Escrito por Gabriel Brito, da Redação do Correio da Cidadania | |
Nos últimos dias, as fraturas internas da Empresa de Correios e
Telégrafos, uma das maiores do mundo em serviços postais, voltaram a ser
expostas ao público com a saída de seu diretor de Recursos Humanos.
Paulo Bifano deixou o cargo fazendo duras acusações contra a atuação de
Helio Costa, ministro das Comunicações, acusando-o de causar uma
proposital paralisia na empresa com o intuito de desmoralizá-la e
privatizá-la.
Em vista disso, o Correio da Cidadania conversou com Moyses Leme, do
Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Correios e Telégrafos. Na
conversa, ele endossa e aprofunda as acusações de Bifano, incluindo-o
entre os principais culpados pelas crises que assolaram os Correios nos
últimos anos. "Lamentavelmente, é graças ao PMDB que vemos esse caos,
Helio Costa, Paulo Bifano, Carlos Henrique, toda a corja que ocupou a
empresa".
Leme não poupa em nada as gestões recentes, listando uma série de
debilidades atuais propositalmente negligenciadas. Cita casos para
ilustrar a enorme promiscuidade política em torno da empresa e afirma
que seriam necessários ao menos 30 mil novos funcionários para atender à
demanda postal atual. O sindicalista ainda critica o tratamento dado
aos servidores, pede o fim das terceirizações e ressalta a necessidade
de a estatal efetuar, e não o mercado, a universalização definitiva dos
serviços postais brasileiros. "40 milhões de brasileiros ainda não
recebem correspondência em casa".
A entrevista completa com Moyses Leme pode ser conferida a seguir.
Correio da Cidadania: Para quem tem acompanhado, é notório que as
brigas políticas internas têm afetado a atuação dos Correios, gerando
inclusive deficiência nos serviços. Um estado de coisas similar já havia
sido abordado pelo Correio da Cidadania no ano passado. O que tem
acontecido na gestão da estatal?
Moyses Leme: Na verdade, esse tipo de problema é antigo na
empresa. Quando se chega aos Correios, numa estrutura como a nossa, onde
gira mais de 12 bilhões de reais por ano, têm-se dois caminhos a
seguir. O primeiro é fazer um projeto de universalização dos serviços
postais, com planejamento, inclusive das compras (que são milionárias),
todo um caminho para ter êxito na gestão da empresa.
Infelizmente, na direção da empresa muitas pessoas vêm cumprir tarefas
partidárias, envolvendo-se na administração para se beneficiar, em prol
do partido ou às vezes do próprio bolso. Isso avançou e tem se
alavancado, com brigas políticas enormes nos Correios, parando a
empresa.
Agora, vai sair a duras penas um concurso público. De fato, houve
problema na elaboração do concurso, que será nacional, quando sempre se
fazia de forma regional. Teve um levante com todos os diretores
nacionais, numa reunião interna em que cobraram soluções. E o diretor
que se aliava à proposta de manter os Correios públicos, sem
terceirizações, com frota própria, parando de privatizar as entregas,
foi convidado a se retirar, o Marco Antonio Oliveira, um diretor que
sempre defendeu esses princípios.
Depois, os diretores que permaneceram desenvolveram uma guerra pessoal.
Recentemente, o Paulo Bifano, diretor de RH, o Carlos Henrique,
presidente da ECT, e o próprio ministro Helio Costa, fizeram parte dessa
discussão. E o Bifano, em entrevista recente à Folha, realmente colocou
uma situação mais grave, acusando os outros dois de atrapalharem e
sabotarem a empresa, impedindo a compra de veículos, os concursos, as
licitações... E sabemos que hoje há uma terceirização de veículos na
empresa, na qual vemos, incrivelmente, que quase todas as empresas
contratadas são de Minas Gerais, estado do ministro das Comunicações.
Essa terceirização também atinge a atividade-fim da empresa, situação
agora agravada com os destemperos do diretor de RH, de acusá-los de
sabotagem na empresa.
Correio da Cidadania: E você concorda com essa colocação do Bifano?
Ele afirmou que os Correios têm mais de 4 bilhões de reais em caixa e
mesmo assim não se fazem investimentos, além de a contratação de novos
funcionários ser em ritmo mais vagaroso do que a demanda sugere. Tal
fala converge com a sua ao Correio da Cidadania, no ano passado, de que a
empresa de fato tem dinheiro pra investir tranquilamente em sua
melhoria.
Moyses Leme: O que pensamos hoje em relação aos Correios é que a
empresa tem sido sucateada. Temos 103 mil funcionários, precisamos
urgentemente de concursos. O correio francês tem 300 mil trabalhadores,
já o brasileiro tem 103 mil. A questão social da empresa tem ficado pra
trás, assim como a do maquinário, da qualidade. Hoje, gastam-se bilhões
de reais com aluguéis. E quando se procura quem são os donos dos
imóveis, vemos Paulo Otavio, Nenê Constantino (empresários de
Brasília do ramo imobiliário envolvidos em diversos escândalos dos
governos locais Arruda e Roriz, com fortunas suspeitas de se originarem
em diversos favorecimentos; ambos estão sob mira constante do Ministério
Público), só pessoas envolvidas em processos complicados.
Os Correios gastam mais de 1 bilhão de reais em aluguéis, sendo que
poderia ter seus próprios, e adequados, imóveis. Temos o know-how, o
conhecimento de como fazer, mas de fato há pessoas sabotando a empresa,
sabotando com S maiúsculo mesmo. E agora o próprio Bifano e o ministro
sabotavam a empresa, buscando desqualificá-la e terceirizar os serviços.
Inclusive, a questão da universalização dos serviços postais deveria ser
contemplada, de acordo com a portaria 1112 do Ministério das
Comunicações, com todo um regramento sobre quantas agências devem ser
abertas e quantos servidores contratados. Mas não vemos por parte do
governo e do Ministério das Comunicações atuação nesse sentido, muito
menos por parte da empresa.
Dentro dos Correios, vemos atividades terceirizadas, inclusive
atividades-fim, o que não deveria ocorrer, mas sim concursos públicos.
Um rombo de bilhões de reais gastos em aluguéis, em que
mega-empresários, como Nenê Constantino e Paulo Octavio aqui em
Brasília, são donos de imóveis, com agências convencionais fechando para
abrir franquias de deputados, senadores, como Gim Argelo... Vamos dar
nome aos bois. Fecham agências convencionais pra abrir as deles.
Correio da Cidadania: A empresa está completamente aparelhada no momento.
Moyses Leme: O que precisamos, de fato, é de um resgate dos
Correios. Acabar com essa questão dos aluguéis absurdos, melhorar a
tecnologia na empresa, dos sistemas. Do orçamento de 651 milhões, só se
gastaram 150 milhões de reais, e faz tempo que não se compram
equipamentos, mesmo com a centralização das compras.
Na área de equipamentos, eles não chegavam por causa da burocracia de
tecnocratas da empresa, que não conseguiam fazê-los chegar aos setores
dos Correios que os demandavam.
Portanto, precisamos de um planejamento e resgate da empresa acima de
partidos políticos e indicações. Precisamos de um planejamento, a fim de
universalizar os serviços postais e trazer a qualidade dos serviços dos
Correios de volta, que é um dos melhores do mundo.
Correio da Cidadania: Até a ultramercadista revista Forbes a elegeu a
melhor do mundo em serviços postais. Incrível, assim, que a empresa
passe por tamanhas turbulências. A parasitagem política do PMDB tem algo
a ver com esse cenário?
Moyses Leme: Ainda somos a melhor empresa mesmo. No correio
americano, gastam cerca de 7 a 14 dias para entregar. Aqui, o período é
de três a quatro dias, com toda a dificuldade. Mas chegamos ao fundo do
poço. Não há planejamento, funcionários. Centraliza-se o planejamento,
mas não há condições reais de executá-lo. Pelo menos tivemos reuniões
com os diretores regionais aqui em Brasília, onde se redigiu um
documento, listando o que havia de errado.
Um exemplo: se você manda uma correspondência de Santa Cecília, na
capital de São Paulo, da rua tal, com um CEP de São José dos Campos, o
que acontece? O funcionário sabe onde é a Santa Cecília, mas por causa
do CEP manda errado pra São José, pra depois carimbar de volta, retornar
ao remetente, que precisa mandar de novo a correspondência.
Não há frota de veículos, as terceirizações estão a todo vapor, um
verdadeiro caos dentro da empresa, o que não permite o trabalho
adequado.
Lamentavelmente, é graças ao PMDB que vemos esse caos nos Correio, ao
senhor Helio Costa, ao Paulo Bifano, ao Carlos Henrique, toda a corja
que ocupou a empresa.
Correio da Cidadania: As terceirizações continuam em alta, mas nas mesmas proporções que anteriormente?
Moyses Leme: Agora estão liberando contratações de terceirizados,
até por determinação do Ministério Público. Isso é irregular e muito
grave. Vamos fiscalizar unidade por unidade. Não pode haver essa entrega
direta do serviço de correspondência, é algo grave.
Porque, sem que se leve a mal, sempre que há uma leva de contratações,
são registrados problemas com assaltos, perda de objetos; são milhões de
reais perdidos, não é brincadeira.
Correio da Cidadania: Dessa forma, você também estenderia as
criticas ao Paulo Bifano, que saiu atirando contra o Helio Costa,
acusando-o de sucatear propositalmente os serviços dos Correios, com a
intenção de posteriormente privatizar mais uma rentável empresa pública?
Moyses Leme: Ele não teve cuidado, não teve respeito, não buscou
em momento algum ouvir os funcionários. Também tem um grupo dentro da
empresa que joga contra, não é só o pessoal de fora. Dentro também,
jogando contra a valorização dos funcionários, só com uma fração deles
possuindo plano de carreira e de salário... É preciso resgatar esses
planos, também o de cargos, trazer de volta o ânimo dos trabalhadores de
níveis médio, técnico e de terceiro grau.
Hoje, o cara entra como engenheiro nos Correios e em um ano sai para
outra empresa. Por quê? Porque não há perspectiva de ascensão, os cargos
comissionados são apenas de indicação política. Às vezes é gente que
não tem conhecimento técnico, ou um conhecimento superior, e sim porque é
sobrinho de senador, de alguém do alto escalão, sendo nomeado para uma
empresa que movimenta bilhões de reais. E as pessoas ficam desmotivadas,
porque, depois de um concurso público, todo o estudo e esforço não
valem nada, pois nunca se irá para outro cargo, a não ser que a pessoa
tenha um parente político ou coisa assim lá dentro. Tal situação precisa
acabar.
É preciso retomar a política de plano de carreira, que dê condições de a
pessoa ascender na empresa, melhorar o salário... Os Correios estão
pagando muito mal, nos níveis médio, técnico e principalmente terceiro
grau. Nós vemos no mundo os governos investindo bilhões de reais em seus
correios. Aqui é o contrário: todos os anos sacam 400 milhões de reais
da empresa. Um dinheiro que deveria ser investido em mais funcionários,
melhores salários, mais agências, mais veículos próprios. Mas não! Hoje,
a logística dos Correios é totalmente terceirizada, portanto, não temos
controle algum sobre a logística da empresa.
Correio da Cidadania: Ou seja, a empresa está totalmente gerenciada
no sentido de servir interesses particulares. Mesmo na condição de
estatal, opera na prática de forma privatizada.
Moyses Leme: Por isso que defendemos o resgate de nossa própria
logística de transporte terrestre, assim como uma outra logística de
transporte aéreo, competindo com empresas do mercado internacional, como
a Fedex. Precisamos discutir essa questão, as empresas internacionais
disputam o filé mignon e nós temos de ficar com tudo, interior e
capitais, enquanto eles só ficam nas capitais. Nós queremos taxá-los
mais por isso também, de modo a reverter mais recursos à estrutura dos
Correios. Até porque precisamos atender à necessidade de universalização
dos serviços postais.
Portanto, é preciso que parem de meter a mão no dinheiro dos Correios,
para que o utilizemos a fim de desenvolver os serviços postais em todos
os municípios. Se não, quem vai fazer isso, a Fedex, a DHL?
