segunda-feira, 17 de maio de 2010

Violência na Nigéria....

Na Nigéria, o regresso do “Genio do Mal”

Jean-Christophe Servant* Odiario.info

 
“A maior parte das pessoas detidas são menores que não podem legalmente ser sujeitos a condenações penais. Grande número dos suspeitos detidos afirmam que foram mandados, mas no fim de contas os responsáveis por isso não são perseguidos e os nomes deles não são revelados ao público”. Afirmações terríveis as do nigeriano Shamaki Gad Peter, director de uma ONG com sede em Jos: a Liga pelos Direitos Humanos.
Infelizmente, é também uma declaração de grande banalidade. Recolhida pelo Irin (“Nigéria: Responsabilizar os Perpetradores da violência de massas – ou não”, 13 de Abril de 2010), confirma realmente o que todos os nigerianos sabem muito bem desde a implantação duma democracia de fachada, a “Democrazy”, em 1999: de Kano a Jos, de Kaduna a Lagos, os verdadeiros responsáveis pelos conflitos étnico-religiosos que ensanguentam a enorme federação desde o regresso dos civis ao poder – mais de 13 000 vítimas em dez anos – continuam a manobrar, quase sempre impunes, nas antecâmaras do poder central.
Dos cerca de 36 estados da Federação, às antecâmaras dos 774 governos locais, estes homens e estas mulheres, que sacrificaram tudo por uma carreira política, fazem parte dos principais intermediários das sequências de violência que regularmente cobrem de sangue o país, com saldos assassinos à imagem da dimensão demográfica da gigantesca África: 150 milhões de habitantes. Na Nigéria, a ferocidade das lutas políticas para a conquista da melhor parte do bolo nacional continua com efeito a ser a grelha principal com a qual é preciso continuar a descodificar o menor abalo étnico-religioso.
O caso de Jos, capital do estado do Plateau, na linha fronteiriça entre um mundo muçulmano de etnia haoussa-fulani que desceu do norte, e um puzzle de minorias autóctones maioritariamente cristianizadas, é um verdadeiro caso de referência. Desde os 1 000 mortos de Setembro de 2001 – um drama que passou completamente desapercebido quando o mundo estava de olhos cravados nas ruínas do World Trade Center -, a cidade foi teatro de várias réplicas, como as de Novembro de 2008 e as do inverno que há pouco terminou. Ora, prossegue o Irin, as diversas comissões de inquérito iniciadas para julgar os culpados «não deram provas de transparência e acabaram com poucos resultados concretos, perpetuando a impunidade».
No que se refere às inúmeras execuções extrajudiciais efectuadas pelos membros das forças policiais anti-motim (MOPOL) executadas no local em Novembro de 2008 – 118 casos confirmados – a ONG Human Rights Watch conclui que não conduziram a nenhuma condenação («Mortes Arbitrárias pelas Forças de Segurança», 20 de Julho de 2009). Para o investigador Eric Guttschuss, encarregado deste relatório para a HRW, «As execuções são um meio que aparenta reagir à violência mas, à medida que o tempo passa e que diminuem as pressões incitando o governo a agir, cada vez há menos medidas concretas destinadas a atacar as raízes da violência e a apresentar à justiça os [presumíveis] autores».
Deve-se ao antigo homem forte nigeriano, Ibrahim Badamasi Babangida, no poder entre 1985 e 1993, a operação da redistribuição eleitoral de 1991 que acrescentou uma centena de governos locais ao mapa eleitoral já complexo da Nigéria. “Esta reorganização”, esclarece o investigador nigeriano Philip Ostien, que ensina direito na Universidade de Jos, “resultou essencialmente duma manipulação concertada visando favorecer os membros chave da administração Babangida, assim como os seus principais conselheiros, apoiantes dos lobbystas”. (“Jonah Jang and the Jasawa: Ethno-Religious Conflict in Jos, Nigeria” [PDF], Agosto 2009).
No Estado de Jos, este decreto serviu para dividir o governo local da capital – até então nas mãos dos beroms cristianizados – em duas circunscrições, Jos Sul e Jos Norte, permitindo assim à comunidade muçulmana haoussa-fulani, até aí mantida afastada da vida política do Estado, dispor de uma praça forte e de um representante. Confrontando dois sistemas clientelistas em volta duma cidade que estende a sua influência urbana sobre os bairros suburbanos, essa clivagem contribuiu fortemente para acentuar o ressentimento interconfessional que, conforme vimos, se desencadeou a partir de 2001. «Segundo os cânones ocidentais, um maior número de governos locais deveria permitir que a democracia se aproximasse das organizações de base e estivesse mais apta a auscultar as reivindicações locais», refere Philip Ostien. «Mas na prática, na Nigéria, isso só serviu para contribuir para multiplicar a prevaricação política e a violência». «A Nigéria do general Babangida dividiu o país cinicamente, institucionalizando a corrupção e avivando as rivalidades entre as três etnias principais, os yorubas, os ibos e os haoussa-fulani», lembram Jean Claude Usunier e Gérard Verna, autores em 1994 de La Grande Triche. Corruption, éthique et affaires internationales, (A Grande Falcatrua. Corrupção, ética e questões internacionais) das edições La Découverte. Como realçava na época Didi Adodo, um dirigente sindical nigeriano, «Os colonialistas não fizeram tanto mal à alma nigeriana como Babangida».
«A África precisa de instituições fortes, e não de homens fortes». Afastado do poder desde as desastrosas eleições gerais de 1993 que roubaram a vitória ao defunto milionário yoruba Moshood Abiola e permitiram que o cleptocrata Sani Abacha se instalasse no poder até à sua morte em 1998, Ibrahim Badamasi Babangida, aliás IBB, aliás «The Evil Genius» («O génio do mal»), nunca mais largou a cena política. Regularmente consultado no seu palácio de Minna, no estado nortenho de Níger, manteve-se um dos principais «fabricantes de reis» nigerianos, como um garante da estabilidade da Federação. Uma influência que repousa sobretudo na imensa fortuna acumulada durante o seu mandato, exercido em parte durante a crise petrolífera da primeira guerra do Golfo: terão desaparecido dos cofres do Estado nigeriano 12,4 mil milhões de dólares de receitas do petróleo entre 1990 e 1991.
Actualmente, M. Babangida encara seriamente ser investido pelo partido que está no poder desde 1999, o PDP, o Partido Democrático Popular, a fim de concorrer às cruciais eleições gerais de 2011, e suceder ao presidente interino Goodluck Jonathan. G. Jonathan instalou-se no palácio de Aso Rock, em Abuja, depois de seis meses de crise constitucional devida à longa doença do chefe de Estado em exercício, Umaru Yar’Adua. Entrevistado por Christine Ananpour da cadeia de informações americana CNN, por ocasião da sua primeira viagem oficial ao estrangeiro – na ocorrência, os Estados Unidos – G. Jonathan ocultou a questão da sua participação nas eleições de 2011 (“I won’t force myself to meet Yar’Adua, diz Johathan, 14 de Abril de 2009).
É certo que, em nome do princípio de «mudança» nigeriana – que pretende que se alterne entre os dois mandatos entre um presidente saído do norte muçulmano e um chefe de Estado originário do sul cristão – deveria ser novamente uma figura política muçulmana a assumir a chefia do país. Ora as aspirações de Babangida, que aceitou manter-se no banco desde 1999, mediante a garantia da sua impunidade, parecem desde já ter sido entendidas por Washington. Os observadores, com os nigerianos em primeiro plano, repararam com inquietação que este último se encontrou discretamente, em 24 de Fevereiro passado, no seu refúgio de Mina, com dois elos de contacto da administração Obama: O secretário de Estado para os Assuntos Africanos, Johnny Carson, assim como o embaixador americano na Nigéria, Robin Sanders. Não transpirou nada deste encontro, organizado enquanto diversas outras figuras americanas se encontravam no país: o antigo presidente George W. Bush e a sua antiga secretária de Estado, Condoleezza Rice.
Tratava-se de abordar a questão da instalação da Africom na Nigéria? De analisar a crise de governação de que o país acabava de sair? De falar sobre petróleo? Ou de encarar, pura e simplesmente, o futuro? O artigo do advogado nigeriano, Funmi Feyde-John, publicado pelo site Pambazuka News («A crise constitucional da Nigéria e a ingerência americana», 22 de Março de 2010), aponta algumas pistas. Johnny Carson declara nomeadamente: «A Nigéria tem necessidade de um dirigente forte, eficaz e de boa saúde a fim de garantir a estabilidade do país e para reagir aos inúmeros desafios político, económico e da segurança da Nigéria». «A África precisa de instituições fortes, não de homens fortes» responde-lhe Gerard LeMelle, director executivo de Africa Action, a mais antiga das organizações americanas de defesa dos direitos humanos dedicadas ao continente, no site do grupo de reflexão americano Foreign Policy In Focus («África Precisa de Instituições Fortes, Não de Homens Fortes», 5 de Março de 2010). «Este encontro secreto, mesmo que tenha sido organizado por outras razões, liga a administração Obama a uma célula cancerosa da política nigeriana». Como é que os nigerianos, principalmente os do Delta do Níger que foram vítimas do reinado de Babangida, vão reagir a esta novo evolução? E o que é que vocês fariam se estivessem no seu lugar?
Numa entrevista concedida à BBC («O ex-lider da Nigéria, Babangida, “não vai comprar a presidência”», 13 de Abril de 2010). Babangida, que reconhece ser «o nigeriano vivo mais vigiado do seu país, e sobre o qual se investigou mais», declarou que não compraria a presidência… Para Goodluck Jonathan, um ijaw originário do Delta petrolífero, uma «etnia» principal na história do país, o tempo parece contado. O presidente interino, que acaba de assinar uma parceria estratégica com os Estados Unidos, decide nomear um novo presidente da muito contestada comissão eleitoral independente a fim de substituir Maurice Iwu, na linha da mira de Washington. M. Iwu foi especialmente encarregado de dirigir as eleições gerais de 2007, enodoadas por irregularidades. Esta substituição garantirá eleições gerais credíveis? Com o regresso de M. Babangida, mais parece que o país vai avançar para uma nova zona de temporais. E desta vez, é em Lagos, um caldeirão yoruba, especialmente hostil a IBB, que eles se poderão desencadear.

