Cuba, Israel e a dupla moral
Breno Altman*
Tem sido educativo acompanhar, nos últimos
dias, a cobertura internacional dos meios de comunicação, além da
atitude de determinadas lideranças e intelectuais. Quem quiser conhecer o
caráter e os interesses a que servem alguns atores da vida política e
cultural, vale a pena prestar atenção ao noticiário recente sobre Cuba e
Israel.
Na semana passada, em função de declarações do presidente Lula
defendendo a autodeterminação da Justiça cubana, orquestrou-se vasta
campanha de denúncias contra suposto desrespeito aos direitos humanos na
ilha caribenha. Mas não há uma só matéria ou discurso relevante, nos
veículos mais destacados, sobre como Israel, novo destino do presidente
brasileiro, trata seus presos, suas minorias nacionais e seus vizinhos.
Vamos aos fatos. No caso cubano, Orlando Zapata, um pretenso
“dissidente” em greve de fome por melhores condições carcerárias, preso e
condenado por delitos comuns, foi atendido em um hospital público por
ordem do governo, mas não resistiu e veio a falecer. Não há acusação de
tortura ou execução extralegal. No máximo, insinuações oposicionistas de
que o atendimento teria sido tardio – ainda que se possa imaginar o
escândalo que seria fabricado caso o prisioneiro tivesse sido alimentado
à força.
Mesmo não havendo qualquer evidência de que a morte do dissidente,
lamentada pelo próprio presidente Raúl Castro, tenha sido provocada por
ação do Estado, os principais meios e agências noticiosas lançaram-se
contra Cuba com a faca na boca. Logo a seguir o Parlamento Europeu e o
governo norte-americano ameaçaram o país com novas sanções econômicas.
Outro oposicionista, Guilherme Fariñas, com biografia na qual se
combinam muitos atos criminosos e alguma militância anticomunista,
aproveitou o momento de comoção para também declarar-se em jejum.
Apareceu esquálido em fotos que rodaram o mundo, protestando contra a
situação nos presídios cubanos e reivindicando a libertação de eventuais
presos políticos. Rapidamente se transformou em figura de proa da
indústria do martírio mobilizada pelos inimigos da revolução cubana a
cada tanto.
O governo ofereceu-lhe licença para emigrar a Espanha e lá se
recuperar, mas Fariñas, que não está preso e faz sua greve de fome em
casa, recusou a oferta. Seus apoiadores, cientes de que a constituição
cubana determina plena liberdade individual para se fazer ou não
determinado tratamento médico, o incentivam para avançar em sacrifício,
pois não será atendido pela força até que seu colapso torne imperativa a
internação hospitalar. Aliás, para os propósitos oposicionistas, de que
grande coisa lhes valeria Fariñas vivo?
O presidente Lula tornou público, a seu modo, desacordo com a
chantagem movida contra o governo cubano. Talvez fosse outra sua
atitude, mesmo que discreta, se houvesse evidência de que a situação de
Zapata ou Fariñas tivesse sido provocada por ato desumano ou arbitrário
de autoridades governamentais. Para ir ao mérito do problema, comparou a
atitude dos dissidentes com rebelião hipotética de bandidos comuns
brasileiros. Afinal, ninguém pode ser considerado inocente ou
injustiçado porque assim se declara ou resolva se afirmar vítima através
de gestos dramáticos.
Sem provas bastante concretas que um governo constitucional feriu
leis internacionais, é razoável que o presidente de outro país oriente
seus movimentos pela autodeterminação das nações na gestão de seus
assuntos internos. O presidente brasileiro agiu com essa mesma cautela
em relação a Israel, país ao qual chegou no último dia 14, apesar da
abundância de provas que comprometem os sionistas com violação de
direitos humanos.
Mas as palavras de Lula em relação a Cuba e seu silêncio sobre o
governo israelense foram tratados de forma bastante diversa. No primeiro
caso, os apóstolos da democracia ocidental não perdoaram recusa do
mandatário brasileiro em se juntar à ofensiva contra Havana e em
legitimar o uso dos direitos humanos como arma contra um país soberano.
No segundo, aceitaram obsequiosamente o silêncio presidencial.
A bem da verdade, não foram apenas articulistas e políticos de
direita que tiveram esse comportamento dúplice. Do mesmo modo agiram
alguns parlamentares e blogueiros tidos como progressistas, porém
temerosos de enfrentar o poderoso monopólio da mídia e ávidos por pagar o
pedágio da demagogia no caminho para o sucesso, ainda que ao custo de
abandonar qualquer pensamento crítico sobre os fatos em questão.
Um observador isento facilmente se daria conta de que, ao contrário
dos eventos em Cuba, nos quais o desfecho fatal foi produto de decisões
individuais das próprias vítimas, os pertinentes a Israel correspondem a
uma política deliberada por suas instituições dirigentes.
A nação sionista é um dos países com maior número de presos
políticos no mundo, cerca de 11 mil detentos, incluindo crianças, a
maioria sem julgamento. Mais de 800 mil palestinos foram aprisionados
desde 1948. Aproximadamente 25% dos palestinos que permaneceram em
territórios ocupados pelo exército israelense foram aprisionados em
algum momento. As detenções atingiram também autoridades palestinas: 39
deputados e 9 ministros foram sequestrados desde junho de 2006.
Naquele país a tortura foi legitimada por uma decisão da Corte
Suprema, que autorizou a utilização de “táticas dolorosas para
interrogatório de presos sob custódia do governo”. Nada parecido é
sequer insinuado contra Cuba, mesmo por organizações que não guardam a
mínima simpatia por seu regime político.
Mas o desrespeito aos direitos humanos não se limita ao tema
carcerário, que é apenas parte da política de agressão contra o povo
palestino. A resolução 181 das Nações Unidas, que criou o Estado de
Israel em 1947, previa que a nova nação deteria 56% dos territórios da
colonização inglesa na margem ocidental do rio Jordão, enquanto os
demais 44% ficariam para a construção de um Estado do povo palestino,
que antes da decisão ocupava 98% da área partilhada. O regime sionista,
violador contumaz das leis e acordos internacionais, hoje controla mais
de 78% do antigo mandato britânico, excluída a porção ocupada pela
Jordânia.
Mais de 750 mil palestinos foram expulsos de seu país desde então.
Israel demoliu número superior a 20 mil casas de cidadãos não judeus
apenas entre 1967 e 2009. Construiu, a partir de 2004, um muro com 700
quilômetros de extensão, que isolou 160 mil famílias palestinas,
colocando as mãos em 85% dos recursos hídricos das áreas que compõem a
atual Autoridade Palestina.
Pelo menos seiscentos postos de verificação foram impostos pelo
exército israelense dentro das cidades palestinas. Leis aprovadas pelo
parlamento sionista impedem a reunificação de famílias que habitem
diferentes municípios, além de estimular a criação de colônias judaicas
além das fronteiras internacionalmente reconhecidas.
São, essas, algumas das características que conformam o sistema
sionista de apartheid, no qual os direitos de soberania do povo
palestino estão circunscritos a verdadeiros bantustões, como na velha e
racista África do Sul. O corolário desse cenário é uma escalada
repressiva cada vez mais brutal, patrocinada como política de Estado.
Mas os principais meios de comunicação, sobre esses fatos, se
calam. Também mudos ficam os líderes políticos conservadores. Nada se
ouve tampouco de alguns personagens presumidamente progressistas, sempre
tão céleres quando se trata de apontar o dedo acusador contra a
revolução cubana.
Talvez porque direitos humanos, a essa gente de dupla moral, só
provoquem indignação quando seu suposto desrespeito se volta contra
vozes da civilização judaico-cristã, da democracia liberal, do livre
mercado, do anticomunismo. Não foi sem razão que o presidente Lula
reagiu vigorosamente contra o cinismo dos ataques ao governo de Havana.