Atualmente, 40 milhões de brasileiros não recebem suas correspondências
diretamente em casa. Como fazemos? Por isso estamos mostrando, nós do
sindicato e da federação, tal necessidade, de como é preciso desenvolver
o mercado dos serviços postais.
Correio da Cidadania: A empresa precisaria contratar quantas pessoas
para suprir plenamente suas necessidades de atendimento e caminhar para
essa universalização?
Moyses Leme: Antes de responder a esta pergunta e falar do
concurso que contratará uma quantidade razoável de pessoas, gostaria de
lembrar dos demitidos de 97. Com a aprovação da lei Maria do Rosário,
que está parada no Senado na mão do Inácio Arruda, conseguiríamos
recolocar 4 mil trabalhadores demitidos injustamente no governo FHC,
pelas mãos do Sérgio Motta. Que o diabo o tenha, pois não prestava
mesmo.
Pois esses 4 mil demitidos merecem seus empregos de volta. E a lei está
lá emperrada no Senado. No entanto, mesmo com a volta de todos, ainda
não seria suficiente.
Para prestar um serviço de qualidade à população, o mínimo seriam 30 mil contratações.
A previsão do concurso é 8 mil, mas não dá, é muito pouco, estamos discutindo com a direção da empresa pelo menos 15 mil.
Correio da Cidadania: Além disso, é preciso garantir que as
contratações se efetivem rapidamente após o concurso, o que nem sempre
ocorre.
Moyses Leme: É preciso mesmo deixar isso claro, queremos que o
concurso aconteça, que as pessoas recebam a oportunidade, mas que a
qualidade melhore, pois hoje está difícil trabalhar lá.
Temos que ficar atentos, assim como a imprensa, que precisa esclarecer a
população, que só aumenta, assim como o mercado cresce, como se vê nas
obras pelas cidades, que não param de crescer; e não se vê contratação
de funcionários. Infelizmente, isso acarreta uma péssima qualidade do
serviço.
Além disso, há os problemas da terceirização, precarização do trabalho,
malversação de recursos dentro da empresa, como no caso dos aluguéis de
imóveis, em que se paga para o empresário construir, arcando-se com toda
a obra, e depois os Correios ficam sem nada.
Veja o absurdo: os Correios, por exemplo, querem uma área de 1500m²,
fazem um contrato de cinco anos com uma empresa, que paga tudo relativo à
obra durante esse tempo e depois apresenta uma fatura maior do que
aquilo que foi efetivamente gasto, saindo num lucro enorme. Depois
desses 5 anos, o dono tem um patrimônio imenso! Vai no banco, pega uma
linha de crédito e faz um patrimônio de 5, 10 milhões de reais em 5 ou
10 anos. Isto é, mais uma forma de promover o repasse do dinheiro
público ao setor privado.
Correio da Cidadania: Por mecanismos cada vez mais invisíveis.
Moyses Leme: É um absurdo o que tem acontecido na empresa. Fora a
falta de controle nas franquias, que dão um prejuízo de mais de 1
bilhão por ano. Enfim, é muita coisa a ser resolvida.
Outro exemplo é o banco postal. Tem que sair do Bradesco, precisamos de
parcerias com outros bancos, alguma solução. É uma exploração com os
funcionários da empresa, pois não há horário bancário, caixa adequado,
segurança, e o lucro fica todo com o Bradesco, outra picaretagem. E
ainda postergaram a resolução disso para 2011.
Mas esperamos resolver essa questão já no ano que vem e estender o banco
postal para cada município e distrito do país. Na última pesquisa que
fiz, em 1750 municípios o único banco postal era o nosso. O banco postal
tem de ser uma ferramenta importante, como são os bancos postais
francês, japonês, chinês. No Brasil é que é uma sacanagem, com o perdão
do termo. Você trabalha, corre todos os riscos e o lucro fica com o
Bradesco. E com os outros apadrinhados também esquematizados.
Correio da Cidadania: Após todo esse apanhado das tendências
privatizantes que têm dominado a estatal, como você acredita que a
presidente eleita Dilma Rousseff deve tratar os Correios em seu mandato?
Moyses Leme: Nós temos muita confiança que a presidente Dilma
possa resgatar a empresa. Mas, em primeiro lugar, não tem a menor
condição de o Ministério das Comunicações ficar na mão do PMDB. Esse é o
primeiro ponto, não tem condição (A entrevista foi realizada na
segunda-feira, 29/11; no dia 30, Dilma Rousseff nomeou Paulo Bernardo,
ex-ministro do Planejamento, para a pasta).
Em segundo lugar, o planejamento da empresa deve ser discutido com os
trabalhadores. Eles sabem o que é melhor para a empresa, e não podem ser
ouvidos somente depois de greves. Não pode ser por aí o tratamento com o
trabalhador.
O terceiro ponto é investimento. Em imóveis próprios, em abrir novas
agências, ter uma frota própria de transportes terrestre e aéreo. E
investir na questão humana, com contratações, melhoria salarial em todos
os níveis. Senão, vamos perder nossos profissionais para outras
empresas. Precisamos oferecer plano de carreira, com condições de
ascensão sem que se seja filho, neto, do rei ou coisa assim. Fazer
concursos e dar espaço a muita gente boa que quer contribuir com a
empresa.
Para que se tenha uma idéia, uma das coisas que dá muito lucro na
empresa e que está sendo abandonada são as coleções de selos. Tem todo
um mercado internacional de filatelia e esse setor nos nossos Correios
está acabando! E sempre rendeu milhões de reais. É preciso recuperar
tais aspectos também, relativos à história da empresa.
Acredito que a Dilma vai dar uma resposta positiva, com mobilização dos trabalhadores. Temos muito trabalho pela frente.
Correio da Cidadania: Acredita que a presidente irá combater essas privatizações disfarçadas?
Moyses Leme: Espero que ela acabe com isso. O Serra falou muito
em estatização no período eleitoral, e ela ficou um pouco calada para
não polemizar no momento.
Mas em reuniões que já tivemos com gente do PT, com os deputados Geraldo
Magela, Erika Kokay, falou-se muito na manutenção da empresa pública. O
senador Paulo Paim também é defensor dos Correios públicos e de
qualidade.
Enfim, há um segmento que acredita em outro caminho, de um Correio
eficiente, presente em todos os municípios e distritos do país, com
muita capilaridade. Esse é o único caminho. Uma empresa pública com
forte participação do Estado, que seja mais que uma empresa, e sim uma
entidade que presta o serviço público com cidadania.
Correio da Cidadania: E a Dilma terá essa visão estratégica sobre a empresa?
Moyses Leme: Esperamos tanto que ela tenha essa visão como que
ouça os trabalhadores, as entidades de classe, para que possamos de fato
trilhar tal caminho. Muita gente sabe que esse é o caminho, inclusive
ela. Esperamos que ela não traia a população e os trabalhadores, pelo
contrário, que mantenha a empresa pública e faça os investimentos
necessários, sabendo que o PMDB não tem condição nenhuma de assumir os
Correios. Não se trata de querer impor esse ponto à presidente, mas já
está comprovado, são coisas que já aconteceram. Eles não têm condições
de administrar o Ministério das Comunicações, são muito incompetentes.
Correio da Cidadania: Dessa forma, o que pensa da atuação de Helio
Costa no Ministério das Comunicações? Muitas figuras, a respeito de
outros assuntos, o chamaram criticamente de ‘ministro da Globo’, uma vez
que por diversas vezes se posicionou publicamente no sentido de
tranqüilizar a mídia hegemônica em assuntos de seu interesse – além de
ser ex-funcionário da emissora. Trata-se de um privatista nato,
empenhado em transferir patrimônio público a grupos políticos de sua
proximidade?
Moyses Leme: A gente viu isso. Durante todo seu período, ele deu
seqüência às terceirizações, ao fim das garagens, impediu toda sorte de
investimentos. O próprio Bifano, de outra ala do PMDB, foi quem fez as
denúncias que vimos na imprensa nos últimos dias. Nem a gente sabia que a
coisa era tão profunda assim, com tanto descaso do ministro em relação à
empresa, falta de cidadania. Pior: ele não tinha respeito nem pela
soberania do país, porque um Correio público também é questão de
soberania. E respeito à população.
Portanto, queria dizer que nós trabalhadores esperamos que, de fato, as
coisas mudem, que ocorram contratações, o fim das terceirizações, que
possamos ter nossa logística terrestre e aérea e um maior diálogo. E que
levem a sério o que falarmos, pois tudo que acontece hoje foi acusado
com muita antecedência e não foi levado a sério por ninguém, diretor de
RH, presidente, diretoria, conselho, governo...
Tudo que acontece agora na empresa nós estávamos criticando, relatando e
denunciando há muito tempo. Conhecemos a situação de perto e queremos
solução. O governo precisa dar atenção ao trabalhador, que tem
conhecimento de causa.
Correio da Cidadania: Para isso é preciso abandonar, pelo menos em
parte, a visão completamente mercantilizada das relações sociais que
temos hoje em dia, retomando também, como você disse, o caráter humano
de uma empresa pública.
Moyses Leme: Claro, é preciso considerar a questão social. A
empresa é boa, tem tudo para avançar e crescer, pois também está num
mercado que cresce cada dia mais. É possível fazer um trabalho com
seriedade e profissionalismo. Por isso reforço a questão do plano de
carreira, pois os trabalhadores costumam ter compromisso com a empresa.
Em geral, quem tem compromisso com a empresa são os do segundo escalão,
não os de cima. Esses vivem do status superior, não estão nem aí pra
nada, apenas seguem ordens, já estão com a vida ganha, enfim, não querem
nada.
Queremos renovação, com pessoas capacitadas, com condições de
desempenhar as necessidades dos Correios, contratando funcionários e
universalizando os serviços postais. É o que esperamos.
Correio da Cidadania: Alguns estados têm começado a cobrar, inclusive
judicialmente, por uma resposta dos Correios, pois alguns de seus
cidadãos vêm ficando sem receber suas correspondências. Por sua vez, a
empresa alega que os próprios estados e municípios deixam de colaborar
ao não fazerem o cadastro de todos os endereços de seu território. Algo
tem sido feito para sanar os problemas?
Moyses Leme: Tem de ser feito. Os estados têm que contribuir
também. Na verdade, não há o interesse nem da empresa, por meio do
Ministério das Comunicações, e nem dos estados e municípios na questão
postal.
Em Brasília, por exemplo, temos 500 mil pessoas que não recebem
correspondência diretamente. A capital do país. Devido também à falta
desse trabalho por parte dos municípios e dos legislativos. Tais
questões só se resolvem com contratação de concursados e fim das
terceirizações de atividades-fim, negativas para o cliente e a empresa.
É o que queremos mudar.
Correio da Cidadania: Você vê possibilidades de entrarmos em um ‘caos postal’?
Moyses Leme: Com concursos públicos e a contratação emergencial,
mais a aprovação da lei dos trabalhadores demitidos em 97, penso que
conseguiríamos dar uma melhor qualidade aos nossos serviços postais. Com
mais respeito pela empresa e os trabalhadores e o fim do assédio moral,
podemos evitá-lo.
Gabriel Brito é jornalista.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
“Precisamos de um resgate dos Correios acima de partidos políticos e indicações”
Do Blog do Cadu
Os Indiferentes
Antonio Gramsci
11 de Fevereiro de 1917
Primeira Edição: La Città Futura, 11-2-1917
Origem da presente Transcrição: Texto retirado do livro Convite à Leitura de Gramsci"
Tradução: Pedro Celso Uchôa Cavalcanti.
Transcrição de: Alexandre Linares para o Marxists Internet Archive
HTML de: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: Marxists Internet Archive (marxists.org), 2005. A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License
Origem da presente Transcrição: Texto retirado do livro Convite à Leitura de Gramsci"
Tradução: Pedro Celso Uchôa Cavalcanti.
Transcrição de: Alexandre Linares para o Marxists Internet Archive
HTML de: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: Marxists Internet Archive (marxists.org), 2005. A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License
Odeio os indiferentes. Como Friederich
Hebbel acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir
os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode
deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo,
covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.
A indiferença é o peso morto da história. É a bala
de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os
entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende
melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus
guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima
e desencoraja e às vezes, os leva a desistir de gesta heróica.