Origem: Les blogs du Diplo

* Jornalista

Tradução de Margarida Ferreira

domingo, 16 de maio de 2010

PNDH3: a grande mídia vence mais uma


O curto período entre 21 de dezembro de 2009 e 12 de maio de 2010 foi suficiente para que militares, ruralistas, Igreja Católica e a grande mídia conseguissem que o governo recuasse em todos os pontos de seu interesse contidos na terceira versão do PNDH.

O curto período de menos de cinco meses compreendido entre 21 de dezembro de 2009 e 12 de maio de 2010 foi suficiente para que as forças políticas que, de fato, há décadas, exercem influência determinante sobre as decisões do Estado no Brasil, conseguissem que o governo recuasse em todos os pontos de seu interesse contidos na terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos (Decreto n. 7.037/2009). Refiro-me, por óbvio aos militares, aos ruralistas, à Igreja Católica e, sobretudo, à grande mídia.

Em editorial com o sugestivo título de “O Poder da Pressão”, publicado no dia 15 de maio, o jornal O Globo não poderia ter sido mais explícito. Para o jornalão carioca, os interesses dessas forças políticas são confundidos deliberadamente com “um forte sentimento coletivo” e com o interesse da “sociedade”. Afirma o editorial:

“Decorridos cinco meses do seu lançamento, o PNDH foi alvo de críticas de militares, da Igreja, de agricultores e de órgãos de comunicação, pela visão unilateral com que abordava questões polêmicas. Entre estas, a atuação dos órgãos de segurança durante o regime militar de 64, o aborto, as invasões de terra e a liberdade de expressão. (...) O recuo do Planalto não deixa de corresponder a uma vitória significativa da sociedade, cujo poder de pressão ficou evidente no episódio.”

Direito à Comunicação
No que se refere especificamente ao direito à comunicação, o novo Decreto mantém a ação programática (letra a) da Diretriz 22 que propõe "a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados". Agora, no entanto, foram excluídas as eventuais penalidades previstas no caso de desrespeito às regras definidas. Foi também excluída a letra d, que propunha a elaboração de “critérios de acompanhamento editorial” para a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação.

Abaixo o que foi alterado:

Diretriz 22: Garantia do direito à comunicação democrática e ao acesso à informação para consolidação de uma cultura em Direitos Humanos.

Objetivo Estratégico I:

Promover o respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação e o cumprimento de seu papel na promoção da cultura em Direitos Humanos.

Ações Programáticas:


Era assim:

a) Propor a criação de marco legal regulamentando o art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados, como condição para sua outorga e renovação, prevendo penalidades administrativas como advertência, multa, suspensão da programação e cassação, de acordo com a gravidade das violações praticadas.

Ficou assim:

a) Propor a criação de marco legal, nos termos do art. 221 da Constituição, estabelecendo o respeito aos Direitos Humanos nos serviços de radiodifusão (rádio e televisão) concedidos, permitidos ou autorizados.
(...)


A ação programática contida na letra d foi revogada:

d) Elaborar critérios de acompanhamento editorial a fim de criar ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de Direitos Humanos, assim como os que cometem violações.

O poder da grande mídia
Na verdade, os principais grupos de mídia atingiram seus objetivos em período ainda menor do que o necessário para as outras forças políticas: entre 8 de janeiro e 12 de maio, pouco mais do que quatro meses.
Na primeira data foi publicada uma Nota à Imprensa conjunta, assinada pela ABERT, pela ANJ e pela ANER. A Nota terminava afirmando:

“As associações representativas dos meios de comunicação brasileiros esperam que as restrições à liberdade de expressão contidas no decreto sejam extintas, em benefício da democracia e de toda a sociedade.”

Agora, logo depois da publicação das alterações do plano (Decreto n. 7.177/2010), as mesmas entidades voltam a publicar Nota à Imprensa, dessa vez considerando “louvável” o recuo do governo.

“As associações representativas dos meios de comunicação brasileiros consideram louvável a iniciativa do governo de suprimir pontos críticos que ameaçavam a liberdade de expressão do Decreto nº 7.037, que aprovou o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH 3.”

Não vou repetir aqui os argumentos de que o PNDH3 original não propunha nada que fosse inconstitucional ou que ameaçasse a liberdade de expressão ou a liberdade de imprensa.

Registro apenas que a realidade fala mais alto e confirma que ainda não foi dessa vez que o interesse público prevaleceu sobre os interesses da grande mídia.

E, assim, caminhamos.

Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010 (no prelo).

Um jornalista de(a) Verdade...


 

André Pereira no Sul21

Lula, o presidente mais amado da história da Nação, é simplesmente um gênio político, dotado de uma sabedoria inata. Esta definição, adjetivada e superlativa, poderia nascer da boca de um assessor presidencial “baba-ovos” - para ficar na contundência verbal do personagem a seguir aludido. Ou ser gestada pela credulidade de uma velhinha do agreste de Garanhuns. Ou, ainda, ser incorporada ao jargão dos marqueteiros em ritmo de campanha eleitoral para 2010. Mas, não: a frase é da autoria de um dos jornalistas mais respeitados do país, com reconhecimento internacional e dono de um acúmulo profissional invejável que inclui, no mais recente escaninho curricular, a revista Carta Capital, de leitura imprescindível como diz seu anfitrião, Ruy Carlos Ostermann, no "Encontros com o professor", em uma terça-feira de março, no StúdioClio inteiramente lotado.
Mino Carta, o jornalista genovês de 76 anos que adotou o Brasil desde os 14 anos, define Lula como "o presidente mais amado da história da Nação. É simplesmente um gênio político, dotado de uma sabedoria inata que foi sendo aperfeiçoada ao longo da sua trajetória de vida". Mino considera que a eleição de um ex-metalúrgico, um ex-operário que se identifica com o povo, para presidente do Brasil, é um divisor de águas na história de um país como o nosso que padece, entre outros males de origem, de uma colonização feita por predadores e de ostentar o título inglório de a última nação a declarar o fim da escravidão.
Sentado sobre uma das pernas, repuxando a calça cinza de bainha italiana e deixando à mostra botinas marrons de presumíveis origens itálicas que servem sobretudo para alimentar a fama de homem elegante que acompanha suas descrições pessoais, dividindo duas garrafas da cerveja artesanal Coruja com seu entrevistador, no palco, Mino foi aplaudido de pé,  por uns cinco minutos,  ao final de quase duas horas de descontraída conversa que contemplou algumas indagações do público mas abrigou, sobretudo, provocações certeiras do professor decidido a desvendar uma personalidade jornalística única na mídia atual.
Único mesmo? "Outros jornalistas talvez não tiveram as oportunidades que eu tive", especula. "Ou conquistei as oportunidades que tive porque sou como sou", filosofa ele, quando Ruy indaga se haveriam outros jornalistas da estirpe rebelada dele trafegando na imprensa nacional, do tipo que não manda recados para assumir suas posições, normalmente opostas as ideais camuflados da grande imprensa, da grande midia que ele define como continuadamente golpista e a favor dos senhores do poder, das elites. 
Para Mino, uma das geniais percepções de Lula está na proposta de criar um clima plebiscitário para o embate eleitoral deste ano, com Dilma Rousseff encarnando sua continuidade para opor-se ao candidato  José Serra travestido de retrocesso tucano vinculado a Fernando Henrique Cardoso. "Em todos os aspectos que se for comparar, o governo de Lula é infinitamente superior ao de Fernando Henrique", Mino não tem a menor dúvida. "O governo de Fernando Henrique levou o Brasil à bancarrota, quebrou o país, deixando um rombo enorme para Lula administrar."
Mino se orgulha de ter percebido a diferencial capacidade política do líder sindical antes da maioria dos colegas, mais precisamente  há 33 anos, quando colocou o operário Lula estrelando reportagem na capa da revista IstoÉ.
Em 2002, quando Lula venceu pela primeira vez o pleito presidencial, a população queria mudanças e o candidato petista soube interpretar o cenário forjado pelo anseio e pela sensibilidade geral. Hoje, ao contrário, o brasileiro quer continuidade das políticas de sucesso praticadas nos oito anos de gestão lulista. Nem tanto pelo bem sucedido programa Bolsa Família como querem alguns analistas, mas acima de tudo, pela abertura de crédito que permitiu à população ampliar o poder de compra. "O Bolsa Família abarca uma realidade que me entristece, assim como me entristece ver uma favela, ver a miséria. Por isso me cheira um pouco a algo como esmola", diz ele, assinalando que faltou audácia a Lula e que muito ainda precisa ser feito no Brasil para enfrentar seu mais agudo e violento problema: a má distribuição de renda. Segundo ele, "conquistar  a liberdade não é importante se não existir a igualdade".
Mino acredita que o golpe de 1964 impôs danos terríveis, que o Brasil ainda não compensou. "Naqueles idos formava-se um proletário que se robustecia e poderia ter resultado em uma classe econômica e social que faria grande diferença no país". Ele também minimiza o protagonismo militar no episódio. "Quem deu o golpe foram os donos do poder, as elites; os milicos fizeram o trabalho sujo".
Conhecido pelos textos primorosos e pelo nível superior dos veículos impressos que criou (Veja, IstoÉ, Senhor, Quatro Rodas, Jornal da Tarde, Jornal da República, Carta Capital), Mimo fez TV, também, mas como relembrou, sofreu contrariedades. Um desses programa, da extinta TV Tupi, sequer foi ao ar, proibido no nascedouro pelo então ministro da Justiça, Armando Falcão, que considerou uma discussão sobre o machismo, atentatória à moral e aos bons costumes da ditadura brasileira. Para diversão da platéia, ele lista entre os convidados do debate o que classifica como atores garanhões do cinema pornô tupiniquim como David Cardoso e Jece Valadão.O outro programa sobreviveu por alguns meses.
 E a terceira experiência televisa, "Jogo de Carta", exibido na antiga TV Record, este, sim, vingou por  três anos em sua pretensão de fazer a defesa disfarçada de Tancredo Neves contra o indigitado Paulo Maluf. Até que o governo incomodou demais os proprietários da família de Paulo Machado de Carvalho (aquele mesmo bonachão Marechal do Bicampeonato Brasileiro de Futebol) pressionando e pedindo sua cabeça.
Mino incomoda-se com a pergunta de um estudante de Jornalismo que, na platéia, menciona, de passagem, sua polêmica demissão da revista Veja. O menino quer sua apreciação sobre outro tema que se perde porque Mino fixa este episódio e ressalta definitivo: "Eu me demiti, não fui demitido", diz para repetir, várias vezes depois, como se sua honra profissional estivesse em jogo. Narra, indignado, que contou sua saída da revista em uma entrevista de quatro horas de duração para o autor do livro "Notícias do Planalto", Mario Sérgio Conti, que, entretanto, cunhou a versão indesejável do pé no traseiro na obra que ele trata como abominável e hediondo. 
Na autoconcepção pública que ele próprio divulga, Mino é "muito chato" porque impõe um relacionamento difícil a quem está nas suas cercanias: perde o controle, costuma gritar, esbraveja e gesticula, teatraliza colérico e sanguíneo. "Mas me recomponho rapidamente. Só gostaria de ser mais sábio e sereno", afirma, sem convencer muito quem ouve recortes de sua preciosa jornada jornalística, empreendida ainda hoje com a companhia da sua inseparável máquina de escrever Olivetti onde diz que batuca sem grande habilidade pois, às vezes,os dedos intrometem-se entre as teclas, mas segue fidelíssimo a uma imperturbável e intransferível missão de vida: "No final das contas isto é bem simples: eu só quero mesmo ser um jornalista de verdade".

