por Manuela Azenha no Viomundo
“O uso dos agrotóxicos não significa produção de alimentos,
significa concentração de terra, contaminação do meio ambiente e do ser
humano”
Raquel Rigotto é professora e pesquisadora do Departamento de Saúde
Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará.
Coordenadora do Núcleo Tramas – Trabalho, Meio Ambiente e Saúde, Raquel
contesta o modelo de desenvolvimento agrícola adotado pelo Brasil e
prevê que para as populações locais restará a “herança maldita” do
agronegócio: doenças e terra degradada.
Desde 2008, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos para se tornar o
maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Segundo dados da Organização
das Nações Unidas, é também o principal destino de agrotóxicos proibidos
em outros países.
Na primeira parte da entrevista, Raquel fala sobre o “paradigma do
uso seguro” dos agrotóxicos, que a indústria chama de “defensivos”
agrícolas. De um lado todo mundo sabe que eles são nocivos. De outro se
presume que haja um “modo seguro” de utilizá-los. O aparato legislativo
existe. Mas, na prática… Raquel dá um exemplo: o estado do Ceará, que é
onde ela atua, não dispõe de um laboratório para fazer exames sobre a
presença de agrotóxicos na água consumida pela população. Ela começa
dizendo que em 2008 e 2009 o Brasil foi campeão mundial no uso de
venenos na agricultura:
Na segunda parte da entrevista, Raquel diz que os agrotóxicos
contribuíram mais com o aumento da produção de commodities do que com a
segurança alimentar. Revela que cerca de 50% dos agrotóxicos usados no
Brasil são aplicados na lavoura da soja. Produto que se tornará ração
animal para produzir carne para os consumidores da Europa e dos Estados
Unidos. Diz que o governo Lula financiou o agronegócio a um ritmo de 100
bilhões de reais anuais em financiamento — contra 16 para a agricultura
familiar — e que foi omisso: não mexeu na legislação de 1997 que
concedeu desconto de cerca de 60% no ICMS dos agrotóxicos. Enquanto
isso, o Sistema Único de Saúde (SUS) está completamente despreparado
para monitorar e prevenir os problemas de saúde causados pelos
agrotóxicos:
Na terceira parte da entrevista Raquel diz que Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) nem sempre tem apoio dentro do próprio
governo para tratar do problema dos agrotóxicos. Afirma que é tarefa de
pesquisadoras como ela alertar o governo Dilma para a gravidade do
problema, já definida por pesquisadores como uma “herança maldita” que
as grandes empresas do agronegócio deixarão para o Brasil; doenças,
terras degradadas, ameaça à biodiversidade. Ela lembra que o rio
Jaguaribe, que corta áreas de uso intensivo de agrotóxicos, é de onde
sai a água para consumo da região metropolitana de Fortaleza:
Transcrição da entrevista:
Viomundo – O Brasil continua sendo o maior consumidor de agrotóxicos do mundo?
Raquel Rigotto - Os dados de 2008 e 2009 apontaram isso, eu não vi
ainda os de 2010. Mas nos anos anteriores tivemos esse triste título.
V – Porque a senhora acha que o Brasil vai nesse
contra-fluxo? Os Estados Unidos e a UE proibindo o uso de agrotóxicos e o
Brasil aumentando o consumo?
RR - É um fenômeno que tem muito a ver com o contexto da
reestruturação produtiva, inclusive da forma como ela se expressa no
campo. Nós estamos tendo na América Latina, como um todo, uma série de
empreendimentos agrícolas que se fundam na monocultura, no desmatamento,
são cultivos extensivos, de área muito grande, então isso praticamente
obriga a um uso muito intenso de agrotóxicos. Então tem a ver com a
expansão do chamado agronegócio na América Latina, como um todo.
V – Existem pesquisas que comprovam os malefícios dos agrotóxicos?
RR – Sim, os agrotóxicos antes de serem registrados no Brasil, eles
são analisados pelo Ministério da Saúde, da Agricultura e do Meio
Ambiente e eles são classificados de acordo com sua toxicidade para a
saúde humana e de acordo com o seu impacto para o meio ambiente. Então
desde o começo, quando eles são registrados, a gente já sabe que eles
são produtos nocivos. Isso já vem descrito nas monografias que as
próprias indústrias fabricantes apresentam para os órgãos dos governos.
Aqueles que são classificados como grupo 1, por exemplo, do ponto de
vista da toxicidade para a saúde humana, são aqueles que são
extremamente tóxicos, depois vêm os altamente tóxicos e os moderadamente
tóxicos ou os pouco tóxicos.
Já sabemos desde o início que são substâncias nocivas à vida e têm
impacto não só sobre as pragas mas sobre as pessoas e os ecossistemas.