A indiferença atua poderosamente na história. Atua
passivamente, mas atua. É a fatalidade; e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que
confunde os programas, que destrói os planos mesmo os mais bem construídos; é a
matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o
mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de valor
universal) pode gerar, não se fica a dever tanto à iniciativa dos poucos que
atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que
acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a
massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que,
depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta
fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá
derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a
aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo. Há fatos que amadurecem
na sombra, porque poucas mãos, sem qualquer controle a vigiá-las, tecem a teia da vida
coletiva, e a massa não sabe, porque não se preocupa com isso. Os destinos de
uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e com fins imediatos,
de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa
dos homens não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à
superfície; o tecido feito na sombra chega ao seu fim, e então parece ser a
fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um
gigantesco fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que são todos
vítimas, o que quis e o que não quis, quem sabia e quem não sabia, quem se
mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então zangam-se, queriam eximir-se
às conseqüências, quereriam que se visse que não deram o seu aval, que não são
responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas
nenhum ou poucos põem esta questão: se eu tivesse também cumprido o meu dever,
se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido
o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos atribuem à sua indiferença, ao seu
cepticismo, ao fato de não ter dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos
de cidadãos que, precisamente para evitarem esse mal combatiam (com o propósito)
de procurar o tal bem (que) pretendiam.
A maior parte deles, porém, perante fatos
consumados prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente
desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de
qualquer responsabilidade. E não por não verem claramente as coisas, e, por
vezes, não serem capazes de perspectivar excelentes soluções para os problemas
mais urgentes, ou para aqueles que, embora requerendo uma ampla preparação e
tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções são belissimamente
infecundas; mas esse contributo para a vida coletiva não é animado por qualquer
luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente sentido de uma
responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não
admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.
Odeio os indiferentes também, porque me provocam
tédio as suas lamúrias de eternos inocentes. Peço contas a todos eles pela
maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe quotidianamente,
do que fizeram e sobretudo do que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável,
que não devo desperdiçar a minha compaixão, que não posso repartir com eles as
minhas lágrimas. Sou militante, estou vivo, sinto nas consciências viris dos que
estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa
cidade, a cadeia social não pesará sobre um número reduzido, qualquer coisa que
aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à inteligência dos
cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto um pequeno grupo se
sacrifica, se imola no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela emboscado,
e que pretenda usufruir do pouco bem que a atividade de um pequeno grupo tenta
realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado, porque não
conseguiu o seu intento.
Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.
Apropriação indébita: como os ricos estão tirando nossa herança comum
A concentração de renda e a destruição ambiental continuam sendo os nossos grandes desafios. São facetas diferentes da mesma dinâmica: na prática, estamos destruindo o planeta para a satisfação consumista de uma minoria, e deixando de atender os problemas realmente centrais. Como explicar que, com tantas tecnologias, produtividade e modernidade, estejamos reproduzindo o atraso?
Por Ladislau Dowbor
A concentração de renda e a destruição ambiental
continuam sendo os nossos grandes desafios. São facetas diferentes da
mesma dinâmica: na prática, estamos destruindo o planeta para a
satisfação consumista de uma minoria, e deixando de atender os problemas
realmente centrais. Como explicar que, com tantas tecnologias,
produtividade e modernidade, estejamos reproduzindo o atraso? Em
particular, como a sociedade do conhecimento pode se transformar em
vetor de desigualdade?
O prêmio Nobel Kenneth Arrow considera que os autores de "Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum", Gar Alperovitz e Lew Daly, "se baseiam em fontes impecáveis e as usam com maestria. Todo mundo irá aprender ao ler este livro". Eu, que não sou nenhum prêmio Nobel, venho aqui contribuir com a minha modesta recomendação, transformando o meu prefácio em instrumento de divulgação. Mania de professor, querer comunicar o entusiasmo de boas leituras. E recomendação a não economistas: os autores deste livro têm suficiente inteligência para não precisar se esconder atrás de equações. A leitura flui.
A quem vai o fruto do nosso trabalho, e em que proporções? É a eterna questão do controle dos nossos processos produtivos. Na era da economia rural, os ricos se apropriavam do fruto do trabalho social, por serem donos da terra. Na era industrial, por serem donos da fábrica. E na era da economia do conhecimento, a propriedade intelectual se apresenta como a grande avenida de acesso a uma posição privilegiada na sociedade. Mas para isso, é preciso restringir o acesso generalizado ao conhecimento, pois se todos tiverem acesso, como se cobrará o pedágio, como se assegurará a vantagem de minorias?
Um argumento chave desta discussão é, naturalmente, a legitimidade da posse. De quem é a terra, que permitia as fortunas e o lazer agradável dos senhores feudais? Apropriação na base da força, sem dúvida, legitimada em seguida por uma estrutura de heranças familiares. Uma vez aceito, o sistema funciona, pois na parte de cima da sociedade forma-se uma aliança natural ditada por interesses comuns.
Na fase industrial, um empresário pega um empréstimo no banco -e para isso ele já deve pertencer a um grupo social privilegiado- e monta uma empresa. Da venda dos produtos, e pagando baixos salários, tanto auferirá lucros pessoal como restituirá o empréstimo ao banco. De onde o banco tirou o dinheiro? Da poupança social, sob forma de depósitos, poupança esta que será transformada na fábrica do empresário. Aqui também, vale a solidariedade dos proprietários de meios de produção, e o resultado de um esforço que é social será em boa parte apropriado por uma minoria.
Mudam os sistemas, evoluem as tecnologias, mas não muda o esquema. Na fase atual, da economia do conhecimento, coloca-se o espinhoso problema da legitimidade da posse do conhecimento. A mudança é radical, relativamente aos sistemas anteriores: a terra pertence a um ou a outro, as máquinas têm proprietário, são bens "rivais". No caso do conhecimento, trata-se de um bem cujo consumo não reduz o estoque. Se transmitimos o conhecimento a alguém, continuamos com ele, não perdemos nada, e como o conhecimento transmitido gera novos conhecimentos, todos ganham. A tendência para a livre circulação do conhecimento para o bem de todos torna-se, portanto, poderosa.
A apropriação privada de um produto social deve ser justificada. O aporte principal de Alperovitz e de Daly, neste pequeno estudo, é de deixar claro o mecanismo de uma apropriação injusta -Unjust Deserts- que poderíamos explicitar com a expressão mais corrente de apropriação indébita. Ao tornar transparentes estes mecanismos, os autores na realidade estão elaborando uma teoria do valor da economia do conhecimento. A força explicativa do que acontece na sociedade moderna, com isto, torna-se poderosa.
Para dar um exemplo trazido pelo autor, quando a Monsanto adquire controle exclusivo sobre determinada semente, como se a inovação tecnológica fosse um aporte apenas dela, esquece o processo que sustentou estes avanços. "O que eles nunca levam em consideração, é o imenso investimento coletivo que carregou a ciência genética dos seus primeiros passos até o momento em que a empresa toma a sua decisão. Todo o conhecimento biológico, estatístico e de outras áreas sem o qual nenhuma das sementes altamente produtivas e resistentes a doenças poderia ter sido desenvolvida -todas as publicações, pesquisas, educação, treinamento e ferramentas técnicas relacionadas sem os quais a aprendizagem e o conhecimento não poderiam ter sido comunicados e fomentados em cada estágio particular de desenvolvimento e, então, passados adiante e incorporados também por uma força de trabalho de técnicos e cientistas- tudo isto chega à empresa sem custo, um presente do passado" (55). Ao apropriar-se do direito sobre o produto final, e ao travar desenvolvimentos paralelos, a empresa canaliza para si gigantescos lucros da totalidade do esforço social, que ela não teve de financiar. Trata-se de um pedágio sobre o esforço dos outros. Unjust Deserts.
Se não é legítimo, pelo menos funciona? A compreensão do caráter particular do conhecimento como fator de produção já é antiga. Uma jóia a este respeito é um texto 1813 de Thomas Jefferson:
"Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras de propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que chamamos de idéia... Que as idéias devam se expandir livremente de uma pessoa para outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do homem, e o avanço de sua condição, parece ter sido particularmente e benevolentemente desenhado pela natureza, quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por natureza, ser objeto de propriedade". (1)
O conhecimento não constitui uma propriedade no mesmo sentido que a de um bem físico. A caneta é minha, faço dela o que quiser. O conhecimento, na medida em que resulta de um esforço social muito amplo, e constitui um bem não rival, obedece a outra lógica, e por isto não é assegurado em permanência, e sim por vinte anos, por exemplo, no caso das patentes, ou quase um século no caso dos copyrights, mas sempre por tempo limitado: a propriedade é assegurada por sua função social -estimular as pessoas a inventarem ou a escreverem- e não por ser um direito natural.
O merecimento é para todos nós um argumento central. Segundo as palavras dos autores, "nada é mais profundamente ancorado em pessoas comuns do que a idéia de que uma pessoa tem direito ao que criou ou ao que os seus esforços produziram".(96) Mas na realidade, não são propriamente os criadores que são remunerados, e sim os intermediários jurídicos, financeiros e de comunicação comercial que se apropriam do resultado da criatividade, trancando-o em contratos de exclusividade, e fazem fortunas de merecimento duvidoso. Não é a criatividade que é remunerada, e sim a apropriação dos resultados: "Se muito do que temos nos chegou como um presente gratuito de muitas gerações de contribuições históricas, há uma questão profunda relativamente a quanto uma pessoa possa dizer que "ganhou merecidamente" no processo, agora ou no futuro."(97)
As pessoas, em geral, não se dão conta das limitações. Hoje 95% do milho plantado nos EUA é de uma única variedade, com desaparecimento da diversidade genética, e as ameaças para o futuro são imensas. Teremos livre acesso às obras de Paulo Freire apenas a partir de 2050, 90 anos depois da morte do autor. O livre acesso às composições de Heitor Villalobos será a partir de 2034. Isto está ajudando a criatividade de quem? Patentes de 20 anos há meio século atrás podiam parecer razoáveis, mas com o ritmo de inovação atual, que sentido fazem? Já são 25 milhões de pessoas que morreram de Aids, e as empresas farmacêuticas (o Big Pharma) proíbem os países afetados de produzir o coquetel, são donas de intermináveis patentes. Ou seja, há um imenso enriquecimento no topo da pirâmide, baseado não no que estas pessoas aportaram, mas no fato de se apropriarem de um acúmulo historicamente construído durante sucessivas gerações.
Nesta era em que a concentração planetária da riqueza social em poucas mãos está se tornando insustentável, entender o mecanismo de geração e de apropriação desta riqueza é fundamental. Os autores não são nada extremistas, mas defendem que o acesso aos resultados dos esforços produtivos devam ser minimamente proporcionais aos aportes. "A fonte de longe a mais importante da prosperidade moderna é a riqueza social sob forma de conhecimento acumulado e de tecnologia herdada", o que significa que "uma porção substantiva da presente riqueza e renda deveria ser realocada para todos os membros da sociedade de forma igualitária, ou no mínimo, no sentido de promover maior igualdade".(153)
Um livro curto, muito bem escrito, e, sobretudo, uma preciosidade teórica, explicitando de maneira clara a deformação generalizada do mecanismo de remuneração, ou de recompensas, que o nosso sistema econômico gerou. Trata-se aqui de um dos melhores livros de economia que já passaram por minhas mãos. Bem documentado, mas sempre claro na exposição, fortemente apoiado em termos teóricos, na realidade o livro abre a porta para o que podemos qualificar de teoria do valor, mas não da produção industrial, e sim da economia do conhecimento, o que Daniel Bell qualificou de "knowledge theory of value". A Editora Senac tomou uma excelente iniciativa ao traduzir e publicar este livro. Vale à pena. (www.editorasenacsp.com.br)
Nota:
(1) Citado por Lawrence Lessig, The Future of Ideas: the Fate of the Commons in an Connected World - Random House, New York, 2001, p. 94.
[Autor de Democracia Econômica e de Da propriedade Intelectual à Sociedade do Conhecimento, disponíveis em http://dowbor.org.
Gar Alperovitz and Lew Daly - Apropriação Indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum - Editora Senac, São Paulo 2010, 242 p.].
* Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas
Publicado por Adital. Foto de T. Brandão.