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Saiba o que é o capitalismo

Escrito por Atilio A. Boron  no Correio da Cidadania 
 
O capitalismo tem legiões de apologistas. Muitos o são de boa fé, produto de sua ignorância e pelo fato de que, como dizia Marx, o sistema é opaco e sua natureza exploradora e predatória não é evidente aos olhos de mulheres e homens. Outros o defendem porque são seus grandes beneficiários e amealham enormes fortunas graças às suas injustiças e iniqüidades. Há ainda outros (‘gurus’ financeiros, ‘opinólogos’ e ‘jornalistas especializados’, acadêmicos ‘pensantes’ e os diversos expoentes desse "pensamento único") que conhecem perfeitamente bem os custos sociais que o sistema impõe em termos de degradação humana e ambiental. Mas esses são muito bem pagos para enganar as pessoas e prosseguem incansavelmente com seu trabalho. Eles sabem muito bem, aprenderam muito bem, que a "batalha de idéias" para a qual nos convocou Fidel é absolutamente estratégica para a preservação do sistema, e não aplacam seus esforços.
 
Para contra-atacar a proliferação de versões idílicas acerca do capitalismo e sua capacidade de promover o bem-estar geral, examinemos alguns dados obtidos de documentos oficiais do sistema das Nações Unidas. Isso é extremamente didático quando se escuta, ainda mais no contexto da crise atual, que a solução dos problemas do capitalismo se consegue com mais capitalismo; ou que o G-20, o FMI, a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial, arrependidos de seus erros passados, poderão resolver os problemas que asfixiam a humanidade. Todas essas instituições são incorrigíveis e irreformáveis, e qualquer esperança de mudança não é nada mais que ilusão. Seguem propondo o mesmo, mas com um discurso diferente e uma estratégia de "relações públicas" desenhada para ocultar suas verdadeiras intenções. Quem tiver duvidas, olhe o que estão propondo para "solucionar" a crise na Grécia: as mesmas receitas que aplicaram e continuam aplicando na América Latina e na África desde os anos 80!
 
A seguir, alguns dados (com suas respectivas fontes) recentemente sistematizados pelo CROP, o Programa Internacional de Estudos Comparativos sobre a Pobreza, radicado na Universidade de Bergen, Noruega. O CROP está fazendo um grande esforço para, desde uma perspectiva crítica, combater o discurso oficial sobre a pobreza, elaborado há mais de 30 anos pelo Banco Mundial e reproduzido incansavelmente pelos grandes meios de comunicação, autoridades governamentais, acadêmicos e "especialistas" vários.
 
População mundial: 6.800 bilhões, dos quais...
 
1,020 bilhão são desnutridos crônicos (FAO, 2009)
2 bilhões não possuem acesso a medicamentos (http://www.fic.nih.gov/)
884 milhões não têm acesso à água potável (OMS/UNICEF, 2008)
924 milhões estão "sem teto" ou em moradias precárias (UN Habitat, 2003)
1,6 bilhão não têm eletricidade (UN HABITAT, "Urban Energy")
2,5 bilhões não têm sistemas de drenagens ou saneamento (OMS/UNICEF, 2008)
774 milhões de adultos são analfabetos (http://www.uis.unesco.org/)
18 milhões de mortes por ano devido à pobreza, a maioria de crianças menores de 5 anos (OMS).
 
218 milhões de crianças, entre 5 e 17 anos, trabalham precariamente em condições de escravidão e em tarefas perigosas ou humilhantes, como soldados, prostitutas, serventes, na agricultura, na construção ou indústria têxtil (OIT: A eliminação do trabalho infantil: um objetivo ao nosso alcance, 2006).
 
Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação na renda global de 1,16% para 0,92%, enquanto os opulentos 10% mais ricos acrescentaram mais às suas fortunas, passando de dispor de 64,7% para 71,1% da riqueza mundial. O enriquecimento de uns poucos tem como seu reverso o empobrecimento de muitos.
 
Somente esse 6,4% de aumento da riqueza dos mais ricos seria suficiente para duplicar a renda de 70% da população mundial, salvando inumeráveis vidas e reduzindo as penúrias e sofrimentos dos mais pobres. Entenda-se bem: tal coisa se conseguiria se simplesmente fosse possível redistribuir o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002 dos 10% mais ricos. Mas nem sequer algo tão elementar como isso é aceitável para as classes dominantes do capitalismo mundial.
 
Conclusão: se não se combate a pobreza (que nem se fale de erradicá-la sob o capitalismo) é porque o sistema obedece a uma lógica implacável centrada na obtenção do lucro, o que concentra riqueza e aumenta incessantemente a pobreza e a desigualdade sócio-econômica.
 
Depois de cinco séculos de existência eis o que o capitalismo tem a oferecer. O que estamos esperando para mudar o sistema? Se a humanidade tem futuro, será claramente socialista. Com o capitalismo, em compensação, não haverá futuro para ninguém. Nem para os ricos e nem para os pobres. A frase de Friedrich Engels e também de Rosa Luxemburgo, "socialismo ou barbárie", é hoje mais atual e vigente do que nunca. Nenhuma sociedade sobrevive quando seu impulso vital reside na busca incessante do lucro e seu motor é a ganância. Mas cedo que tarde provoca a desintegração da vida social, a destruição do meio ambiente, a decadência política e uma crise moral. Ainda temos tempo, mas já não tanto.
 
Atilio A. Boron é diretor do PLED, Programa Latinoamericano de Educación a Distancia em Ciências Sociais, Buenos Aires, Argentina.  
 

Traduzido por Gabriel Brito, jornalista.

A decadência da Igreja Católica.....