Agora, para além disso nós temos uma larga gama de estudos mostrando os
impactos ambientais dos agrotóxicos, as contaminações de água, de ar, de
solo, de redução da biodiversidade, de contaminação de alimentos, e
também do ponto de vista da saúde humana, que vai desde a intoxicação
aguda até os chamados efeitos crônicos.
V – Se a nocividade desses produtos é algo comprovado, porque eles não são banidos?
RR - Na verdade, o que se construiu foi o que a gente chama de
paradigma do uso seguro. Quer dizer, se reconhece que há uma nocividade
mas também se propõe estabelecer condições para o uso seguro. Aí você
tem limitações desde os tipos de cultivos em que cada produto pode ser
usado, o limite máximo de tolerância dele no ambiente de trabalho, até
mesmo na água de consumo humano, o tipo de equipamento de proteção que
deve ser fornecido aos trabalhadores e também a informação que eles
devem ter.
Você tem um amplo aparato legislativo que criaria condições para um
suposto uso seguro desses produtos. Mas a partir das experiências nossas
aqui de cultivo na fruticultura irrigada para exportação no Ceará, a
gente vem questionando muito se existe esse uso seguro. Por exemplo, o
governo estadual, que tem o órgão estadual de meio ambiente, que deteria
a atribuição de acordo com a legislação federal de monitorar os
impactos ambientais dos agrotóxicos, não dispõe de um laboratório que
seja capaz de identificar a contaminação da água por agrotóxicos. Na
pesquisa, enviamos as amostras para Minas Gerais porque no Ceará não tem
órgãos públicos que o façam. E nem mesmo no setor privado tem
instituições de segurança. E existem uma série de outras evidências de
que essas condições do uso seguro não estão vigendo.
V – Hoje o mundo precisa dos agrotóxicos?
RR – Vivemos um discurso de que os agrotóxicos redimiriam o mundo da
fome. Isso nós experimentamos historicamente e própria ONU e a FAO
reconhecem que houve o aumento da produção daquilo que chamamos hoje de
commodities, como a soja, o açúcar, a cana, mas isso não implicou
segurança alimentar e redução dos padrões de desnutrição e subnutrição
entre os mais pobres. Ampliou-se a produção dessas commodities mas
sequer a gente pode chamá-las de alimentos porque o problema da fome
persiste.
Quem produz alimentos, quem produz comida realmente no Brasil, é a
agricultura familiar. No ano de 2008, mais de 50% dos agrotóxicos
consumidos no Brasil foi nas plantações de soja. Essa soja é em grande
parte exportada para ser transformada em ração animal e subsidiar o
consumo europeu e norte-americano de carne. Então isso não significa
alimentação para o nosso povo, significa concentração de terra, redução
de biodiversidade, contaminação de água, solo e ar e contaminação dos
trabalhadores e das famílias que vivem no entorno desses
empreendimentos. Além das enormes perdas para os ecossistemas, o
cerrado, a caatinga e até mesmo o amazônico, que está sendo invadindo
pela expansão da fronteira agrícola.
Então é claro que deixar de usar agrotóxico não é algo que se possa
fazer de um dia para o outro, de acordo com o que os agrônomos têm
discutido, mas por outro lado nós temos muitas experiências extremamente
positivas de agroecologia, que é a produção de alimentos utilizando
conhecimentos tradicionais das comunidades e saberes científicos
sensíveis da perspectiva da justiça sócio-ambiental. Esses sim, produzem
qualidade de vida, bem viver, soberania e segurança alimentar, e
conservação e preservação das condições ambientais e culturais de cada
cidade.
V - Como a senhora avalia a política do governo Lula em relação aos agrotóxicos?
RR – O governo Lula teve um papel muito importante na expansão do
agronegócio no Brasil. Para dar dados bem sintéticos, o financiamento
que o governo disponibilizou para o agronegócio anualmente foi em torno
de 100 bilhões de reais e para a agricultura familiar foi em torno de 16
bilhões de reais. Então há um desnível muito grande.
O governo Lula foi omisso em relação à legislações vigentes no Brasil
desde 1997, que concedem uma isenção de 60% do ICMS para os
agrotóxicos. Ou seja, existe um estímulo fiscal à comercialização,
produção e uso dos agrotóxicos no país. Isso evidentemente, atrai no
espaço mundial investimentos para o nosso país, investimentos que
trabalham com a contaminação. Também poderíamos falar das políticas
públicas, continuamos com o sistema único de saúde, que apesar de ser da
maior importância enquanto sistema de universalidade, equidade,
participação, integração, ainda é um sistema completamente inadequado
para atender a população do campo.
Ainda é um sistema cego para as intoxicações agudas e os efeitos
crônicos dos agrotóxicos. E com raríssimas exceções nesse enorme país, é
um sistema que ainda não consegue identificar, notificar, previnir e
tratar a população adequadamente. Existe uma série de hiatos para a
ação pública que precisam ser garantidos para que se possa respeitar a
constituição federal no que ela diz respeito ao meio ambiente e à saúde.