O prêmio Nobel Kenneth Arrow considera que os autores de "Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum", Gar Alperovitz e Lew Daly, "se baseiam em fontes impecáveis e as usam com maestria. Todo mundo irá aprender ao ler este livro". Eu, que não sou nenhum prêmio Nobel, venho aqui contribuir com a minha modesta recomendação, transformando o meu prefácio em instrumento de divulgação. Mania de professor, querer comunicar o entusiasmo de boas leituras. E recomendação a não economistas: os autores deste livro têm suficiente inteligência para não precisar se esconder atrás de equações. A leitura flui.
A quem vai o fruto do nosso trabalho, e em que proporções? É a eterna questão do controle dos nossos processos produtivos. Na era da economia rural, os ricos se apropriavam do fruto do trabalho social, por serem donos da terra. Na era industrial, por serem donos da fábrica. E na era da economia do conhecimento, a propriedade intelectual se apresenta como a grande avenida de acesso a uma posição privilegiada na sociedade. Mas para isso, é preciso restringir o acesso generalizado ao conhecimento, pois se todos tiverem acesso, como se cobrará o pedágio, como se assegurará a vantagem de minorias?
Um argumento chave desta discussão é, naturalmente, a legitimidade da posse. De quem é a terra, que permitia as fortunas e o lazer agradável dos senhores feudais? Apropriação na base da força, sem dúvida, legitimada em seguida por uma estrutura de heranças familiares. Uma vez aceito, o sistema funciona, pois na parte de cima da sociedade forma-se uma aliança natural ditada por interesses comuns.
Na fase industrial, um empresário pega um empréstimo no banco -e para isso ele já deve pertencer a um grupo social privilegiado- e monta uma empresa. Da venda dos produtos, e pagando baixos salários, tanto auferirá lucros pessoal como restituirá o empréstimo ao banco. De onde o banco tirou o dinheiro? Da poupança social, sob forma de depósitos, poupança esta que será transformada na fábrica do empresário. Aqui também, vale a solidariedade dos proprietários de meios de produção, e o resultado de um esforço que é social será em boa parte apropriado por uma minoria.
Mudam os sistemas, evoluem as tecnologias, mas não muda o esquema. Na fase atual, da economia do conhecimento, coloca-se o espinhoso problema da legitimidade da posse do conhecimento. A mudança é radical, relativamente aos sistemas anteriores: a terra pertence a um ou a outro, as máquinas têm proprietário, são bens "rivais". No caso do conhecimento, trata-se de um bem cujo consumo não reduz o estoque. Se transmitimos o conhecimento a alguém, continuamos com ele, não perdemos nada, e como o conhecimento transmitido gera novos conhecimentos, todos ganham. A tendência para a livre circulação do conhecimento para o bem de todos torna-se, portanto, poderosa.
A apropriação privada de um produto social deve ser justificada. O aporte principal de Alperovitz e de Daly, neste pequeno estudo, é de deixar claro o mecanismo de uma apropriação injusta -Unjust Deserts- que poderíamos explicitar com a expressão mais corrente de apropriação indébita. Ao tornar transparentes estes mecanismos, os autores na realidade estão elaborando uma teoria do valor da economia do conhecimento. A força explicativa do que acontece na sociedade moderna, com isto, torna-se poderosa.
Para dar um exemplo trazido pelo autor, quando a Monsanto adquire controle exclusivo sobre determinada semente, como se a inovação tecnológica fosse um aporte apenas dela, esquece o processo que sustentou estes avanços. "O que eles nunca levam em consideração, é o imenso investimento coletivo que carregou a ciência genética dos seus primeiros passos até o momento em que a empresa toma a sua decisão. Todo o conhecimento biológico, estatístico e de outras áreas sem o qual nenhuma das sementes altamente produtivas e resistentes a doenças poderia ter sido desenvolvida -todas as publicações, pesquisas, educação, treinamento e ferramentas técnicas relacionadas sem os quais a aprendizagem e o conhecimento não poderiam ter sido comunicados e fomentados em cada estágio particular de desenvolvimento e, então, passados adiante e incorporados também por uma força de trabalho de técnicos e cientistas- tudo isto chega à empresa sem custo, um presente do passado" (55). Ao apropriar-se do direito sobre o produto final, e ao travar desenvolvimentos paralelos, a empresa canaliza para si gigantescos lucros da totalidade do esforço social, que ela não teve de financiar. Trata-se de um pedágio sobre o esforço dos outros. Unjust Deserts.
Se não é legítimo, pelo menos funciona? A compreensão do caráter particular do conhecimento como fator de produção já é antiga. Uma jóia a este respeito é um texto 1813 de Thomas Jefferson:
"Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras de propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que chamamos de idéia... Que as idéias devam se expandir livremente de uma pessoa para outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do homem, e o avanço de sua condição, parece ter sido particularmente e benevolentemente desenhado pela natureza, quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por natureza, ser objeto de propriedade". (1)
O conhecimento não constitui uma propriedade no mesmo sentido que a de um bem físico. A caneta é minha, faço dela o que quiser. O conhecimento, na medida em que resulta de um esforço social muito amplo, e constitui um bem não rival, obedece a outra lógica, e por isto não é assegurado em permanência, e sim por vinte anos, por exemplo, no caso das patentes, ou quase um século no caso dos copyrights, mas sempre por tempo limitado: a propriedade é assegurada por sua função social -estimular as pessoas a inventarem ou a escreverem- e não por ser um direito natural.
O merecimento é para todos nós um argumento central. Segundo as palavras dos autores, "nada é mais profundamente ancorado em pessoas comuns do que a idéia de que uma pessoa tem direito ao que criou ou ao que os seus esforços produziram".(96) Mas na realidade, não são propriamente os criadores que são remunerados, e sim os intermediários jurídicos, financeiros e de comunicação comercial que se apropriam do resultado da criatividade, trancando-o em contratos de exclusividade, e fazem fortunas de merecimento duvidoso. Não é a criatividade que é remunerada, e sim a apropriação dos resultados: "Se muito do que temos nos chegou como um presente gratuito de muitas gerações de contribuições históricas, há uma questão profunda relativamente a quanto uma pessoa possa dizer que "ganhou merecidamente" no processo, agora ou no futuro."(97)
As pessoas, em geral, não se dão conta das limitações. Hoje 95% do milho plantado nos EUA é de uma única variedade, com desaparecimento da diversidade genética, e as ameaças para o futuro são imensas. Teremos livre acesso às obras de Paulo Freire apenas a partir de 2050, 90 anos depois da morte do autor. O livre acesso às composições de Heitor Villalobos será a partir de 2034. Isto está ajudando a criatividade de quem? Patentes de 20 anos há meio século atrás podiam parecer razoáveis, mas com o ritmo de inovação atual, que sentido fazem? Já são 25 milhões de pessoas que morreram de Aids, e as empresas farmacêuticas (o Big Pharma) proíbem os países afetados de produzir o coquetel, são donas de intermináveis patentes. Ou seja, há um imenso enriquecimento no topo da pirâmide, baseado não no que estas pessoas aportaram, mas no fato de se apropriarem de um acúmulo historicamente construído durante sucessivas gerações.
Nesta era em que a concentração planetária da riqueza social em poucas mãos está se tornando insustentável, entender o mecanismo de geração e de apropriação desta riqueza é fundamental. Os autores não são nada extremistas, mas defendem que o acesso aos resultados dos esforços produtivos devam ser minimamente proporcionais aos aportes. "A fonte de longe a mais importante da prosperidade moderna é a riqueza social sob forma de conhecimento acumulado e de tecnologia herdada", o que significa que "uma porção substantiva da presente riqueza e renda deveria ser realocada para todos os membros da sociedade de forma igualitária, ou no mínimo, no sentido de promover maior igualdade".(153)
Um livro curto, muito bem escrito, e, sobretudo, uma preciosidade teórica, explicitando de maneira clara a deformação generalizada do mecanismo de remuneração, ou de recompensas, que o nosso sistema econômico gerou. Trata-se aqui de um dos melhores livros de economia que já passaram por minhas mãos. Bem documentado, mas sempre claro na exposição, fortemente apoiado em termos teóricos, na realidade o livro abre a porta para o que podemos qualificar de teoria do valor, mas não da produção industrial, e sim da economia do conhecimento, o que Daniel Bell qualificou de "knowledge theory of value". A Editora Senac tomou uma excelente iniciativa ao traduzir e publicar este livro. Vale à pena. (www.editorasenacsp.com.br)
Nota:
(1) Citado por Lawrence Lessig, The Future of Ideas: the Fate of the Commons in an Connected World - Random House, New York, 2001, p. 94.
[Autor de Democracia Econômica e de Da propriedade Intelectual à Sociedade do Conhecimento, disponíveis em http://dowbor.org.
Gar Alperovitz and Lew Daly - Apropriação Indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum - Editora Senac, São Paulo 2010, 242 p.].
* Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas
Publicado por Adital. Foto de T. Brandão.
Entrevista com Tarso Genro no Pagina12...
Tarso Genro: “Já não se trata de entrar, matar e sair”
Em entrevista ao jornal argentino
Página/12, o governador eleito do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, fala
sobre a política de segurança pública que vem sendo construída pelo
governo federal em parceria com Estados e municípios. Como ministro da
Justiça, Tarso foi um dos principais elaboradores dessa política que
está ganhando atenção internacional a partir dos recentes acontecimentos
do Rio de Janeiro. “É uma concepção de policía comunitária, que deve
ocupar os espaços e articular seu trabalho com programas sociais nas
zonas em conflito”.
Martín Granovsky - Página/12
Em entrevista ao jornal argentino Página/12,
o governador eleito do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, fala sobre a
política de segurança pública que vem sendo construída pelo governo
federal em parceria com Estados e municípios. Como ministro da Justiça,
Tarso foi um dos principais elaboradores dessa política que está
ganhando atenção internacional a partir dos recentes acontecimentos do
Rio de Janeiro. “É uma concepção de policía comunitária, que deve ocupar
os espaços e articular seu trabalho com programas sociais nas zonas em
conflito”. Na entrevista, Tarso também fala sobre o problema do
narcotráfico e do consumo de drogas no Brasil. Reproduzimos a seguir a
entrevista realizada por Martín Granovsky:
*******************************************************
Nascido
perto da frontera com a Argentina, aos 63 anos o advogado Tarso Genro
asumirá dia 1° de janeiro o governo do Rio Grande do Sul. Duas vezes
prefeito da capital gaúcha, Porto Alegre, Genro ganhou o governo do
Estado no primeiro turno, com 54% dos votos. Tem um éxito recente: como
ministro da Justiça de Luiz Inácio Lula da Silva, criou um plano de
segurança que nos últimos dias tornou-se famoso em todo o mundo pela
entrada impactante das forças de segurança nas favelas do Rio de
Janeiro. De passagem por Buenos Aires, Tarso aceitou dialogar com
Página/12.
- Quando assumi o Ministério da Justiça, o presidente Lula me pediu que o governo federal intervisse na segurança pública – conta Genro, que nasceu em São Norja como Getúlio Vargas, o presidente que se suicidou em 1954 e cujo retrato está na Galeria dos Patriotas da Casa Rosada; um presente de Lula. Lula queria que construíssemos um novo paradigma sobre o tema. Mantive uma centena de reuniões com acadêmicos, comandantes da polícia militar e da polícia civil e especialistas internacionais. Assim terminamos desenhando o Pronasci, o Programa Nacional de Segurança Pública Cidadã. Foi a primeira lei programática de segurança pública votada no Brasil.
- Qual era o novo paradigma de segurança?
- Uma concepção de polícia comunitária. Essa polícia deveria ocupar os espaços e articular seu trabalho com programas sociais nas zonas em conflito.
- A polícia comunitária é mais um tipo de polícia?
- Não, é uma concepção. Propusemos que, em cada Estado, se integrassem os gabinetes de segurança pública com uma presença da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária, da Polícia Militar, da Polícia Civil e das autoridades políticas do Estado. Todos deviam articular relações e objetivos comuns.
- Só os Estados?
- Também os municipios. E pela primeira vez. Aí também pensamos programas sociais dirigidos especialmente a jovens e mulheres que são treinados…
- Treinados?
- Não se assuste, Falo de capacitação e não que se convertam em polícias. Eles só têm que buscar outros jovens que estão submetidos à tutela dos traficantes e dos criminosos do bairro. Se não sabemos quem são, eles podem nos ajudar. E queremos que o Estado, as mães e seus amigos possam ajudá-los a se transformarem em seres autônomos. Para a policía pensamos outras coisas. O governo federal ofereceu financiar programas sociais, armas, equipamentos e bolsas de estudo para policiais que desejem melhorar sua formação. A melhoria é premiada com um aumento de cerca de 40% em seus salário. Hoje, cerca de 200 mil policiais de todos os corpos estão com bolsa de estudos.
- Em quantos Estados esse plano está sendo aplicado?
- Em 11 e nas regiões metropolitanas mais importantes. O Rio de Janeiro foi a vanguarda da integração. O conceito de polícia comunitária ganhou o nome de Unidades Policiais de Pacificação. Mas a idéia é a mesma.
- E a chave?
- É um projeto de ocupação territorial. O sistema anterior era entrar, matar e sair. O novo sistema consiste em que o Estado entre, permaneça e se vincule profundamente com a comunidade mediante programas sociais, investimentos em infraestrutura, educação, urbanização. Ou seja: ocupação de territorio, ações policiais de alto nível, permanencia da polícia e aprofundamento dos programas sociais para jovens. No Rio, foi muito importante a atuação do secretario de Segurança, Antonio Beltrame, nomeado pelo gobernador Sérgio Cabral. Beltrame está convencido do acerto do Pronasci e é um entusiasta do programa.
- A experiência argentina mostra que, na província de Buenos Aires, os comissários que ficavam muitos anos no mesmo lugar terminavam sendo parte da máfia.
- Sempre é possível que o crime organizado consiga cooptar um chefe de polícia ou pessoas da comunidade. Oferece segurança, ou seja, “proteção”, em troca de dinheiro e obediencia. Em troca, o Pronasci se baseia na relação entre as mães organizadas e formadas, que recebem bolsas para se capacitar, e os jovens que recebem bolsas também.
- Não devem espionar para a policía?
- Não. Nós as chamamos de Mulheres da Paz. Elas não têm funções policiais nem de vigilância. Só identificam jovens em situação de risco para incluí-los nos programas sociais, educacionais e de formação profissional. Assim se formam redes sociais e os agentes do Estado podem escutar as demandas da população. Quem passa a mandar no territorio não é mais o narcotráfico. Só quem pode oferecer segurança verdadeira é o Estado.
- Os últimos movimentos no Rio foram muito espetaculares. Também foram importantes?
- Muito importantes. Sempre pensamos que a zona chave era essa que foi ocupada no domingo, o Complexo do Alemão, que abrange 16 favelas e tem uma ligação estratégica com o norte da cidade.
- Mas o mercado da droga é o sul, onde vive a classe média junto às praias.
- Sim, é o principal. O narcotráfico gera uma estrutura de integração perversa entre pobres, ricos e traficantes, Eu não falo só dos viciados, mas também daqueles que usam a droga como parte de sua sociabilidade. Os ricos e integrantes da classe média devem compreender que o consumo, ainda que seja por prazer ou por modo de vida, é o que alimenta a violencia. Por isso, esse ciclo de combate ao tráfico e à instrumentalização da juventude das favelas tem que passar também por esses setores. Eu falo do Brasil, um país muito grande e com elementos específicos. No Brasil é necessária a repressão penal aos que compram inclusive pequeñas quantidades, pois também são responsáveis pela construção do sistema de poder dos grupos mafiosos. O adulto que compra uma pequeña quantidade de droga de um menino de 17 anos é um criminoso, porque está na ponta de uma cadeia de circulação e produção de delitos que gerou esta situação no Rio.
- Durante as operações espetaculares nas favelas a cobertura jornalística não tocou no tema da lavagem de dinheiro.
- Temos bons mecanismos, inclusive com êxito em extradições e localização de somas depositadas no exterior, muitas vezes ligadas à evasão e à corrupção. Isso debe ser combatido. Há pouco tempo, o Rio travou um combate exemplar contra as milícias, uma organização de proteção mafiosa relacionada com velhos dirigentes políticos regionais. Um bom trabalho da polícia local e da federal desmantelou essa organização. Foi uma grande vitória da segurança pública. São muitos aspectos. Por isso dizia que debemos romper o mais cedo possível a identidade entre os criminosos da favela e os consumidores. Ou seja, quebrar o mercado, Que faz o DEA (organismo anti-droga dos EUA)? Trabalha para que entre a menor quantidade possível de droga no territorio norteamericano. É seu trabalho. O nosso é proteger o nosso territorio. Por exemplo, as favelas povoadas de brasileiros pobres. Não queremos fazer o trabalho pela metade, Não só procuramos achar a cocaína e queimá-la. Vamos destruir as fábricas da pasta e do pó. Algum nível de tráfico sempre existirá. Nosso objetivo é que seja residual. Não é possível que o tráfico seja a única forma de um joven avançar na vida. Não nos iludimos com um paraíso terrestre de bondade e segurança. É um projeto concreto que procurar cortar um mercado e dar alternativas aos jovens, E já está ocorrendo em muitos territórios.
- O índice de homicidios caiu?
- Em Recife a criminalidade caiu 60%. Em um grande e empobrecido bairro operário do Rio Grande do Sul, Guajuviras, que aplica todos os programas do Pronasci, a criminalidade baixou 50%. É o fruto de uma nova relação Estado-sociedade. E é preciso melhorar os salários dos policiais. No Rio Grande do Sul, um policial ganha quatro cerca de 1.000 reais. Se participar do Pronasci, ganhará 1.400 reais. Esses 400 de diferença não são pouco: servem para alugar um apartamento de dimensões razoáveis.
- Isso é a policía. Na Argentina, impressiona ver tanques do Exército envolvidos nestas operações.
- Reitero que só falo do Brasil. Mas as forças do Exército não participaram de ações armadas. Só controlaram pontos de intersecção. O trabalho foi feito pelas polícias. Temo suma “força nacional” graças a um programa do governo federal que tem capacidade de colocar em qualquer ponto do territorio nacional, em 48 horas, uma força de 300 a 500 homens altamente treinados para realizar ações policiais em um marco de respeito absoluto aos direitos humanos. Leve em conta que, no Brasil, os dois corpos mais respeitados são o Exército e a Polícia Federal. Os militares detiveram o poder absoluto em uma ditadura militar que durou 21 anos, entre 1964 e 1985. Mas, paradoxalmente, o Exército não tem uma tradição de violência antipopular nas ruas. Obviamente estiveram envueltos em casos de tortura ou em crimes dignos da barbarie, mas não realizaram uma caçada como ocorreu em alguns países latinoamericanos.
- Uma parte dos chefes do tráfico segue mandando desde algunas prisões. Qual seria a solução para esse problema?
- Há quatro penitenciárias de segurança máxima para onde estamos mandando os chefes, e estamos construindo uma quinta. O sistema penitenciário estadual é fraco, ofende duramente os direitos humanos e debe ser reformado. A proposta do Pronasci é a construção de penitenciárias de segurança média para até 450 apenados. Assim ficariam fora do controle dos delinquentes.
- Você disse que o Pronasci disponibiliza recursos federais.
- Sim e gostaria de destacar um dado incrível. Tivemos dificuldades para liberar recursos por ausencia de projetos. Poucos Estados tomaram nossos recursos.
- A situação pode mudar dia 1° de janeiro, quando assumem os gobernadores do PT e de seus aliados?
- Sim. Dilma disse na campanha eleitoral que a segurança e a saúde pública serão os elementos prioritários do novo período. No último ano de mina gestão fizemos uma conferencia nacional sobre o tema. Participaram mais de 250 mil pessoas e reforçamos nossos objetivos para conseguir formar nas zonas mais degradadas os chamados “territórios da paz”, que são os lugares onde os projetos mais importantes do Pronasci entram de maneira articulada. A utopia é chegar aos índices chilenos de homicidio, de 12 a 14 para cada 100 mil habitantes. Hoje temos um índice de 45 a 50 para cada 100 mil na Baixada Fluminense, no Rio, e de 27 a 28 no Rio Grande do Sul. Reduzir esses índices para a metade é algo que pode demorar entre cinco e dez anos. Sei que a imprensa quer fatos imediatos e fenoménicos. Mas um programa sério é gradual e tem que modificar a mentalidade das elites,
- Cabral, o gobernador do Rio, aliado ao PT, ganhou no primeiro turno. Quanto o Pronasci incidiu nisso?
- Muitíssimo. Ele falou: “As Unidades Policiais de Pacificação são filhas completas do Pronasci e de nossa relação com o governo federal”. Obviamente eu farei o mesmo quando asumir como gobernador do Rio Grande do Sul. Será parte de um modelo de participação popular. Queremos que termine sendo tão popular quanto foi o Orçamento Participativo que aplicamos antes em Porto Alegre.
Tradução: Katarina Peixoto
- Quando assumi o Ministério da Justiça, o presidente Lula me pediu que o governo federal intervisse na segurança pública – conta Genro, que nasceu em São Norja como Getúlio Vargas, o presidente que se suicidou em 1954 e cujo retrato está na Galeria dos Patriotas da Casa Rosada; um presente de Lula. Lula queria que construíssemos um novo paradigma sobre o tema. Mantive uma centena de reuniões com acadêmicos, comandantes da polícia militar e da polícia civil e especialistas internacionais. Assim terminamos desenhando o Pronasci, o Programa Nacional de Segurança Pública Cidadã. Foi a primeira lei programática de segurança pública votada no Brasil.
- Qual era o novo paradigma de segurança?
- Uma concepção de polícia comunitária. Essa polícia deveria ocupar os espaços e articular seu trabalho com programas sociais nas zonas em conflito.
- A polícia comunitária é mais um tipo de polícia?
- Não, é uma concepção. Propusemos que, em cada Estado, se integrassem os gabinetes de segurança pública com uma presença da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária, da Polícia Militar, da Polícia Civil e das autoridades políticas do Estado. Todos deviam articular relações e objetivos comuns.
- Só os Estados?
- Também os municipios. E pela primeira vez. Aí também pensamos programas sociais dirigidos especialmente a jovens e mulheres que são treinados…
- Treinados?
- Não se assuste, Falo de capacitação e não que se convertam em polícias. Eles só têm que buscar outros jovens que estão submetidos à tutela dos traficantes e dos criminosos do bairro. Se não sabemos quem são, eles podem nos ajudar. E queremos que o Estado, as mães e seus amigos possam ajudá-los a se transformarem em seres autônomos. Para a policía pensamos outras coisas. O governo federal ofereceu financiar programas sociais, armas, equipamentos e bolsas de estudo para policiais que desejem melhorar sua formação. A melhoria é premiada com um aumento de cerca de 40% em seus salário. Hoje, cerca de 200 mil policiais de todos os corpos estão com bolsa de estudos.
- Em quantos Estados esse plano está sendo aplicado?
- Em 11 e nas regiões metropolitanas mais importantes. O Rio de Janeiro foi a vanguarda da integração. O conceito de polícia comunitária ganhou o nome de Unidades Policiais de Pacificação. Mas a idéia é a mesma.
- E a chave?
- É um projeto de ocupação territorial. O sistema anterior era entrar, matar e sair. O novo sistema consiste em que o Estado entre, permaneça e se vincule profundamente com a comunidade mediante programas sociais, investimentos em infraestrutura, educação, urbanização. Ou seja: ocupação de territorio, ações policiais de alto nível, permanencia da polícia e aprofundamento dos programas sociais para jovens. No Rio, foi muito importante a atuação do secretario de Segurança, Antonio Beltrame, nomeado pelo gobernador Sérgio Cabral. Beltrame está convencido do acerto do Pronasci e é um entusiasta do programa.
- A experiência argentina mostra que, na província de Buenos Aires, os comissários que ficavam muitos anos no mesmo lugar terminavam sendo parte da máfia.
- Sempre é possível que o crime organizado consiga cooptar um chefe de polícia ou pessoas da comunidade. Oferece segurança, ou seja, “proteção”, em troca de dinheiro e obediencia. Em troca, o Pronasci se baseia na relação entre as mães organizadas e formadas, que recebem bolsas para se capacitar, e os jovens que recebem bolsas também.