O Papa, a Pedofilia e a Luta de Classes

Papa Bento 
XVI 

Ao afirmar no avião que o transportou a Portugal que “Os ataques contra a Igreja e o Papa não vêm apenas do exterior, os sofrimentos vêm do interior da Igreja, do pecado que existe na Igreja”, Bento XVI procurou sacudir as imensas responsabilidades que têm na protecção dos sacerdotes que abusaram pessoalmente de milhares de crianças confiadas à responsabilidade da Igreja. Sara Flounders, no bem documentado texto que hoje publicamos, acusa Ratzinger de ser o principal responsável do encobrimento e protecção dos sacerdotes que abusaram de crianças um pouco por todo o mundo.

Há mais de 150 anos, no Manifesto Comunista, Marx explicou que «toda a História da humanidade foi uma História da luta de classes. (…) patrícios e plebeus, senhores e servos, opressores e oprimidos (…) sempre se enfrentaram, mantiveram a luta, umas vezes velada e outras franca e aberta. (…) A moderna sociedade burguesa (…) substituiu as velhas classes, as velhas condições de opressão, as velhas formas de luta por outras novas»

Uma luta feroz tem atormentado a Igreja Católica durante os últimos 25 anos, com alguns dos oprimidos sobreviventes de abusos sexuais durante a sua infância a exigirem, cada vez mais, que se actuasse contra sacerdotes individuais e, ultimamente, contra a poderosa hierarquia eclesiástica, incluindo bispos e cardeais que, constantemente, protegeram os violadores.
Esta exigência de justiça vinda de baixo conseguiu o impensável: trazer á luz do dia papel do actual papa, Bento XVI, num punível encobrimento internacional.
O marxismo é uma ciência que explica as relações de classe subjacentes a factos sociais que parecem obscuros e distantes da luta imediata dos trabalhadores. A actual controvérsia, por muito que se esconda por detrás dos paramentos clericais, não deixa de ser uma luta de classes no interior da Igreja Católica. Trata-se de uma pequena parte da luta de classes global que aspira á absoluta igualdade de direitos e de autoridade.
O que antes se aceitava por não haver outro remédio tornou-se hoje insuportável. Os milhares de vítimas de abusos sexuais que hoje denunciam casos de pedofilia eram crentes genuínos, filhos da classe trabalhadora, sem qualquer possibilidade – até agora – de opor resistência ou confessar às suas próprias famílias os delitos de que foram vítimas. Eram crianças violadas em hospícios, reformatórios, escolas para surdos-mudos e deficientes, escolas paroquiais locais e igrejas.
Este desafio desde baixo contra o secretismo e a repressão é uma clara ruptura com o passado. O mau-trato sexual permaneceu impune porque as autoridades religiosas eram impunes. Em muitas escolas paroquiais as violações eram clandestinas, mas os maus-tratos físicos, psicológicos e as humilhações eram tão habituais que se tornaram a normalidade.
Logo que as vítimas sobreviventes começaram a falar os sacerdotes que se colocavam ao seu lado foram silenciados e excluídos do ensino ou de posições de poder. Mas a hierarquia eclesiástica – um pequeno grupo que detém de forma absoluta a autoridade religiosa – não conseguiu silenciar ou deter este movimento.
Praticamente, nenhuma das denúncias surgiu do exterior ou das autoridades laicas, receosas de ofender uma instituição tão poderosa, mas todas surgiram de indivíduos católicos sem qualquer poder no interior da Igreja que recusaram continuar silenciosos. Apresentaram queixas, fizeram declarações e, por último, fizeram queixas judiciais, uma após outra.
A hierarquia eclesiástica, empenhada em defender o seu inquestionável poder, exigiu silêncio absoluto. Ameaçou com a excomunhão os que apresentassem queixa judicial e exigissem a intervenção das autoridades civis. Este esforço para manter o controlo absoluto dos sacerdotes defronta-se com uma luta interna muito mais ampla, que tenta esclarecer quais são os interesses a que esta poderosa instituição se devia submeter.
O escândalo internacional que hoje emociona a Igreja Católica inclui provas irrefutáveis de dezenas de milhares de casos de violações infantis e maus-tratos sexuais cometidos por milhares de sacerdotes. As queixas apresentadas aconteceram ao longo de décadas. A luta mais encarniçada começou nas cidades que até agora albergavam os crentes mais devotos dos EUA. Daí passou à Irlanda, depois a Itália e, mais tarde a regiões da Alemanha com fortes populações católicas.
Perturbador, e agora a receber um tratamento quase quotidiano nos media, é a certeza de que o actual papa, Bento XVI, foi durante décadas responsável pessoal pela ocultação, encobrimento e sigilo sobre os depredadores sexuais. As condenações mais enérgicas provêm dos que, apesar disso, se consideram parte integrante da Igreja Católica.
O teólogo liberal Hans Kung descreveu assim o papel do papa Bento XVI no auge da ocultação e do silêncio que rodeava as violações: «Não havia uma só pessoa em toda a Igreja Católica que soubesse de mais casos de abusos sexuais que ele, visto que tais casos faziam parte do seu trabalho diário. (…) O que ele não pode fazer é apontar o dedo aos bispos e dizer-lhes que não fizeram o suficiente. Foi ele quem deu as instruções na qualidade de Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé e, depois, voltou a dá-las como papa.»
Em 26 de Março de 2010, o editorial do National Catholic Reporter afirmava o seguinte: «O Santo Padre tem de responder directamente, num foro credível, às perguntas sobre qual foi a sua responsabilidade como arcebispo de Munique (1977-1982), como perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé (1982-2005) e como papa (desde 2005 até hoje) pela inépcia com que tratou a crise dos abusos sexuais do clero.»
Antes de em Abril de 2005 ter sido nomeado para o cargo máximo da hierarquia católica, o papa Bento XVI era conhecido como o Cardeal Joseph Ratzinger. Os seus adversários referiam-se a ele como «o pitbull» e como o «rotweiller de Deus». Ratzinger era então um protegido da extrema-direita do papa João Paulo II, que o nomeou para que impusesse a disciplina e a autoridade eclesiástica numa instituição afundada numa profunda agitação.
Durante 24 anos, Ratzinger presidiu à instituição mais poderosa e historicamente mais repressiva da Igreja Católica, a Congregação para a Doutrina da Fé, entidade que durante séculos tinha sido conhecida como o Santo Ofício da Inquisição, responsável pelo estabelecimento de tribunais religiosos para a condenação e a tortura de dezenas de milhares de pessoas acusadas de bruxaria e heresia. A Inquisição deu lugar a pogroms e expropriações massivas de judeus e muçulmanos. Foi através deste Ofício no interior da Igreja que o papa João Paulo II implantou uma moderna Inquisição.
Um vasto encobrimento perfeitamente documentado
A escala da criminosa conspiração internacional de silêncio destinada a proteger delinquentes sexuais em série e a pôr os interesses da Igreja acima da segurança e bem-estar das crianças ficou perfeitamente documentada no ano passado com a forma como se tratou o caso de abusos sexuais na Irlanda, um país maioritariamente católico.
Depois de anos de petições das vítimas de violações para que a Igreja tomasse medidas e o governo julgasse os responsáveis e, depois de uma série de actos censórios nos media irlandeses, o governo de Dublin encomendou um estudo que demorou nove anos a fazer. Em 20 de Maio de 2009 a Comissão publicou um relatório de 2.600 páginas.
Este relatório incluía testemunhos de milhares de antigos internos e de responsáveis por mais de 250 instituições controladas pela Igreja. A Comissão constatou que quer sacerdotes quer freiras católicas tinham aterrorizado milhares de meninos e meninas ao longo de décadas e que os inspectores do governo tinham fracassado na hora de cortar radicalmente com as tareias, as violações e as humilhações crónicas e diárias. O relatório qualificou as violações e os abusos sexuais de «endémicos» nas escolas e nos orfanatos católicos dirigidos pela Igreja da Irlanda (www.childabusecommission.com/rpt/).
A grandeza dos abusos na Irlanda e a força do movimento que exigia o seu reconhecimento fizeram com que o papa Bento XVI se visse forçado a emitir uma débil desculpa, na qual são responsabilizados os bispos irlandeses. Esta recusa em admitir a menor responsabilidade pelo seu conhecido procedimento como dirigente – sempre insistiu no silêncio – encolerizou milhões de católicos sinceros e fervorosos, e enfureceu ainda mais uma oposição que há décadas está em crescendo no interior da Igreja Católica.
Em Springfield (Massachusetts), o reverendo James J. Scahill – há anos critico do encobrimento eclesiástico – respondeu durante um sermão à frouxa desculpa, qualificando alguns clérigos de «criminosos» e pedindo a demissão do papa Bento XVI:
«Devemos declarar pessoal e colectivamente que duvidamos muito da honestidade do papa e daquelas autoridades eclesiásticas que o estão a defender ou inclusivamente a partilhar responsabilidades em seu nome. Começa a ser evidente que, durante décadas, se não séculos, os dirigentes da Igreja ocultaram os abusos sexuais de crianças e menores para proteger a sua imagem institucional e a imagem do sacerdócio», disse Scahill (New York Times, 12 de Abril de 2010).
Scahill acrescentou que tinha começado a falar claro depois dos seus próprios paroquianos lhe contarem os abusos sexuais que tinham sofrido durante décadas em Boston e lhe terem pedido que fizesse alguma coisa.
O Cardeal Bernard Law, da arquidiocese de Boston, teve um papel destacado na protecção de sacerdotes implicados em abusos sexuais de crianças para não sofressem qualquer castigo – nem religioso nem civil – transferindo-os sigilosamente para outros lugares. Em 2002, este facto converteu-se num escândalo nacional quando um juiz de Massachutts permitiu a divulgação de milhares de páginas de documentos, memorandos e declarações legais. Estes documentos mostravam uma clara tendência para a ocultação, protectora dos culpados e marginaladora das vítimas, ao revelar que, desde 1940, mais de 1.000 crianças tinham sofrido abusos sexuais na arquidiocese, por parte de mais de 250 sacerdotes e trabalhadores eclesiásticos. O cardeal Law foi obrigado a resignar de forma pouco digna e a arquidiocese de Boston foi condenada a desembolsar como indemnização a 552 vítimas, entre 85 e 100 milhões de dólares.
Esta multimilionária condenação, o aumento de escândalos noutras cidades e a ampla cobertura mediática que os factos tiveram forçaram os bispos norte-americanos a publicar uma «Declaração para a protecção de crianças e jovens», na qual se instituía uma política de tolerância zero, com expulsão imediata dos sacerdotes implicados mesmo que num só daqueles actos. Mas a dita declaração não propôs nenhuma medida contra os bispos que tinham encoberto os delitos.
O então cardeal Ratzinger que estava no Vaticano, recusou-se a dar andamento a este modesto esforço de limpeza. Em vez disso, exigiu que todas as acusações de abusos sexuais fossem transferidas para o Ofício que presidia – a Congregação para a Doutrina da Fé – antes que os padres fossem expulsos do sacerdócio. Um dos seus primeiros actos como papa foi promover o cardeal de Boston, Bernard Law, a um lugar de prestígio no Vaticano.
Numa carta de infausta memória enviada que Ratzinger enviou aos bispos em 2001 e que tem sido profusamente citada, utilizou a sua influência para que as alegações de abusos sexuais se mantivessem secretas sob ameaça de excomunhão. Os sacerdotes acusados de delitos sexuais e as suas vítimas receberam ordem para «manterem o mais estrito silêncio» e «guardar silêncio perpétuo».
O padre Tom Doyle, um antigo advogado do Vaticano, denunciou esta política da cúpula do Vaticano com as seguintes palavras: Trata-se de uma medida explícita de encobrimento de casos de abusos sexuais infantis por aprte do clero e de castigo para os que divulguem este tipo de delito cometido por sacerdotes. Cada vez que se descobriam padres delinquentes a resposta não era investigar os casos e julgá-los mas transferi-los para outro sítio.
Negligência ou cumplicidade criminosa?
Qual é a dimensão dos delitos sexuais cometidos contra a juventude? É a hierarquia eclesiástica culpada por ter ignorado o problema, isto é, de negligência criminosa, ou de ter recusado tomar medidas quando teve conhecimento dos delitos?
Um memorando assinado pessoalmente pelo então cardeal Ratzinger, quando dirigia no Vaticano o poderoso Ofício e depois da centralização de todos os casos, foi publicado em Abril e levantou um enorme burburinho. Ratzinger anulou e interrompeu todas as acções que se puseram contra um padre predador, o reverendo Lawrence C. Murphy.
