da questão nuclear iraniana fazem crer que o
objetivo dos EUA e seguidores europeus não seria apenas impedir que o
Irã possa produzir armas atômicas.
Basta analisar os argumentos contra o Irã e as declarações dos líderes
americanos. Alega-se que um Irã atômico seria uma ameaça terrível aos
países próximos, particularmente Israel, e à própria humanidade, pois se
trata de um "país irresponsável (rogue state)".
Embasando esta afirmação estariam as declarações de Ahmadinejad: "Israel
será varrido do mapa". Seria um risco desmedido consentir que alguém
com objetivos tão enlouquecidos contasse com armas atômicas para
realizá-los. Especialmente porque ele certamente não ficaria nisso.
Países sunitas (o Irã é xiita) como a Arábia Saudita, o Egito e o Kuwait
estariam sob ameaça de ataques estilo Hiroshima, caso não se
submetessem ao governo dos aiatolás.
Esta aterradora perspectiva peca porque sua premissa fundamental é
absolutamente questionável.
Segundo Juan Cole, professor de História do Oriente Médio e da Ásia do
Sul, da Universidade de Michigan, Ahmadinejad não foi corretamente
traduzido. O que ele disse teria sido um apelo para o fim do regime
sionista de Israel, mas não a remoção do povo judeu da Palestina...
Autoridades em língua farsi como Arash Nouruz, do The Mossadegh Project,
e especialistas do Middle East Media Research confirmam essa correção. A
qual, aliás, foi repetida pelo próprio Ahmadinejad que acrescentou: "O
Irã não pretende atacar Israel; o regime sionista cairá sozinho".
A mídia internacional e os líderes políticos ocidentais e israelenses
ignoraram completamente esses desmentidos. E vêm repetindo a tradução
errada da frase de Ahmadinejad como artigo de fé, que marcaria o Irã
irremediavelmente como "país irresponsável", portanto, capaz de lançar
bombas atômicas a seu bel prazer.
Sendo objetivo, Israel tem muito mais direito àquele adjetivo do que o
Irã. Afinal, enquanto o governo de Teerã envolveu-se apenas em uma
guerra, esta defensiva contra o Iraque de Saddam Hussein, os israelenses
têm um currículo invejável nessa área: invadiram e ocuparam o Líbano
várias vezes; atacaram e destruíram Gaza, praticando crimes contra os
direitos humanos e até contra a humanidade, conforme inquérito da ONU;
nos últimos anos vêm ameaçando repetidamente o Irã de bombardeios.
Os EUA não concordam com esse raciocínio. George Bush condenou a
política nuclear iraniana e deixou claro que poderia haver "opções
militares" contra ela, ignorando o próprio serviço secreto dos EUA, que
havia informado que o Irã tinha, desde 2003, abandonado o projeto de
armas nucleares. Graças a seu empenho, conseguiu da ONU duas rodadas de
sanções contra Teerã.
Embora sem negar o caráter suspeito do programa nuclear iraniano, Obama
tinha idéias diferentes. No vídeo, enviado ao povo iraniano em 21 de
março, ele afirmava: "Este processo não avançará com ameaças. Em
vez disso, buscamos acordos honestos e baseados em respeito mútuo".
Mas logo em julho, quando a repressão violenta dos manifestantes
contrários à reeleição de Ahmadinejad indignava o povo americano, ele
cedeu à pressão da opinião pública. Condenou pesadamente o governo
iraniano que respondeu no mesmo tom. E o "respeito mútuo" foi para o
espaço.
Embora a brutalidade da polícia e das milícias contra os opositores do
governo dos aiatolás fosse condenável, a verdade é que se tratava de uma
questão distinta do problema nuclear. Não deveria contaminar o
encaminhamento de uma solução diplomática.
Assim não entendeu o povo americano, cooptado por uma propaganda do
governo, que Larry Chin, do New York Times, considerou "estritamente
semelhante à da campanha de Hitler contra a Polônia".
Em situação semelhante, Nelson Mandela, recém-empossado na presidência
da União Sul-Africana, declarou que, se não fosse capaz de contestar
posições erradas da população, não mereceria governar.
Obama não foi capaz. Pensando em sua imagem e em futuras eleições,
misturou as coisas e trocou sua postura conciliadora face ao problema
nuclear do Irã pelas ameaças do governo Bush.
Já a partir desse mês, a atitude do governo Obama mudou. Ele soltou
Hillary Clinton pelo mundo para garantir que em hipótese nenhuma os EUA
deixariam o Irã possuir armas nucleares. Que sequer permitiriam que os
iranianos enriquecessem urânio mesmo sob supervisão total do AIEA
(Agência Internacional de Energia Atômica).
Apesar do clima tempestuoso, surgiu uma oportunidade de acordo em
reunião em Viena: o Irã enviaria seu urânio de baixo enriquecimento para
a França e a Rússia, onde ele seria enriquecido em grau maior para uso
pacífico. Mas, em outubro, o Irã acabou recusando. Não confiava na
França. Além de Sarkozy ter se mostrado um feroz inimigo, após a
revolução islâmica os franceses tinham se recusado a entregar urânio já
pago pelo governo anterior.
Aceitaria fazer a troca proposta, desde que fosse simultânea e em
território do Irã ou da Turquia.
Apesar de a Turquia guardar neutralidade entre as partes, EUA e
seguidores recusaram esta nova idéia in limine. Seria como eles
queriam ou nada feito.
De lá para cá, Obama, Hillary Clinton e outros menos votados vêm
cabalando votos no Conselho de Segurança da ONU para aprovar novas e
mais duras sanções. Repetem exaustivamente que Obama durante muito tempo
apelou para uma solução diplomática enquanto o Irã permaneceu
indiferente e irredutível. Agora, seria a hora das sanções.
Desta vez, destrutivas. Só para dar uma idéia: todos os países seriam
proibidos de vender gasolina ao Irã, que, apesar de grande produtor de
petróleo, precisa importar 40% para atender a suas necessidades.
Quanto à apregoada boa vontade do presidente americano, Wu,
representante chinês no Oriente Médio, observou que Obama deveria
apresentar medidas concretas em vez de limitar-se à retórica. O que não
deixa de ser verdade.
A objeção do presidente dos EUA à última proposta iraniana mostra que
ele mudou de novo. Voltou a pensar como seu antecessor. Bush se atinha à
lógica imperial. Não era aceitável a existência de uma potência no
Oriente Médio, rica em petróleo, bem armada e nada amigável, que
contestasse a hegemonia americana na região.
Já dissera Nicholas Burns, subsecretário de Estado, ao International
Herald Tribune, comentando o fornecimento de armas aos amigos da região:
"Este pacote de armas diz aos iranianos que os Estados Unidos são o
poder maior no Oriente Médio, continuarão a ser e não irão embora".
Em tempos de Bush, foi criado um programa que concedia 75 milhões de
dólares anuais a grupos oposicionistas iranianos. Inclusive ao movimento
terrorista Jundallah, segundo o respeitado cronista Seymour Hersh (New
Yorker, julho de 2008). Os repórteres investigativos Flynt e Hillary
Leverett afirmam que Obama nada fez para interromper estas ligações
perigosas.
Somente nos últimos anos, o Jundallah tem uma folha corrida de respeito:
ataque contra a comitiva do presidente Ahmadinejad; ataque a um ônibus,
matando 18 membros da Guarda Revolucionária; rapto e execução de 16
policiais, em 2007; explosão de carro bomba que matou quatro pessoas, em
2008; emboscada em 2009, que matou 12 policiais; no mesmo ano, ataque a
mesquita, com a morte de 25 pessoas; em outubro de 2009, ataque suicida
com homem bomba, matando 42 pessoas.
Continuando em sua cruzada, a Casa Branca pressionou os russos para
adiarem "sine die" a entrega de um sistema de defesa antimíssil
(já pronto), que tornaria suas instalações nucleares e cidades bastante
bem protegidas.
Só se pode entender esta atitude como uma precaução para enfraquecer as
defesas do Irã diante de futuros ataques aéreos dos EUA e/ou Israel.
Esta ação para deixar o Irã mais fácil de ser derrotado soma-se à
intolerância em aceitar qualquer outra proposta que não a de outubro, ao
apoio ao terrorismo do Jundallah, às repetidas declarações agressivas
de membros do governo e generais americanos e ao enorme esforço para
aprovar sanções desta vez capazes de causar danos realmente severos na
economia iraniana.
É certo que a China vetará estas sanções. No entanto, o Senado americano
já está cuidando de aprovar projetos proibindo os EUA de negociarem com
qualquer empresa americana ou estrangeira que mantenham laços
econômicos com o Irã.
Como nada demoverá o governo de Teerã de continuar seu programa nuclear,
seus adversários contam com as sanções para destruir a economia do país
e criar condições para uma revolta popular. Ou, em último caso, como
"todas as opções continuam sobre a mesa", um ataque
israelense-americano, talvez com participação européia, resolveria o
problema. Como foi feito no Iraque, resultaria na ocupação do país e,
posteriormente, na formação de um governo amigo.
Tal seria o projeto de Bush. Há indícios que poderia ser também o de
Obama...
Luiz Eça é jornalista.
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