O ensino público paulista sobreviverá?
O secretário de educação do Estado de
São Paulo, Paulo Renato de Sousa, está correto ao insistir em avaliar
professores por meio de provas teóricas, propostas para professores
temporários e também aos já concursados, para efeito de promoção na
carreira. Todavia, a presidente da APEOESP está também correta ao
lembrar que, para Paulo Renato, um dos principais problemas da educação
paulista é que “os professores são vítimas de um sistema de formação
docente que privilegia o teórico e o ideológico em detrimento do
conteúdo e da didática” e, sendo assim, é estranho que o governo, nas
provas realizadas, tenha insistido no plano exclusivamente teórico.
Desse modo, o que Maria Izabel Noronha, da APEOESP, aponta no discurso
de Paulo Renato é um erro de coerência entre o que ele diz que pensa e o
que ele faz. (Sousa, P.R.
Melhora
Sutil. JC, 04/03; Noronha, M. I.
Pela
melhora verdadeira da educação estadual. JC, 18/03)
Não penso que o problema de Paulo
Renato, quanto ao que importa objetivamente, que é a melhora do ensino
paulista, seja somente o de coerência. Um de seus erros centrais está na
sua concepção a respeito da formação dos professores. Seria uma loucura
acreditar que os estudantes de pedagogia que, enfim, irão ser os
futuros professores de parte considerável do Ensino Fundamental, tenham
uma sobrecarga de formação teórica. Paulo Renato parece não fazer a
menor idéia do que é um curso de pedagogia. Ele se baseia, muito
provavelmente, em estudos da direita política em educação, aqueles de
Eunice Durhan (
artigo
meu) e das ex-secretaria de Educação de S. Paulo, Maria Helena de
Castro, que insistem nessa idéia que, se fosse verdadeira, faria dos
professores
experts na discussão em filosofia, história e
sociologia da educação. Mas, sabemos, não é este o caso.
Até mesmo quem não cursou pedagogia sabe
bem que essa licenciatura é sobrecarregada de afazeres práticos, com
uma quantidade mínima de horas dedicada à leitura dos clássicos e de
apreço real ao “teórico”. Entre os cursos de Humanidades da universidade
brasileira, o curso de pedagogia é conhecido por ser o menos exigente
em termos de “leituras teóricas”. Aliás, a crítica geral do público
universitário, seja de professores ou de alunos, é exatamente nesse
sentido. Fala-se até em preconceito contra o estudante de pedagogia por
causa dessa sua pouca dedicação aos clássicos. Sendo assim, qual a
intenção de Paulo Renato ao dizer o que diz? Será que é puro
desconhecimento de sua parte? Ele que, como gosta de expor, já foi
secretário de Educação de São Paulo (governo Montoro), reitor da Unicamp
e ministro da Educação por oitos longos anos, não sabe de nada a
respeito do curso de pedagogia? Não creio.
Uma melhor leitura da frase de Paulo
Renato pode revelar, talvez, sua verdadeira intenção. Ele não diz
somente que a formação do professor é inflacionada teoricamente, ele
diz, também, “ideologicamente”. Ah! Eis aí o ponto. Sabendo que Paulo
Renato é alimentado por pesquisas com viés conservador, não é de todo
descabido conjecturar que ele não faz uma correta distinção entre o
teórico e o ideológico e, ao atacar o primeiro pode muito bem estar é
preocupado mesmo é com o que pensa ser o segundo termo. Como uma boa
parte da literatura pedagógica nossa, em termos bibliográficos, é
formada por textos de pensadores de esquerda (Paulo Freire à frente), é
provável que Paulo Renato esteja navegando nas águas da revista Veja.
Ele ataca a “teoria” porque no fundo quer tirar da formação do
professor o que verdadeiramente lhe incomoda, que é postura crítica de
nossa literatura pedagógica.
Será que Paulo Renato tem coragem de
assumir isso, publicamente, nos termos que a revista Veja, sua
promotora, faz de modo escancarado? Será que ele, de público, falaria
que quer ver livros de Paulo Freire fora do curso de pedagogia? E ele
pararia aí? Talvez Paulo Renato, uma vez encorajado a dizer isso, desse
até passos além e começasse a confessar o que outros, próximos a ele,
dizem descaradamente, que Rousseau, Dewey, Anísio Teixeira antes
atrapalhariam os professores que os ajudariam.
Aliás, já escrevi em livro (Filosofia
e história da educação brasileira. São Paulo-Barueri: Manole,
2008) que Paulo Renato faz parte do que chamei de Partido dos
Tecnocratas em Educação (PTE), que acredita que a única pesquisa não
ideológica em educação é a comprometida ideologicamente com a direita
política, e que se quer fazer passar por não ideológica à medida que se
recheia de estatísticas.