Murphy foi acusado de abusar sexualmente de mais de 200 rapazes numa escola para surdos-mudos de Milwaukee, apesar das petições a pedir a sua expulsão, inclusive do seu bispo. Durante décadas, os antigos estudantes tinham utilizaram uma linguagem de sinais e juramentos escritos em reuniões com bispos e funcionários civis, em que pediam que o padre Murphy fosse acusado e julgado por tais delitos.
Simultaneamente, soube-se em Itália que 67 antigos pupilos de uma outra escola de surdos-mudos, em Verona, tinham acusado 24 padres e religiosos leigos de repetidas violações que lhes infligiram desde os sete anos.
Na Alemanha, mais de 250 casos de abuso sexual ocultado viram a luz do dia durante os dois últimos meses, inclusive em distritos directamente supervisionados pelo papa Bento XVI quando era bispo.
A publicidade internacional que rodeou o caso judicial de Boston e a multimilionária condenação permitiram que muitas outras vítimas tivessem possibilidade de sair à luz do dia e exigissem justiça. Desde 1950, mais de 4.000 sacerdotes foram acusados nos EUA de abuso de menores e a Igreja Católica pagou mais de 2.000 milhões de dólares em indemnizações às vítimas. Em 2007, a arquidiocese de Los Angeles anunciou que tinha chegado a um acordo por 600 milhões de dólares com uns 500 queixosos. Seis dioceses viram-se forçados a declarar bancarrota e muitas outras a vender abundantes bens eclesiásticos para financiar os acordos.
Muitos destes casos tinham sido descritos detalhadamente por uma organização denominada Rede de Sobreviventes de Abuso Sexual por Sacerdotes (SNAP na sua sigla em inglês). A SNAP é o grupo mais antigo e numeroso de apoio às vítimas de abuso sexual pelo clero.
Mas as vítimas de abuso não foram apenas crianças. Segundo o St. Louis Post-Dyspach de 4 de Janeiro de 2003, foi feita uma sondagem nacional dirigida por investigadores da Universidade de St Louis financiada por algumas ordens de religiosas católicas. A sondagem estimou que um «mínimo» de 34.000 freiras católicas, isto é 40% de todas as freiras católicas dos EUA, tinham sofrido de alguma forma um trauma sexual.
Vale a pena assinalar que a maioria dos testemunhos, das queixas judiciais, das averiguações e das revelações de abusos sexuais tiveram lugar no interior da própria Igreja Católica, e foi feita por antigas vítimas. Muitos outros católicos – indignados – uniram-se a eles para exigir a responsabilização de uma hierarquia clerical privilegiada que vive obcecada pela protecção da sua posição, da sua autoridade e da sua riqueza, em vez de proteger as crianças.
Na Europa existe uma corrente de opinião – cada vez mais numerosa – que pretende levar o papa Bento XVI ao Tribunal Penal Internacional (TPI) acusado do delito de proteger a Igreja e não as suas vítimas. Geoffrey Robertson, membro do Conselho de Justiça das Nações Unidas e presidente do Tribunal Especial da Serra Leoa, disse que julga ter chegado o momento de questionar a imunidade papal.
Num artigo publicado no Guardian de 2 de Abril sob o título «Sentemos o papa no banco dos réus», Robertson escreveu: «A imunidade papal não pode continuar. O Vaticano deveria sentir o peso do Direito Internacional. A pedofilia é um crime contra a humanidade. A anómala pretensão de que o Vaticano é um Estado – e o papa um chefe de Estado imune á lei – não resiste à menor análise.»
Naturalmente, vale a pena recordar que o Tribunal Penal Internacional só apresentou acusações contra quatro países africanos que estavam debaixo da mira do imperialismo.
O TPI ignorou os crimes de guerra norte-americanos no Iraque e no Afeganistão, tal como os crimes israelenses contra civis palestinos e libaneses. Como baluarte que é do imperialismo dos EUA à escala global, parece pouco provável que o Vaticano tenha que responder perante a justiça num futuro imediato.
Contra o movimento global pela justiça
Qual a função mais valorizada pelo imperialismo norte-americano desempenhada pelo Vaticano na sociedade de classes?
Enquanto absolvia, encobria e transferia milhares de padres culpados de abuso sexual de crianças, o papa Bento XVI aproveitou durante 25 anos o seu cargo de direcção na mais poderosa instituição eclesiástica, a Congregação para a Doutrina da Fé, com o objectivo de eliminar de paróquias, escolas e de qualquer posição de poder milhares de sacerdotes, bispos e pessoas religiosas que, de alguma maneira, tinham posições progressistas ou defendiam os direitos humanos e a dignidade dos pobres e oprimidos.
Impediu que os teólogos, docentes, escritores e intelectuais pudessem escrever, publicar e ensinar em instituições da Igreja. Os bispos que tentaram utilizar a sua autoridade para promover uma mudança social foram investigados por deslealdade e forçados a resignar. Substitui-os o clero politicamente mais reaccionário, desejoso de preservar a autoridade religiosa e o dogma.
Este foi um esforço da direita mais extrema para sufocar uma corrente progressista conhecida como a «teologia da libertação», que procurava alinhar a Igreja com os movimentos de libertação e com as lutas anticolonistas e revolucionárias que varriam a África, a Ásia e a América Latina, bem como com o movimento pelos direitos civis nos EUA.
Sacerdotes como o padre Camilo Torres da Colômbia – que escreveu, dialogou e organizou o seu apostolado na tentativa de unir o catolicismo e o marxismo revolucionário – foram considerados uma ameaça directa à exploração capitalista. O padre Camilo Torres uniu-se à luta armada contra a ditadura lacaia do imperialismo e morreu em combate.
Freiras activistas que dirigiam o Movimento Santuário de ajuda e salvo-conduto para os emigrantes salvadorenhos que fugiam dos esquadrões da morte também foram um objectivo a abater, como o foram igualmente Philip e Tom Berrigan, dois sacerdotes sempre à beira da detenção, que cumpriram penas de prisão juntamente com um grupo católico oposto à guerra do Vietname.
Teólogos da libertação como o carismático Leonardo Boff, do Brasil, sofreram a proibição eclesiástica de fazer declarações ou escrever. Sacerdotes que disseram servir os pobres, como o padre Jean-Bertrand Aristide, do Haiti, foram expulsos da sua ordem religiosa e forçados a demitirem-se pelo crime de «glorificação da luta de classes». Samuel Ruiz, o bispo de Chiapas (México), recebeu ordem para se abster de fazer «interpretações marxistas».
Foi uma caça às bruxas e uma purga que tomou como alvo os activistas contra o racismo e a favor da justiça social. No entanto, o reaccionário bispo dissidente Richard Williamson, que negou publicamente o Holocausto, foi calorosamente readmitido na Igreja.
Perante uma oposição cada vez maior em todos os estratos, esta poderosa instituição que durante séculos protegeu as propriedades e os privilégios das classes dirigentes ocidentais, utilizou com afinco crescente as suas forças mais fanaticamente reaccionárias para combater os que procuravam a mudança, a abertura, a igualdade e a atenção para as necessidades dos pobres e dos oprimidos.
Sob a liderança do papa João Paulo II e depois do papa Bento XVI, a Igreja Católica foi um aliado incondicional do imperialismo dos EUA, opôs-se á construção socialista na Europa de Leste. Como contrapartida, os poderosos media norte-americanos promoveram activamente e ofereceram uma cobertura favorável à Igreja Católica, ao mesmo tempo que diabolizavam os muçulmanos e outras religiões de povos oprimidos.
Em 2006, o papa Bento XVI apoiou a propaganda antimuçulmana que Washington tinha exacerbado conscientemente para justificar a guerra e a ocupação do Iraque e do Afeganistão. Num importante discurso papal, Bento XVI citou um imperador bizantino do século XIV que tinha acusado o profeta Maomé de apenas ter trazido ao mundo «coisas malignas e desumanas».
A aliança com o imperialismo norte-americano forçou a Igreja Católica a reviver os mais reaccionários excessos do seu próprio e obscuro passado. Membros de grupos com ligações a esquadrões da morte e ditaduras militares da América Latina e com o fascismo e a extrema-direita da Europa – como a hermética seita Opus Dei e os Legionários de Cristo – foram promovidos às mais altas posições no Vaticano e no mundo.
Dois clérigos fascistas, Josemaria Escrivá – que se colocou ao lado de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial e organizou bandos fascistas para caçar comunistas e sindicalistas revolucionários na Espanha de Franco – e o cardeal croata Aloysius Stepinac – que ajudou a criar campos de exterminação de judeus sérvios e ciganos – foram canonizados como santos.
O facto de proteger e esconder sacerdotes que tinham abusado de crianças ao mesmo tempo que obrigava à demissão as forças religiosas que defendiam os direitos dos oprimidos e se aliavam com os seus movimentos de libertação não é contraditório. A indulgência para com marginais e criminosos e a dura repressão de progressistas são as duas caras de uma mesma política de classe que consiste em defender a autoridade de uma hierarquia estabelecida, uma política que a Igreja vem assumindo em cada assunto social.
Uma visão repressora da sexualidade
Desde o esclavagismo em Roma à sociedade feudal europeia e, depois, como instrumento fundamental da conquista imperial, a Igreja Católica é uma instituição religiosa arreigada na sociedade de classes e no patriarcado. Esta herança patriarcal constitui a base das suas posições repressoras de todas as formas de expressão sexual humana. Quer se trate de homossexuais ou heterossexuais, de casados ou solteiros, a Igreja Católica arroga-se o direito de legislar todas as formas de expressão sexual da sociedade.
Ao mesmo tempo que se recusava qualquer acção contra depredadores sexuais porque isso punha em perigo a autoridade e a santidade do sacerdócio, Ratzinger era o principal executor de arcaicas doutrinas religiosas sobre a sexualidade e sobre a subordinação da mulher na Igreja e na sociedade. Não permitiu a menor liberalização em questões de controlo da natalidade, aborto, divórcio ou reconhecimento da homossexualidade. No interior da Igreja estas regras impuseram-se através do prisma do pecado e da culpa. Aos católicos homossexuais, aos casados depois de um divórcio, aos que praticavam o controlo da natalidade ou às mulheres que tinham abortado recusavam-se os sacramentos e eram excluídos da Igreja ou excomungados.
O peso das instituições eclesiásticas com mais recursos económicos e influência utilizava-se de forma agressiva na sociedade civil para oposição à liberalização das leis do divórcio, e ao direito da mulher ao controlo da natalidade e ao aborto. A Igreja Católica organizava e financiava campanhas políticas contra o matrimónio homossexual e a adopção de crianças por parte de casais homossexuais. E enquanto proclamava o seu dever religioso de proteger os «nascituros», recusava a protecção às crianças que estavam sob o seu controlo.
À medida que ia crescendo a onda de protestos pelos seus ataques contra as crianças que supostamente deviam cuidar, este agrupamento reaccionário tentava converter a sua criminosa ocultação dos crimes numa luta contra os homossexuais, ao ligar a pedofilia – isto é, o abuso sexual da infância – com a prática homossexual, de mútuo acordo, entre os adultos.
No passado dia 14 de Abril, o cardeal Tarcísio Bernone, secretário de estado do Vaticano, atribuiu a pedofilia à homossexualidade, que tachou de «patologia». Numa conhecida carta aos bispos escrita em 1986, o papa Bento XVI descreveu a homossexualidade como um «mal moral intrínseco». Foi mesmo muito mais longe ao justificar e inclusive incentivar violentos ataques contra os homossexuais ao afirmar que «nem a Igreja nem a sociedade deveriam surpreender-se se aumentarem as reacções irracionais e violentas» quando os homossexuais exigem direitos civis.
Estes crimes contra todos os movimentos de povos oprimidos deverão ser incluídos na cólera que hoje desperta a hierarquia eclesiástica.
Os anos de repressão, de caça às bruxas e intolerância organizada fizeram com que a hierarquia católica perca cada vez mais apoios. Está mais desnorteada que a sua própria congregação e totalmente alheada dos valores da sociedade.
Por muito esforço que faça, a Igreja Católica já não poderá recuperar o poder absoluto que teve há 500 ou há 100 anos, quando padres e bispos não tinham que dar contas dos crimes contra mulheres, escravos, servos, camponeses ou trabalhadores iletrados.
As desculpas cuidadosamente redigidas de forma a não assumir qualquer responsabilidade, e os actos de relações públicas com umas quantas e seleccionadas vítimas de abusos sexuais – onde tudo se desenrola de acordo com um guião previamente preparado – não vão resolver a crise que enfrenta a reaccionária cúpula da Igreja Católica.

