Escrito por Grupo São Paulo no Correio da Cidadania | |
O legado da Revolução Mexicana nos traz dilemas e feridas ainda abertas
até os dias de hoje. Nesse momento histórico e político da realidade
contemporânea, em que o princípio das grandes revoluções parece ter se
esgotado, será que compreendemos de fato quais foram as forças políticas
atuantes naquele período? Para pensadores, como Adolfo Gilly, tratou-se
de uma "revolução inacabada", nome dado inclusive para o seu célebre e
ainda fundamental livro.
Os chamados neo-zapatistas estariam completando, em pleno século XXI, o
que não tem sido feito há cem anos? Para refletir sobre isso é
necessário, antes de tudo, compreender como estava, historicamente
falando, o México pré-revolução. O quadro político do período que
antecedeu à data oficial da revolução - 20 de novembro de 1910 – começou
a ser delineado após declaração de independência do país, em 16 de
setembro de 1810.
Daquele período em diante, conservadores, moderados e liberais iniciaram
uma luta, muitas vezes sangrenta, para colocar em prática os seus
interesses. Enquanto os conservadores ansiavam por um retorno ao
passado, em que a hegemonia do poder estava nas mãos da Igreja Católica,
os moderados perfilaram-se com os liberais mais radicais sem, no
entanto, propor o fim dos privilégios da Igreja.
A aprovação da constituição mexicana de 1857 foi uma vitória dos
moderados. Ela retirou da Igreja Católica o título de religião oficial,
mas não aboliu os seus privilégios, desagradando tanto conservadores,
como liberais. Essa turbulência política só veio a se dissipar após a
chamada Guerra da Reforma (dezembro de 1857 a janeiro de 1861), quando o
liberal Benito Juárez assumiu o poder.
Em seu longo governo (1858-1872), Benito Juárez delineou os primeiros
contornos do que é o México hoje. Venerado como herói carismático, de um
lado, ele jamais abandonou a sua origem indígena nem deixou a defesa de
teses como respeito e liberdade; por outro lado, foi contraditório ao
retirar as terras dos indígenas sob a justificativa de que o campo não
deveria ficar para trás em relação ao frenético ritmo exigido pelo
capitalismo.
Com a morte de Benito Juárez, o novo presidente, Sebastian Lerdo de
Tejada, radicalizou as idéias liberais do Estado mínimo e da liberdade
de mercado, o que desagradou os seguidores de Porfírio Díaz, alinhados à
teoria positivista do Estado. Para os porfiristas, que ficaram no poder
de 1876 a 1911, o capitalismo só progrediria se coibisse os excessos do
individualismo liberal e reprimisse "desvios" de quaisquer espécies, o
que significou a eliminação dos Ejidos (terras comunais indígenas) e o
massacre de povos indígenas, considerados "primitivos" e contrários ao
capitalismo monopolista. Resultado: entre 1876 e 1900, o México cresceu
algo em torno de 8% ao ano, mas à custa do aumento da miserabilidade da
grande maioria da população.
Estavam criadas todas as condições para a Revolução Mexicana de 1910. A
frente revolucionária ficou dividia entre, de um lado, o grupo liberal
democrata burguês, representado, entre outros, por Camilo Arriaga e
Francisco Madero e, de outro lado, Emiliano Zapata e Pancho Villa, que
dariam o tom mais progressista e realmente interessado em defender os
interesses dos camponeses e indígenas.
Influenciados por um liberalismo mais radical e depois ligados à teoria
anarquista, temos ainda os irmãos Ricardo e Enrique Flores Magón, que
foram defensores de uma coligação com operários e camponeses na luta
contra a desigualdade social, condenando um país em que a elite branca
acumulava cada vez mais renda.
No período da revolução, o então ditador e presidente Porfírio Díaz
temia que o avanço de Madero pudesse insuflar ainda mais os
revolucionários Zapata e Villa. Já Madero desejava uma mudança pacífica,
que abriria as portas do México para o capitalismo moderno. Na prática,
o seu interesse era o de combater as massas e impedir que os movimentos
camponeses e indígenas radicalizassem a revolução.
No outro lado dessa complexa realidade, apesar de muitos camponeses e
indígenas terem sido cooptados pelos grandes fazendeiros, foram eles que
revelaram o chamado "México profundo", um modo de vida que a
subjetividade capitalista não conseguiu liquidar. O grito de "Ya Basta",
proferido pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), em
1994, revelou que o México dos indígenas e camponeses de 1910 permaneceu
vivo e pulsante.
Essa "memória coletiva", que não foi substituída pela crença no
progresso e na homogeneização das relações humanas e culturais, manteve
acesos os principais pilares deixados por Emiliano Zapata e Pancho
Villa: Terra para quem nela trabalha. Foi esse o principal legado
deixado pela revolução de 1910. Em nenhum momento, Zapata e Villa
assumiram o poder. No entanto, eles não deixaram que a revolução
seguisse apenas o pressuposto da homogeneidade. "Queremos um mundo onde
caibam todos os mundos". Essas palavras, proferidas pelos zapatistas no
final do século XX, vão ao encontro do que Zapata e Villa plantaram no
início do século.
Guga Dorea, Marietta Sampaio, Andrea Paes Alberico, Elisa Helena
Rocha de Carvalho, José Juliano de Carvalho Filho, João Xerri e Thomaz
Ferreira Jensen, do Grupo de São Paulo - um grupo de pessoas que se
revezam na redação e revisão coletiva dos artigos de análise de Contexto
Internacional do Boletim Rede, editado pelo Centro Alceu Amoroso Lima
para a Liberdade, de Petrópolis, RJ.
Colaborou Alejandro Buenrostro.
Contato:
gruposp@correiocidadania.com.br
|
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Cem anos da Revolução Mexicana
A valorização docente e a qualidade da educação: equação necessária
Isabel Letícia Pedroso de Medeiros (*)
A rede municipal de ensino de Porto Alegre, já há alguns anos, é alvo
de questionamentos sobre a qualidade de ensino ofertada, seja pela
organização em ciclos de formação (que supostamente, pelo “afrouxamento”
da avaliação entendida como reprovação, estimularia professores e
alunos à indolência), seja pelo resultado dos estudantes nas avaliações
padronizadas, sempre inferiores a outras redes, não obstante o bom
salário, boa formação acadêmica dos docentes e as boas condições das
escolas.
Muito embora esse questionamento tenha origem na perspectiva
mercadológica em educação, na “gestão de resultados”, feita via de regra
por atores que ocuparam funções de gestão educacional ser ter deixado
no seu legado nenhuma evidência/resultado de elevação da qualidade, ao
contrário, em geral contribuíram para a precarização e sucateamento das
redes públicas, devemos levá-la a sério, buscar analisá-la e respondê-la
não a partir do intencional simplismo matemático que povoa o
questionamento, mas na sua complexidade e profundidade que merece, com o
compromisso genuíno com a elevação da qualidade social da educação,
reconhecendo que no nosso
país recém podemos falar em educação como política pública e direito de todos a partir das duas últimas décadas, período bastante tardio no qual estamos acompanhados apenas pelos países mais miseráveis do globo, bem como concordando que os professores podem e devem avançar nas suas estratégias didático metodológicas, o que certamente contribuirá para um cenário mais favorável nos processos de ensino aprendizagem. Não é pretensão aqui fazer esse necessário aprofundamento analítico, mas apenas apresentar alguns elementos para a reflexão.
país recém podemos falar em educação como política pública e direito de todos a partir das duas últimas décadas, período bastante tardio no qual estamos acompanhados apenas pelos países mais miseráveis do globo, bem como concordando que os professores podem e devem avançar nas suas estratégias didático metodológicas, o que certamente contribuirá para um cenário mais favorável nos processos de ensino aprendizagem. Não é pretensão aqui fazer esse necessário aprofundamento analítico, mas apenas apresentar alguns elementos para a reflexão.
O primeiro elemento a considerar são as avaliações padronizadas,
importadas de modelos educacionais de outros países: como todo o padrão,
esse tipo de avaliação é questionável por “passar uma régua cega” sobre
uma população cuja diversidade cultural e desigualdade social atingem
níveis abismais. A padronização que buscam estabelecer é firmemente
criticada pelos defensores do respeito às diferenças e à diversidade.
Sem querer banalizar a discussão, é como se todos devessem ter altura
suficiente para firmar-se no varão dos ônibus, ou usar o mesmo número de
roupa, ou caber nas poltronas dos cinemas. Por que deveria haver um
padrão cognitivo?
Essas avaliações, a partir das análises feitas nos Estados Unidos
inclusive por eximplementadores dessas políticas, não elevam a
qualidade, apenas criam efeitos a partir do treinamento para responder a
testes, deixando de lado a formação crítica e integral. Afortunadamente
o Brasil deixou de gastar muito dinheiro público em vão com essas
avaliações e aproveitou-as para uma iniciativa louvável: o Governo
Federal passou a destinar mais recursos para aqueles municípios e
escolas que não apresentam o Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB), nos valores desejados.
Se faz necessário dar um salto qualitativo na gestão educacional e
buscar modelos de avaliação institucional que considerem o “efeito
escola”, ou seja, como o estudante chegou, qual o seu contexto de
existência, e o que a escola agregou a ele e a sua comunidade. Quem é o
melhor professor? Aquele que aprovou um estudante oriundo da classe
média que já entrou alfabetizado na escola ou aquele que alfabetizou em
um ou dois anos, mesmo que com ortografia insipiente, uma criança filha
de analfabetos que desconhecia as letras e não sabia pegar o lápis? Quem
tem mais condições de aprendizagem? O órfão do “crack” que consegue
aprender a ler na escola ou a criança que, acolhida em uma família com
condições afetivas, sociais e econômicas cria um ambiente alfabetizador
desde o berço? São questões complexas e relativas que devemos
considerar.
Ao focalizarmos no local, se faz necessário dizer que a rede
municipal de ensino ampliou-se nas duas últimas décadas justamente na
periferia, onde se concentram as populações em condições de
miserabilidade. Conforme exaustivos estudos no campo da sociologia da
educação, as condições sociais interferem significativamente na
escolarização, o diferente e desigual “capital cultural”, como nos
ensina o sociológo francês Bourdieu, constitui relações diferentes e
desiguais com a cultura escolar. O sítio Observatório da Cidade de Porto Alegre”
traz importantes informações que podem fundamentar projetos específicos
para essa parcela da população, bem como mapear as diferenças e
desigualdades no território da cidade.
Outro aspecto importante: apesar da cobertura relativamente reduzida
de matrículas da cidade – vinte por cento do total -, a rede municipal
de ensino é responsável por cinquenta por cento das matrículas ditas de
inclusão/pessoas com necessidades especiais da cidade e sessenta por
cento das matrículas em educação de jovens e adultos (EDUCACENSO 2010).
Portanto, a rede municipal de ensino atua firmemente na inclusão de
parcelas da população historicamente excluídas. Em nenhum outro período
histórico o nível de escolarização na cidade (assim como no nosso país)
foi tão alto, nunca antes as pessoas com necessidades especiais tiveram
tanto acesso, nem os adultos excluídos, tampouco o índice de
analfabetismo foi tão baixo no município. Esse cenário se deve ao
trabalho dos professores da rede municipal de ensino, que diferente de
outras redes, incluem essas populações que “baixam” os índices dos
testes padronizados.
Assim, fazemos um apelo para que a mídia e as autoridades proponham
uma discussão séria a esse respeito, e não busquem escusas para os
baixos salários e a precarização das condições das escolas. Podemos
qualificar nosso trabalho e elevar a qualidade social da educação?
Certamente. Para isso continuaremos atuando na defesa de salários
dignos, formação continuada, condições de trabalho para nós. E nos
somando as lutas por uma vida digna, com trabalho, saúde, moradia digna,
proteção à infância e à juventude, enfim, direito à cidadania, para a
população de Porto Alegre.
(*) Professora da rede municipal de ensino de Porto Alegre desde
1989, doutora em educação pela FACED/UFRGS e diretora geral da
Associação dos Trabalhadores em Educação do Município de Porto Alegre –
ATEMPA.
Mudanças nas comunicações geram especulação na mídia
Redação do Portal vermelho
Na esteira do debate sobre a comunicação, o governo Dilma Rousseff tem dado sinalizações que podem resultar em posições divergentes sobre o assunto. E, por sua natureza, o tema tem gerado também especulações variadas na imprensa. Por um lado, segundo noticiou a Folha de S.Paulo hoje (28), a presidente estaria pretendendo buscar o consenso junto ao setor empresarial antes de enviar projeto de regulação da mídia ao Congresso e defenderia um “debate técnico” e “sem contaminações ideológicas”.
Se for verdade, pode haver um
impasse no debate. Afinal, recentemente o ministro das Comunicações,
Paulo Bernardo, indicou a intenção de discutir o tema com a sociedade
por meio de audiências públicas. Ainda que os dois eixos não se excluam,
é importante ressaltar que empresários e movimentos sociais – que farão
parte desse debate público – costumam ter visões muitas vezes
antagônicas sobre o tema. Enquanto os donos da mídia buscam manter tudo
como está, os movimentos buscam pressionar para que haja maior
democracia e menos concentração.
Soma-se a isso o fato de analistas da mídia alternativa e de fóruns de debate sobre o assunto sustentarem que, embora positiva a indicação de debater o tema com a sociedade, tal posicionamento acabaria excluindo os resultados da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom).
O artigo do jornal paulista, assinado por Valdo Cruz, Ana Flor e Breno Costa, foca-se, no entanto, em desqualificar a relação que Lula manteve com a mídia e na especulação sobre como deverá ser o perfil de Dilma no tratamento com a imprensa.
O fato é que neste primeiro mês de governo, há muitos desencontros sobre o tema, desencontros esses alimentados pela mídia hegemônica preocupada em manter seu poder concentrado e inabalável. Exemplo disso é o caso da concessão de licença única para que as empresas de telefonia possam oferecer acesso à internet via banda larga, tevê a cabo e telefonia fixa e móvel.
O Estado de S.Paulo desta quinta-feira (27) noticiava: “o governo vai abandonar o debate sobre a proibição da propriedade cruzada nos meios de comunicação por estar convencido de que o desenvolvimento tecnológico tornou a discussão obsoleta. O conceito de convergência das mídias, que consolidou o tráfego simultâneo de dados e noticiários em todas as plataformas - da impressa à digital -, pôs na mesa do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, um projeto de concessão única”. Por erro ou má fé, o jornal confundia no texto propriedade cruzada com licença única.
Em seu blog, o jornalista Luís Nassif apontou a confusão e disparou: “Chamei atenção, aqui, que radiodifusão nada tinha a ver com convergência de mídia. Esta, trafega pela Internet; a outra, pelo espectro eletromagnético, que, por limitado, necessita ser regulado. Como a matéria foi assinada por três diretores de redação, houve a suspeita geral de que a convergência de mídias estivesse sendo utilizada como álibi para não mexer na propriedade cruzada”.
Paulo Bernardo, por sua vez, negou que o governo estivesse analisando a possibilidade de haver apenas uma licença para o setor de radiodifusão e deixou claro que o debate está apenas no começo. "É uma discussão que está sendo feita na agência (Anatel) sobre a possibilidade da licença única para a área de telecomunicações, com a possibilidade, nesse processo de convergência de mídias, que as empresas licenciadas possam fazer outras mídias", afirmou.
O ministro Paulo Bernardo (Comunicações) disse ontem que a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) estuda conceder uma licença única para empresas de telefonia oferecerem acesso à internet via banda larga, TV a cabo e telefonia fixa e móvel. O tema segue sendo debatido, sem definições estabelecidas.
Na reunião da Comissão Política do PCdoB que está sendo realizada hoje em São Paulo, o tema veio à tona: os comunistas reafirmam que a democratização da comunicação é uma das reformas estruturais inadiáveis.
Soma-se a isso o fato de analistas da mídia alternativa e de fóruns de debate sobre o assunto sustentarem que, embora positiva a indicação de debater o tema com a sociedade, tal posicionamento acabaria excluindo os resultados da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom).
O artigo do jornal paulista, assinado por Valdo Cruz, Ana Flor e Breno Costa, foca-se, no entanto, em desqualificar a relação que Lula manteve com a mídia e na especulação sobre como deverá ser o perfil de Dilma no tratamento com a imprensa.
O fato é que neste primeiro mês de governo, há muitos desencontros sobre o tema, desencontros esses alimentados pela mídia hegemônica preocupada em manter seu poder concentrado e inabalável. Exemplo disso é o caso da concessão de licença única para que as empresas de telefonia possam oferecer acesso à internet via banda larga, tevê a cabo e telefonia fixa e móvel.
O Estado de S.Paulo desta quinta-feira (27) noticiava: “o governo vai abandonar o debate sobre a proibição da propriedade cruzada nos meios de comunicação por estar convencido de que o desenvolvimento tecnológico tornou a discussão obsoleta. O conceito de convergência das mídias, que consolidou o tráfego simultâneo de dados e noticiários em todas as plataformas - da impressa à digital -, pôs na mesa do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, um projeto de concessão única”. Por erro ou má fé, o jornal confundia no texto propriedade cruzada com licença única.
Em seu blog, o jornalista Luís Nassif apontou a confusão e disparou: “Chamei atenção, aqui, que radiodifusão nada tinha a ver com convergência de mídia. Esta, trafega pela Internet; a outra, pelo espectro eletromagnético, que, por limitado, necessita ser regulado. Como a matéria foi assinada por três diretores de redação, houve a suspeita geral de que a convergência de mídias estivesse sendo utilizada como álibi para não mexer na propriedade cruzada”.
Paulo Bernardo, por sua vez, negou que o governo estivesse analisando a possibilidade de haver apenas uma licença para o setor de radiodifusão e deixou claro que o debate está apenas no começo. "É uma discussão que está sendo feita na agência (Anatel) sobre a possibilidade da licença única para a área de telecomunicações, com a possibilidade, nesse processo de convergência de mídias, que as empresas licenciadas possam fazer outras mídias", afirmou.
O ministro Paulo Bernardo (Comunicações) disse ontem que a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) estuda conceder uma licença única para empresas de telefonia oferecerem acesso à internet via banda larga, TV a cabo e telefonia fixa e móvel. O tema segue sendo debatido, sem definições estabelecidas.
Na reunião da Comissão Política do PCdoB que está sendo realizada hoje em São Paulo, o tema veio à tona: os comunistas reafirmam que a democratização da comunicação é uma das reformas estruturais inadiáveis.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
A questão dos alimentos
Wladimir Pomar* no Correio da Cidadania | |
Em seu discurso programático, a presidenta Dilma colocou em pauta um
problema ao mesmo tempo importante e polêmico. Ela afirmou que o apoio
aos grandes exportadores não é incompatível com o incentivo, o
desenvolvimento e o apoio à agricultura familiar e ao
micro-empreendedor. Com razão ela acentuou que as pequenas empresas são
responsáveis pela maior parcela dos empregos permanentes em nosso país e
merecerão políticas tributárias e de crédito perenes.
No caso específico dos grandes exportadores do agronegócio, ela também
poderia ter afirmado que o apoio ao esse setor da agricultura brasileira
não deve ser incompatível com o desenvolvimento e o apoio à agricultura
familiar. No entanto, ela apenas se referiu às políticas de apoio. O
que não exclui a necessidade de o governo, nessa questão concreta, levar
em conta que a lógica de desenvolvimento do agronegócio é contrária ao
desenvolvimento da agricultura familiar.
Não se pode negar que o agronegócio também gera empregos, embora muitas
vezes de má qualidade, e que sua tendência de mecanização, não só dos
tratos culturais, mas também das colheitas, reduz sua capacidade de
geração de empregos permanentes. Mas a questão principal, que deve
preocupar o governo no desenvolvimento do agronegócio em contraposição à
agricultura familiar, não é essa. É a divisão de trabalho estabelecida
na produção de alimentos, produção indispensável à reprodução saudável
da força de trabalho e de toda a população brasileira.
Nos últimos oito anos, apesar de todo o esforço do governo Lula para
apoiar a agricultura familiar, esta vem sendo paulatina e firmemente
engolida pelo desenvolvimento do agronegócio. Não se trata, no caso,
apenas de ter pena daquelas famílias cujas terras foram expropriadas por
dívidas bancárias ou outras e, em conseqüência, foram posteriormente
re-apropriadas pelo agronegócio. Trata-se também de levar em conta as
parcelas de agricultura familiar que estão sendo arrendadas a grupos
capitalistas do agronegócio para a produção de cana, soja e outras
commodities exportáveis.
Nestes casos, as famílias agrícolas podem até estar numa boa situação na
condição de rentistas. O problema que se coloca é o da segurança
alimentar e da inflação que pode advir de uma oferta muito inferior à
demanda, como está ocorrendo desde o final de 2010. Em termos concretos,
o agronegócio produz mais de 80% dos produtos agrícolas brasileiros,
enquanto a agricultura familiar é responsável por cerca de 20%.
Porém, quase 100% da produção do agronegócio é voltada para commoditites
que têm pouco peso na oferta alimentar. A agricultura familiar é
obrigada, portanto, a sustentar sozinha a oferta de alimentos. Se a
lógica do agronegócio continuar se impondo, mesmo que seja em termos
estritamente econômicos, abandonando o antigo e malfadado sistema
extra-econômico da grilagem, a oferta alimentar corre perigo de redução.
E a idéia de que o Brasil pode aproveitar suas condições de solo, água e
clima, para confirmar seu status de celeiro do mundo, certamente
naufragará.
Para evitar que essa tendência de redução das famílias produtoras de
alimentos continue se impondo, não bastam benefícios tributários e
créditos, embora estes sejam fundamentais. É preciso apoiar efetivamente
o processo de comercialização dos produtos, evitando que as famílias
agrícolas realizem a dupla missão de produzir e comercializar, ou de
produzir e vender a preços vis a atravessadores.
É preciso fazer com que os serviços de extensão rural apóiem a
cooperação agrícola no processamento daqueles tipos de alimentos que
podem ser industrializados, a exemplo das frutas. E ajudar as famílias
agrícolas e elevarem sua produtividade e produzirem a custos mais
baixos.
Finalmente, é preciso tratar do assentamento de alguns milhões de
camponeses, que continuam sem terra para produzir, como uma questão
estratégica para ampliar a produção de alimentos, evitando a escassez
desses produtos, baixando seus custos e impedindo que os alimentos sejam
o vilão do aumento da inflação.
O governo precisa ter em alta conta que, ao promover a expressiva
mobilidade social que ocorreu nos dois mandatos do presidente Lula, como
disse Dilma, ele elevou a pressão sobre a produção alimentar a um nível
que talvez não tenha dimensionado adequadamente. Se se efetivar o
compromisso da presidenta, de não descansar enquanto houver brasileiro
sem alimento na mesa, superando a pobreza que ainda existe, envergonha
nosso país e impede nossa afirmação plena como povo desenvolvido, a
pressão sobre os alimentos dará um novo salto.
Portanto, mesmo compreendendo que o agronegócio desempenha um papel
importante no desenvolvimento das forças produtivas e no desempenho das
exportações, e que a apoio a ele não deve ser negligenciado, talvez já
tenha passado a hora de continuar tratando a agricultura familiar como
uma questão secundária. Será um erro imperdoável esperar a crise que
será criada quando os milhões de brasileiros, que continuam a comer uma
vez por dia, ou menos do que isso, tiverem condições de comer três vezes
ao dia.
*Wladimir Pomar é analista político e escritor.
|
A UE é dura com Minsk, mas suave com Baku
Texto traduzido e enviado pelo leitor Pippo:
Alguém deveria dizer aos líderes da União Europeia para deixarem em paz o ditador bielorrusso Alyaksandr Lukashenko.
Afinal de contas, na próxima semana, o Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso reunir-se-á com Islam Karimov, Presidente do Uzbequistão. E na semana passada o mesmo Durão Barroso visitou o Azerbaijão e reuniu-se com o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, cujo registo de direitos humanos é comparável ao do seu homólogo do Uzebequistão. E na mesma semana, a União convidou o Presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdymukhammedov, a visitar Bruxelas e discutir sobre assuntos de cooperação energética e comercial.
O que faz com que Lukashenka seja diferente dos ditadores acima mencionados? Bom, ninguém pode culpá-lo por a Bielorrússia não possuir petróleo ou gás natural.
Sociedade 'Dinâmica'
Não é nenhum segredo que certos países pós-soviéticos parecem muito diferentes uns dos outros, sobretudo quando os líderes europeus os observam através do prisma do petróleo e do gás. "Eu sei que o seu país tem uma sociedade muito dinâmica", disse Barroso a Aliyev durante a sua visita a Baku.
Dinâmica? Talvez. Mas ninguém o diria se considerar que todos os actos eleitorais tem sido fraudulentos desde 1993, quando o pai de Aliyev, Heydar Aliyev, derrubou o governo democraticamente eleito e tornou-se chefe de Estado num acto que os observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e do Conselho da Europa descreveram como sendo um golpe de Estado.
Ninguém o diria se tivesse tido em conta o facto de que o governo do Azerbaijão tem constantemente obtido péssimas classificações em termos de corrupção por parte da Transparência Internacional, e que o Presidente Aliyev tem sido apontado como um predador de jornalistas por parte de grupos de vigilância da liberdade dos média.
Dinâmica, de facto…
No mês passado, Lukashenko causou um alvoroço na UE e desencadeou um processo de possíveis sanções contra o seu governo após uma ofensiva brutal pós-eleitoral contra a oposição. Ele poderia ter seguido os passos de Aliyev, o qal fez exactamente a mesma coisa em 2003 e 2005.
A Presidência Infindável
Em Março de 2009, Aliyev alterou a Constituição (através de um referendo fraudulento, é claro) abolindo assim os limites de mandato para a presidência e preparando o cenário para ele "concorrer" infinitamente para o cargo. Quando um jornalista da EuroNews recentemente lhe perguntou se ele se considerava um rei, Aliyev simplesmente balançou a cabeça. Mas é difícil imaginar que poderes pode um rei ter que Aliyev não tenha.
No entanto, Lukashenko é um ditador cruel que deve ser desprezado pela “boa” sociedade europeia, enquanto Aliyev é um verdadeiro amigo que preside um país "dinâmico".
A UE precisa de rotas alternativas de energia, e o negócio de um "corredor do sul" para transporte de gás através do Azerbaijão faz muito sentido sob o ponto de vista económico. Do ponto de vista económico, a cooperação com o Turquemenistão e Uzbequistão também fazem sentido.
Mas porque não restringir as relações com esses países dentro de um quadro da cooperação estritamente necessária? Azerbaijão, Turcomenistão e outros países têm hidrocarbonetos a UE tem o dinheiro para os pagar. Então, será que é realmente necessário que os funcionários europeus coloquem os seus braços por sobre os ombros destes governantes autoritários e digam disparates acerca do seu desenvolvimento "dinâmico"?
Por que é que Barroso faz o comentário gratuito de que "nós queremos deixar claro que as nossas relações não se limitam ao petróleo e gás", quando todos sabem que 98 por cento das importações da UE provenientes do Azerbaijão são o petróleo e o gás?
Adicionando insulto à injúria
Já foi dito antes, mas, obviamente, precisa ser dito novamente. Quando os líderes da UE fazem visitas de alto nível a esses países e louvam os seus governantes, eles conferem um enorme capital político a essas transacções comerciais. Os líderes autoritários concluem que, enquanto estiverem dispostos a receber dinheiro europeu, eles terão a UE nos seus bolsos. Na falta de legitimidade ente o seu próprio povo, eles diligentemente recebem raspas de legitimidade dos lábios de pessoas como José Manuel Barroso.
Este é um jogo que os líderes autoritários estão felizes por jogar. Afinal, a UE é um exemplo de um modelo político radicalmente diferente para os cidadãos de países como o Azerbaijão. Assim, a "ditaduras da energia" sentem a necessidade de desacreditar a UE, mostrando assim aos seus povos que o discurso da Europa da democracia e dos direitos humanos é apenas um corrilho de mentiras.
Quando eles apertam as mãos com altos responsáveis da UE, como Barroso, eles enviam a mensagem de que as críticas do passado (na sua maior parte, proveniente das organizações europeias) nunca importaram e foram esquecidas. No caso do Azerbaijão, a mensagem é ainda pior. Aliyev afirmou muitas vezes que "alguns países" manipulam as questões da democracia a fim de forçar o Azerbaijão a fazer concessões económicas. Quando funcionários da UE assinam acordos e falam sobre o Azerbaijão "dinâmico", toda a gente neste país entende que a democracia, eleições fraudulentas, jornalistas presos, espancados e manifestantes são apenas moeda de troca para tornar o gás e o petróleo mais baratos. Ou pelo menos, isso é o que Baku quer que todos, no Azerbaijão, assim o pensem.
E não ajuda o facto de que, quando Durão Barroso realizou uma conferência de imprensa conjunta com Aliyev em Baku, nenhum dos órgãos independentes dos média do país tivessem estado presentes. Mais tarde, quando Durão Barroso realizou uma conferência de imprensa individual, organizada pelo gabinete da UE em Baku, as perguntas dos jornalistas foram previamente seleccionadas.
Por que é que a UE participa nesta dança Kabuki com o governo do Azerbaijão?
Aqui estão alguns factos para fazer a UE refectir. Eynulla Fatullayev é um jornalista do Azerbaijão que foi detido em 2007 sob acusações falsas, pois os dois jornais que fundou eram críticos em relação ao Governo. Ele foi condenado a 8 anos e meio de prisão sob a acusação de calúnia, difamação, incitação ao terrorismo e à evasão fiscal.
No ano passado, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem absolveu-o de todas as acusações e ordenou ao Azerbaijão que o libertasse e o indemnizasse no valor de 28.000 €. Antecipando-se a esta decisão, o Supremo Tribunal de Justiça do Azerbaijão rapidamente condenou por novas acusações de posse de drogas e evasão fiscais. Ele permanece na prisão até aos dias de hoje.
A indemnização ordenada por Estrasburgo foi depositada numa conta bancária a qual foi congelada na sequência da prisão de Fatullayev, permitindo a Baku afirmar que tinha dado cumprimento à decisão do tribunal, assegurando ao mesmo tempo que Fatullayev não poderia receber o dinheiro.
Barroso afirmou que discutiu este caso com Aliyev. "O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pronunciou-se em seu favor e defendi a sua libertação", disse Barroso. "Eu abordei essas questões, num espírito de abertura e amizade, chamando claramente a atenção do presidente Aliyev. "
Em 21 de Janeiro o Tribunal da Apelação de Baku analisará o recurso de Fatullayev para a sua libertação. Este será um bom teste para os amigos de Durão Barroso em Baku.
E aqui está mais um exemplo do cinismo extremo com que o governo do Azerbaijão trata os seus parceiros europeus.
Mais de um ano atrás, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (APCE) nomeou o social-democrata alemão Christoph Straesser como relator especial para os presos políticos no Azerbaijão. No entanto Straesser ainda não recebeu o convite do governo do Azerbaijão para visitar o país e implementar o seu mandato.
O Conselho da Europa pediu a Baku que resolvesse o problema, mas sem sucesso. Straesser provavelmente receberá o seu convite na mesma altura em que Fatullayev receber a sua indemnização.
Lukashenko pode obter sanções; Aliyev irá rir por último.
http://www.rferl.org/content/eu_azerbaijan_aliyev_barroso_commentary/2281186.html "
Afinal de contas, na próxima semana, o Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso reunir-se-á com Islam Karimov, Presidente do Uzbequistão. E na semana passada o mesmo Durão Barroso visitou o Azerbaijão e reuniu-se com o Presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, cujo registo de direitos humanos é comparável ao do seu homólogo do Uzebequistão. E na mesma semana, a União convidou o Presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdymukhammedov, a visitar Bruxelas e discutir sobre assuntos de cooperação energética e comercial.
O que faz com que Lukashenka seja diferente dos ditadores acima mencionados? Bom, ninguém pode culpá-lo por a Bielorrússia não possuir petróleo ou gás natural.
Sociedade 'Dinâmica'
Não é nenhum segredo que certos países pós-soviéticos parecem muito diferentes uns dos outros, sobretudo quando os líderes europeus os observam através do prisma do petróleo e do gás. "Eu sei que o seu país tem uma sociedade muito dinâmica", disse Barroso a Aliyev durante a sua visita a Baku.
Dinâmica? Talvez. Mas ninguém o diria se considerar que todos os actos eleitorais tem sido fraudulentos desde 1993, quando o pai de Aliyev, Heydar Aliyev, derrubou o governo democraticamente eleito e tornou-se chefe de Estado num acto que os observadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa e do Conselho da Europa descreveram como sendo um golpe de Estado.
Ninguém o diria se tivesse tido em conta o facto de que o governo do Azerbaijão tem constantemente obtido péssimas classificações em termos de corrupção por parte da Transparência Internacional, e que o Presidente Aliyev tem sido apontado como um predador de jornalistas por parte de grupos de vigilância da liberdade dos média.
Dinâmica, de facto…
No mês passado, Lukashenko causou um alvoroço na UE e desencadeou um processo de possíveis sanções contra o seu governo após uma ofensiva brutal pós-eleitoral contra a oposição. Ele poderia ter seguido os passos de Aliyev, o qal fez exactamente a mesma coisa em 2003 e 2005.
A Presidência Infindável
Em Março de 2009, Aliyev alterou a Constituição (através de um referendo fraudulento, é claro) abolindo assim os limites de mandato para a presidência e preparando o cenário para ele "concorrer" infinitamente para o cargo. Quando um jornalista da EuroNews recentemente lhe perguntou se ele se considerava um rei, Aliyev simplesmente balançou a cabeça. Mas é difícil imaginar que poderes pode um rei ter que Aliyev não tenha.
No entanto, Lukashenko é um ditador cruel que deve ser desprezado pela “boa” sociedade europeia, enquanto Aliyev é um verdadeiro amigo que preside um país "dinâmico".
A UE precisa de rotas alternativas de energia, e o negócio de um "corredor do sul" para transporte de gás através do Azerbaijão faz muito sentido sob o ponto de vista económico. Do ponto de vista económico, a cooperação com o Turquemenistão e Uzbequistão também fazem sentido.
Mas porque não restringir as relações com esses países dentro de um quadro da cooperação estritamente necessária? Azerbaijão, Turcomenistão e outros países têm hidrocarbonetos a UE tem o dinheiro para os pagar. Então, será que é realmente necessário que os funcionários europeus coloquem os seus braços por sobre os ombros destes governantes autoritários e digam disparates acerca do seu desenvolvimento "dinâmico"?
Por que é que Barroso faz o comentário gratuito de que "nós queremos deixar claro que as nossas relações não se limitam ao petróleo e gás", quando todos sabem que 98 por cento das importações da UE provenientes do Azerbaijão são o petróleo e o gás?
Adicionando insulto à injúria
Já foi dito antes, mas, obviamente, precisa ser dito novamente. Quando os líderes da UE fazem visitas de alto nível a esses países e louvam os seus governantes, eles conferem um enorme capital político a essas transacções comerciais. Os líderes autoritários concluem que, enquanto estiverem dispostos a receber dinheiro europeu, eles terão a UE nos seus bolsos. Na falta de legitimidade ente o seu próprio povo, eles diligentemente recebem raspas de legitimidade dos lábios de pessoas como José Manuel Barroso.
Este é um jogo que os líderes autoritários estão felizes por jogar. Afinal, a UE é um exemplo de um modelo político radicalmente diferente para os cidadãos de países como o Azerbaijão. Assim, a "ditaduras da energia" sentem a necessidade de desacreditar a UE, mostrando assim aos seus povos que o discurso da Europa da democracia e dos direitos humanos é apenas um corrilho de mentiras.
Quando eles apertam as mãos com altos responsáveis da UE, como Barroso, eles enviam a mensagem de que as críticas do passado (na sua maior parte, proveniente das organizações europeias) nunca importaram e foram esquecidas. No caso do Azerbaijão, a mensagem é ainda pior. Aliyev afirmou muitas vezes que "alguns países" manipulam as questões da democracia a fim de forçar o Azerbaijão a fazer concessões económicas. Quando funcionários da UE assinam acordos e falam sobre o Azerbaijão "dinâmico", toda a gente neste país entende que a democracia, eleições fraudulentas, jornalistas presos, espancados e manifestantes são apenas moeda de troca para tornar o gás e o petróleo mais baratos. Ou pelo menos, isso é o que Baku quer que todos, no Azerbaijão, assim o pensem.
E não ajuda o facto de que, quando Durão Barroso realizou uma conferência de imprensa conjunta com Aliyev em Baku, nenhum dos órgãos independentes dos média do país tivessem estado presentes. Mais tarde, quando Durão Barroso realizou uma conferência de imprensa individual, organizada pelo gabinete da UE em Baku, as perguntas dos jornalistas foram previamente seleccionadas.
Por que é que a UE participa nesta dança Kabuki com o governo do Azerbaijão?
Aqui estão alguns factos para fazer a UE refectir. Eynulla Fatullayev é um jornalista do Azerbaijão que foi detido em 2007 sob acusações falsas, pois os dois jornais que fundou eram críticos em relação ao Governo. Ele foi condenado a 8 anos e meio de prisão sob a acusação de calúnia, difamação, incitação ao terrorismo e à evasão fiscal.
No ano passado, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem absolveu-o de todas as acusações e ordenou ao Azerbaijão que o libertasse e o indemnizasse no valor de 28.000 €. Antecipando-se a esta decisão, o Supremo Tribunal de Justiça do Azerbaijão rapidamente condenou por novas acusações de posse de drogas e evasão fiscais. Ele permanece na prisão até aos dias de hoje.
A indemnização ordenada por Estrasburgo foi depositada numa conta bancária a qual foi congelada na sequência da prisão de Fatullayev, permitindo a Baku afirmar que tinha dado cumprimento à decisão do tribunal, assegurando ao mesmo tempo que Fatullayev não poderia receber o dinheiro.
Barroso afirmou que discutiu este caso com Aliyev. "O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pronunciou-se em seu favor e defendi a sua libertação", disse Barroso. "Eu abordei essas questões, num espírito de abertura e amizade, chamando claramente a atenção do presidente Aliyev. "
Em 21 de Janeiro o Tribunal da Apelação de Baku analisará o recurso de Fatullayev para a sua libertação. Este será um bom teste para os amigos de Durão Barroso em Baku.
E aqui está mais um exemplo do cinismo extremo com que o governo do Azerbaijão trata os seus parceiros europeus.
Mais de um ano atrás, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (APCE) nomeou o social-democrata alemão Christoph Straesser como relator especial para os presos políticos no Azerbaijão. No entanto Straesser ainda não recebeu o convite do governo do Azerbaijão para visitar o país e implementar o seu mandato.
O Conselho da Europa pediu a Baku que resolvesse o problema, mas sem sucesso. Straesser provavelmente receberá o seu convite na mesma altura em que Fatullayev receber a sua indemnização.
Lukashenko pode obter sanções; Aliyev irá rir por último.
http://www.rferl.org/content/eu_azerbaijan_aliyev_barroso_commentary/2281186.html "
Lula, o filho da dialética
Não é e nunca foi um revolucionário que
quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la
aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão
dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da
política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro
tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de
Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula
quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca
compromissos aos poucos, sem ruptura. O artigo é de J. Carlos de Assis.
J. Carlos de Assis*na Carta Maior
O que há de comum entre a dialética marxista
e o princípio milenar de Lao Tsé segundo o qual não se deve remar
contra a corrente, mas usar sua força a seu favor? Tudo. É
essencialmente o mesmo princípio. O que me impediu durante décadas de
ver isso foi uma leitura superficial de Marx. Ou melhor, uma leitura de
Marx que não considerava os fundamentos mais profundos de sua própria
dialética no plano filosófico, ainda hoje insuperável, pela razão de que
ela está recoberta por uma dialética política impressionista que se
revelou idealista e fracassada.
Nenhum político brasileiro, e poucos no mundo, se revelaram melhores discípulos de Lao Tsé do que Luís Inácio Lula da Silva. Mas Lula é também um produto genuíno da dialética marxista. Para Marx, a história avança como resultado de conflitos entre forças materiais polares (para seu inspirador, Hegel, eram as forças de idéias polares), sendo uma conservadora, outra progressista, e de cujo embate sempre resulta a superação de ambas num nível superior. Em seu aspecto formal, trata-se da interação real entre tese, antítese e síntese.
Superação não significa domínio da antítese sobre a tese. Significa a interação de ambas numa síntese que contém elementos próprios de cada uma delas, porém numa direção nova. A grande novidade da dialética marxista, em relação a Hegel, é que ela coloca o conflito histórico recorrente no nível das forças materiais, e não no campo exclusivo das idéias. Isso não chega a ser contraditório em relação à dialética política marxista, a qual, confiada no conhecimento humano dos determinantes de sua própria história, entendeu possível ser eliminado o conflito de classes pelo domínio absoluto de uma classe, os trabalhadores, sobre a outra, os burgueses.
A razão dessa extrapolação política é em si mesma simples: se a dialética formal exige que, no conflito entre tese e antítese, a síntese que o supere guarde elementos de ambos, o que se guarda do capitalismo na construção do comunismo pela liquidação da burguesia não são elementos das complexas relações sociais por esta criada, mas sua característica material fundamental: o espetacular desenvolvimento das forças produtivas realizado pelo capitalismo, exaltado inclusive pelo Manifesto Comunista de 48. Este seria herdado e apropriado pelos comunistas. Concilia-se assim dialética formal com dialética política, na medida em que esta rejeita a superação do conflito mediante interação das classes em favor da idéia de eliminação, no comunismo, não só da classe burguesa, mas de todas as classes.
Marx não chegou a ser muito preciso a respeito do que pensava ser a marcha da história depois do comunismo. Em geral, confiava num processo de emulação (não de competição) entre trabalhadores, estes em condições sociais iguais, para produzir o progresso tecnológico numa sociedade sem classes. Idealismo puro. Num certo sentido seria o fim da História tal como a conhecemos, ou seja, como um processo dialético, ou de conflitos. Mais de um século mais tarde, um pensador norte-americano, Francis Fukuyama, também achou que estávamos ao ponto de chegar ao fim da História, porém mediante um processo dialeticamente inverso: pelo predomínio absoluto do neoliberalismo e a eliminação do reformismo social tradicionalmente perseguido pelas esquerdas.
Vimos ao longo do século XX e neste início do XXI que os processos históricos são bem mais complexos, não obstante a validade formal da dialética marxista e hegeliana: a limitada burguesia capitalista e a ampla classe dominante feudal, numa área remota e pouco desenvolvida do mundo, a Rússia, foi liquidada por um golpe de um punhado de trabalhadores e uma multidão de camponeses liderados por intelectuais, mas disso não resultou o fim das classes. Resultou, sim, na lenta criação de uma nomenclatura privilegiada em face de massas subjugadas, trucidadas e amordaçadas, não obstante algum progresso material inicial.
Na China, outra área remota de camponeses, a revolução comunista triunfante só se estabilizou e colocou o país na trilha do desenvolvimento após a consolidação de uma elite dominante tecnocrática que tem características mais próximas do antigo mandarinato do que do mundo burguês ocidental. Nesses dois grandes países, a tese não era o capitalismo, mas algo próximo do feudalismo; a antítese, depois do interregno caótico comunista, está sendo o próprio capitalismo liberal importado, embora com elementos sociais. A síntese, não revolucionária, está em processo. É como se a história tivesse feito um desvio geográfico, o equivalente de um epiciclo planetário no sistema cosmológico de Ptolomeu. Na era nuclear, a guerra, anteriormente o fato supremo da Geopolítica, já não pode ser, como havia afirmado Clausewitz, a continuação da política por outros meios: o adversário não pode ser destruído sem uma simultânea autodestruição, mas, sim, absorvido num processo de negociação e de composição sem derrotados definitivos.
O que aconteceu ao longo desse período no Ocidente, berço da dialética, do capitalismo, do comunismo e da Geopolítica de Clausewitz? Aconteceu o curso da dialética real, traçando um rumo da história que se revelaria também o mais próximo do princípio de Lao Tsé: à sombra do conflito de idéias e de interesses entre capitalismo liberal e socialismo real, debaixo do medo do comunismo soviético e dos comunistas internos, um grupo de nações européias, liderado pelos nórdicos, promoveu a síntese social democrata, com elementos aproveitados dos dois sistemas em conflito, porém superando-os. De um lado, o respeito à propriedade privada e o prêmio pelo esforço, pela inovação e pela competência; de outro, os programas sociais promovidos pelo Estado a partir de uma pressão crescente por igualdade de oportunidades sobre a renda nacional, porém de caráter não revolucionário, através da expansão dos orçamentos públicos pela força da cidadania ampliada.
O conflito geopolítico entre as potências hegemônicas antagônicas, Estados Unidos e União Soviética, à sombra do terror nuclear, dominou a segunda metade do Século XX e de certa forma obscureceu as nuances do modelo social democrata europeu na sua fase de construção e de consolidação. É da natureza de qualquer conflito político a radicalização. Acontece que, na era nuclear, a radicalização política tinha e tem limites: os falcões norte-americanos não podiam colocar em prática seus propósitos de levar a União Soviética à rendição por meios militares, assim como permaneceu como letra morta o artigo do programa do PCUS de destruir o capitalismo e o imperialismo (norte-americano). Entretanto, uma retórica estridente num plano impraticável não deixa de produzir resultados mobilizadores na base.
No plano da ideologia, da propaganda e da imprensa engajada do pólo norte-americano, toda pessoa com preocupações sociais era taxada de comunista; com isso, nos Estados Unidos, tendo por epifenômeno a caça às bruxas do Senador McCarthy nos anos 50, o progresso social a partir do Estado seria lento. Mais do que isso, sob a vasta área de influência norte-americana do lado ocidental, se era possível a consolidação da social democracia no norte da Europa, tornou-se bem mais difícil importar esse modelo pelos países atrasados ou, como se diz hoje, em desenvolvimento. Uma das razões, talvez entre as principais, era de natureza contraditória, e inequivocamente ideológica: os comunistas não queriam reformas, queriam revoluções. Nisso, acabavam como aliados efetivos dos conservadores que também não queriam reformas.
A Europa teve mais sorte. Dois marxistas geniais, Eduard Bernstein e Karl Kautsky, se deram conta no começo do século XX de que entre a classe burguesa e a classe operária o movimento real da história, num curso bem diferente do previsto por Marx, estava produzindo relações sociais complexas na forma de classes médias cada vez mais amplas, com interesses próprios diferenciados das outras duas. Foram acusados de renegados e expurgados do marxismo oficial. Não obstante, foram eles que abriram as portas para o reconhecimento de uma síntese social democrata no plano teórico. Foi graças a ideólogos como eles que a pequena Suécia não caiu na armadilha da luta ideológica radical, fundando efetivamente a social democracia ainda nos anos 20.
Nós não tivemos a mesma sorte. O máximo de acomodação que nossos ideólogos de esquerda conseguiram produzir no espaço entre os dois pólos ideológicos foi o conceito de revolução nacional burguesa, num momento em que o capitalismo de fora para dentro já se estava tornando internacional e o capitalismo de dentro para fora conquistava boas oportunidades associando-se com o externo, ambos contribuindo para expandir os limites das incipientes classes médias. Fernando Henrique Cardoso elaborou o conceito com um trejeito de neutralidade acadêmica, expurgando-o do apelo revolucionário. Sua teoria da dependência é a teoria do desenvolvimento capitalista subordinado, por cima das relações sociais concretas internas, o que tentou levar à prática em sua Presidência. Certamente foi mais realista que os ideólogos revolucionários comunistas. Mas não correspondeu ao Brasil real, ou às forças sociais reais que prevalecem no Brasil desde os anos 90.
O quadro mais complexo do Brasil contemporâneo está retratado na Constituição original de 88. Foi essa Constituição, renegada inicialmente pelos parlamentares do PT e colocada sob suspeita pelos conservadores, que gerou Lula, sendo que Lula esteve no centro dos acontecimentos sociais e políticos que geraram a abertura política na ditadura, e a própria Constituinte de que seria uma consequência. Isso é dialética no mundo real, não no plano das idéias. O sentido mais profundo da Constituição é que ela refletia, ou aparentava refletir, uma força política que correspondia a uma efetiva democracia de cidadania ampliada. O fato político mais decisivo rumo à ampliação da cidadania foram as históricas greves de 1978, 79 e 80, em confronto direto com as restrições do governo autoritário. Lula foi o líder inconteste dos trabalhadores organizados nessa greve, e a aura do sucesso lhe abriu o caminho para que, transcendendo o sindicalismo, acabasse sendo o grande líder das massas indiferenciadas que acabou sendo: os pobres eternamente relegados a segundo plano pelo orçamento público no Brasil. Esses pobres, inclusive analfabetos, viram reconhecida sua cidadania na Constituição de 88, além de amplos direitos sociais. Os conservadores só tiveram tempo de espantar-se diante do novo quadro político, e preparar uma contra-ofensiva, através da recorrente pregação posterior de reformas liberais.
No início Lula foi celebrado como um herói contra a ditadura. Como boa parte das classes médias estava contra a ditadura, seja por razões ideológicas, seja por sentimentos democráticos genuínos, é possível que ele no início tenha tido relativamente mais apoio nas classes médias pelo que parecia ser, e menos apoio das classes subalternas pelo que ainda não era. Isso se reflete nas várias eleições presidenciais que disputou e perdeu, antes da vitória em 2002. O partido que construiu era um curioso ajuntamento de sindicalistas, intelectuais e católicos progressistas, com um poder de atração considerável sobre a juventude, dada a inclinação natural desta para uma espécie de veneração romântica da classe trabalhadora (o que, em outro tempo, era um grande fator de recrutamento de quadros pelos PCs).
Sabemos que a Constituição de 88 não foi plenamente aplicada. Aliás, em várias partes e em momentos posteriores ela foi de fato estuprada, desde o Governo Collor ao Governo Fernando Henrique. Qual a razão disso, à luz da dialética? A razão é que os avanços nela inscritos não correspondiam a uma expressão genuína do jogo de poder entre forças sociais reais, mas a uma concessão romântica de forças políticas progressistas, que detiveram por um momento o poder parlamentar, mas não o poder real. Este estava nas mãos dos conservadores que iniciaram o movimento anti-progressista ainda com o Centrão e iriam aprofundá-lo com o movimento de desestatização, privatização e corte de direitos sociais nos anos posteriores.
Estes foram anos em que o Brasil, tradicionalmente sujeito à influência de ideologias externas, sucumbiu à avalanche neoliberal em progresso no mundo. Já antes da desarticulação da União Soviética o socialismo real se desmoralizava mundialmente como conseqüência da falta de liberdade individual e de fracassos no plano material, desde o atraso tecnológico a ondas de desastres agrícolas. Depois da desarticulação, comunistas brasileiros e simpatizantes do socialismo viram-se sem referência política. Não era uma característica exclusiva nossa. Os tradicionais partidos de esquerda europeus, e o próprio Partido Democrata norte-americano, também sucumbiram. Não estranha que Fukuyama tenha, nesse contexto, vislumbrado o fim da História.
O Governo do intelectual Fernando Henrique foi o reflexo medíocre desse processo: passará à História como um apêndice irrelevante do neoliberalismo europeu e norte-americano. Foi a crise financeira de fins dos anos 90, coroando anos seguidos de virtual estagnação econômica, que apontou a fragilidade do modelo neoliberal adaptado a condições brasileiras. O relaxamento das certezas políticas em torno dele, que abalou parte das próprias classes dominantes, abriu espaço para que emergissem demandas de baixo para cima com potencial de influir no processo político. Lula ocupou esse espaço, porém com uma extraordinária habilidade instintiva para construir uma alternativa entre radicalismos de esquerda e de direita.
Poderia ter sido feito de outra forma? O início do primeiro Governo Lula foi decepcionante para a maioria dos progressistas, inclusive para mim. De saída, ele trouxe para o núcleo central da política econômica um presidente do Banco Central extraído do próprio sistema neoliberal. Acrescentou-se a isso, pela mão de um Ministro da Fazenda convertido à ortodoxia econômica, um compromisso explícito com uma política fiscal restritiva, igualmente a pleno gosto dos neoliberais. Em face de uma taxa de desemprego alarmante, esses movimentos na política econômica poderiam ser justificadamente considerados concessões excessivas à direita e uma traição à maioria do povo que o elegeu. Por cima de tudo, a política social oscilava num plano ainda indefinido.
Em contrapartida, o quadro herdado do Governo anterior era, por sua vez, de extrema complexidade. A despeito de uma taxa de juros básica elevada, a inflação tinha disparado. As reservas cambiais minguavam. Uma especulação desenfreada havia provocado uma explosão da taxa de câmbio. As expectativas empresariais eram sombrias em relação às iniciativas do primeiro partido de esquerda que chegava ao poder no Brasil. Diante disso, a presença de José Alencar, um grande empresário, no cargo de Vice Presidente, era um hábil expediente político, porém não necessariamente efetivo (acabou sendo).
Então aconteceu o imprevisível: os ventos internacionais começaram a soprar a favor. O boom da economia mundial e sobretudo da China puxou para níveis até então inimagináveis as quantidades exportadas e os preços das commodities vendidas pelo Brasil, possibilitando o início de um processo de rápida acumulação de reservas externas; a taxa de câmbio tinha atingido níveis tão altos (quase R$ 4,00) que, mesmo com sua progressiva redução por força do aumento da taxa de juros, subiram também as exportações de manufaturados, em face do ambiente externo igualmente favorável; por efeito da melhora do quadro externo, o mercado interno começou a reagir, inclusive com moderada recuperação do emprego, ao ponto de que, em 2004, o Banco Central se sentiu no direito de dar uma travada na economia para supostamente combater pressões inflacionárias. O resto é conhecido: recuo em 2005 e nova retomada, desta vez mais consistente, a partir de 2006. E uma firme virada política na direção do atendimento às aspirações dos mais pobres e das políticas sociais universais a partir de 2004.
Imagine-se um caminho diferente: Lula teria composto um Ministério econômico mais progressista e implementado políticas mais populares desde a saída. Seria um confronto direto com as classes dominantes conservadoras. No passado, estas tinham o Exército a seu favor, e reagiriam pelo recurso tradicional de um golpe. Agora, dispõem de forças igualmente poderosas: uma parte considerável da grande mídia que forma a opinião pública – muitas vezes em contradição com os interesses reais desta última.
Vimos, pela eleição de Dilma, que a grande mídia tem um poder construtivo limitado: a seu gosto, teria sido eleito Serra. Contudo, seu poder destrutivo não pode ser subestimado. Para o bem ou para o mal, ela destruiu o governo militar, desmoralizou o Plano Cruzado e a moratória do Governo Sarney, promoveu o impeachment de Collor, desestruturou o PT no mensalão. Não fora a força carismática imbatível de Lula, e sua empatia com o povo, além dos meios de informação mais democratizados da internet, e ele e sua sucessão seriam igualmente destruídos pela mídia. Imagine, pois, uma situação de crise geral do país, como anteriormente assinalada, em que um governo inexperiente de esquerda começasse a tomar medidas contra os interesses da classe dominante, muito especialmente os interesses do estamento financeiro entrelaçados com preconceitos ideológicos das classes médias, e que têm as maiores contas de publicidade: seria simplesmente massacrado e desestabilizado pela mídia, inclusive em face da contribuição eventual de petistas tão embriagados pelo poder que fossem capazes de produzir algo tão moralmente repugnante como um mensalão na órbita do palácio!
É claro que a especulação sobre o que poderia ter acontecido se Lula tivesse tentado fazer um governo puro de esquerda (o que é exatamente isso?) é perfunctória, depois do fato consumado. Entretanto, o caminho seguido é uma lição de história... e de dialética, ou da aplicação prática da doutrina de Lao Tsé. Estranho que, quem a tenha dado, seja um torneiro mecânico treinado apenas no sindicalismo, sucessor de quem era considerado um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros. Contudo, talvez seja essa a explicação. Lula nunca pregou a destruição do capitalismo. Nas greves históricas que promoveu, era sobretudo um negociador de aumentos salariais. E em geral sabia até onde poderia ir em termos de reivindicações para não inviabilizar a empresa e destruir a fonte de emprego do próprio trabalhador.
Testemunhei isso. Em 1978, eu era subeditor de Economia do “Jornal do Brasil” e fui indicado pelo editor, Paulo Henrique Amorim, para coordenar as edições das greves do ABC. Na época o “Jornal do Brasil” era o principal formador de opinião brasileiro e o fato de ter aberto duas páginas diárias para as greves foi decisivo para sua repercussão em nível nacional, já que a conservadora imprensa paulista praticamente se omitiu no início delas.
Terminadas 40 dias de greves, fui a São Bernardo para conhecer pessoalmente Lula. Estive com ele um dia inteiro. Entre os relatos que me fez, lembro-me de um sobre uma fábrica de uns 400 empregados que haviam parado e o chamado para negociar o aumento. Queriam 20%. Lula negociou, e obteve o acordo. Duas semanas depois, os operários entraram em greve de novo. Queriam mais 20%. O dono da fábrica desesperou-se. Não podia dar. Lula foi à fábrica e convenceu os empregados, em assembléia, a desistir do pedido.
Esse fato singelo antecipa o que Lula foi na Presidência da República: um hábil negociador e conciliador. Ele não é e nunca foi um revolucionário que quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca compromissos aos poucos, sem ruptura.
Por que, então, ele é tão odiado por uma fração das elites e das classes médias? É uma parte pequena da sociedade, mas com capacidade de vocalização. E é a clientela preferencial dos grandes jornais. Em geral, são privilegiados, e seus interesses básicos foram preservados no Governo Lula. Assim, seu ódio é de estrito fundo ideológico. É um reflexo tardio da doutrina neoliberal que, derrotada pelos fatos a partir da crise financeira iniciada em 2008, ainda não foi entendida como um fracasso retumbante no Brasil, em razão justamente da mediocridade ou da parcialidade de grande parte de nossa mídia. Diga-se, a bem da verdade, que o Ministério de Lula e de sua sucessora também guardaram e guardam resíduos neoliberais. Entretanto, a direção geral das políticas públicas tem um claro viés popular. Não é o ideal, mas o que talvez permitam as circunstâncias.
Isso se revelou sobretudo no enfrentamento da crise financeira mundial que eclodiu em 2008. Alguém deve ter dito a Lula que se tratava de uma marolinha, que o Brasil passaria ao largo dela. Entretanto, quando os fatos demonstraram o contrário, em especial em face de uma explosão no desemprego em dezembro de 2008, o Governo começou a mexer-se. E a medida a meu ver mais eficaz sequer podia ser interpretada como uma iniciativa conjuntural anticíclica. Foi o aumento real de 7% do salário mínimo, fruto de negociação anterior entre centrais sindicais e patronato sob condução de Lula.
O aumento do mínimo injetou uma soma considerável de recursos novos na economia pelo lado da demanda, o que, somado ao estabilizador automático do Bolsa Família e de outros programas sociais, parou a queda do produto e sustentou o início da retomada, estimulado também por reduções de tributos. Do lado da oferta, a principal iniciativa foi a transferência ao BNDES de R$ 100 bilhões (depois mais R$ 80 bilhões) diretamente do Tesouro, o que assegurou a sustentação e ampliação do investimento produtivo deficitário para fazer face à reativação de demanda que estava sendo estimulada. Se não foi possível evitar a queda do PIB em 2009, já no terceiro trimestre havia sinais claros da recuperação que se configuraria em 2010.
Evidentemente que haverá quem, de forma sincera, ache que Lula fez pouco. Isso suscita uma das recorrentes discussões teóricas em dialética: qual a margem de liberdade que o conflito entre interesses reais deixa para a decisão individual do líder? Sabemos que há margens de liberdade, mas sabemos também que, no processo político em andamento, o líder não sabe de antemão quais são. É justamente aí que entra sua inteligência, ou sua intuição. Depois do fato, e sobretudo depois que se sabe a reação do adversário, ou de suas conseqüências, é fácil dizer que haveria um caminho melhor. No fragor da luta, tudo depende de uma avaliação que nem sempre está no campo racional, mas sim no da intuição.
Entre o primeiro e o segundo mandato, Lula poderia ter mandado o presidente do Banco Central para casa. Era o principal empecilho a um crescimento brasileiro mais vigoroso. Talvez ele o fizesse, não fosse a eclosão do mensalão, que o deixou muito fragilizado politicamente. Poderia também ter recorrido a uma política fiscal efetivamente desenvolvimentista, forçando a redução dos juros e por aí liberando recursos fiscais para investimentos produtivos, como queria José Alencar. Não o fez, talvez temendo a reação da mídia. E isso, como dito, não é de subestimar: duas medidas importantíssimas do segundo Governo, a liberação do controle fiscal sobre os investimentos da Eletrobrás, e a capitalização da Petrobrás com reservas do pré-sal, foram recebidas com uma avalanche impressionante de críticas, não obstante sua importância vital para o desenvolvimento brasileiro.
No balanço geral, Lula fez um governo bom para todo mundo, o que se refletiu com justiça nas pesquisas de opinião. Poderia, aliás, inverter a frase: como mostram as pesquisas de opinião, Lula fez um governo bom para todo mundo. Só os obstinados radicais de oposição podem questionar isso. O que se pode tentar fazer é explicar esse fenômeno racionalmente. Talvez nem seja racional. Lembro-me que, no início da crise do mensalão, e amargando uma queda de popularidade que vinha desde antes, Lula deu a uma repórter de tevê amadora uma entrevista em Paris. Foi uma coisa patética, num ambiente patético, e com uma aparência patética. Entre outras coisas, disse que quem está no quarto andar do palácio (Planalto) não sabe o que acontece no terceiro, e que foi traído por alguns companheiros. Assisti à entrevista e fiquei perplexo. Lula parecia destruído.
A partir dali, nas semanas seguintes, a credibilidade de Lula começou a subir. Subiu até ganhar a reeleição. A única explicação é que o povo se apiedou dele, de seu isolamento, visível naquela entrevista improvisada, e se identificou ainda mais com o homem do povo que chegou ao poder e que estava sendo atacado impiedosamente pelas elites dominantes.
Critiquei muito a política econômica do Governo Lula no primeiro mandato. Não tenho muitos motivos hoje para mudar de opinião, mesmo em relação ao segundo mandato. Entretanto, como disse uma vez Alencar, “fizemos tudo errado mas deu tudo certo”. Examinando o passado e sondando o futuro, Delfim Netto disse a mesma coisa, com outras palavras: “Lula teve vento a favor, Dilma terá vento contra”. Em qualquer hipótese, a marca das políticas sociais de Lula ficará gravada para sempre na História do Brasil. Dificilmente se poderá recuar delas, sobretudo depois que ele fez sua sucessora. Isso não compensa exatamente a política econômica conservadora, mas é muito mais que simples populismo porque tem a força de criação de direitos ancorados na democracia de cidadania ampliada.
Em certo momento do primeiro mandato de Lula, estava tão indignado, como disse, com sua política econômica que encerrei um ensaio com uma paródia mais ou menos assim: “Lula, como Moisés, levou seu povo até a beira da Terra Prometida. Mas diferente de Moisés, que não entrou nela, Lula entrou sozinho”. Esse juízo se revelaria, com o tempo, um dos mais injustos que fiz em mais de 40 anos de jornalismo. Acho hoje que um pedaço do Brasil, justamente o dos mais desassistidos desde a escravatura, recebeu de Lula uma oportunidade para entrar na Terra Prometida. Afinal, o que prometeu em suas campanhas, de modo mais enfático, não foi mudar a política econômica. Foi ver dois pratos de comida, por dia, na mesa de cada brasileiro.
Por isso vejo Lula como o filho da dialética. Em escala, é um modelo reduzido, embora eloqüente, do futuro do mundo. Esse futuro não será uma volta pura e simples ao capitalismo liberal dos Estados Unidos, ainda a potência econômica dominante, nem o avanço em direção ao modelo de capitalismo sem liberdade da China, a potência emergente. Será uma superação de ambos. Algum forma política que combine liberdade empresarial e liberdade individual, e alguma forma econômica que combine estímulo ao empreendedorismo privado e maior regulação estatal.
(*) Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.
Nenhum político brasileiro, e poucos no mundo, se revelaram melhores discípulos de Lao Tsé do que Luís Inácio Lula da Silva. Mas Lula é também um produto genuíno da dialética marxista. Para Marx, a história avança como resultado de conflitos entre forças materiais polares (para seu inspirador, Hegel, eram as forças de idéias polares), sendo uma conservadora, outra progressista, e de cujo embate sempre resulta a superação de ambas num nível superior. Em seu aspecto formal, trata-se da interação real entre tese, antítese e síntese.
Superação não significa domínio da antítese sobre a tese. Significa a interação de ambas numa síntese que contém elementos próprios de cada uma delas, porém numa direção nova. A grande novidade da dialética marxista, em relação a Hegel, é que ela coloca o conflito histórico recorrente no nível das forças materiais, e não no campo exclusivo das idéias. Isso não chega a ser contraditório em relação à dialética política marxista, a qual, confiada no conhecimento humano dos determinantes de sua própria história, entendeu possível ser eliminado o conflito de classes pelo domínio absoluto de uma classe, os trabalhadores, sobre a outra, os burgueses.
A razão dessa extrapolação política é em si mesma simples: se a dialética formal exige que, no conflito entre tese e antítese, a síntese que o supere guarde elementos de ambos, o que se guarda do capitalismo na construção do comunismo pela liquidação da burguesia não são elementos das complexas relações sociais por esta criada, mas sua característica material fundamental: o espetacular desenvolvimento das forças produtivas realizado pelo capitalismo, exaltado inclusive pelo Manifesto Comunista de 48. Este seria herdado e apropriado pelos comunistas. Concilia-se assim dialética formal com dialética política, na medida em que esta rejeita a superação do conflito mediante interação das classes em favor da idéia de eliminação, no comunismo, não só da classe burguesa, mas de todas as classes.
Marx não chegou a ser muito preciso a respeito do que pensava ser a marcha da história depois do comunismo. Em geral, confiava num processo de emulação (não de competição) entre trabalhadores, estes em condições sociais iguais, para produzir o progresso tecnológico numa sociedade sem classes. Idealismo puro. Num certo sentido seria o fim da História tal como a conhecemos, ou seja, como um processo dialético, ou de conflitos. Mais de um século mais tarde, um pensador norte-americano, Francis Fukuyama, também achou que estávamos ao ponto de chegar ao fim da História, porém mediante um processo dialeticamente inverso: pelo predomínio absoluto do neoliberalismo e a eliminação do reformismo social tradicionalmente perseguido pelas esquerdas.
Vimos ao longo do século XX e neste início do XXI que os processos históricos são bem mais complexos, não obstante a validade formal da dialética marxista e hegeliana: a limitada burguesia capitalista e a ampla classe dominante feudal, numa área remota e pouco desenvolvida do mundo, a Rússia, foi liquidada por um golpe de um punhado de trabalhadores e uma multidão de camponeses liderados por intelectuais, mas disso não resultou o fim das classes. Resultou, sim, na lenta criação de uma nomenclatura privilegiada em face de massas subjugadas, trucidadas e amordaçadas, não obstante algum progresso material inicial.
Na China, outra área remota de camponeses, a revolução comunista triunfante só se estabilizou e colocou o país na trilha do desenvolvimento após a consolidação de uma elite dominante tecnocrática que tem características mais próximas do antigo mandarinato do que do mundo burguês ocidental. Nesses dois grandes países, a tese não era o capitalismo, mas algo próximo do feudalismo; a antítese, depois do interregno caótico comunista, está sendo o próprio capitalismo liberal importado, embora com elementos sociais. A síntese, não revolucionária, está em processo. É como se a história tivesse feito um desvio geográfico, o equivalente de um epiciclo planetário no sistema cosmológico de Ptolomeu. Na era nuclear, a guerra, anteriormente o fato supremo da Geopolítica, já não pode ser, como havia afirmado Clausewitz, a continuação da política por outros meios: o adversário não pode ser destruído sem uma simultânea autodestruição, mas, sim, absorvido num processo de negociação e de composição sem derrotados definitivos.
O que aconteceu ao longo desse período no Ocidente, berço da dialética, do capitalismo, do comunismo e da Geopolítica de Clausewitz? Aconteceu o curso da dialética real, traçando um rumo da história que se revelaria também o mais próximo do princípio de Lao Tsé: à sombra do conflito de idéias e de interesses entre capitalismo liberal e socialismo real, debaixo do medo do comunismo soviético e dos comunistas internos, um grupo de nações européias, liderado pelos nórdicos, promoveu a síntese social democrata, com elementos aproveitados dos dois sistemas em conflito, porém superando-os. De um lado, o respeito à propriedade privada e o prêmio pelo esforço, pela inovação e pela competência; de outro, os programas sociais promovidos pelo Estado a partir de uma pressão crescente por igualdade de oportunidades sobre a renda nacional, porém de caráter não revolucionário, através da expansão dos orçamentos públicos pela força da cidadania ampliada.
O conflito geopolítico entre as potências hegemônicas antagônicas, Estados Unidos e União Soviética, à sombra do terror nuclear, dominou a segunda metade do Século XX e de certa forma obscureceu as nuances do modelo social democrata europeu na sua fase de construção e de consolidação. É da natureza de qualquer conflito político a radicalização. Acontece que, na era nuclear, a radicalização política tinha e tem limites: os falcões norte-americanos não podiam colocar em prática seus propósitos de levar a União Soviética à rendição por meios militares, assim como permaneceu como letra morta o artigo do programa do PCUS de destruir o capitalismo e o imperialismo (norte-americano). Entretanto, uma retórica estridente num plano impraticável não deixa de produzir resultados mobilizadores na base.
No plano da ideologia, da propaganda e da imprensa engajada do pólo norte-americano, toda pessoa com preocupações sociais era taxada de comunista; com isso, nos Estados Unidos, tendo por epifenômeno a caça às bruxas do Senador McCarthy nos anos 50, o progresso social a partir do Estado seria lento. Mais do que isso, sob a vasta área de influência norte-americana do lado ocidental, se era possível a consolidação da social democracia no norte da Europa, tornou-se bem mais difícil importar esse modelo pelos países atrasados ou, como se diz hoje, em desenvolvimento. Uma das razões, talvez entre as principais, era de natureza contraditória, e inequivocamente ideológica: os comunistas não queriam reformas, queriam revoluções. Nisso, acabavam como aliados efetivos dos conservadores que também não queriam reformas.
A Europa teve mais sorte. Dois marxistas geniais, Eduard Bernstein e Karl Kautsky, se deram conta no começo do século XX de que entre a classe burguesa e a classe operária o movimento real da história, num curso bem diferente do previsto por Marx, estava produzindo relações sociais complexas na forma de classes médias cada vez mais amplas, com interesses próprios diferenciados das outras duas. Foram acusados de renegados e expurgados do marxismo oficial. Não obstante, foram eles que abriram as portas para o reconhecimento de uma síntese social democrata no plano teórico. Foi graças a ideólogos como eles que a pequena Suécia não caiu na armadilha da luta ideológica radical, fundando efetivamente a social democracia ainda nos anos 20.
Nós não tivemos a mesma sorte. O máximo de acomodação que nossos ideólogos de esquerda conseguiram produzir no espaço entre os dois pólos ideológicos foi o conceito de revolução nacional burguesa, num momento em que o capitalismo de fora para dentro já se estava tornando internacional e o capitalismo de dentro para fora conquistava boas oportunidades associando-se com o externo, ambos contribuindo para expandir os limites das incipientes classes médias. Fernando Henrique Cardoso elaborou o conceito com um trejeito de neutralidade acadêmica, expurgando-o do apelo revolucionário. Sua teoria da dependência é a teoria do desenvolvimento capitalista subordinado, por cima das relações sociais concretas internas, o que tentou levar à prática em sua Presidência. Certamente foi mais realista que os ideólogos revolucionários comunistas. Mas não correspondeu ao Brasil real, ou às forças sociais reais que prevalecem no Brasil desde os anos 90.
O quadro mais complexo do Brasil contemporâneo está retratado na Constituição original de 88. Foi essa Constituição, renegada inicialmente pelos parlamentares do PT e colocada sob suspeita pelos conservadores, que gerou Lula, sendo que Lula esteve no centro dos acontecimentos sociais e políticos que geraram a abertura política na ditadura, e a própria Constituinte de que seria uma consequência. Isso é dialética no mundo real, não no plano das idéias. O sentido mais profundo da Constituição é que ela refletia, ou aparentava refletir, uma força política que correspondia a uma efetiva democracia de cidadania ampliada. O fato político mais decisivo rumo à ampliação da cidadania foram as históricas greves de 1978, 79 e 80, em confronto direto com as restrições do governo autoritário. Lula foi o líder inconteste dos trabalhadores organizados nessa greve, e a aura do sucesso lhe abriu o caminho para que, transcendendo o sindicalismo, acabasse sendo o grande líder das massas indiferenciadas que acabou sendo: os pobres eternamente relegados a segundo plano pelo orçamento público no Brasil. Esses pobres, inclusive analfabetos, viram reconhecida sua cidadania na Constituição de 88, além de amplos direitos sociais. Os conservadores só tiveram tempo de espantar-se diante do novo quadro político, e preparar uma contra-ofensiva, através da recorrente pregação posterior de reformas liberais.
No início Lula foi celebrado como um herói contra a ditadura. Como boa parte das classes médias estava contra a ditadura, seja por razões ideológicas, seja por sentimentos democráticos genuínos, é possível que ele no início tenha tido relativamente mais apoio nas classes médias pelo que parecia ser, e menos apoio das classes subalternas pelo que ainda não era. Isso se reflete nas várias eleições presidenciais que disputou e perdeu, antes da vitória em 2002. O partido que construiu era um curioso ajuntamento de sindicalistas, intelectuais e católicos progressistas, com um poder de atração considerável sobre a juventude, dada a inclinação natural desta para uma espécie de veneração romântica da classe trabalhadora (o que, em outro tempo, era um grande fator de recrutamento de quadros pelos PCs).
Sabemos que a Constituição de 88 não foi plenamente aplicada. Aliás, em várias partes e em momentos posteriores ela foi de fato estuprada, desde o Governo Collor ao Governo Fernando Henrique. Qual a razão disso, à luz da dialética? A razão é que os avanços nela inscritos não correspondiam a uma expressão genuína do jogo de poder entre forças sociais reais, mas a uma concessão romântica de forças políticas progressistas, que detiveram por um momento o poder parlamentar, mas não o poder real. Este estava nas mãos dos conservadores que iniciaram o movimento anti-progressista ainda com o Centrão e iriam aprofundá-lo com o movimento de desestatização, privatização e corte de direitos sociais nos anos posteriores.
Estes foram anos em que o Brasil, tradicionalmente sujeito à influência de ideologias externas, sucumbiu à avalanche neoliberal em progresso no mundo. Já antes da desarticulação da União Soviética o socialismo real se desmoralizava mundialmente como conseqüência da falta de liberdade individual e de fracassos no plano material, desde o atraso tecnológico a ondas de desastres agrícolas. Depois da desarticulação, comunistas brasileiros e simpatizantes do socialismo viram-se sem referência política. Não era uma característica exclusiva nossa. Os tradicionais partidos de esquerda europeus, e o próprio Partido Democrata norte-americano, também sucumbiram. Não estranha que Fukuyama tenha, nesse contexto, vislumbrado o fim da História.
O Governo do intelectual Fernando Henrique foi o reflexo medíocre desse processo: passará à História como um apêndice irrelevante do neoliberalismo europeu e norte-americano. Foi a crise financeira de fins dos anos 90, coroando anos seguidos de virtual estagnação econômica, que apontou a fragilidade do modelo neoliberal adaptado a condições brasileiras. O relaxamento das certezas políticas em torno dele, que abalou parte das próprias classes dominantes, abriu espaço para que emergissem demandas de baixo para cima com potencial de influir no processo político. Lula ocupou esse espaço, porém com uma extraordinária habilidade instintiva para construir uma alternativa entre radicalismos de esquerda e de direita.
Poderia ter sido feito de outra forma? O início do primeiro Governo Lula foi decepcionante para a maioria dos progressistas, inclusive para mim. De saída, ele trouxe para o núcleo central da política econômica um presidente do Banco Central extraído do próprio sistema neoliberal. Acrescentou-se a isso, pela mão de um Ministro da Fazenda convertido à ortodoxia econômica, um compromisso explícito com uma política fiscal restritiva, igualmente a pleno gosto dos neoliberais. Em face de uma taxa de desemprego alarmante, esses movimentos na política econômica poderiam ser justificadamente considerados concessões excessivas à direita e uma traição à maioria do povo que o elegeu. Por cima de tudo, a política social oscilava num plano ainda indefinido.
Em contrapartida, o quadro herdado do Governo anterior era, por sua vez, de extrema complexidade. A despeito de uma taxa de juros básica elevada, a inflação tinha disparado. As reservas cambiais minguavam. Uma especulação desenfreada havia provocado uma explosão da taxa de câmbio. As expectativas empresariais eram sombrias em relação às iniciativas do primeiro partido de esquerda que chegava ao poder no Brasil. Diante disso, a presença de José Alencar, um grande empresário, no cargo de Vice Presidente, era um hábil expediente político, porém não necessariamente efetivo (acabou sendo).
Então aconteceu o imprevisível: os ventos internacionais começaram a soprar a favor. O boom da economia mundial e sobretudo da China puxou para níveis até então inimagináveis as quantidades exportadas e os preços das commodities vendidas pelo Brasil, possibilitando o início de um processo de rápida acumulação de reservas externas; a taxa de câmbio tinha atingido níveis tão altos (quase R$ 4,00) que, mesmo com sua progressiva redução por força do aumento da taxa de juros, subiram também as exportações de manufaturados, em face do ambiente externo igualmente favorável; por efeito da melhora do quadro externo, o mercado interno começou a reagir, inclusive com moderada recuperação do emprego, ao ponto de que, em 2004, o Banco Central se sentiu no direito de dar uma travada na economia para supostamente combater pressões inflacionárias. O resto é conhecido: recuo em 2005 e nova retomada, desta vez mais consistente, a partir de 2006. E uma firme virada política na direção do atendimento às aspirações dos mais pobres e das políticas sociais universais a partir de 2004.
Imagine-se um caminho diferente: Lula teria composto um Ministério econômico mais progressista e implementado políticas mais populares desde a saída. Seria um confronto direto com as classes dominantes conservadoras. No passado, estas tinham o Exército a seu favor, e reagiriam pelo recurso tradicional de um golpe. Agora, dispõem de forças igualmente poderosas: uma parte considerável da grande mídia que forma a opinião pública – muitas vezes em contradição com os interesses reais desta última.
Vimos, pela eleição de Dilma, que a grande mídia tem um poder construtivo limitado: a seu gosto, teria sido eleito Serra. Contudo, seu poder destrutivo não pode ser subestimado. Para o bem ou para o mal, ela destruiu o governo militar, desmoralizou o Plano Cruzado e a moratória do Governo Sarney, promoveu o impeachment de Collor, desestruturou o PT no mensalão. Não fora a força carismática imbatível de Lula, e sua empatia com o povo, além dos meios de informação mais democratizados da internet, e ele e sua sucessão seriam igualmente destruídos pela mídia. Imagine, pois, uma situação de crise geral do país, como anteriormente assinalada, em que um governo inexperiente de esquerda começasse a tomar medidas contra os interesses da classe dominante, muito especialmente os interesses do estamento financeiro entrelaçados com preconceitos ideológicos das classes médias, e que têm as maiores contas de publicidade: seria simplesmente massacrado e desestabilizado pela mídia, inclusive em face da contribuição eventual de petistas tão embriagados pelo poder que fossem capazes de produzir algo tão moralmente repugnante como um mensalão na órbita do palácio!
É claro que a especulação sobre o que poderia ter acontecido se Lula tivesse tentado fazer um governo puro de esquerda (o que é exatamente isso?) é perfunctória, depois do fato consumado. Entretanto, o caminho seguido é uma lição de história... e de dialética, ou da aplicação prática da doutrina de Lao Tsé. Estranho que, quem a tenha dado, seja um torneiro mecânico treinado apenas no sindicalismo, sucessor de quem era considerado um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros. Contudo, talvez seja essa a explicação. Lula nunca pregou a destruição do capitalismo. Nas greves históricas que promoveu, era sobretudo um negociador de aumentos salariais. E em geral sabia até onde poderia ir em termos de reivindicações para não inviabilizar a empresa e destruir a fonte de emprego do próprio trabalhador.
Testemunhei isso. Em 1978, eu era subeditor de Economia do “Jornal do Brasil” e fui indicado pelo editor, Paulo Henrique Amorim, para coordenar as edições das greves do ABC. Na época o “Jornal do Brasil” era o principal formador de opinião brasileiro e o fato de ter aberto duas páginas diárias para as greves foi decisivo para sua repercussão em nível nacional, já que a conservadora imprensa paulista praticamente se omitiu no início delas.
Terminadas 40 dias de greves, fui a São Bernardo para conhecer pessoalmente Lula. Estive com ele um dia inteiro. Entre os relatos que me fez, lembro-me de um sobre uma fábrica de uns 400 empregados que haviam parado e o chamado para negociar o aumento. Queriam 20%. Lula negociou, e obteve o acordo. Duas semanas depois, os operários entraram em greve de novo. Queriam mais 20%. O dono da fábrica desesperou-se. Não podia dar. Lula foi à fábrica e convenceu os empregados, em assembléia, a desistir do pedido.
Esse fato singelo antecipa o que Lula foi na Presidência da República: um hábil negociador e conciliador. Ele não é e nunca foi um revolucionário que quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca compromissos aos poucos, sem ruptura.
Por que, então, ele é tão odiado por uma fração das elites e das classes médias? É uma parte pequena da sociedade, mas com capacidade de vocalização. E é a clientela preferencial dos grandes jornais. Em geral, são privilegiados, e seus interesses básicos foram preservados no Governo Lula. Assim, seu ódio é de estrito fundo ideológico. É um reflexo tardio da doutrina neoliberal que, derrotada pelos fatos a partir da crise financeira iniciada em 2008, ainda não foi entendida como um fracasso retumbante no Brasil, em razão justamente da mediocridade ou da parcialidade de grande parte de nossa mídia. Diga-se, a bem da verdade, que o Ministério de Lula e de sua sucessora também guardaram e guardam resíduos neoliberais. Entretanto, a direção geral das políticas públicas tem um claro viés popular. Não é o ideal, mas o que talvez permitam as circunstâncias.
Isso se revelou sobretudo no enfrentamento da crise financeira mundial que eclodiu em 2008. Alguém deve ter dito a Lula que se tratava de uma marolinha, que o Brasil passaria ao largo dela. Entretanto, quando os fatos demonstraram o contrário, em especial em face de uma explosão no desemprego em dezembro de 2008, o Governo começou a mexer-se. E a medida a meu ver mais eficaz sequer podia ser interpretada como uma iniciativa conjuntural anticíclica. Foi o aumento real de 7% do salário mínimo, fruto de negociação anterior entre centrais sindicais e patronato sob condução de Lula.
O aumento do mínimo injetou uma soma considerável de recursos novos na economia pelo lado da demanda, o que, somado ao estabilizador automático do Bolsa Família e de outros programas sociais, parou a queda do produto e sustentou o início da retomada, estimulado também por reduções de tributos. Do lado da oferta, a principal iniciativa foi a transferência ao BNDES de R$ 100 bilhões (depois mais R$ 80 bilhões) diretamente do Tesouro, o que assegurou a sustentação e ampliação do investimento produtivo deficitário para fazer face à reativação de demanda que estava sendo estimulada. Se não foi possível evitar a queda do PIB em 2009, já no terceiro trimestre havia sinais claros da recuperação que se configuraria em 2010.
Evidentemente que haverá quem, de forma sincera, ache que Lula fez pouco. Isso suscita uma das recorrentes discussões teóricas em dialética: qual a margem de liberdade que o conflito entre interesses reais deixa para a decisão individual do líder? Sabemos que há margens de liberdade, mas sabemos também que, no processo político em andamento, o líder não sabe de antemão quais são. É justamente aí que entra sua inteligência, ou sua intuição. Depois do fato, e sobretudo depois que se sabe a reação do adversário, ou de suas conseqüências, é fácil dizer que haveria um caminho melhor. No fragor da luta, tudo depende de uma avaliação que nem sempre está no campo racional, mas sim no da intuição.
Entre o primeiro e o segundo mandato, Lula poderia ter mandado o presidente do Banco Central para casa. Era o principal empecilho a um crescimento brasileiro mais vigoroso. Talvez ele o fizesse, não fosse a eclosão do mensalão, que o deixou muito fragilizado politicamente. Poderia também ter recorrido a uma política fiscal efetivamente desenvolvimentista, forçando a redução dos juros e por aí liberando recursos fiscais para investimentos produtivos, como queria José Alencar. Não o fez, talvez temendo a reação da mídia. E isso, como dito, não é de subestimar: duas medidas importantíssimas do segundo Governo, a liberação do controle fiscal sobre os investimentos da Eletrobrás, e a capitalização da Petrobrás com reservas do pré-sal, foram recebidas com uma avalanche impressionante de críticas, não obstante sua importância vital para o desenvolvimento brasileiro.
No balanço geral, Lula fez um governo bom para todo mundo, o que se refletiu com justiça nas pesquisas de opinião. Poderia, aliás, inverter a frase: como mostram as pesquisas de opinião, Lula fez um governo bom para todo mundo. Só os obstinados radicais de oposição podem questionar isso. O que se pode tentar fazer é explicar esse fenômeno racionalmente. Talvez nem seja racional. Lembro-me que, no início da crise do mensalão, e amargando uma queda de popularidade que vinha desde antes, Lula deu a uma repórter de tevê amadora uma entrevista em Paris. Foi uma coisa patética, num ambiente patético, e com uma aparência patética. Entre outras coisas, disse que quem está no quarto andar do palácio (Planalto) não sabe o que acontece no terceiro, e que foi traído por alguns companheiros. Assisti à entrevista e fiquei perplexo. Lula parecia destruído.
A partir dali, nas semanas seguintes, a credibilidade de Lula começou a subir. Subiu até ganhar a reeleição. A única explicação é que o povo se apiedou dele, de seu isolamento, visível naquela entrevista improvisada, e se identificou ainda mais com o homem do povo que chegou ao poder e que estava sendo atacado impiedosamente pelas elites dominantes.
Critiquei muito a política econômica do Governo Lula no primeiro mandato. Não tenho muitos motivos hoje para mudar de opinião, mesmo em relação ao segundo mandato. Entretanto, como disse uma vez Alencar, “fizemos tudo errado mas deu tudo certo”. Examinando o passado e sondando o futuro, Delfim Netto disse a mesma coisa, com outras palavras: “Lula teve vento a favor, Dilma terá vento contra”. Em qualquer hipótese, a marca das políticas sociais de Lula ficará gravada para sempre na História do Brasil. Dificilmente se poderá recuar delas, sobretudo depois que ele fez sua sucessora. Isso não compensa exatamente a política econômica conservadora, mas é muito mais que simples populismo porque tem a força de criação de direitos ancorados na democracia de cidadania ampliada.
Em certo momento do primeiro mandato de Lula, estava tão indignado, como disse, com sua política econômica que encerrei um ensaio com uma paródia mais ou menos assim: “Lula, como Moisés, levou seu povo até a beira da Terra Prometida. Mas diferente de Moisés, que não entrou nela, Lula entrou sozinho”. Esse juízo se revelaria, com o tempo, um dos mais injustos que fiz em mais de 40 anos de jornalismo. Acho hoje que um pedaço do Brasil, justamente o dos mais desassistidos desde a escravatura, recebeu de Lula uma oportunidade para entrar na Terra Prometida. Afinal, o que prometeu em suas campanhas, de modo mais enfático, não foi mudar a política econômica. Foi ver dois pratos de comida, por dia, na mesa de cada brasileiro.
Por isso vejo Lula como o filho da dialética. Em escala, é um modelo reduzido, embora eloqüente, do futuro do mundo. Esse futuro não será uma volta pura e simples ao capitalismo liberal dos Estados Unidos, ainda a potência econômica dominante, nem o avanço em direção ao modelo de capitalismo sem liberdade da China, a potência emergente. Será uma superação de ambos. Algum forma política que combine liberdade empresarial e liberdade individual, e alguma forma econômica que combine estímulo ao empreendedorismo privado e maior regulação estatal.
(*) Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.
Estado do RS prepara ação em defesa do piso nacional dos professores
Documento já vinha sendo elaborado pela assessoria jurídica do governador Tarso Genro.
A Adin foi impetrada em 2008 por cinco governadores, entre eles a ex-governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius. "Queremos mostrar aos ministros do STF que o nosso governo é favorável e fará todos os esforços para cumprir com o piso dos professores", ressalta o secretário chefe da Casa Civil, Carlos Pestana. A petição já vinha sendo elaborada pela assessoria jurídica do governador.
De acordo com o artigo 5° da lei número 9.868, depois de proposta a ação direta, não se admite desistência.
Ainda no primeiro semestre deste ano o Governo Tarso irá convocar os professores para negociar a forma de pagamento do piso. Desde a campanha eleitoral o governador vem ressaltando que a concessão do benefício é um compromisso, mas em função das dificuldades financeiras do Estado ele será pago de forma processual.
O piso nacional dos professores da educação básica foi criado pela Lei nº 11.738/2008.
http://www.jornalvs.com.br/site/noticias/ensino,canal-8,ed-149,ct-730,cd-302234.htm
quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
O contexto da crise de Cuba
China, Brasil e alguns Estados da União Européia se converteram em contrapesos aos estadunidenses de linha dura. Com um espaço de manobra, os cubanos podem evitar as piores consequências da obsoleta doutrina de choque que Washington mantém durante 50 anos.
Por Saul Landau e Nelson P. Valdés na Revista Fórum
No dia 18 de dezembro de 2010, o presidente cubano
Raúl Castro advertiu os cidadãos cubanos de que a nação enfrentava uma
crise. As condições desastrosas da economia de Cuba já não permitiam que
o Estado tivesse espaço de manobra para sair do perigoso “precipício”
de ineficiência, baixa produtividade e corrupção. Sem reformas, Cuba
entraria em colapso, e junto com ela o esforço de todas as gerações que
buscaram uma Cuba livre, desde a primeira revolta aborígene contra o
domínio colonial espanhol.
Os cubanos compreendem que desde a Revolução de 1959, com todos os seus erros, protegeu-se a independência da nação – a soberania nacional. Desde 1492 (desembarque de Colombo) até dezembro de 1958, as potências estrangeiras decidiram o destino dos cubanos.
Em princípios do século XIX emergiu um tipo “cubano”, não um espanhol em uma ilha distante ou um escravo africano, mas sim um híbrido produto de três séculos de colonialismo, que buscou a autodeterminação tal qual a população colonial estadunidense em 1776.
Quando Batista e seus generais fugiram, fracassou a materialização de um golpe de Estado apoiado pelos EUA, apesar de todas as conspirações encabeçadas pelo governo estadunidense. Os rebeldes então estabeleceram a moderna nação cubana, a qual rapidamente se converteu em um desafio real e até então quase inimaginável à dominação dos EUA.
Esta verdade não expressada, e compreendida em Havana e Washington, afetou os dois países. Washington se negou a ceder o controle; a Revolução rechaçou a autoridade dos EUA. Desde 1898, os EUA trataram Cuba como um apêndice da sua economia. Os consórcios dos Estados Unidos possuíam as maiores centrais açucareiras de Cuba, as melhores terras, as companhias de telefone e de eletricidade, as minas e muito mais. O governo cubano, tal qual seus vizinhos do “quintal dos EUA”, obedeciam automaticamente os ditados da política de Washington.
A rebeldia da Revolução, a redução em 50% dos aluguéis e a aprovação de uma lei de reforma agrária sem nem mesmo pedir permissão, tudo isto conseguiu atrair finalmente a atenção de Washington. Palavras como “ditadura” e “comunista” começaram a aparecer rotineiramente nas reportagens dos órgãos de imprensa incentivados pelo governo.
A ilha de 6 milhões de habitantes, tendo como produto principal o açúcar, necessitava tanto dos recursos materiais como humanos para garantir uma verdadeira independência, e Washington tinha plena ciência disto. Alguns funcionários estadunidenses, escreveu E. W. Kenworthy, “creem que o governo de Castro deve ‘passar o que passou Caim’ antes que compreenda a necessidade da ajuda de Washington e concorde com as medidas estabilizadoras que tornarão possível receber esta ajuda”. (“Os problemas de Cuba põe a prova a política dos EUA”, NY Times, 26 de abril de 1959.)
Quando os líderes cubanos ignoraram ou ridicularizaram as advertências advindas de Washington, em março de 1960 o presidente Eisenhower autorizou uma operação encoberta para derrubar o governo cubano – que terminou em um fracasso na Bahia de Cochinos em abril de 1961. No entanto, em outubro de 1960, em resposta à nacionalização das propriedades estadunidenses por parte de Cuba – uma confrontação em escalada, tanto de ações de Cuba como de castigos de Washington – Eisenhower impôs um embargo a Cuba.
Porém, já em abril de 1960 o Departamento de Estado havia emitido suas orientações de castigo: “Devem tomar-se rapidamente todas as medidas possíveis para debilitar a vida econômica de Cuba... uma linha de ação que, ainda que seja tão hábil e inadvertida quanto possível, tenha êxito em negar dinheiro e suprimentos a Cuba, a fim de reduzir o dinheiro e os salários reais pra provocar a fome, o desespero e a queda do governo”. (Oficina do Historiador, Birô de Assuntos Públicos, Departamento de Estado; John P. Glennon e todos, editores, Relações Exteriores dos Estados Unidos, 1958-1960, Vol. VI, Cuba (em inglês), Washington D.C.: GPO, 1991, 885.)
Havana respondeu fazendo o impensável. Em 1961, Cuba se aliou com a União Soviética. Para garantir a independência, os líderes cubanos se tornaram dependentes da ajuda soviética. Em 1991, a derrocada soviética deixou os cubanos – por fim – em uma total “independência” política e sem apoio material externo para a manutenção da nação. O embargo adotou uma dimensão maior. Em 1959, os revolucionários de 20 a 30 anos não previram a ferocidade do castigo dos EUA e nem mesmo compreenderam que o pecado de desobediência se colocava mais para além dos ditados do poder dos EUA e chegava ao núcleo de um sistema global. Washington era a capital informal do mundo.
Neste papel, Washington atacou Cuba sem descanso – inclusive depois de os EUA terem deixado de exercer a hegemonia hemisférica. O mantra do controle ainda se infiltra pelas paredes dos escritórios de segurança nacional e por osmose penetra no cérebro dos burocratas: “Não permitimos uma insubordinação”. Os cubanos têm que pagar pela resistência que seus líderes apresentaram. A lição de Washington: é inútil resistir.
No mês passado, Raúl Castro informou aos cubanos a necessidade de reformas drásticas. A Revolução treinou, educou e curou a população cubana. Porém, admitiu Raúl, o Estado já não pode satisfazer algumas necessidades básicas que os cubanos assumiram como direitos humanos (ou direitos, somente). Um milhão de pessoas, anunciou, perderão seu trabalho; seriam reduzidos ou eliminados programas sociais.
A falta de produtividade dos cubanos – uma relaxada ética do trabalho, ineficiência burocrática e ausência de iniciativa – multiplicou-se junto com a corrupção. O embargo estadunidense provoca situações de escassez e encoraja os delitos burocráticos. Um burocrata aumenta sua renda resolvendo os mesmos obstáculos que os burocratas ajudaram a criar.
Depois de mais de 51 anos, o castigo de Washington pareceu forçar Cuba a aceitar uma doutrina de choque, entretanto sem os custos sociais regressivos que a maioria dos países do Terceiro Mundo pagaram. Em 1980, um jamaicano comentou, depois que o Primeiro Ministro Manley se submeteu às duras medidas de austeridade do Fundo Monetário Internacional: “Fomos FMIados”
A Revolução cubana uma vez mais adentra um território que terá que cruzar até o fim. No entanto, os reformistas contam com grandes recursos: um povo com consciência social, absorvida durante décadas de educação e experiência.
Ainda assim, as trocas geopolíticas do mundo oferecem algumas vantagens aos líderes cubanos: China, Brasil e alguns Estados da União Européia se converteram em contrapesos aos estadunidenses de linha dura. Com um espaço de manobra, os cubanos poderiam evitar as piores consequências da obsoleta doutrina de choque que Washington mantém durante 50 anos.
* Saul Landau é membro do Instituto para Estudos de Política. Seu filme Por Favor, que se fique de pé o verdadeiro terrorista, estreou em dezembro no Festival de Cine de Havana. Nelson Valdés é Professor Emérito da Universidade do Novo México.
Tradução de Cainã Vidor. Publicado por Rebelión. Fonte: http://progreso-semanal.com/4/index.php?option=com_content&view=article&id=3048:el-contexto-de-la-crisis-de-cuba&catid=3:en-los-estados-unidos&Itemid=4. Foto por http://www.flickr.com/photos/jadis1958/.
Os cubanos compreendem que desde a Revolução de 1959, com todos os seus erros, protegeu-se a independência da nação – a soberania nacional. Desde 1492 (desembarque de Colombo) até dezembro de 1958, as potências estrangeiras decidiram o destino dos cubanos.
Em princípios do século XIX emergiu um tipo “cubano”, não um espanhol em uma ilha distante ou um escravo africano, mas sim um híbrido produto de três séculos de colonialismo, que buscou a autodeterminação tal qual a população colonial estadunidense em 1776.
Quando Batista e seus generais fugiram, fracassou a materialização de um golpe de Estado apoiado pelos EUA, apesar de todas as conspirações encabeçadas pelo governo estadunidense. Os rebeldes então estabeleceram a moderna nação cubana, a qual rapidamente se converteu em um desafio real e até então quase inimaginável à dominação dos EUA.
Esta verdade não expressada, e compreendida em Havana e Washington, afetou os dois países. Washington se negou a ceder o controle; a Revolução rechaçou a autoridade dos EUA. Desde 1898, os EUA trataram Cuba como um apêndice da sua economia. Os consórcios dos Estados Unidos possuíam as maiores centrais açucareiras de Cuba, as melhores terras, as companhias de telefone e de eletricidade, as minas e muito mais. O governo cubano, tal qual seus vizinhos do “quintal dos EUA”, obedeciam automaticamente os ditados da política de Washington.
A rebeldia da Revolução, a redução em 50% dos aluguéis e a aprovação de uma lei de reforma agrária sem nem mesmo pedir permissão, tudo isto conseguiu atrair finalmente a atenção de Washington. Palavras como “ditadura” e “comunista” começaram a aparecer rotineiramente nas reportagens dos órgãos de imprensa incentivados pelo governo.
A ilha de 6 milhões de habitantes, tendo como produto principal o açúcar, necessitava tanto dos recursos materiais como humanos para garantir uma verdadeira independência, e Washington tinha plena ciência disto. Alguns funcionários estadunidenses, escreveu E. W. Kenworthy, “creem que o governo de Castro deve ‘passar o que passou Caim’ antes que compreenda a necessidade da ajuda de Washington e concorde com as medidas estabilizadoras que tornarão possível receber esta ajuda”. (“Os problemas de Cuba põe a prova a política dos EUA”, NY Times, 26 de abril de 1959.)
Quando os líderes cubanos ignoraram ou ridicularizaram as advertências advindas de Washington, em março de 1960 o presidente Eisenhower autorizou uma operação encoberta para derrubar o governo cubano – que terminou em um fracasso na Bahia de Cochinos em abril de 1961. No entanto, em outubro de 1960, em resposta à nacionalização das propriedades estadunidenses por parte de Cuba – uma confrontação em escalada, tanto de ações de Cuba como de castigos de Washington – Eisenhower impôs um embargo a Cuba.
Porém, já em abril de 1960 o Departamento de Estado havia emitido suas orientações de castigo: “Devem tomar-se rapidamente todas as medidas possíveis para debilitar a vida econômica de Cuba... uma linha de ação que, ainda que seja tão hábil e inadvertida quanto possível, tenha êxito em negar dinheiro e suprimentos a Cuba, a fim de reduzir o dinheiro e os salários reais pra provocar a fome, o desespero e a queda do governo”. (Oficina do Historiador, Birô de Assuntos Públicos, Departamento de Estado; John P. Glennon e todos, editores, Relações Exteriores dos Estados Unidos, 1958-1960, Vol. VI, Cuba (em inglês), Washington D.C.: GPO, 1991, 885.)
Havana respondeu fazendo o impensável. Em 1961, Cuba se aliou com a União Soviética. Para garantir a independência, os líderes cubanos se tornaram dependentes da ajuda soviética. Em 1991, a derrocada soviética deixou os cubanos – por fim – em uma total “independência” política e sem apoio material externo para a manutenção da nação. O embargo adotou uma dimensão maior. Em 1959, os revolucionários de 20 a 30 anos não previram a ferocidade do castigo dos EUA e nem mesmo compreenderam que o pecado de desobediência se colocava mais para além dos ditados do poder dos EUA e chegava ao núcleo de um sistema global. Washington era a capital informal do mundo.
Neste papel, Washington atacou Cuba sem descanso – inclusive depois de os EUA terem deixado de exercer a hegemonia hemisférica. O mantra do controle ainda se infiltra pelas paredes dos escritórios de segurança nacional e por osmose penetra no cérebro dos burocratas: “Não permitimos uma insubordinação”. Os cubanos têm que pagar pela resistência que seus líderes apresentaram. A lição de Washington: é inútil resistir.
No mês passado, Raúl Castro informou aos cubanos a necessidade de reformas drásticas. A Revolução treinou, educou e curou a população cubana. Porém, admitiu Raúl, o Estado já não pode satisfazer algumas necessidades básicas que os cubanos assumiram como direitos humanos (ou direitos, somente). Um milhão de pessoas, anunciou, perderão seu trabalho; seriam reduzidos ou eliminados programas sociais.
A falta de produtividade dos cubanos – uma relaxada ética do trabalho, ineficiência burocrática e ausência de iniciativa – multiplicou-se junto com a corrupção. O embargo estadunidense provoca situações de escassez e encoraja os delitos burocráticos. Um burocrata aumenta sua renda resolvendo os mesmos obstáculos que os burocratas ajudaram a criar.
Depois de mais de 51 anos, o castigo de Washington pareceu forçar Cuba a aceitar uma doutrina de choque, entretanto sem os custos sociais regressivos que a maioria dos países do Terceiro Mundo pagaram. Em 1980, um jamaicano comentou, depois que o Primeiro Ministro Manley se submeteu às duras medidas de austeridade do Fundo Monetário Internacional: “Fomos FMIados”
A Revolução cubana uma vez mais adentra um território que terá que cruzar até o fim. No entanto, os reformistas contam com grandes recursos: um povo com consciência social, absorvida durante décadas de educação e experiência.
Ainda assim, as trocas geopolíticas do mundo oferecem algumas vantagens aos líderes cubanos: China, Brasil e alguns Estados da União Européia se converteram em contrapesos aos estadunidenses de linha dura. Com um espaço de manobra, os cubanos poderiam evitar as piores consequências da obsoleta doutrina de choque que Washington mantém durante 50 anos.
* Saul Landau é membro do Instituto para Estudos de Política. Seu filme Por Favor, que se fique de pé o verdadeiro terrorista, estreou em dezembro no Festival de Cine de Havana. Nelson Valdés é Professor Emérito da Universidade do Novo México.
Tradução de Cainã Vidor. Publicado por Rebelión. Fonte: http://progreso-semanal.com/4/index.php?option=com_content&view=article&id=3048:el-contexto-de-la-crisis-de-cuba&catid=3:en-los-estados-unidos&Itemid=4. Foto por http://www.flickr.com/photos/jadis1958/.
"Ana de Holanda e ECAD atacam política de Lula"
O movimento de software livre, de
recursos educacionais abertos e os defensores da liberdade e diversidade
cultural votaram em Dilma pelos compromissos que ela afirmou em defesa
do bem comum. No mesmo dia que a Ministra Ana de Holanda atacou o
Creative Commons retirando a licença do site, a Ministra do Planejamento
Miriam Belquior publicou a normativa que consolida o software livre
como a essência do software público que deve ser usada pelo governo. É
indiscutível o descompasso que a Ministra da Cultura tem em relação à
política de compartilhamento do governo Dilma. O artigo é de Sergio
Amadeu da Silveira.
Sergio Amadeu da Silveira (*) na Carta Maior
Os defensores da indústria de intermediação e
advogados do ECAD lançam um ataque a política de compartilhamento de
conhecimento e bens culturais lançada pelo presidente Lula. Na sua
jornada contra a criatividade e em defesa dos velhos esquemas de
controle da cultura, chegam aos absurdos da desinformação ou da mentira.
Primeiro é preciso esclarecer que as licenças Creative Commons surgiram a partir do exemplo bem sucedido do movimento do software livre e das licenças GPL (General Public Licence). O software livre também inspirou uma das maiores obras intelectuais do século XXI, a enciclopédia livre chamada Wikipedia. Lamentavelmente, os lobistas do ECAD chegam a dizer que a Microsoft apóia o software livre e o movimento de compartilhamento do conhecimento.
Segundo, o argumento do ECAD de que defender o Cretaive Commons é defender grandes corporações internacionais é completamente falso. As grandes corporações de intermediação da cultura se organizam e apóiam a INTERNATIONAL INTELLECTUAL PROPERTY ALLIANCE® (IIPA, Associação internacional de Propriedade Internacional) e que é um grande combatente do software livre e do Creative Commons. O Relatório da IIPA de fevereiro de 2010 ataca o Brasil, a Malásia e outros países que usam licenças mais flexíveis e propõem que o governo norte-americano promova retaliações a estes países.
Terceiro, a turma do ECAD desconsidera a política histórica da diplomacia brasileira de luta pela flexibilização dos acordos de propriedade intelectual que visam simplesmente bloquear o caminho do desenvolvimento de países como o Brasil. Os argumentos contra as licenças Creative Commons são tão rídiculos como afirmar que a Internet e a Wikipedia é uma conspiração contra as enciclopédias proprietárias, como a Encarta da Microsoft ou a Enciclopédia Britânica.
Quarto, o texto do maestro Marco Venicio Andrade é falso até quando parabeniza a presidente Dilma por ter "restabelecido a soberania de nossa gestão cultural, anulando as medidas subservientes tomadas pelos que, embora parecendo modernos e libertários, só queriam mesmo é dobrar a espinha aos interesses das grandes corporações que buscam monopolizar a cultura". O blog do Planalto lançado pelo presidente Lula e mantido pela presidente Dilma continua com as licenças Creative Commons. Desse modo, os ataques que o defensor do ECAD fez a política dos commons lançada por Gilberto Gil, no MINC, também valem para a Presidência da República.
Quinto, o movimento de software livre, de recursos educacionais abertos e os defensores da liberdade e diversidade cultural votaram em Dilma pelos compromissos que ela afirmou em defesa do bem comum. No mesmo dia que a Ministra Ana de Holanda atacou o Creative Commons retirando a licença do site, a Ministra do Planejamento Miriam Belquior publicou a normativa que consolida o software livre como a essência do software público que deve ser usada pelo governo. É indiscutível o descompasso que a Ministra da Cultura tem em relação à política de compartilhamento do governo Dilma.
(*) Sergio Amadeu da Silveira é professor da UFABC. Sociólogo e doutor em Ciência Política. Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e primeiro coordenador do Comitê Técnico de Implementação do Software Livre na gestão do presidente Lula.
Primeiro é preciso esclarecer que as licenças Creative Commons surgiram a partir do exemplo bem sucedido do movimento do software livre e das licenças GPL (General Public Licence). O software livre também inspirou uma das maiores obras intelectuais do século XXI, a enciclopédia livre chamada Wikipedia. Lamentavelmente, os lobistas do ECAD chegam a dizer que a Microsoft apóia o software livre e o movimento de compartilhamento do conhecimento.
Segundo, o argumento do ECAD de que defender o Cretaive Commons é defender grandes corporações internacionais é completamente falso. As grandes corporações de intermediação da cultura se organizam e apóiam a INTERNATIONAL INTELLECTUAL PROPERTY ALLIANCE® (IIPA, Associação internacional de Propriedade Internacional) e que é um grande combatente do software livre e do Creative Commons. O Relatório da IIPA de fevereiro de 2010 ataca o Brasil, a Malásia e outros países que usam licenças mais flexíveis e propõem que o governo norte-americano promova retaliações a estes países.
Terceiro, a turma do ECAD desconsidera a política histórica da diplomacia brasileira de luta pela flexibilização dos acordos de propriedade intelectual que visam simplesmente bloquear o caminho do desenvolvimento de países como o Brasil. Os argumentos contra as licenças Creative Commons são tão rídiculos como afirmar que a Internet e a Wikipedia é uma conspiração contra as enciclopédias proprietárias, como a Encarta da Microsoft ou a Enciclopédia Britânica.
Quarto, o texto do maestro Marco Venicio Andrade é falso até quando parabeniza a presidente Dilma por ter "restabelecido a soberania de nossa gestão cultural, anulando as medidas subservientes tomadas pelos que, embora parecendo modernos e libertários, só queriam mesmo é dobrar a espinha aos interesses das grandes corporações que buscam monopolizar a cultura". O blog do Planalto lançado pelo presidente Lula e mantido pela presidente Dilma continua com as licenças Creative Commons. Desse modo, os ataques que o defensor do ECAD fez a política dos commons lançada por Gilberto Gil, no MINC, também valem para a Presidência da República.
Quinto, o movimento de software livre, de recursos educacionais abertos e os defensores da liberdade e diversidade cultural votaram em Dilma pelos compromissos que ela afirmou em defesa do bem comum. No mesmo dia que a Ministra Ana de Holanda atacou o Creative Commons retirando a licença do site, a Ministra do Planejamento Miriam Belquior publicou a normativa que consolida o software livre como a essência do software público que deve ser usada pelo governo. É indiscutível o descompasso que a Ministra da Cultura tem em relação à política de compartilhamento do governo Dilma.
(*) Sergio Amadeu da Silveira é professor da UFABC. Sociólogo e doutor em Ciência Política. Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e primeiro coordenador do Comitê Técnico de Implementação do Software Livre na gestão do presidente Lula.
Brasileiros entrevistam Julian Assange
“Não somos uma organização exclusivamente da esquerda. Somos uma
organização exclusivamente pela verdade e pela justiça”. Essa é apenas
uma das muitas afirmações feitas pelo fundador e publisher do WikILeaks, Julian Assange, em entrevista aos internautas brasileiros.
A entrevista será publicada por diversos blogs, entre eles: Blog do Nassif, Viomundo, Nota de Rodapé, Maria Frô, Trezentos, Fazendo Média,
Falha de S Paulo, O Escrevinhador, Blog do Guaciara, Observatório do Direito à Comunicação, Blog da Dilma, Futepoca, Elaine Tavares, Blog do Mello, Altamiro Borges, Doutor Sujeira, Blog da Cidadania.
Julian, que enfrenta um processo na Suécia por crimes sexuais e
atualmente vive sob monitoramento em uma mansão em Norfolk, na
Inglaterra, concedeu a entrevista para internautas que enviaram
perguntas a este blog.
Eu selecionei doze perguntas dentre as cerca de 350 que recebi – e
não foi fácil. Acabei privilegiando perguntas muito repetidas, perguntas
originais e aquelas que não querem calar. Infelizmente, nem todos foram
contemplados. Todas as perguntas serão publicadas depois.
No final, os brasileiros não deram mole para o criador do WikiLeaks.
Julian teve tempo de responder por escrito e aprofundar algumas
questões.
O resultado é uma entrevista saborosa na qual ele explica por que
trabalha com a grande mídia – sem deixar de criticá-la -, diz que
gostaria de vir ao Brasil e sentencia: distribuir informação é
distribuir poder.
Em tempo: se virasse filme de Hollywood, o editor do WikiLeaks diz que gostaria de ser interpretado por Will Smith.
A seguir, a entrevista.
Vários internautas - O WikiLeaks
tem trabalhado com veículos da grande mídia – aqui no Brasil, Folha e
Globo, vistos por muita gente como tendo uma linha política de direita.
Mas além da concentração da comunicação, muitas vezes a grande mídia tem
interesses próprios. Não é um contra-senso trabalhar com eles se o
objetivo é democratizar a informação? Por que não trabalhar com blogs e
mídias alternativas?
Por conta de restrições de recursos ainda não temos condições de
avaliar o trabalho de milhares de indivíduos de uma vez. Em vez disso,
trabalhamos com grupos de jornalistas ou de pesquisadores de direitos
humanos que têm uma audiência significativa. Muitas vezes isso inclui
veículos de mídia estabelecidos; mas também trabalhamos com alguns
jornalistas individuais, veículos alternativos e organizações de
ativistas, conforme a situação demanda e os recursos permitem.
Uma das funções primordiais da imprensa é obrigar os governos a
prestar contas sobre o que fazem. No caso do Brasil, que tem um governo
de esquerda, nós sentimos que era preciso um jornal de centro-direita
para um melhor escrutínio dos governantes. Em outros países, usamos a
equação inversa. O ideal seria podermos trabalhar com um veículo
governista e um de oposição.
Marcelo Salles – Na sua opinião, o
que é mais perigoso para a democracia: a manipulação de informações por
governos ou a manipulação de informações por oligopólios de mídia?
A manipulação das informações pela mídia é mais perigosa, porque
quando um governo as manipula em detrimento do público e a mídia é
forte, essa manipulação não se segura por muito tempo. Quando a própria
mídia se afasta do seu papel crítico, não somente os governos deixam de
prestar contas como os interesses ou afiliações perniciosas da mídia e
de seus donos permitem abusos por parte dos governos. O exemplo mais
claro disso foi a Guerra do Iraque em 2003, alavancada pela grande mídia
dos Estados Unidos.
Eduardo dos Anjos – Tenho
acompanhado os vazamentos publicados pela sua ONG e até agora não
encontrei nada que fosse relevante, me parece que é muito barulho por
nada. Por que tanta gente ao mesmo tempo resolveu confiar em você? E por
que devemos confiar em você?
O WikiLeaks tem uma história de quatro anos publicando documentos.
Nesse período, até onde sabemos, nunca atestamos ser verdadeiro um
documento falso. Além disso, nenhuma organização jamais nos acusou
disso. Temos um histórico ilibado na distinção entre documentos
verdadeiros e falsos, mas nós somos, é claro, apenas humanos e podemos
um dia cometer um erro. No entanto até o momento temos o melhor
histórico do mercado e queremos trabalhar duro para manter essa boa
reputação.
Diferente de outras organizações de mídia que não têm padrões claros
sobre o que vão aceitar e o que vão rejeitar, o WikiLeaks tem uma
definição clara que permite às nossas fontes saber com segurança se
vamos ou não publicar o seu material.
Aceitamos vazamentos de relevância diplomática, ética ou histórica,
que sejam documentos oficiais classificados ou documentos suprimidos por
alguma ordem judicial.
Vários internautas – Que tipo de
mudança concreta pode acontecer como consequência do fenômeno Wikileaks
nas práticas governamentais e empresariais? Pode haver uma mudança na
relação de poder entre essas esferas e o público?
James Madison, que elaborou a Constituição americana, dizia que o
conhecimento sempre irá governar sobre a ignorância. Então as pessoas
que pretendem ser mestras de si mesmas têm de ter o poder que o
conhecimento traz. Essa filosofia de Madison, que combina a esfera do
conhecimento com a esfera da distribuição do poder, mostra as mudanças
que acontecem quando o conhecimento é democratizado.
Os Estados e as megacorporações mantêm seu poder sobre o pensamento
individual ao negar informação aos indivíduos. É esse vácuo de
conhecimento que delineia quem são os mais poderosos dentro de um
governo e quem são os mais poderosos dentro de uma corporação.
Assim, o livre fluxo de conhecimento de grupos poderosos para grupos
ou indivíduos menos poderosos é também um fluxo de poder, e portanto uma
força equalizadora e democratizante na sociedade.
Marcelo Träsel -
Após o Cablegate, o Wikileaks ganhou muito poder. Declarações suas sobre
futuros vazamentos já influenciaram a bolsa de valores e provavelmente
influenciam a política dos países citados nesses alertas. Ao se tornar
ele mesmo um poder, o Wikileaks não deveria criar mecanismos de
auto-vigilância e auto-responsabilização frente à opinião pública
mundial?
O WikiLeaks é uma das organizações globais mais responsáveis que existem.
Prestamos muito mais contas ao público do que governos nacionais,
porque todo fruto do nosso trabalho é público. Somos uma organização
essencialmente pública; não fazemos nada que não contribua para levar
informação às pessoas.
O WikiLeaks é financiado pelo público, semana a semana, e assim eles “votam” com as suas carteiras.
Além disso, as fontes entregam documentos porque acreditam que nós
vamos protegê-las e também vamos conseguir o maior impacto possível. Se
em algum momento acharem que isso não é verdade, ou que estamos agindo
de maneira antiética, as colaborações vão cessar.
O WikiLeaks é apoiado e defendido por milhares de pessoas generosas
que oferecem voluntariamente o seu tempo, suas habilidades e seus
recursos em nossa defesa. Dessa maneira elas também “votam” por nós
todos os dias.
Daniel Ikenaga – Como você define o que deve ser um dado sigiloso?
Nós sempre ouvimos essa pergunta. Mas é melhor reformular da seguinte
maneira: “quem deve ser obrigado por um Estado a esconder certo tipo de
informação do resto da população?”
A resposta é clara: nem todo mundo no mundo e nem todas as pessoas em
uma determinada posição. Assim, o seu médico deve ser responsável por
manter a confidencialidade sobre seus dados na maioria das
circunstâncias – mas não em todas.
Vários internautas – Em
declarações ao Estado de São Paulo, você disse que pretendia usar o
Brasil como uma das bases de atuação do WikiLeaks. Quais os planos
futuros? Se o governo brasileiro te oferecesse asilo político, você aceitaria?
Eu ficaria, é claro, lisonjeado se o Brasil oferecesse ao meu pessoal
e a mim asilo político. Nós temos grande apoio do público brasileiro.
Com base nisso e na característica independente do Brasil em relação a
outros países, decidimos expandir nossa presença no país. Infelizmente
eu, no momento, estou sob prisão domiciliar no inverno frio de Norfolk,
na Inglaterra, e não posso me mudar para o belo e quente Brasil.
Vários internautas – Você teme pela sua vida? Há algum mecanismo de proteção especial para você? Caso venha a ser assassinado, o que vai acontecer com o WikiLeaks?
Nós estamos determinados a continuar a despeito das muitas ameaças
que sofremos. Acreditamos profundamente na nossa missão e não nos
intimidamos nem vamos nos intimidar pelas forças que estão contra nós.
Minha maior proteção é a ineficácia das ações contra mim. Por
exemplo, quando eu estava recentemente na prisão por cerca de dez dias,
as publicações de documentos continuaram.
Além disso, nós também distribuímos cópias do material que ainda não
foi publicado por todo o mundo, então não é possível impedir as futuras
publicações do WikiLeaks atacando o nosso pessoal.
Helena Vieira - Na
sua opinião, qual a principal revelação do Cablegate? A sua visão de
mundo, suas opiniões sobre nossa atual realidade mudou com as
informações a que você teve acesso?
O Cablegate cobre quase todos os maiores acontecimentos, públicos e
privados, de todos os países do mundo – então há muitas revelações
importantíssimas, dependendo de onde você vive. A maioria dessas
revelações ainda está por vir.
Mas, se eu tiver que escolher um só telegrama, entre os poucos que eu
li até agora – tendo em mente que são 250 mil – seria aquele que pede
aos diplomatas americanos obter senhas, DNAs, números de cartões de
crédito e números dos vôos de funcionários de diversas organizações –
entre elas a ONU.
Esse telegrama mostra uma ordem da CIA e da Agência de Segurança
Nacional aos diplomatas americanos, revelando uma zona sombria no vasto
aparato secreto de obtenção de inteligência pelos EUA.
Tarcísio Mender e Maiko Rafael Spiess - Apesar
de o WikiLeaks ter abalado as relações internacionais, o que acha da
Time ter eleito Mark Zuckerberg o homem do ano? Não seria um paradoxo,
você ser o “criminoso do ano”, enquanto Mark Zuckerberg é aplaudido e
laureado?
A revista Time pode, claro, dar esse título a quem ela quiser. Mas
para mim foi mais importante o fato de que o público votou em mim numa
proporção vinte vezes maior do que no candidato escolhido pelo editor da
Time. Eu ganhei o voto das pessoas, e não o voto das empresas de mídia
multinacionais. Isso me parece correto.
Também gostei do que disse (o programa humorístico da TV americana)
Saturday Night Live sobre a situação: “Eu te dou informações privadas
sobre corporações de graça e sou um vilão. Mark Zuckerberg dá as suas informações privadas para corporações por dinheiro – e ele é o ‘Homem do Ano’.”
Nos bastidores, claro, as coisas foram mais interessantes, com a
facção pró- Assange dentro da revista Time sendo apaziguada por uma capa
bastante impressionante na edição de 13 de dezembro, o que abriu o
caminho para a escolha conservadora de Zuckerberg algumas semanas
depois.
Vinícius Juberte – Você se considera um homem de esquerda?
Eu vejo que há pessoas boas nos dois lados da política e
definitivamente há pessoas más nos dois lados. Eu costumo procurar as
pessoas boas e trabalhar por uma causa comum.
Agora, independente da tendência política, vejo que os políticos que
deveriam controlar as agências de segurança e serviços secretos acabam,
depois de eleitos, sendo gradualmente capturados e se tornando
obedientes a eles.
Enquanto houver desequilíbrio de poder entre as pessoas e os governantes, nós estaremos do lado das pessoas.
Isso é geralmente associado com a retórica da esquerda, o que dá
margem à visão de que somos uma organização exclusivamente de esquerda.
Não é correto. Somos uma organização exclusivamente pela verdade e
justiça – e isso se encontra em muitos lugares e tendências.
Ariely Barata – Hollywood divulgou que fará um filme sobre sua trajetória. Qual sua opinião sobre isso?
Hollywood pode produzir muitos filmes sobre o WikiLeaks, já que quase
uma dúzia de livros está para ser publicada. Eu não estou envolvido em
nenhuma produção de filme no momento.
Mas se nós vendermos os direitos de produção, eu vou exigir que meu
papel seja feito pelo Will Smith. O nosso porta-voz, Kristinn Hrafnsson,
seria interpretado por Samuel L Jackson, e a minha bela assistente por
Halle Berry. E o filme poderia se chamar “WikiLeaks Filme Noire”.
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