V – Alguns agrotóxicos tem sido revistos pela ANVISA. Como esse processo tem corrido?
RR – A ANVISA pautou desde 2006, se não me engano, a reavaliação de
14 agrotóxicos. Segundo estudos inclusive dos próprios produtores, as
condições relatadas no momento do registro tinham se alterado e portanto
pensaram em reavaliar as substâncias. Esse processo vem correndo de
forma bastante atropelada porque o sindicato da indústria que fabrica o
que eles chamam de defensivos agrícolas, utiliza não só de suas
articulações com o poder político no Senado Federal com a Bancada
Ruralista, mas também de influências sobre o Judiciário, e gerou uma
série de processos judiciais contra a ANVISA, que é o órgão do
Ministério da Saúde responsável legalmente por essas atribuições. Mas
alguns processos já foram concluídos.
V – A senhora acha que essa reavaliação pode ser vista como um avanço na política nacional?
RR – A ANVISA é um órgão que tem lutado com competência para cumprir
aquilo que a legislação exige que ela faça mas às vezes ela tem
encontrado falto de apoio dentro dos próprios órgãos públicos federais.
Muitas vezes o próprio Ministério da Agricultura não se mostra
comprometido com a preservação da saúde e do meio ambiente como deveria,
a Casa Civil muitas vezes interfere diretamente nesses processos, o
Ministério da Saúde muitas vezes não tem compreensão da importância
desse trabalho de reavaliação dos agrotóxicos. A ANVISA é uma das
dimensões da política pública, no que toca as substâncias químicas, que
vem tentando se desenvolver de maneira adequada mas com muitos
obstáculos. No contexto mais geral, a gente ainda enxerga poucos
avanços.
V – As perspectivas daqui pra frente, no governo Dilma, não trazem muita esperança, então…
RR – Acho que vamos ter a tarefa histórica, enquanto pesquisadores,
movimentos sociais e profissionais da saúde, de expôr ao governo Dilma
as gravíssimas implicações desse modelo de desenvolvimento agrícola para
a saúde da população como um todo. Porque não são só os agricultores
ou os empregados do agronegócio, os atingidos por esse processo. Aqui no
nosso caso, por exemplo, o rio que banha essas empresas e
empreendimentos, que é o rio Jaguaribe, é o mesmo cuja água é trazida
para a fortaleza para abastecer uma região metropolitana de mais de 5
milhões de pessoas. Essa água pode estar contaminada com agrotóxicos e
isso não vem sendo acompanhado pelo SUS.
Nós temos toda a questão das implicações da ingestão de alimentos
contaminados por agrotóxicos na saúde da população. Em que medida esse
acento dos cânceres, por exemplo, na nossa população, como causa de
morbidade e de mortalidade cada vez maior no Brasil, não tem a ver com a
ingestão diária de pequenas doses de diversos princípios ativos de
agrotóxicos, que alteram o funcionamento do nosso corpo e facilitam a
ocorrência de processos como esse, já comprovado em diversos estudos.
Então é preciso que o governo esteja atento.
Nós temos uma responsabilidade de preservar essa riqueza ambiental
que o nosso país tem e isso é um diferencial nosso no plano
internacional hoje. Não podemos deixar que nossa biodiversidade, solos
férteis, florestas, clima, luz solar, sejam cobiçados por empresas que
não têm critério de respeito à saúde humana e ao meio ambiente quando se
instalam naquilo que elas entendem como países de terceiro mundo ou
países subdesenvolvidos.
V – Porque o Brasil com tamanha biodiversidade, terra fértil e água necessita de tanto agrotóxico?
RR – Porque a monocultura, que é a escolha do modelo do agronegócio,
ao destruir a biodiversidade e plantar enormes extensões com um único
cultivo, cria condições favoráveis ao que eles chamam de pragas, que na
verdade são manifestações normais de um ecossistema reagindo a uma
agressão. Quando surgem essas pragas, começa o uso de agrotóxico e aí
vem todo o interessa da indústria química, que tem faturado bilhões e
bilhões de dólares anualmente no nosso país vendendo esse tipo de
substância e alimentando essa cultura de que a solução é usar mais e
mais veneno.
Nós temos visto na área da nossa pesquisa, no cultivo do abacaxi, era
utilizado mais de 18 princípios ativos diferentes de agrotóxicos para o
combate de 5 pragas. Depois de alguns anos, a própria empresa desistiu
de produzir abacaxi porque ainda com o uso dos venenos, ela não
conseguiu controlar as pragas. Então é um modelo que em si mesmo, é
insustentável, é autofágico. As empresas vêm, degradam o solo e a saúde
humana e vão embora impunemente. Fica para as populações locais aquilo
que alguns autores têm chamado de herança maldita, que é a doença, a
terra degradada, infértil e improdutiva.