Até aqui, abordei a questão da formação
dos professores. Volto os olhos agora a outro tema enfocado na polêmica
entre Paulo Renato e Maria Izabel Noronha. Trata-se do problema central
quanto à qualidade do ensino paulista: os salários e as condições de
trabalho do professorado.
Maria Izabel de Noronha está correta
quando enfatiza que uma boa educação deve ser avaliada olhando para a
sociedade e vendo os cidadãos que ela produziu. Justamente os
americanos, que a tudo quantificam, fazem isso. Diante de um criminoso
ou diante do Presidente eles sempre querem saber a respeito da primeira
escola daquela pessoa, de sua primeira professora e coisas semelhantes.
Faz-se aí uma relação direta, até mesmo ingênua às vezes, a respeito de
quanto um cidadão é formado ou não pela escola. Creio que se nossa
sociedade pensasse dessa maneira, mesmo que ingenuamente, isso seria um
ganho para a escola. Todavia, a presidente da APEOESP não acerta quando
insiste que esse modo de avaliar é o único que realmente deve ser
levado adiante. O método de avaliação do secretário Paulo Renato, que é o
das provas individuais, está correto e é sim um modo de mensurar o
saber do professor. Com exames, o professor é incentivado a estudar.
Ainda que, em algumas avaliações, exista problema na preparação das
provas, não há dúvida que a época de concursos e provas é um período
muito útil na vida do professor. Depois que passa, ele próprio diz que
“valeu a pena”. Ora, mas se é assim, onde está o problema?
O problema conjuntural pode ser o da
qualidade da prova aplicada. Mas o problema estrutural, e é esse que
importa aqui, é que as provas são aplicadas aos professores enquanto
estes se mantém em condições extremamente desgastantes e infrutíferas e,
além disso, não são o real instrumento de promoção na carreira do
magistério. Ou seja, as provas são aplicadas em professores que estão
ganhando muito pouco, abaixo de qualquer outro trabalhador com os mesmos
anos de estudo, e isso é altamente desmotivador. Os salários são tão
aviltantes (7 reais a hora-aula!) que a própria condição de vida do
professor é afetada. Ele não se sente cidadão e, portanto, não vê como
poderia formar outros cidadãos. Não se pode querer aplicar uma política
que prevê provas para a promoção dos professores a partir de um patamar
zero de ganhos. É necessário que aqueles que vão se submeter às provas
promocionais estejam já em algum patamar digno, caso contrário não terão
força suficiente para galgar o primeiro degrau.
Se não bastasse isso, há ainda a
denúncia correta da presidente da APEOESP contra Paulo Renato, que diz
respeito ao modo como a promoção é feita: somente 20% dos professores
podem fazer a prova e, talvez, ficar esperando ter algum benefício
salarial advindo daí. Ora, 20% é muito pouco. Se 80% de uma categoria de
trabalhadores da educação não tem chance de promoção pelo único
critério escolhido pelo governador, é possível dizer que, neste caso, há
uma política educacional neoliberal vigente? Não! Isso não é uma
política neoliberal, como alguns da esquerda dizem. Uma política
neoliberal autêntica forçaria a produtividade individual e, para que
isso viesse a resultar em uma boa produtividade no conjunto, faria
questão de ver todos os que recebem salários produzindo ao máximo. Uma
política educacional neoliberal autêntica inverteria a relação: talvez
só 20% ficassem sem acesso às provas promocionais. Ora, essa política de
Paulo Renato é muito pouco arrojada para se querer tirar qualquer
resultado proveitoso dela. Então, o que ocorre aqui?
Tudo indica que objetivos outros que não
os de qualquer política educacional é que dão as prioridades do governo
José Serra. Paulo Renato não é secretário da Educação, ele é apenas um
político que o governador usa como testa de ferro diante de greves que,
de antemão, já se sabe que é possível suportar. Em outras palavras: no
cômputo geral do dinheiro de São Paulo, o governador tem outras
prioridades (talvez até algo não confessável) e um dos setores deverá se
sacrificar em benefício de outros. A educação pública foi escolhida
para o sacrifício e, no interior desta, a categoria dos professores é a
menina dos olhos de Serra para ser punida. Uma greve de professores se
torna logo impopular – isso o governador sabe bem. E uma escola pública
capenga em qualidade, para um Brasil pobre, é até mais do que o
trabalhador sonha. Os grupos de classe média? Bom, esses grupos que se
virem e paguem escolas particulares, ainda que estas, na atual situação,
também não estejam lá muito bem das pernas em termos de qualidade
pedagógica.
Diante disso, o ensino público paulista
sobreviverá? Não! Não há qualquer chance para ele se essa política
continuar. No momento em que escrevo os professores paulistas estão em
greve. Creio que pode ser uma das últimas greves dessa categoria antes
de um real colapso que, depois, será negado através da maquiagem das
estatísticas.
Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo