Contrariando a costumeira apatia que nos reservam os inícios de ano, uma
seqüência de rebeliões espontâneas no Norte da África, e no Oriente
Médio, não somente chacoalhou uma das regiões mais efervescentes da
geopolítica mundial, como reverberou por todos os quadrantes. A partir
da auto-imolação de um tunisiano, inconformado com a falta de
oportunidades oferecidas pelo deposto regime ditatorial de Ben Ali, uma
onda de protestos contra quase todos os governos da região não pára de
crescer.
Além do sonho de libertação de povos oprimidos há muitas décadas, os
acontecimentos que agora se concentram no Egito, mas se estendem por
vários outros países, voltam a escancarar o jogo duplo comandado pelo
Departamento de Estado norte-americano e as potências européias, com o
inefável apoio de uma mídia hesitante em corroborar os desejos de
emancipação de tunisianos, egípcios, iemenitas, argelinos, sírios,
sauditas...
O que deflagrou uma onda de levantes populares, tão fora de moda no
mundo neoliberal, foi o ato do cidadão tunisiano que, ao ter sua barraca
de frutas apreendida, ateou fogo a si mesmo, falecendo no mesmo dia e
levando o povo às ruas como jamais poderia supor. Pra começo de conversa
e indo direto ao ponto, fosse em Cuba o ocorrido e nossa mídia já
estaria propondo premiações internacionais e santificando um novo mártir
da humanidade, vitimado por um governo genocida.
Mas a verdade é que o jovem rapaz, com seu sacrifício, representou o
sentimento de revolta e inconformismo que domina dezenas e dezenas de
milhões de corações, numa região tão rica culturalmente quanto
empobrecida economicamente – exceto suas elites despóticas, associadas a
governos ocidentais que sempre ignoraram o fato de se tratar de
ditaduras sangrentas, ao menos enquanto se mantêm submissas a seus
interesses geoestratégicos.
É o caso de praticamente todos os países da região, cujas populações
convergem nas mais diversas frustrações impostas por seus governos, como
altíssimos índices de desemprego, o que tem tornado a juventude cada
vez mais sem futuro e dependente das famílias, além de um controle a
pura mão de ferro de todo anseio popular.
Mudar para continuar igual
Entretanto, mesmo diante de mazelas tão gritantes, nossa imprensa se
mantém tímida em seus juízos de valores, enfatizando as opiniões de
analistas de corte conservador, que começaram tentando empulhar a
opinião mundial com idéias de transição ‘lenta, gradual e segura’.
Porém, após se assegurarem de que os egípcios estão nas ruas pelo tudo
ou nada, passaram a rever conceitos, agora instando o ditador Mubarak a
puxar o carro um pouco mais rápido para aplacar ânimos.
Trata-se acima de tudo de muito cálculo político, o que obviamente é
feito em importantíssimas reuniões e conversas de líderes de Estado com
seus mais proeminentes assessores. Por isso que, com o passar dos dias,
americanos e europeus começaram o processo de abandono de Mubarak,
concentrando esforços numa espécie de conciliação nacional rumo a um
governo estável a seus interesses, o que pode ser inviável caso se
mantenham muito recalcitrantes aos desejos dos povos árabes e
magrebinos.
É muito clara a diferença de tratamento entre a primeira e segunda
sublevação. Na Tunísia, até por sua relevância global e população
(muito) inferior, a revolta depôs o governo basicamente num par de dias,
o que foi seguido por editoriais e opiniões de celebração imediata,
festejando o fim de mais uma ditadura – que, estranhamente, não puderam
denunciar aos leitores nos 30 anos anteriores em que vigorou.
Como também somos portadores de considerável ignorância nas questões do
‘mundo árabe’, ninguém supôs que seus povos são mais interligados do que
supunha nossa vã filosofia. Quase que instantaneamente outras nações
entraram na onda dos protestos populares, em especial o Egito, de 80
milhões de habitantes e principal ponto de apoio para a estabilidade da
aliança entre Estados Unidos e Israel e de interlocução com os demais
países da comunidade árabe.
A partir da convulsão num país de maior peso global e regional, a
postura passou do entusiasmo libertário à cautela, com recomendações a
uma transição segura, que no início até considerava a manutenção de
Mubarak no poder por mais alguns meses, dentre outras propostas
inaceitáveis feitas pelo ditador, como maneira de ‘salvar’ o povo
egípcio do caos e do risco da tomada de poder por correntes
fundamentalistas.
No entanto, foi-se o tempo em que os falsos dilemas colocados pela
política externa estadunidense eram postos goela abaixo de todos. Ao
contrário da imagem que sempre venderam das conjunturas norte-africanas e
médio-orientais, não se trata de uma disputa entre "autocracias
amistosas ou ditaduras religiosas e fundamentalistas", como bem
observaram analistas do quilate de Robert Fisk.
Ofuscando o poder das massas
Na verdade, não há sequer uma liderança clara em tais levantes, o que
deu à imprensa outra idéia para tentar desinflar e desmistificar o poder
de revolta, mobilização e intervenção pura e simplesmente populares. E
dessa forma passaram a chover opiniões exaltando o poder das redes
sociais em conectar povos e desnudar toda e qualquer realidade injusta,
seja ela em regimes ‘fechados ou abertos’.
Ou seja, tentaram colocar em pé de igualdade décadas de frustração geral
de uma vastíssima população, acompanhadas de enorme violência estatal e
descaso da famigerada comunidade internacional, com o ‘poder’
irresistível de redes de relacionamento como twitter e facebook. Como se
‘tuitadas’ e outros ‘posts’ colocassem déspotas e exércitos armados até
os dentes para correr.
É evidente que a expansão da internet aumenta o fluxo de informações a
que temos acesso, especialmente em locais remotos e com enormes
diferenças culturais e lingüísticas. Mas daí a igualar seu poder de
transformação a atos de rua massivos é mais uma tentativa de matar no
nascedouro todo e qualquer sentimento de insurgência e ação política,
que é por onde se constroem revoluções. É óbvio que calculam as
conseqüências de uma epidemia mundial de manifestações impetuosas dos
povos, inclusive além da região atualmente em chamas.
Tanto é assim que, nos dias que se seguiram aos protestos no Egito,
nossa mídia foi aprumando seu tom de voz aos discursos que saíam de
Washington. Primeiro, Mubarak deveria fazer concessões e evitar se
candidatar às eleições. Depois, deveria deixar o poder imediatamente.
Agora, os americanos negociam sua saída e, conseqüentemente, dialogam
com os grupos políticos mais influentes nos países em rebelião.
Além disso, anos e anos de ditaduras implacáveis desmobilizaram as
organizações políticas, isoladas e dispersas atualmente, o que os faz
começar a temer os ovos de serpente que produziram. Dessa forma,
negociam uma transição que faça o poder recair em ‘mãos confiáveis’.
Cuidando do futuro
Porém, como já parece um tanto líquido e certo que o regime egípcio irá à
ruína, é hora de cuidar de outras pautas. Por ter conciliado os
interesses de Israel e EUA na região, inclusive nas mal-intencionadas
negociações de paz com a Palestina - que na verdade visam sua
destruição, como declara abertamente o regime sionista -, o Egito era
visto como amigo, o que levou nossa subserviente mídia a chamar Mubarak
de presidente por todas essas décadas. De repente, virou ditador, sem
mais explicações sobre a mudança conceitual.
Retomando, a grande interrogação que paira é a respeito do que
aconteceria se um governo de caráter nacional e soberano emergisse no
Egito, e quais conseqüências políticas viriam para Israel, cercado de
inimigos e totalmente dependente da ajuda militar dos EUA – assim como o
Egito, outro fato omitido ao longo dos anos pela imprensa
autodenominada livre e independente.
Por conta disso, começaram tortuosas correlações com o Hamas e outros
grupos políticos inimigos de suas posições nas negociações de ‘paz’.
Inquietos a respeito da influência que eventualmente poderia partir da
Irmandade Muçulmana, jornais, portais e emissoras de TV tentam desvendar
se a entidade não estaria ainda conectada a grupos ‘extremistas’ –
leia-se, grupos da lista negra de Washington.
Note-se este parágrafo da matéria da Folha de S. Paulo no dia 5 de
fevereiro, que tenta descaradamente criminalizar o Hamas, que,
lembremos, venceu eleições reconhecidas pela ONU, mas não por Israel e
EUA, na Faixa de Gaza, em 2007:
"Segunda Hesham Ali, a comparação com o Hamas não cabe, porque a
Irmandade Muçulmana, ao contrário do grupo palestino, não tem uma agenda
militar nem propaga idéias extremistas", introduz o texto do repórter
Samy Adghirni. Agora, a resposta do membro da Irmandade: "Condenamos a Al-Qaeda
e qualquer outro grupo que cometa atos violentos". Melhor não comentar
ou adjetivar esse tremendo insulto à inteligência dos leitores.
Outra prova do cinismo midiático na hora de mostrar se realmente está ao
lado das bandeiras democráticas e dos direitos humanos foi dada na
quinta-feira, 4, um dia antes.
"Egípcios se enfrentam com pedras, porretes e molotov", generalizou a
Folha de S. Paulo, igualando ambos os lados na contenda, quando o mundo
inteiro já sabia que eram forças mercenárias e velhos repressores
aliados de Mubarak que acataram a ordem de sair às ruas e tentar aplacar
as manifestações populares pelo terror e violência.
Nas páginas internas, esta postura fica ainda mais clara. Mas a manchete
citada mostra que, no fundo, essa imprensa teme e até repudia tamanha
sublevação, por significar ‘péssimo’ exemplo para povos injustiçados e
reprimidos, que podem se libertar através de suas próprias forças,
atropelando e extinguindo regimes burgueses sem mediações.
Pelo mencionado peso estratégico do Egito, muito superior ao da Tunísia,
a mídia brasileira, e a imprensa comercial estrangeira, começaram a
‘colocar as manguinhas de dentro’, de modo a criar um consenso bem
conciliador, além de um final honroso para os déspotas que sempre
acobertaram.
No entanto, o duplo caráter de governos e comunicadores pode custar
caro, pois movimentações começam a tomar força em países como Argélia,
Marrocos, Iêmen, Síria. O risco é um perigoso isolamento de Israel na
região e o fortalecimento da solidariedade à causa palestina, passando
ainda pelos efervescentes e mal-resolvidos (para os EUA) Iraque e Irã.
Um barril de pólvora que jamais se esperava ter de administrar neste
momento. Agora, resta aos governos dos países centrais e seus aliados,
inclusive a mídia, elaborarem novas roupagens para manter intactos seus
interesses políticos e econômicos, claramente prejudiciais aos povos em
fúria, além dos conceitos humanitários, que na verdade seguem bem
seletivos. Não será fácil resolver a equação conservando todos os anéis.
Gabriel Brito é jornalista.
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