- Não devem espionar para a policía?
- Não. Nós as chamamos de Mulheres da Paz. Elas não têm funções policiais nem de vigilância. Só identificam jovens em situação de risco para incluí-los nos programas sociais, educacionais e de formação profissional. Assim se formam redes sociais e os agentes do Estado podem escutar as demandas da população. Quem passa a mandar no territorio não é mais o narcotráfico. Só quem pode oferecer segurança verdadeira é o Estado.
- Os últimos movimentos no Rio foram muito espetaculares. Também foram importantes?
- Muito importantes. Sempre pensamos que a zona chave era essa que foi ocupada no domingo, o Complexo do Alemão, que abrange 16 favelas e tem uma ligação estratégica com o norte da cidade.
- Mas o mercado da droga é o sul, onde vive a classe média junto às praias.
- Sim, é o principal. O narcotráfico gera uma estrutura de integração perversa entre pobres, ricos e traficantes, Eu não falo só dos viciados, mas também daqueles que usam a droga como parte de sua sociabilidade. Os ricos e integrantes da classe média devem compreender que o consumo, ainda que seja por prazer ou por modo de vida, é o que alimenta a violencia. Por isso, esse ciclo de combate ao tráfico e à instrumentalização da juventude das favelas tem que passar também por esses setores. Eu falo do Brasil, um país muito grande e com elementos específicos. No Brasil é necessária a repressão penal aos que compram inclusive pequeñas quantidades, pois também são responsáveis pela construção do sistema de poder dos grupos mafiosos. O adulto que compra uma pequeña quantidade de droga de um menino de 17 anos é um criminoso, porque está na ponta de uma cadeia de circulação e produção de delitos que gerou esta situação no Rio.
- Durante as operações espetaculares nas favelas a cobertura jornalística não tocou no tema da lavagem de dinheiro.
- Temos bons mecanismos, inclusive com êxito em extradições e localização de somas depositadas no exterior, muitas vezes ligadas à evasão e à corrupção. Isso debe ser combatido. Há pouco tempo, o Rio travou um combate exemplar contra as milícias, uma organização de proteção mafiosa relacionada com velhos dirigentes políticos regionais. Um bom trabalho da polícia local e da federal desmantelou essa organização. Foi uma grande vitória da segurança pública. São muitos aspectos. Por isso dizia que debemos romper o mais cedo possível a identidade entre os criminosos da favela e os consumidores. Ou seja, quebrar o mercado, Que faz o DEA (organismo anti-droga dos EUA)? Trabalha para que entre a menor quantidade possível de droga no territorio norteamericano. É seu trabalho. O nosso é proteger o nosso territorio. Por exemplo, as favelas povoadas de brasileiros pobres. Não queremos fazer o trabalho pela metade, Não só procuramos achar a cocaína e queimá-la. Vamos destruir as fábricas da pasta e do pó. Algum nível de tráfico sempre existirá. Nosso objetivo é que seja residual. Não é possível que o tráfico seja a única forma de um joven avançar na vida. Não nos iludimos com um paraíso terrestre de bondade e segurança. É um projeto concreto que procurar cortar um mercado e dar alternativas aos jovens, E já está ocorrendo em muitos territórios.
- O índice de homicidios caiu?
- Em Recife a criminalidade caiu 60%. Em um grande e empobrecido bairro operário do Rio Grande do Sul, Guajuviras, que aplica todos os programas do Pronasci, a criminalidade baixou 50%. É o fruto de uma nova relação Estado-sociedade. E é preciso melhorar os salários dos policiais. No Rio Grande do Sul, um policial ganha quatro cerca de 1.000 reais. Se participar do Pronasci, ganhará 1.400 reais. Esses 400 de diferença não são pouco: servem para alugar um apartamento de dimensões razoáveis.
- Isso é a policía. Na Argentina, impressiona ver tanques do Exército envolvidos nestas operações.
- Reitero que só falo do Brasil. Mas as forças do Exército não participaram de ações armadas. Só controlaram pontos de intersecção. O trabalho foi feito pelas polícias. Temo suma “força nacional” graças a um programa do governo federal que tem capacidade de colocar em qualquer ponto do territorio nacional, em 48 horas, uma força de 300 a 500 homens altamente treinados para realizar ações policiais em um marco de respeito absoluto aos direitos humanos. Leve em conta que, no Brasil, os dois corpos mais respeitados são o Exército e a Polícia Federal. Os militares detiveram o poder absoluto em uma ditadura militar que durou 21 anos, entre 1964 e 1985. Mas, paradoxalmente, o Exército não tem uma tradição de violência antipopular nas ruas. Obviamente estiveram envueltos em casos de tortura ou em crimes dignos da barbarie, mas não realizaram uma caçada como ocorreu em alguns países latinoamericanos.
- Uma parte dos chefes do tráfico segue mandando desde algunas prisões. Qual seria a solução para esse problema?
- Há quatro penitenciárias de segurança máxima para onde estamos mandando os chefes, e estamos construindo uma quinta. O sistema penitenciário estadual é fraco, ofende duramente os direitos humanos e debe ser reformado. A proposta do Pronasci é a construção de penitenciárias de segurança média para até 450 apenados. Assim ficariam fora do controle dos delinquentes.
- Você disse que o Pronasci disponibiliza recursos federais.
- Sim e gostaria de destacar um dado incrível. Tivemos dificuldades para liberar recursos por ausencia de projetos. Poucos Estados tomaram nossos recursos.
- A situação pode mudar dia 1° de janeiro, quando assumem os gobernadores do PT e de seus aliados?
- Sim. Dilma disse na campanha eleitoral que a segurança e a saúde pública serão os elementos prioritários do novo período. No último ano de mina gestão fizemos uma conferencia nacional sobre o tema. Participaram mais de 250 mil pessoas e reforçamos nossos objetivos para conseguir formar nas zonas mais degradadas os chamados “territórios da paz”, que são os lugares onde os projetos mais importantes do Pronasci entram de maneira articulada. A utopia é chegar aos índices chilenos de homicidio, de 12 a 14 para cada 100 mil habitantes. Hoje temos um índice de 45 a 50 para cada 100 mil na Baixada Fluminense, no Rio, e de 27 a 28 no Rio Grande do Sul. Reduzir esses índices para a metade é algo que pode demorar entre cinco e dez anos. Sei que a imprensa quer fatos imediatos e fenoménicos. Mas um programa sério é gradual e tem que modificar a mentalidade das elites,
- Cabral, o gobernador do Rio, aliado ao PT, ganhou no primeiro turno. Quanto o Pronasci incidiu nisso?
- Muitíssimo. Ele falou: “As Unidades Policiais de Pacificação são filhas completas do Pronasci e de nossa relação com o governo federal”. Obviamente eu farei o mesmo quando asumir como gobernador do Rio Grande do Sul. Será parte de um modelo de participação popular. Queremos que termine sendo tão popular quanto foi o Orçamento Participativo que aplicamos antes em Porto Alegre.
Tradução: Katarina Peixoto
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
Direção da TVE exonera CCs e agrava situação precária da Fundação Piratini
Igor Natusch no Sul21
A exoneração de 19 funcionários da TVE e FM Cultura, contratados em
regime de comissão (CC), desnuda à opinião pública, uma vez mais, a
situação precária vivida pela Fundação Piratini, que gerencia as duas
emissoras. A decisão foi tomada pela presidência da Fundação, após
publicação de acórdão da Justiça do Trabalho que impede o desvio de
função de CCs, que devem atuar, por lei, apenas em funções de chefia ou
assessoramento. A exoneração foi confirmada na terça-feira (30), e deve
ser oficializada no dia 7 de dezembro. Com isso, além das dificuldades
materiais, o futuro governo deve herdar também sérias dificuldades de
pessoal. Com a diminuição do quadro funcional, vários programas de rádio
e TV devem sair do ar, enquanto outros sofrerão mudanças de horário e
duração.
A decisão do Ministério Público do Trabalho proíbe a Fundação
Piratini de usar CCs em tarefas de apresentação, reportagem, edição,
produção e demais funções técnicas relacionadas com rádio e televisão. A
prática, considerada comum dentro da Fundação, é vista pelo presidente
Ricardo Azeredo como fundamental para manter a programação no ar. “Os
cargos comissionados ajudam a manter as emissoras funcionando, além de
terem permitido que aumentássemos a programação local”, argumenta.
Segundo ele, as dificuldades de contratação e a saída de pessoal por
aposentadoria ou contratação por outros veículos acabam se agravando com
a falta de concursos públicos, o que torna inevitável a contratação de
funcionários por comissão.
Agravando o problema, a governadora Yeda Crusius (PSDB) ofereceu, por
meio da PL 356, vantagens para profissionais da Fundação que estivessem
próximos da aposentadoria, concedendo benefícios acima do que seriam
obtidos por meio do INSS. Mais de 10 funcionários aderiram a esse plano
de aposentadoria, diminuindo ainda mais os quadros da TVE e FM Cultura.
“Nosso quadro já é limitado, e essa decisão agrava a situação. Mas é
direito dessas pessoas, não nos cabe contestar”, diz Ricardo Azeredo.
O presidente do Conselho da Fundação Piratini, Pedro Osório, e o
futuro secretário-geral do governo Tarso, Estilac Xavier, se encontraram
no final da manhã desta quarta-feira (1º). Entre os assuntos
discutidos, a situação da Fundação teve espaço destacado. Pedro Osório,
que admite abertamente a possibilidade de ser presidente da TVE no
futuro governo, apresentou a Estilac Xavier um relatório sobre o caso.
Um posicionamento mais efetivo da transição fica em suspenso até o
retorno de Tarso Genro, que está de férias em Buenos Aires e volta na
próxima sexta-feira (3). Mas a assessoria de imprensa do governador
eleito garante que será realizado concurso público para ampliar e
qualificar o quadro funcional da TVE e da Rádio Cultura. O último
concurso público envolvendo a TVE foi realizado em 2001, ainda durante o
governo de Olívio Dutra.
Exoneração polêmica
O presidente da Fundação Piratini, Ricardo Azeredo, diz que não há
muito que possa ser feito. Segundo ele, a decisão é definitiva, e nada
resta à presidência a não ser cumpri-la. “O processo de concurso público
é muito lento. Como a decisão só nos autoriza a usar CCs em cargos de
chefia ou assessoria, não temos opção a não ser exonerar os
funcionários”, argumenta.
Porém, a análise do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª
Região mostra que a decisão não implica necessariamente na exoneração
desses profissionais. No documento, datado de 11 de novembro de 2010,
lê-se apenas que a ré deve abster-se de “utilizar servidores admitidos
para o exercício de cargos em comissão em atribuições distintas daquelas
de direção, chefia e assessoramento, como as de editoria, produção e
apresentação de programas e realização de reportagens”. Em teoria, os
funcionários comissionados atingidos pela decisão poderiam continuar na
TVE e na FM Cultura, exercendo cargos administrativos – o que poderia
permitir, inclusive, a sua recondução aos cargos em caso de obtenção de
um Termo de Ajuste de Conduta (TAC).
O responsável pela ação que motivou a exoneração, Walmor Sperinde,
acredita que a medida é uma retaliação aos funcionários que buscam
regularizar a situação interna da Fundação. “Eu lamento que a situação
tenha chegado a esse ponto, mas isso acontece por omissão dos gestores”,
afirma. Walmor, que é coordenador de programação da FM Cultura, explica
que entrou com a ação em 2005, no Ministério Público do Patrimônio.
Apenas em 2009, devido à demora no trâmite dentro do MPP, que a questão
foi encaminhada ao Ministério Público do Trabalho, que optou pela ação
civil pública contra a Fundação Piratini.
Segundo Walmor Sperinde, a direção da Fundação Piratini se recusou a
assinar vários Termos de Ajuste de Conduta propostos pelo declarante.
“Falta vontade política. Um gestor comprometido com o interesse público
não deixa chegar onde chegou”. Ele acha difícil que se obtenha um TAC
agora, já que a presidência da Fundação já se manifestou no sentido de
não recorrer da decisão. “Sem recurso na PGE (Procuradoria Geral do
Estado), o processo deve transitar em julgado. Além disso, falta
argumentação. O uso de CCs em funções inadequadas é notório. Trata-se de
uma verdade incontroversa”, argumenta.
O presidente do Conselho da Fundação Piratini, Pedro Osório, tem
opinião diferente. Ele acredita que ainda seja possível protelar a
execução da sentença, o que daria tempo para que fosse realizado
concurso público. “Nossa estrutura está assentada na utilização de CCs
nessas funções (na TVE e na FM Cultura). Não é possível administrar uma
mudança brusca assim, de uma semana para outra. Isso pode até forçar as
emissoras a saírem do ar. Acredito que seja possível (protelar), embora
ainda estejamos estudando essa questão”, afirma Osório.
Passividade
Pedro Osório critica o que interpreta como uma postura de
“passividade” da atual presidência da Fundação Piratini. “Ao menos no
meu período (como presidente), o conselho nunca conseguiu tomar
conhecimento das providências da Fundação a respeito do processo. O
conselho foi ignorado, ao arrepio do estatuto”, diz Osório. “A decisão
não me surpreende, só confirma a impressão que já tínhamos, de que a
atual presidência não se comporta como direção. Não interpreto como
má-fé, mas como pouco preparo para gerir um órgão público”.
“O que o governo quer, afinal de contas, com a TVE?”, pergunta Walmor
Sperinde. Segundo ele, alguns CCs têm mais de 12 anos de emissora, e a
Fundação Piratini acaba servindo como “cabide de empregos” para certos
grupos. “Se houvesse uma vontade de prestigiar a emissora, teríamos
investimentos em equipamentos e pessoal. Ao invés disso, temos carências
em todos os setores”, lamenta.
O representante dos funcionários no Conselho da Fundação Piratini, o
repórter Alexandre Leboutte, diz que a maioria de seus colegas “não
defende” o modo como a questão está sendo encaminhada. “O ideal seria
que essa transição fosse conduzida paulatinamente”, argumenta. Segundo
ele, houve tempo suficiente para um concurso público, que diminuiria
muito o impacto da decisão. “Muitos concursados foram contratados por
outros veículos e saíram da emissora. Vários outros se aposentaram,
tivemos até falecimentos no quadro de funcionários. O governo sabia que
tínhamos pouco pessoal, teve tempo de sobra para fazer concurso, e
preferiu deixar a coisa crescer. Estourou agora”.
O presidente Ricardo Azeredo se defende, dizendo que a ação que
provoca a exoneração é motivada por uma postura corporativista de alguns
funcionários. “Os CCs, além de manter o alto nível da programação,
trabalham com uma carga diferenciada. Cumprem até 8 horas por dia,
enquanto os efetivos fazem 5 ou 6 horas. Infelizmente, a postura de
alguns funcionários acaba sendo hostil aos cargos comissionados, o que
motivou essa ação judicial”, argumenta. Walmor Sperinde discorda. “Já
ouvi esse argumento (de que os CCs trabalham mais) muitas vezes, mas
gostaria de ter acesso a dados que comprovem isso”, retruca.
Mudanças na programação
Com a exoneração dos 19 funcionários em regime comissionado, as
programações da TVE e da FM Cultura sofrerão drásticas mudanças.
“Ficamos quase sem apresentadores”, revela Alexandre Leboutte. Programas
já tradicionais na grade da rádio, como o “Amanhecer Riograndense”,
apresentado diariamente por Evandro Leboutte, correm sério risco de
saírem do ar. Atrações conduzidas pelos radialistas Wilson Tubino e João
Carlos Machado Filho também devem ficar fora do dial. Na TVE, o
principal impacto é sobre o telejornalismo, que deve perder nove
profissionais, entre apresentadores, repórteres, produtores e editores. O
operador de externas também será exonerado, o que inviabilizará a
produção de programas como o Concertos da OSPA e o Palcos da Vida.
O presidente da Fundação Piratini admite que a situação provoque
grandes mudanças na programação das emissoras. Os telejornais não sairão
do ar, mas a duração deles deve diminuir sensivelmente. Programas serão
rearranjados na grade, enquanto os espaços vagos devem ser ocupados por
reprises. “Infelizmente, a gente lega essa situação ao próximo
governo”, lamenta Ricardo Azeredo.
A difícil situação da grade de programação encontra espelho nas
dificuldades técnicas que consomem a Fundação Piratini. A fiscalização
da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) esteve na Fundação
nessa quarta-feira (1º) e constatou uma série de irregularidades. Os
equipamentos estão sucateados, e importantes padrões técnicos não estão
sendo cumpridos. A rádio, por exemplo, está operando há mais de quatro
anos com um transmissor reserva, com potência de 1 KW, enquanto a
especificação mínima é de 5 KW. Na TVE, a situação se repete: o
aparelho, que deveria transmitir em potência mínima de 10 KW, não
alcançaria nem mesmo 4 KW. Além disso, o plano de TV digital da emissora
está parado, sem previsão de retomada.
Centenário de morte de Leon Tolstói, mestre de Gandhi
Ocupando lugar central da sala de estar de minha casa há
impressionante quadro de um pintor polonês mostrando Tolstói (1828-1910)
sendo abraçado pelo Cristo coroado de espinhos. Ele está vestido como
um camponês russo e parece extuado como a simbolizar a humanidade
inteira chegando finalmente ao abraço infinito da paz depois de milhões
de anos ascendendo penosamente o caminho da evolução. Foi um presente
que recebi do então Presidente da Assembleia da ONU Miguel d’Escoto
Brockmann, grande devoto do pai do pacifismo moderno. No dia 20 de
novembro celebrou-se o centenário de sua morte em 1910. Ele merece ser
recordado não só como um dos maiores escritores da humanidade com seus
romances Guerra e Paz (1868) e Anna Karenina (1875)
entre outros tantos, perfazendo 90 volumes, mas principalmente como um
dos espíritos mais comprometidos com os pobres e com a paz, considerado o
pai do pacifismo moderno.
Para nós teólogos, conta especialmente o livro O Reino de Deus está em vós
escrito depois de terrível crise espiritual quando tinha 50 anos
(1978). Frequentou filósofos, teólogos e sábios e ninguém o satisfez.
Foi então que mergulhou no mundo dos pobres. Foi ai que redescobriu a fé
viva “aquela que lhes dava possibilidade de viver”. Tolstói considerava
esta obra a mais importante de tudo o que escreveu. Seus famosos
romances tinha-os, como confessa no Diário de 28/20/1895,
“conversa fiada de feirantes para atrair fregueses com o objetivo de
lhes vender depois outra coisa bem diferente”. Levou três anos para
terminá-la (1890-1893). Saiu no Brasil pela Editora Rosa dos Tempos
(hoje Record) em 1994, com bela introdução de Frei Clodovis Boff, mas
infelizmente esgotada.
O Reino de Deus está em vós, logo traduzido em várias
línguas, teve enorme repercussão, gerando aplausos e acirradas
rejeições. Mas a maior influência foi sobre Gandhi. Mergulhado também em
profunda crise espiritual, acreditando ainda na violência como solução
para os problemas sociais, leu o livro em 1894. Causou-lhe uma abissal
comoção:”a leitura do livro me curou e fez de mim um firme seguidor da
ahimsa (não violência)”. Distribuía o livro entre amigos e o levou para a
prisão em 1908 para meditá-lo. O apóstolo da “não-violência ativa” teve
como mestre a Leon Tolstói. Este foi excomungado pela Igreja Ortodoxa e
o livro vetado pelo regime czarista.
Qual a tese central do livro? É a palavra de Cristo: “Não resistais
ao mal” (Mt 5,39). O sentido é: “Não resistais ao mal com o mal”. Ou não
respondais a violência com violência. Não se trata de cruzar os braços,
mas de responder à violência com a não-violência ativa: com a bondade, a
mansidão e o amor. Em outra forma: “não revidar, não retaliar, não
contra-atacar, não se vingar”. Estas atitudes verdadeiras possuem uma
força intrínseca invencível como ensina Gandhi. Para o profeta russo tal
preceito não se restringe ao cristianismo. Ele traduz a lógica secreta e
profunda do espírito humano que é o amor. Toca no sagrado que está
dentro de cada um. Por isso o título do livro O Reino de Deus está em vós.
Gandhi traduziu a nao-violência tolstoiana como não-cooperação,
desobediência civil e repúdio ativo a toda servilidade. Tanto ele como
Tolstói sabiam que o poder se alimenta da aceitação, da obediência cega e
da submissão. Porque tanto o Estado quanto a Igreja exigem estas
atitudes servis, desqualifica-as de forma contundente. São instituições
que tolhem a liberdade, atributo inalienável e definitório do ser
humano. No frontispício do livro lemos a frase de São Paulo: “não vos
torneis servos dos homens”(1Cor 7,23).
Para Tolstói o cristianismo é menos uma doutrina a ser aceita do que
uma prática a ser vivida. Ele está à frente e não atrás. Para trás
parece que faliu. Mas à frente é uma força que não foi ainda totalmente
experimentada. E é urgente praticá-la Profeticamente Tolstói percebia a
irrupção de guerras violentas, como, de fato, ocorreram. A casa está
pegando fogo e não há tempo para se perguntar se é preciso sair ou não.
Tolstói tem uma mensagem para o momento atual, pois os grandes
continuam acreditando na violência bélica para resolver problemas
políticos no Iraque e no Afeganistão. Mas outros tempos virão. Quando o
pintinho já não pode mais ficar no ovo, ele mesmo rompe a casca com o
bico e então nasce. Assim deverá nascer uma nova era de não-violência e
de paz.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.
Nós e o senhor das moscas
Por Elaine Tavares - jornalista
Dias
desses vi na televisão um filme que já havia assistido nos anos 90 e
quem naqueles dias, já me causara profunda tristeza. Chama-se “O senhor
das moscas” e mostra um grupo de crianças perdidas numa ilha, depois
da queda de um avião, fugindo da guerra. Na ilha, sozinhos, eles têm de
se organizar e aí aparecem todos os estereótipos do humano. O ditador,
o herói, os elementos da democracia, o misticismo fundamentalista, a
ciência, os covardes, os perdidos, os fracos, o selvagem. A película é
inspirada em um livro do mesmo nome escrito na década de 50 que, em
tese, tenta mostrar o quanto o ser humano carrega dentro de si o germe
da corrupção. E aí não se trata desta corrupção que vemos na TV quando
um suborna o outro, mas a corrupção existencial, essa que torna um
garoto normal e educado num ser sem qualquer sentimento ou moral: um
selvagem, na acepção mais crua da palavra.
O
senhor das moscas tenta mostrar que há algo de podre no humano que,
cedo ou tarde se manifesta, como já havia ousado propor George Orwell,
no Revolução dos Bichos. Mas, ao mesmo tempo também aponta a presença
do humano justo, digno, bondoso e capaz de conviver com o diferente.
Este, ao longo do filme, em que um deles vai assumindo o controle de
todos os garotos pelo medo e pela força, vai ficando sozinho. Até ao
ponto de ser caçado por todo o grupo, que comandado pelo chefe, se
dispunha a eliminar o menino que ousava instituir uma vida de liberdade e
respeito pelo outro, nas suas debilidades e belezas.
É uma experiência dolorosa que só acaba com o quê? Com achegada da força, vinda de fora. O exército libertador.
Por
algum motivo esse filme me faz pensar no que acontece no Rio, hoje.
Por viver tão longe, não me sinto muito capaz de fazer uma boa análise
dos fatos. Há tantas variáveis a considerar. O tráfico, duro e cruel, a
ganância imobiliária que quer as terras dos morros, a violência da
polícia, a corrupção, a ausência completa do Estado nas áreas de
favela, os barões da droga que estão no asfalto, enfim... tanta coisa, e
outras mais fora do meu olfato. Mas, de alguma forma vejo cada um
daqueles meninos do “senhor das moscas” se expressando no turbilhão de
notícias e opiniões sobre as ocupações dos morros cariocas, dentro do
grotesco “espetáculo” montado pelas emissoras de televisão.