Hoje, os que sofreram abusos sexuais têm finalmente voz, e também têm aliados. www.workers.org/2010/world/pope_0429/

* Sara Flounders é co-directora do Centro de Acção Internacional de Nova York e estudou durante 14 anos em escolas católicas nos Estados Unidos.

Este texto foi publicado  no jornal norte-americano Worker’s World,
Tradução de José Paulo Gascão

quinta-feira, 13 de maio de 2010

A Função Social da Terra....

A Constituição e a função social da propriedade


O artigo 186 e seus incisos da Constituição Federal estabelecem que a propriedade privada só tem seu direito resguardado quando, junto com os padrões de produtividade, seja cumprida a legislação ambiental e trabalhista e sua posse não gere conflitos e atenda às demandas da coletividade. A negativa raivosa desses valores traduz o perfil atrasado, arrogante e reacionário do setor ruralista e remonta a comportamentos daqueles que, ao longo dos séculos, exploraram e expropriaram direitos dos trabalhadores rurais e da natureza. O artigo é de Alberto Broch e de Willian Clementino.

Os latifundiários sempre se valeram da força bruta contra a luta pela terra e, sob o argumento da defesa da propriedade privada, praticam toda a sorte de violência, que, inclusive, resultou no assassinato de milhares de sindicalistas, religiosos e lideranças populares. Agora, eles incorporaram novas formas de reação à reforma agrária.

A criação de um “observatório de inseguranças jurídicas” é um dos instrumentos institucionais lançados para defender um suposto direito de propriedade que estaria sendo usurpado por quadrilhas de invasores de terra. Os representantes dos ruralistas também estão desenvolvendo campanhas de mídia e financiando uma rede de assistência jurídica em defesa de suas propriedades. Eles chegaram a reivindicar o emprego de tropas da Força Nacional para sustentar um plano nacional de combate às “invasões” de terras.

A senadora Kátia Abreu (DEM/TO) justifica estas ações com o argumento de que “a garantia à propriedade é direito garantido pela Constituição Federal como direito fundamental”. Essa afirmação é de um cinismo exacerbado e uma desleal tentativa de confundir a opinião pública. Os ruralistas utilizam a previsão constitucional sobre o direito de propriedade como se esse fosse absoluto e incondicional. Isso não é verdade, pois os dispositivos constitucionais exigem o cumprimento integral da função social como requisito indispensável ao direito de propriedade e como componente do princípio da igualdade e dos direitos fundamentais.