A
ascensão dos chefetes das drogas nas comunidades empobrecidas não é
coisa que brota do nada. É fruto de toda a omissão do estado burguês
diante das promessas que faz. Não há saúde, não há escola, não há
lazer, não há vida. O capitalismo suga todas as forças dos
trabalhadores e os joga uns contra outros. O povo se vira como pode,
equilibrando-se na corda bamba entre a lei e o tráfico. E, aí, assomam
todos os tipos de seres: os bem intencionados, os heróis, os selvagens,
os fracos, os bondosos, os medrosos, etc... Mas, como bem analisa o
professor Nildo Ouriques, o povo é sábio e só sobrevive porque sabe
avaliar a correlação de forças do espaço onde vive. Ninguém quer viver
sob o terror dos soldados do tráfico, mas tampouco quer a presença de
uma polícia corrupta, racista e violenta. É um fogo cruzado que nunca
pára.
Hoje
a polícia ocupa o morro e a TV expõe as gentes a celebrar o fim de um
tipo de opressão. Mas e amanhã, quando o tempo passar, e as câmeras se
voltarem para outro tema? E se a polícia sair? E se o Estado não
cumprir de novo com suas promessas? E se voltar o terror do tráfico? E
se o Estado não agir no espaço dos chefes graúdos, os que vivem no
asfalto? Há uma coisa que se chama sobrevivência. As pessoas querem
seguir suas existências, de alguma forma, e de preferência bem. Como
viveram até hoje, sem o Estado e sem a polícia? Porque são sábias e
vergam tal qual o feixe, ao sabor do vento. Se não fosse assim não
estariam vivas.
Mas,
e amanhã, quando com as UPPs todos os morros estiverem livres da força
do tráfico, se as empresas de turismo quiserem os terrenos onde vivem
as gentes para ganhar dinheiro durante as festas das olimpíadas e da
copa? Haveremos de ter a mídia aliada ao povo do morro? Haveremos de
ver os comentaristas das redes nacionais defendendo as “pobres”
famílias das favelas? Não! Não veremos. Será uma outra
batalha a ser travada tal qual a do personagem do filme do senhor das
moscas. Uma solitária batalha contra o capital, e aí não haverá um
exército libertador. Pelos menos não um de fora.
A
história dos empobrecidos é uma recorrente história de perdas. Coisa
poderosa demais. Os de baixo estão sendo sempre colocados diante de
suas derrotas, em todas as grande batalhas que travam por vida digna e
farta para todos. A força do poder solapa e arrasa, fazendo com que as
pequenas vitórias se desfaçam nas brumas. Isso cria uma atmosfera de
profunda impotência. E não deveria ser assim. Se o povo empobrecido
decidisse tornar-se quem é, as coisas seriam diferentes. Mas, para isso
haveria que se despertar a consciência de classe, sair da emergência,
da difícil tarefa de manter-se com a cabeça para fora do lodo mortal da
sobrevivência cotidiana no reino do capital. Tanto trabalho a ser
feito, tanto suor, quase um trabalho de Hércules.
O
Rio de Janeiro é esse campo onde reina “o senhor das moscas”, uma
espécie de pedaço do campo geral que é o mundo capitalista. No filme, é
a cabeça de um porco que representa o mítico, o poder, a força, o
símbolo de algo intangível, inalcançável, a coisa etérea que mantém
todos os meninos sob um domínio incapaz de se desfazer.
Vejo esse símbolo, agora, na caveira do BOPE. Em volta dela arma-se
toda essa “festa” de libertação do morro. Mas o que esperar de uma
força que tem a caveira como símbolo? Já bem disse Muniz Sodré num
recente artigo sobre os fatos. Esta não é uma luta dos bonzinhos contra
os malvados. Há tantos lados e tantas variáveis nestas personagens.
O
Brasil vive nestes dias uma espécie de euforia desenvolvimentista.
Desde o segundo governo Lula as obras do PAC (Programa de Aceleração do
Crescimento) estão se espalhando por vários cantos do país, como um
símbolo da melhora da vida. Mas, muitas destas obras são questionáveis,
não representam soluções reais para os problemas. Alguns, elas até
aprofundam. Ainda assim, incensa-se sem sendo crítico. Agora, com o
pré-sal, mais uma onda de “melhoras” deve atingir o país. Dinheiro do
petróleo vindo aos borbotões. Para quem? Até onde esta onda alcançará
as gentes simples? Receberão migalhas ou participarão do banquete, como
convidadas? Garantirão aos milhões de jovens deste país a possibilidade
da vida digna? Ou terão eles que enfrentar o “senhor das moscas”, como
sempre foi?
Não
sei. Tudo está aberto. Os meninos armados que hoje servem ao tráfico –
urdido muito além dos morros empobrecidos – precisam de muito mais do
que promessas. Precisam ver as coisas boas acontecendo com eles todos
os dias, precisam se saber parte de uma sociedade justa e livre, na
qual terão a chance de construir em pé de igualdade. Há uma cena no
filme “o senhor das moscas” que me parece bem paradigmática das coisas
que vivemos como seres humanos. O garoto “rebelde” está sendo caçado
pelo grupo, o chefete quer a sua morte. Ele corre pela selva e se
depara com um incêndio. Está acuado, sem saída. Então, dois dos garotos,
que foram cooptados pelo líder ditador, o vêem sob uma árvore, quase
sendo tocado pelo fogo. Eles estacam, atônitos. O chefe grita: “estão
vendo algo?” E eles, olhando fixo nos olhos do menino, respondem,
depois de um longo silêncio: “não”. É quando o garoto consegue fugir em
direção à praia. Por um minuto, o sentimento de solidariedade e o
desejo da liberdade se fazem parceiros. É a otimista mensagem do autor
que, apesar de destacar o tempo todo a vileza e a capacidade de
destruição que existe no humano, mostra que é possível, num átimo, tudo
se transformar. E, claro, isso não se dá por magia, mas por uma
profunda compreensão sobre o que, afinal, está em jogo.
No
filme, os garotos entendem que algo está errado e procuram fazer algo
para mudar. E nós, aqui, agora? Haveremos de continuar rendendo cultos
ao senhor das moscas?
A luta contra a violência doméstica
Dafne Melo no Brasil de Fato
O ano de 2010, no Brasil, foi cheio de casos midiáticos –
como o de Mércia Nakashima e de Eliza Samúdio – que mostraram o quanto a
violência contra a mulher está presente na sociedade brasileira e o
quanto se deve caminhar para coibir a violência contra a mulher. “As
políticas públicas existentes hoje devem ser intensificadas,
implementadas e, além disso, nós queremos ter o controle social dessas
políticas”, explica Sônia Coelho, da Sempreviva Organização Feminista
(SOF) e da Marcha Mundial de Mulheres, durante um ato no centro de São
Paulo que reuniu, no dia 25 de novembro, dezenas de mulheres em frente à
Secretaria de Justiça. “Estamos aqui no dia latinoamericano de luta
pela não violência contra as mulheres para exigir do governo do Estado
de São Paulo que implemente o Pacto Nacional de Enfrentamento à
Violência contra a Mulher”, afirmou Sônia.
O Pacto foi elaborado
em âmbito federal pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres
e lançado em agosto de 2007, pouco mais de um ano após a Lei Maria da
Penha. É um acordo federativo entre o governo federal, os governos dos
Estados e dos municípios brasileiros para o planejamento de ações que
visem à consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência
contra as Mulheres por meio da implantação de políticas públicas
integradas em todo território nacional, criando condições para que a Lei
Maria da Penha possa ser posta em prática.
Reivindicações
O
Pacto tem que ser assinado por cada Estado. Roraima e Santa Catarina
são os únicos estados que ainda não assinaram. São Paulo assinou apenas
no final de 2008, após muita pressão dos movimentos feministas.
Entretanto, até hoje, o Estado não definiu um orçamento para implementar
o Pacto. “Se só uma parte pactua, então não há pacto. São Paulo ainda
não possui um órgão responsável pelas políticas contra a violência
[sexista]”, afirma Sônia, que explica que no início do ano que vem será
feita uma audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo
(Alesp) para exigir que no orçamento de 2011 seja reservado um recurso
específico para o Pacto. “Infelizmente, este ano já não há como exigir
nada, mas queremos garantir que no ano que vem haja recursos”, conta
Sônia.
Os números de São Paulo mostram o quanto o problema
necessita de esforços. De janeiro a setembro, 27 mulheres foram
assassinadas no Estado. A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 –,
que recebe queixas de violência contra a mulher, registrou alta de 112%
de janeiro a julho em comparação com o mesmo período de 2009.
Dados
fornecidos pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência
da República apontam 343.063 atendimentos nos sete primeiros meses de
2010 – pelo disque denúncia (180). São Paulo foi o estado com maior
número de denúncias.
Segundo o Mapa da Violência 2010, organizado
pelo Instituto Sangari, uma mulher é assassinada a cada duas horas no
Brasil, o que faz do país o 12° no ranking mundial de assassinatos de
mulheres. Quarenta por cento dessas mulheres têm entre 18 e 30 anos, e a
maioria é morta por parentes, maridos, namorados, ex-companheiros ou
homens que foram rejeitados por elas.
Avançar
Para
Sônia, somente será possível avançar no Estado de São Paulo se houver
investimento em diversas áreas, como Saúde, Habitação e Justiça, criando
mais delegacias de mulheres e juizados especiais, conforme definido
pela Lei Maria da Penha, e com pessoal qualificado para atender casos de
violência doméstica. O Estado possui 645 municípios e apenas 129
delegacias entre capital e interior, sendo que a maioria delas não
funciona nos fins de semana ou de noite, momentos em que mais ocorrem
casos de violência. Há também apenas 107 serviços de saúde
especializados para receber e orientar as mulheres vítimas de violência.
Um
dos casos mais urgentes é a criação de juizados especiais com equipes
multiprofissionais, visto como uma das condições para a efetivação da
Lei Maria da Penha. Hoje, a maioria dos casos vai para as varas
criminais comuns, que muitas vezes não têm o preparo necessário para
atender a especificidade da violência contra a mulher. No Estado de São
Paulo, até agora, foi criado apenas um Juizado de Violência Doméstica,
vinculado à 8ª Vara Criminal. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), essas varas não apresentam a
estrutura adequada para atender os casos de violência e acolher
conforme exige a lei Maria da Penha.
Os números da violência
-
Hoje, em todos os 5.564 municípios do Brasil, há apenas 68 casas-abrigo
e 146 centros de referência, que entram na categoria de centros de
assistência social. O ideal seria que houvesse cerca de três mil desses
estabelecimentos.
- No aspecto jurídico, há 56 núcleos de
atendimentos especializados em defensorias públicas e 475 delegacias da
mulher ou postos especializados. Há, ainda, 147 juizados ou varas
especializadas em violência contra a mulher; o ideal seria ter, pelo
menos, uma vara em cada uma das cerca de 2.600 comarcas do país.
-
Nos últimos quatro anos, o serviço telefônico de atendimento a mulheres
vítimas de violência, o 180, teve um aumento de acesso de 1.700%. O
Estado de São Paulo lidera o ranking de ligações.
- Dentre as
mulheres que acessam o serviço, 69% são agredidas diariamente. A maioria
das mulheres que liga é negra, com 43%. A idade de 56% das mulheres
fica entre 20 e 40 anos, e 52% estão casadas ou em união estável.
- Mais da metade da população, 55%, conhece pelo menos uma mulher vítima de agressão.
-
A Lei Maria da Penha é conhecida por 78% da população. Movimentos
feministas e de mulheres afirmam que esse número não reflete um
conhecimento qualitativo da lei.
- A Delegacia da Mulher é citada como o primeiro lugar que a mulher deve ir em caso de agressão por 78% das pessoas.
-
A maioria das pessoas, 56%, não confia nos serviços de proteção
jurídica e policial para mulheres agredidas. Desses, 25% afirmam que as
leis não são suficientes, 13% dizem que a polícia considera outros
crimes mais importantes, 11% criticam os policiais por não levar as
denúncias a sério e 7% acreditam que juízes e policiais são machistas e
até concordam com o agressor.
- Um balanço do Conselho Nacional
de Justiça mostrou que apenas 2% dos processos concluídos contra
agressores, enquadrados na Lei Maria da Penha, resultaram em punição.
Fontes: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e pesquisa Ibope/Avon – 2009.
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