O artigo 186 e seus incisos da Constituição Federal estabelecem que a propriedade privada só tem seu direito resguardado quando, junto com os padrões de produtividade, seja cumprida a legislação ambiental e trabalhista e sua posse não gere conflitos e atenda às demandas da coletividade. O contexto legal em que se insere a propriedade não justifica um empreendimento rural que, mesmo possuindo modernos instrumentos tecnológicos ou altos índices de produtividade e lucro, negue direitos trabalhistas ou explore o trabalho escravo, comprometa os recursos hídricos e a biodiversidade, não crie emprego ou ocupação produtiva e não contribua para a soberania alimentar do povo. Uma propriedade com esse perfil não serve aos direitos da coletividade, não atende aos predicados do bem-estar social e do Estado de Direito e não assegura o direito à vida.

A segurança jurídica da propriedade está condicionada ao cumprimento da função social e não constitui crime a ocupação de propriedades inexistentes perante a lei. É por isso, inclusive, que se diz ocupação e não invasão. É a ocupação de um espaço de terra não protegido pela lei e que, por isso, deve sofrer a intervenção do Estado, para fazer que ali sejam gerados direitos, bem-estar, dignidade e produção para seus ocupantes e para a coletividade.

Assim deve agir o Estado, por exemplo, nas terras onde, segundo denúncias na imprensa, a sra. Kátia Abreu protagonizou uma invasão de área pública, expulsando dezenas de antigos posseiros para constituir uma fazenda, mantida improdutiva. Esse comportamento, como outros semelhantes, não gera direitos ao dito proprietário. É um crime contra a coletividade e, para ser restabelecido o Estado de Direito, as terras precisam ser retomadas pelo Estado e devolvidas às famílias de sem-terras, que dependem daquela terra para viver.

A função social é um princípio instituído para determinar limites ao direito de propriedade, para que o direito de uns não seja exercido em detrimento dos direitos de outros. Toda propriedade deve ter uma função social e, sobretudo, as propriedades sobre a terra, pois essas são meios originários de vida e têm a natureza como bem de produção indispensável à sobrevivência humana. Esse princípio responde aos fins gerais e sociais atribuídos aos Estados modernos, faz parte da vontade do legislador constituinte de 1988, e está consagrado por inúmeros julgados do Poder Judiciário brasileiro.

A negativa raivosa desses valores traduz o perfil atrasado, arrogante e reacionário do setor ruralista e remonta a comportamentos daqueles que, ao longo dos séculos, exploraram e expropriaram direitos dos trabalhadores rurais e da natureza. Essas ações de arbítrio e privilégios sempre se valeram das benesses do Estado de outros artifícios desprovidos de base legal e ética.

Para assegurar a segurança jurídica no campo, o Estado tem a obrigação de exercer seu papel constitucional de fiscalizar e exigir o dever positivo dos proprietários de cumprir a função social da terra. Ele também precisa intervir nas áreas onde houver descumprimento da lei, desapropriando as terras e fortalecendo a reforma agrária para gerar direitos ao povo e desenvolvimento sustentável para o País.

(*) Alberto Broch é presidente da Contag. Willian Clementino é secretário de Política Agrária da Contag

Um freio à exploração das teles....

Decreto autoriza Telebrás a entrar no mercado de banda larga

O Diário Oficial da União desta quinta-feira (13) publica o decreto presidencial que cria o Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). Por meio dele, o governo pretende baixar o preço do acesso à internet de alta velocidade e triplicar o número de domicílios conectados à rede, passando dos atuais 15 milhões para 35 milhões até 2014. Pelo decreto, o governo autoriza a Telebrás a entrar no mercado de acesso a internet em alta velocidade em localidades onde inexiste oferta adequada destes serviços.

Além desses, há outros três objetivos delegados à estatal: 1) implementar a rede privativa de comunicação da administração pública federal; 2) prestar apoio e suporte a políticas públicas de conexão à internet em banda larga para universidades, centros de pesquisa, escolas, hospitais, postos de atendimento, telecentros comunitários e outros pontos de interesse público e 3) prover infraestrutura e redes de suporte a serviços de telecomunicações prestados por empresas privadas, Estados, Distrito Federal, municípios e entidades sem fins lucrativos.

De acordo com o decreto, o programa tem, entre os objetivos, massificar o acesso à internet de alta velocidade, acelerar o desenvolvimento econômico e regional, promover a inclusão digital, reduzir as desigualdades sociais regionais, promover a geração de emprego e renda e aumentar a competitividade das empresas brasileiras.

Para alcançar esses objetivos, o PNBL atuará regulamentando e desenvolvendo a política industrial e a infraestrutura da rede. Além disso, prevê incentivos fiscais e financiamentos para o setor. A definição das metas e prioridades do plano ficará a cargo do Comitê Gestor do Programa de Inclusão Digital (CGPID), que é presidido pela Casa Civil e composto por 12 órgãos federais – entre eles os ministérios da Fazenda, do Desenvolvimento, da Saúde e da Secretaria de Assuntos Estratégicos.

A próxima etapa prevista para o PNBL é a criação do Fórum Brasil Digital, que terá representantes do governo, de empresas e de usuários para debater questões que precisem ser equacionadas e novos temas que surjam durante a implementação do plano. A expectativa do governo é de que esse fórum seja instalado em junho.

Inclusão digital

O PNBL é visto por especialistas do setor como o maior incentivo que já se promoveu no Brasil a favor da inclusão digital. Passados mais de 10 anos da privatização da telefonia no país, o acesso à internet rápida ainda é um privilégio.

Uma série de estudos recentes da PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios) de 2008, do IBGE, CGI (Comitê Gestor da Internet) e do Sistema de Coleta de Informações (Sici) da Anatel demonstram o alto grau de concentração da internet banda larga nas regiões mais ricas.

O alto custo da banda larga é um dos fatores para o atraso brasileiro. O gasto médio com internet rápida representa 4,58% da renda mensal per capita no Brasil enquanto na Rússia esse índice é menos da metade: 1,68%. Já em relação aos países desenvolvidos, essa mesma relação fica em torno de 0,5%, ou seja, o brasileiro gasta proporcionalmente quase dez vezes mais para ter acesso à internet rápida.

Dos 58 milhões de domicílios existentes no Brasil, 79% não tinham acesso à internet (46 milhões). O acesso à banda larga é extremamente desigual em termos regionais no país: em alguns Estados mais isolados, como Roraima e Amapá, o acesso nos domicílios é praticamente inexistente. Enquanto São Paulo tem 3,8 milhões de domicílios com banda larga (29,4%), Roraima tem apenas 347 (0,3%) e o Amapá, 1.044 (0,6%). Nos estados do Nordeste, os acessos em banda larga não chegam a 15% dos domicílios. Já nos estados do Sul e Sudeste, a penetração varia entre 20% e 30% dos domicílios.

Dos 8,6 milhões de domicílios rurais, apenas 266 mil têm acesso à internet em banda larga (3,1% do total). A faixa dos pequenos municípios concentra mais de 92% da população sem acesso, equivalentes a 39,2 milhões de pessoas.

Ou seja, em pleno século 21, o principal fluxo de informações e conhecimentos à disposição da humanidade está, no Brasil, fora do alcance da grande maioria da população. Daí a importância dos investimentos governamentais no setor, já que está mais do que provado que a iniciativa privada não tem interesse em investir na inclusão digital.

Da redação do sitio Vermelho
com agências

Capitalismo selvagem.....

Boaventura de Souza Santos
bsantos@facstaff.wisc.edu

O Fascismo Financeiro

Há doze anos publiquei, a convite do Dr. Mário Soares, um pequeno texto (Reinventar a Democracia) que, pela sua extrema actualidade, não resisto à tentação de evocar aqui. Nele considero eu que um dos sinais da crise da democracia é a emergência do fascismo social. Não se trata do regresso ao fascismo do século passado. Não se trata de um regime político mas antes de um regime social. Em vez de sacrificar a democracia às exigências do capitalismo, promove uma versão empobrecida de democracia que torna desnecessário e mesmo inconveniente o sacrifício. Trata-se, pois, de um fascismo pluralista e, por isso, de uma forma de fascismo que nunca existiu. Identificava então cinco formas de sociabilidade fascista, uma das quais era o fascismo financeiro. E sobre este dizia o seguinte.
O fascismo financeiro é talvez o mais virulento. Comanda os mercados financeiros de valores e de moedas, a especulação financeira global, um conjunto hoje designado por economia de casino. Esta forma de fascismo social é a mais pluralista na medida em que os movimentos financeiros são o produto de decisões de investidores individuais ou institucionais espalhados por todo o mundo e, aliás, sem nada em comum senão o desejo de rentabilizar os seus valores. Por ser o fascismo mais pluralista é também o mais agressivo porque o seu espaço-tempo é o mais refractário a qualquer intervenção democrática. Significativa, a este respeito, é a resposta do corrector da bolsa de valores quando lhe perguntavam o que era para ele o longo prazo: “longo prazo para mim são os próximos dez minutos”. Este espaço-tempo virtualmente instantâneo e global, combinado com a lógica de lucro especulativa que o sustenta, confere um imenso poder discricionário ao capital financeiro, praticamente incontrolável apesar de suficientemente poderoso para abalar, em segundos, a economia real ou a estabilidade política de qualquer país.
A virulência do fascismo financeiro reside em que ele, sendo de todos o mais internacional, está a servir de modelo a instituições de regulação global crescentemente importantes apesar de pouco conhecidas do público. Entre elas, as empresas de rating, as empresas internacionalmente acreditadas para avaliar a situação financeira dos Estados e os consequentes riscos e oportunidades que eles oferecem aos investidores internacionais. As notas atribuídas – que vão de AAA a D – são determinantes para as condições em que um país ou uma empresa de um país pode aceder ao crédito internacional. Quanto mais alta a nota, melhores as condições. Estas empresas têm um poder extraordinário. Segundo o colunista do New York Times, Thomas Friedman, «o mundo do pós-guerra fria tem duas superpotências, os EUA e a agência Moody’s». Moody’s é – uma dessas agências de rating, ao lado da Standard and Poor’s e Fitch Investors Services. Friedman justifica a sua afirmação acrescentando que «se é verdade que os EUA podem aniquilar um inimigo utilizando o seu arsenal militar, a agência de qualificação financeira Moody’s tem poder para estrangular financeiramente um país, atribuindo-lhe uma má nota».
Num momento em que os devedores públicos e privados entram numa batalha mundial para atrair capitais, uma má nota pode significar o colapso financeiro do país. Os critérios adoptados pelas empresas de rating são em grande medida arbitrários, reforçam as desigualdades no sistema mundial e dão origem a efeitos perversos: o simples rumor de uma próxima desqualificação pode provocar enorme convulsão no mercado de valores de um país. O poder discricionário destas empresas é tanto maior quanto lhes assiste a prerrogativa de atribuírem qualificações não solicitadas pelos países ou devedores visados. A virulência do fascismo financeiro reside no seu potencial de destruição, na sua capacidade para lançar no abismo da exclusão países pobres inteiros.
Escrevia isto a pensar nos países do chamado Terceiro Mundo. Não podia imaginar que o fosse recuperar a pensar em países da União Europeia.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Informe da CNTE(Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação)

Desvios de recursos da educação: velha chaga social
Reportagem de Demétrio Weber, em O Globo (10/05), com base em informações do Ministério da Educação, apontou desvios de R$ 2,1 bilhões no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) no ano de 2009.

Os Estados campeões em desvios foram o Espírito Santo e São Paulo, além do Distrito Federal, que não contabilizou os recursos do Fundeb num flagrante descumprimento ao art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT/CF).
No editorial da semana anterior, que tratava dos desvios de verbas de programas financiados pelo FNDE, expusemos as consequências desse tipo de prática criminosa para a qualidade da educação e apontamos algumas medidas necessárias para pôr fim aos desvios, dentre as quais se destacam a capacitação dos conselheiros do Fundeb e da Merenda Escolar e a autonomia desses conselhos de controle e acompanhamento social perante os gestores públicos.
Com relação às novas denúncias, exclusivas do Fundeb, algumas considerações:
  1. Enquanto se verifica um esforço da União para aumentar os recursos da educação básica, que é de responsabilidade prioritária dos estados, municípios e DF, esses mesmos entes federados, ao invés de aumentarem seus investimentos (inclusive para garantir o pagamento do Piso Nacional vinculado à carreira do magistério) lançam mão de “maracutaias” para desviarem recursos da área da educação;
  2. O Estado de São Paulo, ainda na gestão do ex-governador José Serra, além de não ter tido coragem de assinar a ADI 4.167 contra a Lei do Piso (apesar de ser um dos articuladores da mesma), situa-se como o principal sonegador de recursos do Fundeb: R$ 660 milhões, que corresponde a 28,6% do desvio nacional;
  3. No caso do Espírito Santo, o Fundap – Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias – desonera as operações de comércio exterior tributadas com ICMS estadual, retirando da educação parte significativa dos recursos constitucionalmente vinculados ao setor;
  4. Em Mato Grosso, apesar de o Sindicato dos Trabalhadores em Educação ter ganhado ação na Justiça sobre a incidência do Imposto de Renda Retido na Fonte dos Servidores Públicos Estaduais nos recursos vinculados à educação, o Governo do Estado insiste em não repassar as parcelas de 20% para o Fundeb e de 5% para as demais políticas de manutenção e desenvolvimento do ensino;
  5. No DF, o caso é típico de intervenção federal, a exemplo do que tem ocorrido na vida política da capital da República. Sob a alegação de que o Fundo Constitucional (com repasse de R$ 7,5 bilhões em 2009) financia parte dos investimentos educacionais, o GDF se auto-exime em constituir o Fundeb, dificultando os controles social e institucional das verbas da educação. Pior: tudo isso, a exemplo do caso em MT, conta com o apoio do Tribunal de Contas e do Ministério Público do DF e Territórios, órgãos suspeitos, segundo apurado na grande mídia, de ligação no esquema envolvendo os ex-governadores José Roberto Arruda e Joaquim Roriz.
Mais uma vez, suspeitas de desvios se transformam em fatos comprovados. É preciso que os órgãos competentes do Estado apurem as denúncias e punam os criminosos.
A CNTE, como forma de atuar mais incisivamente nesta pauta, está preparando uma publicação para auxiliar no controle das verbas do Fundeb, bem como na aplicação do PSPN adequado à carreira profissional.
A qualidade da escola pública depende da responsabilidade dos gestores e da sociedade. Não admitiremos que os atuais recursos, insuficientes para melhorar a educação, sejam desviados impunemente.
 

terça-feira, 11 de maio de 2010

A mídia corporativa com os dias contados???

Autoregulamentação mostra fragilidade política da mídia

Finalmente os donos da mídia se deram conta de que os dias de farra grossa podem estar contados. A bandeira rota da autoregulamentação é a primeira demonstração de fraqueza dos empresários após muitos anos de soberba e arrogância.

Seguem os convescotes dos donos da mídia em defesa das suas liberdades empresariais, com a dócil conivência de jornalistas a eles submissos. O mais recente aconteceu esta semana na Câmara dos Deputados. Depois de tantas reuniões e debates realizados apenas neste ano surgiu finalmente a proposta que porá fim a todos os dilemas e angústias em que vive o setor: ele poderá ser, finalmente, autoregulamentado.

A descoberta foi verbalizada por um funcionário da Editora Abril, com ares de sensação. Para quem defende um processo real de democratização da comunicação trata-se de uma grande vitória. Finalmente os donos da mídia se deram conta de que os dias de farra grossa podem estar contados. A bandeira rota da autoregulamentação é a primeira demonstração de fraqueza dos empresários após muitos anos de soberba e arrogância. Ao vermos seu lançamento, da forma que foi feito, só nos resta o socorro da velha imagem, também desgastada, mas ainda útil: crêem eles que estão entregando seus anéis à sociedade para salvar os dedos.

Doce ilusão. Não há mais, nos movimentos sociais envolvidos na luta pela real liberdade de expressão, quem se iluda com essa proposta empresarial. Todos sabemos que sem a presença da sociedade, através do Estado, estabelecendo normas democráticas para o funcionamento da mídia, nada mudará. Dou três exemplos, entre inúmeras situações, em que jamais haverá reparação através da autorregulamentação: correção de notícias destituídas de fundamento, mas de interesse dos donos em jornais e revistas; exibição de matérias jornalísticas na TV, com os mesmos interesses, onde é ouvido um lado apenas da questão (exemplo: Jornal Nacional e a escolha do padrão digital para a TV brasileira) e a inexistência de debate no rádio comercial sobre o papel das rádios comunitárias, só a sua criminalização.

Sobre o primeiro exemplo, um caso relatado nesta semana é emblemático: o jurista Dalmo Dallari conta no Observatório da Imprensa uma demanda que fez ao jornal O Estado de São Paulo solicitando a correção de uma notícia sobre a pena que Cesare Battisti deveria cumprir na Itália, caso venha a ser extraditado. O jornal disse que seria de 28 anos quando na verdade a pena é de prisão perpétua, inexistente no Brasil. "Um erro grave", diz Dallari. E tem razão. "Em termos jurídicos, Cesare Batistti não pode ser extraditado para a Itália para cumprir uma pena que é proibida pela Constituição brasileira".

O pedido de correção foi enviado no dia 19 de abril e reiterado no dia 22. No dia 5 de maio a carta ainda não havia sido publicada. Para Dallari "a recusa de publicação de meu pedido de correção da informação errada é uma forma de censura, surpreendente num órgão de imprensa que insiste em se colocar como vítima da censura".

Diante desse e de outros inúmeros casos de desconsideração dos veículos diante das reclamações do público, fico a pensar se a tal da autoregulamentação não servirá apenas para que o descaso por empresa não se torne generalizado e organizado para todo o setor. Afinal seriam os mesmos agentes privados, que hoje negam respostas aos leitores, ouvintes e telespectadores em seus veículos, os responsáveis por autoregulamentar o conteúdo de todos os veículos.

Em seu lugar, propostas como a da criação de um órgão regulador para o audiovisual, comum nas grandes democracias, e leis precisas em relação à imprensa são mais do que urgentes. Nada as substitui. Só dessa forma se restabelecerá um minimo de equilíbrio entre a sociedade e o poder dos meios de comunicação. Ou como dizia Henri Dominique Lacordaire (1802-1861): "entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o servo e o senhor, a liberdade escraviza, é a lei que liberta".

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial).