De volta ao Brasil depois de participar do Fórum Social
Mundial em Dacar, o secretário Nacional de Comunicação do PCdoB, José
Reinaldo Carvalho, falou ao Vermelho sobre os debates
realizados no FSM. Entre os destaques das discussões – promovidas entre 6
e 11 de fevereiro, na Universidade de Dacar – estão o combate à herança
de subdesenvolvimento do continente e a luta contra os mecanismos de
espoliação da África, através do cancelamento da dívida externa.
Por Mariana Viel
José Reinaldo, que também é editor do Vermelho,
ressaltou ainda o lançamento do livro “Grupons-nous, et demain!”
(literalmente, “Agrupemo-nos, e amanhã! – verso do hino A Internacional
). O evento, realizado no último dia 14, na Assembleia Nacional Francesa
(parlamento), palco de marcantes acontecimentos políticos históricos,
tem grande significado para a esquerda progressista mundial.
Publicado pela Editora Les Temps des Cerises, o livro aborda a crise
internacional e as alternativas da esquerda. Fruto do seminário
realizado em São Paulo, em junho de 2009, sob os auspícios do PT, o
PCdoB e suas respectivas fundações de estudos, a Perseu Abramo e a
Maurício Grabois, e da Rede Corresponências Internacionais, a obra traz
uma das abordagens mais completas e profundas sobre a crise do
capitalismo, apontando a incapacidade desse sistema para satisfazer as
atuais necessidades da humanidade.
Promovido pela bancada parlamentar do bloco Esquerda Democrata e
Republicana, do qual fazem parte os comunistas franceses, e pela
Fundação Gabriel Peri, o ato foi coordenado pela Rede Correspondências
Internacionais e contou com as presenças do renomado economista francês
de esquerda, Paul Boccara, do jornalista e escritor Henri Alleg, do
embaixador de Cuba na França, Orlando Gual, dos dirigentes políticos
Robert Griffiths, secretário-geral do PC da Grã Bretanha, Chris
Mathlako,do Birô Político do PC da África do Sul, Sérgio Ribeiro, do
Comitê Central do PCP, Lô Gourmo, da União das Forças pelo Progresso, da
Mauritânia, Gyula Thurmer, do Partido dos Trabalhadores da Hungria e
Valter Pomar, do Partido dos Trabalhadores. Presentes entre o público a
embaixadora da Bolívia na França, o embaixador do Sri Lanka e
representações diplomáticas do Brasil e da Venezuela.
Vermelho: Qual é o significado da realização de uma nova edição do Fórum Social Mundial no continente africano?
José Reinaldo Carvalho: Acho que um dos destaques do Fórum Social de Dacar é o próprio fato de se fazer – pela segunda vez – um fórum em terras africanas. Se contarmos com o fórum setorial, que coincidiu também com a realização do Fórum Mundial das Alternativas — realizado em Bamako, capital do Mali — essa é a terceira vez que a África acolhe um acontecimento desse tipo.
Como os próprios acontecimentos no norte da África estão demonstrando, essa é uma região muito importante no mundo de hoje. O continente africano herda grandes chagas econômicas e sociais do colonialismo. Essa herança pesa muito nas condições de vida miseráveis, nas dificuldades para o desenvolvimento econômico, na opressão e nas discriminações de toda natureza. A realização de um fórum desse tipo na África atrai as atenções do mundo progressista para o continente.
Vermelho: Quais foram os destaques dos debates do fórum?
JR: Duas grandes questões foram objeto de debates: a luta pelo desenvolvimento, para combater essa herança do subdesenvolvimento, e a luta contra os mecanismos econômicos e financeiros de espoliação da África, particularmente relacionados com o cancelamento e o não pagamento da dívida externa.
Também me chamou bastante atenção a quantidade de pessoas presentes no fórum. A Universidade de Dacar – local onde se realizou o fórum – estava permanentemente lotada, era uma verdadeira multidão. A presença africana era maciça, o que deu uma beleza e uma conotação humana e social especial evento. Havia ainda uma grande presença de europeus e latino-americanos – em particular brasileiros. A presença dos movimentos sociais brasileiros chamava a atenção. Do ponto de vista humano, cultural e antropológico foi uma experiência extraordinária.
Vermelho: Qual foi a importância dos debates das Assembleias dos Movimentos Sociais?
JR: Essas assembleias — realizadas nos dias finais do fórum — feitas para traçar plataformas de luta e calendários de mobilização também foram muito concorridas. Elas são resultado do acerto de uma posição justa que considera que o fórum deve ser voltado para as lutas. Esse pensamento se contrapõe a uma corrente que defende que o fórum seja apenas um marco de debates, onde pontificam apenas as organizações não-governamentais e um grupo de intelectuais – muitos dos quais impregnados de ideologia anti-comunista e anti-socialista. Esses intelectuais e essas ONGs se opõem ao que chamam de “movimentos sociais tradicionais”, para desqualificar as organizações sindicais e de massas que têm raízes históricas e ligações mais profundas com as lutas dos trabalhadores e dos povos. Foi sobre a base dessas falsas concepções que surgiram os chamados “altermundialismo” e “movimentismo”. A luta pelo socialismo certamente se atualiza com as dinâmicas novas das lutas políticas e sociais e a incorporação de novos sujeitos e atores políticos, mas não carece desses modismos para se desenvolver. Em especial na América Latina e no Brasil devemos estar vigilantes com certas posturas que, embora posando de “modernas” e “originais”, macaqueiam, arremedam ou mimetizam os cacoetes europeus. Obviamente o fórum é um espaço para o pluralismo e o debate de ideias, mas é importante fazer deste debate um veículo para a luta. As Assembleias dos Movimentos sociais foram combativas e concorridas e tiraram importantes indicações de luta contra o neoliberalismo, as bases militares e as guerras imperialistas.
Vermelho: Após o Fórum de Dacar, você participou do lançamento do livro “Grupons-nous, et demain!” (“Agrupemo-nos, e amanhã!”), na França. Fruto do seminário realizado em junho de 2009, em São Paulo, através de uma parceria entre as Secretarias Internacionais do PT e do PCdoB, suas respectivas fundações de estudos, a Perseu Abramo e a Maurício Grabois e da Rede Corresponências Internacionais, o livro traz ainda grandes contribuições de economistas, intelectuais e dirigentes políticos. Como ele se apresenta no atual cenário progressista?
JR: O livro não se limitou ao seminário. A versão francesa incorpora contribuições de intelectuais, escritores, analistas e críticos que não puderam ter presença direta, participaram com seus textos. Entre eles está Paul Boccara, que é um dos maiores economistas franceses e o maior nome dentre os economistas progressistas de esquerda da França. Posso citar também o Samir Amin, que é um dos maiores intelectuais da atualidade, crítico do imperialismo e do capitalismo, organizador do Fórum Mundial das Alternativas e do Fórum do Terceiro Mundo e um dos nomes mais conhecidos do pensamento econômico marxista contemporâneo. O grande mérito desse livro é sistematizar uma série de pontos de vista progressistas, marxistas e anti-capitalistas sobre a crise do capitalismo. É uma das abordagens mais completas e profundas que conheço sobre a crise.
Vermelho: Como os textos reunidos no livro se apresentaram para o universo teórico-econômico da atual esquerda progressista?
JR: A maioria dos ensaios nele publicados refutam algumas teses que de maneira insidiosa e oportunista penetraram no pensamento da esquerda. Quando a crise começou a se instalar surgiu uma corrente de pensamento que dizia que ela era apenas uma crise financeira e passageira. Esta corrente defendia que essa não era uma crise do sistema capitalista e não nega os fundamentos do capitalismo. Tentaram até mesmo usar o Lênin para sustentar essa tese esdrúxula de que o capitalismo não estaria em decadência, mas sim em plena expansão. Ao mesmo tempo, dizia-se também que mesmo com o epicentro da crise nos Estados Unidos, sua economia era inabalável e sua hegemonia inamovível.
Eles não admitiam que os Estados Unidos são uma potência declinante no mundo. Assim como o seminário, o livro ajuda a fazer essa luta de idéias. Mostra que a crise é profunda, duradoura, de difícil saída, estrutural, sistêmica e põe em cheque os próprios fundamentos do sistema capitalista e imperialista. Isso não significa dizer que o capitalismo e o imperialismo vão cair de podre como resultado automático da crise. A superação revolucionária do capitalismo e do imperialismo depende também do fator subjetivo, da mobilização e luta dos trabalhadores, da revolução social e política. Ao mesmo tempo, ao desnudar suas dificuldades estruturais, o capitalismo revela também que é um sistema que não serve mais para satisfazer as necessidades da humanidade.
Ligado a isso, o livro discute o socialismo. Não pensando em voltar ao modelo antigo do socialismo. Sabemos que aquele modelo que vigorou no século 20 jogou um papel transformador na história, mas tal e qual ele era não volta mais. Não se pensa em restaurar aquele modelo, mas apresentamos a questão do socialismo olhando para o futuro.
Vermelho: Durante o lançamento do livro, Lô Gourmo, da União das Forças Progressistas da Mauritânia, afirmou que “a revolução bate à porta, mas não são ainda os revolucionários que a abrem”. O que isso significa no contexto de luta atual?
JR: Ele fez essa afirmação durante sua análise dos acontecimentos do Egito, onde houve uma revolta popular – com caráter revolucionário – que fez com que a revolução batesse à porta, mas o resultado é que as forças da grande burguesia, aliadas ao imperialismo, impedem que ela aconteça. Isto no caso do Egito, que seria uma espécie de revolução inacabada.
Pensando em termos mais globais, por toda a parte amadurecem as condições para a realização de transformações sociais e políticas, para a revolução social. Continuo achando que o espírito da nossa época é a luta antiimperialista. O espírito da nossa época é o anti-imperialismo.
Considero esta uma época promissora, de otimismo histórico, de luta e esperança. Mas as condições que dizem respeito à subjetividade dos atores sociais como a consciência política e ideológica, o nível de organização, a capacidade de mobilização, de ação coletiva, de formulações estratégicas e táticas e de elaboração teórica ainda deixam muito a desejar. Enquanto essas condições não amadurecerem, os movimentos revolucionários vão colher vitórias e derrotas, avanços e retrocessos.
Vermelho: Apesar dessas observações, as insurreições populares – iniciadas na Tunísia e Egito – e que se estenderam por uma série de países do mundo árabe jogam um papel importante na atualidade?
JR: Apesar do processo ainda estar truncado, este é um grande passo adiante. O fato das massas se colocarem em movimento e das ideias democráticas avançarem é um passo adiante.
Encarando uma experiência que tem outra forma de se manifestar, devemos citar a América Latina. Não estamos tendo explosões revolucionárias, mas experimentamos mudanças, sobretudo políticas, que também são passos adiante no sentido revolucionário. O fato de você ter um continente com classes dominantes tão poderosas e reacionárias, oligarquias cruéis que fabricaram ditaduras fascistas e governos neoliberais, hoje possuir um grande número de países que estão avançando nos processos democráticos, populares e antiimperialistas – alguns até se proclamando pelo socialismo – tem um grande significado histórico.
Vermelho: O que ainda impede o nosso desenvolvimento do ponto de vista econômico e social?
JR: Acho que não avançamos suficientemente nessas áreas pela força que o imperialismo e as classes dominantes ainda têm. No caso do Brasil, demos passos importantes com os dois governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acho que podemos dar novos passos com a presidente Dilma Rousseff, mas do ponto de vista econômico e social o processo ainda é muito lento porque as classes dominantes brasileiras não permitem a realização de mudanças profundas. São classes dominantes na sua essência reacionárias, como a grande burguesia financeira, verdadeira oligarquia antinacional e antipopular; a grande burguesia monopolista nacional, associada ao imperialismo, e o grande latifúndio. Setores dessas classes dominantes bancam de progressistas, o que engana até muita gente de esquerda. Tudo isso ainda impede que o ritmo das reformas estruturais no Brasil seja mais veloz. Não vejo isso como motivo para ansiedade nem pessimismo histórico. O Brasil está avançando, assim como a América Latina.
Vermelho: Nesse aspecto, quais seriam os atuais desafios dos comunistas brasileiros?
JR: Do ponto de vista do Partido Comunista do Brasil, esses desafios foram sistematizados durante o nosso último Congresso – realizado em outubro de 2009 –, quando o nosso partido elaborou um novo programa político. Eu diria que o desafio da esquerda, das forças revolucionárias, dos comunistas é a acumulação revolucionária de forças, através da luta política e social pelas reformas estruturais que vão fazer do Brasil um país democrático, progressista, soberano e socialmente justo, o que passa neste momento pelo apoio ao governo da presidente Dilma, como fizemos em relação a Lula, para que o país avance nas mudanças. O governo de Dilma só terá êxito se avançar nessa direção. Numa perspectiva estratégica, a libertação nacional e social do povo brasileiro só vai se produzir através de um caminho de árdua luta contra a dependência externa, o domínio geral que o imperialismo norte-americano ainda exerce em toda a nossa região e o sistema econômico, social e jurídico-político da classe dominante brasileira. É preciso conduzir uma luta de longo fôlego contra essas classes dominantes e o imperialismo.
Devemos fazer isso assumindo em nosso cotidiano aquelas lutas que correspondem aos anseios profundos das massas populares: a democracia, a justiça social, a independência e a soberania nacional e a paz mundial. Podemos fazer isso em melhores condições políticas atualmente porque o Brasil é um país democrático, com um governo que escuta o povo. Nossa palavra de ordem para a militância deve ser: “Onde há luta tem PCdoB”.
É indispensável também garantir a união de amplas forças políticas progressistas. É positivo que o Brasil seja governado por uma ampla coalizão, mas dentro dela é preciso que exista um núcleo de esquerda, democrático e popular, anti-imperialista, que tenha por objetivo a transformação socialista no país. Em segundo lugar, esta luta só vai dar certo com a ampla mobilização do povo. É por isso que os comunistas não vacilam em apoiar e participar de todas as lutas do povo. São elas que irão desempenhar um papel pedagógico para que o povo, através de suas próprias experiências, saiba quais são os passos que tem que dar no sentido da sua emancipação política e social. Do ponto de vista dos comunistas, o terceiro fator é ter um partido forte.
Vermelho: Com a política macroeconômica atual é possível mesmo o governo da presidente Dilma avançar para maiores mudanças?
JR: Em absoluto, não pode. A política econômica é conservadora e neoliberal. Tem que mudar. Mas, tal como o governo Lula, o da Dilma está em disputa entre os conservadores e os progressistas. Não devemos abandonar o barco. É um bom combate a travar.
Vermelho: Quais seriam os eixos para a construção de um partido comunista forte?
JR: Ter um partido comunista forte também significa enfrentar outros desafios. O primeiro é combater os experimentos que alguns alquimistas estão fazendo de reforma política que visam, entre outras coisas, colocar o partido comunista num gueto. A reforma política proposta por alguns setores da classe dominante e dos grandes partidos vai no sentido contrário do fortalecimento do partido comunista. Eles combatem o voto proporcional, defendem a imposição da cláusula de barreira, a proibição das coligações em eleições proporcionais e a manutenção do financiamento privado – que é a forma da grande burguesia mandar nos políticos. Também se fala no voto distrital, distrital misto e distritão. Tudo isso são experimentos de alquimistas a serviço de soluções anti-democráticas. Para fortalecer o partido comunista é preciso combater essa proposta de reforma política e propugnar uma reforma política democrática.
Vermelho: No quadro da reforma política, o que acha da anunciada fusão entre os dissidentes do DEM, sob a liderança do Kassab, com o PSB? Isto pode contribuir para o reforço das posições de esquerda no governo da Dilma?
JR: Falo em tese. Esse é um dos muitos paradoxos da vida política brasileira. A ida do Kassab para a base da Dilma poderá dar maior governabilidade numérica à presidente, nada mais. Qualitativamente acrescenta o quê? Não impulsiona o governo no sentido progressista, ao contrário. Não há dúvida de que toda cisão na direita deve ser explorada como reserva tática pela esquerda. Mas não vejo como esse movimento fortaleceria a esquerda. Não dou opinião sobre o que será do PSB se este partido se fundir com o bloco kassabista. Nem me refiro ao convite que o prefeito fez ao PCdoB em São Paulo para integrar sua administração. Insisto, falo em tese. Kassab e sua entourage constituem uma parte da direita brasileira. Em minha opinião, o fortalecimento da esquerda passa por outros caminhos. Estamos praticamente às vésperas de uma eleição municipal e seu governo sofre contestação de todos os lados no movimento social, além de ser mal avaliado pela população. Não vejo como a esquerda se unir em torno dele em 2012 nem em 2014. Outra coisa é a convivência política, que não é necessariamente sinônimo de aliança nem de composição orgânica.
Vermelho:Voltando ao PCdoB, como vê a sua transformação num partido forte?
JR:O partido precisa aumentar suas fileiras, adquirir maior densidade eleitoral, enraizar-se entre as massas trabalhadoras, a juventude, as mulheres, a intelectualidade progressista e atuar como força organizada. E acima de tudo, é preciso que o próprio partido reforce o seu caráter, sua identidade e sua ação como força política consciente, organicamente independente na luta pelo socialismo. O Partido Comunista do Brasil não vai crescer escamoteando seu caráter comunista. Nem rebaixando a perspectiva socialista ou ofuscando sua missão histórica. Ele só vai se fortalecer se tornar ainda mais nítida a sua identidade comunista e levantar cada vez mais alto a bandeira do socialismo. Além disso, deve colocar sua militância a serviço das lutas do povo e dos trabalhadores — que constituem o centro de gravidade da atuação do partido. Para nós, não há contradição entre estar na luta do povo e atuar em instituições parlamentares e governamentais. Se fizermos isso, iremos superar nossas metas de crescimento quantitativo, eleitoral e nos tornaremos um partido forte em todos os aspectos.
Vermelho: Qual é o significado da realização de uma nova edição do Fórum Social Mundial no continente africano?
José Reinaldo Carvalho: Acho que um dos destaques do Fórum Social de Dacar é o próprio fato de se fazer – pela segunda vez – um fórum em terras africanas. Se contarmos com o fórum setorial, que coincidiu também com a realização do Fórum Mundial das Alternativas — realizado em Bamako, capital do Mali — essa é a terceira vez que a África acolhe um acontecimento desse tipo.
Como os próprios acontecimentos no norte da África estão demonstrando, essa é uma região muito importante no mundo de hoje. O continente africano herda grandes chagas econômicas e sociais do colonialismo. Essa herança pesa muito nas condições de vida miseráveis, nas dificuldades para o desenvolvimento econômico, na opressão e nas discriminações de toda natureza. A realização de um fórum desse tipo na África atrai as atenções do mundo progressista para o continente.
Vermelho: Quais foram os destaques dos debates do fórum?
JR: Duas grandes questões foram objeto de debates: a luta pelo desenvolvimento, para combater essa herança do subdesenvolvimento, e a luta contra os mecanismos econômicos e financeiros de espoliação da África, particularmente relacionados com o cancelamento e o não pagamento da dívida externa.
Também me chamou bastante atenção a quantidade de pessoas presentes no fórum. A Universidade de Dacar – local onde se realizou o fórum – estava permanentemente lotada, era uma verdadeira multidão. A presença africana era maciça, o que deu uma beleza e uma conotação humana e social especial evento. Havia ainda uma grande presença de europeus e latino-americanos – em particular brasileiros. A presença dos movimentos sociais brasileiros chamava a atenção. Do ponto de vista humano, cultural e antropológico foi uma experiência extraordinária.
Vermelho: Qual foi a importância dos debates das Assembleias dos Movimentos Sociais?
JR: Essas assembleias — realizadas nos dias finais do fórum — feitas para traçar plataformas de luta e calendários de mobilização também foram muito concorridas. Elas são resultado do acerto de uma posição justa que considera que o fórum deve ser voltado para as lutas. Esse pensamento se contrapõe a uma corrente que defende que o fórum seja apenas um marco de debates, onde pontificam apenas as organizações não-governamentais e um grupo de intelectuais – muitos dos quais impregnados de ideologia anti-comunista e anti-socialista. Esses intelectuais e essas ONGs se opõem ao que chamam de “movimentos sociais tradicionais”, para desqualificar as organizações sindicais e de massas que têm raízes históricas e ligações mais profundas com as lutas dos trabalhadores e dos povos. Foi sobre a base dessas falsas concepções que surgiram os chamados “altermundialismo” e “movimentismo”. A luta pelo socialismo certamente se atualiza com as dinâmicas novas das lutas políticas e sociais e a incorporação de novos sujeitos e atores políticos, mas não carece desses modismos para se desenvolver. Em especial na América Latina e no Brasil devemos estar vigilantes com certas posturas que, embora posando de “modernas” e “originais”, macaqueiam, arremedam ou mimetizam os cacoetes europeus. Obviamente o fórum é um espaço para o pluralismo e o debate de ideias, mas é importante fazer deste debate um veículo para a luta. As Assembleias dos Movimentos sociais foram combativas e concorridas e tiraram importantes indicações de luta contra o neoliberalismo, as bases militares e as guerras imperialistas.
Vermelho: Após o Fórum de Dacar, você participou do lançamento do livro “Grupons-nous, et demain!” (“Agrupemo-nos, e amanhã!”), na França. Fruto do seminário realizado em junho de 2009, em São Paulo, através de uma parceria entre as Secretarias Internacionais do PT e do PCdoB, suas respectivas fundações de estudos, a Perseu Abramo e a Maurício Grabois e da Rede Corresponências Internacionais, o livro traz ainda grandes contribuições de economistas, intelectuais e dirigentes políticos. Como ele se apresenta no atual cenário progressista?
JR: O livro não se limitou ao seminário. A versão francesa incorpora contribuições de intelectuais, escritores, analistas e críticos que não puderam ter presença direta, participaram com seus textos. Entre eles está Paul Boccara, que é um dos maiores economistas franceses e o maior nome dentre os economistas progressistas de esquerda da França. Posso citar também o Samir Amin, que é um dos maiores intelectuais da atualidade, crítico do imperialismo e do capitalismo, organizador do Fórum Mundial das Alternativas e do Fórum do Terceiro Mundo e um dos nomes mais conhecidos do pensamento econômico marxista contemporâneo. O grande mérito desse livro é sistematizar uma série de pontos de vista progressistas, marxistas e anti-capitalistas sobre a crise do capitalismo. É uma das abordagens mais completas e profundas que conheço sobre a crise.
Vermelho: Como os textos reunidos no livro se apresentaram para o universo teórico-econômico da atual esquerda progressista?
JR: A maioria dos ensaios nele publicados refutam algumas teses que de maneira insidiosa e oportunista penetraram no pensamento da esquerda. Quando a crise começou a se instalar surgiu uma corrente de pensamento que dizia que ela era apenas uma crise financeira e passageira. Esta corrente defendia que essa não era uma crise do sistema capitalista e não nega os fundamentos do capitalismo. Tentaram até mesmo usar o Lênin para sustentar essa tese esdrúxula de que o capitalismo não estaria em decadência, mas sim em plena expansão. Ao mesmo tempo, dizia-se também que mesmo com o epicentro da crise nos Estados Unidos, sua economia era inabalável e sua hegemonia inamovível.
Eles não admitiam que os Estados Unidos são uma potência declinante no mundo. Assim como o seminário, o livro ajuda a fazer essa luta de idéias. Mostra que a crise é profunda, duradoura, de difícil saída, estrutural, sistêmica e põe em cheque os próprios fundamentos do sistema capitalista e imperialista. Isso não significa dizer que o capitalismo e o imperialismo vão cair de podre como resultado automático da crise. A superação revolucionária do capitalismo e do imperialismo depende também do fator subjetivo, da mobilização e luta dos trabalhadores, da revolução social e política. Ao mesmo tempo, ao desnudar suas dificuldades estruturais, o capitalismo revela também que é um sistema que não serve mais para satisfazer as necessidades da humanidade.
Ligado a isso, o livro discute o socialismo. Não pensando em voltar ao modelo antigo do socialismo. Sabemos que aquele modelo que vigorou no século 20 jogou um papel transformador na história, mas tal e qual ele era não volta mais. Não se pensa em restaurar aquele modelo, mas apresentamos a questão do socialismo olhando para o futuro.
Vermelho: Durante o lançamento do livro, Lô Gourmo, da União das Forças Progressistas da Mauritânia, afirmou que “a revolução bate à porta, mas não são ainda os revolucionários que a abrem”. O que isso significa no contexto de luta atual?
JR: Ele fez essa afirmação durante sua análise dos acontecimentos do Egito, onde houve uma revolta popular – com caráter revolucionário – que fez com que a revolução batesse à porta, mas o resultado é que as forças da grande burguesia, aliadas ao imperialismo, impedem que ela aconteça. Isto no caso do Egito, que seria uma espécie de revolução inacabada.
Pensando em termos mais globais, por toda a parte amadurecem as condições para a realização de transformações sociais e políticas, para a revolução social. Continuo achando que o espírito da nossa época é a luta antiimperialista. O espírito da nossa época é o anti-imperialismo.
Considero esta uma época promissora, de otimismo histórico, de luta e esperança. Mas as condições que dizem respeito à subjetividade dos atores sociais como a consciência política e ideológica, o nível de organização, a capacidade de mobilização, de ação coletiva, de formulações estratégicas e táticas e de elaboração teórica ainda deixam muito a desejar. Enquanto essas condições não amadurecerem, os movimentos revolucionários vão colher vitórias e derrotas, avanços e retrocessos.
Vermelho: Apesar dessas observações, as insurreições populares – iniciadas na Tunísia e Egito – e que se estenderam por uma série de países do mundo árabe jogam um papel importante na atualidade?
JR: Apesar do processo ainda estar truncado, este é um grande passo adiante. O fato das massas se colocarem em movimento e das ideias democráticas avançarem é um passo adiante.
Encarando uma experiência que tem outra forma de se manifestar, devemos citar a América Latina. Não estamos tendo explosões revolucionárias, mas experimentamos mudanças, sobretudo políticas, que também são passos adiante no sentido revolucionário. O fato de você ter um continente com classes dominantes tão poderosas e reacionárias, oligarquias cruéis que fabricaram ditaduras fascistas e governos neoliberais, hoje possuir um grande número de países que estão avançando nos processos democráticos, populares e antiimperialistas – alguns até se proclamando pelo socialismo – tem um grande significado histórico.
Vermelho: O que ainda impede o nosso desenvolvimento do ponto de vista econômico e social?
JR: Acho que não avançamos suficientemente nessas áreas pela força que o imperialismo e as classes dominantes ainda têm. No caso do Brasil, demos passos importantes com os dois governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acho que podemos dar novos passos com a presidente Dilma Rousseff, mas do ponto de vista econômico e social o processo ainda é muito lento porque as classes dominantes brasileiras não permitem a realização de mudanças profundas. São classes dominantes na sua essência reacionárias, como a grande burguesia financeira, verdadeira oligarquia antinacional e antipopular; a grande burguesia monopolista nacional, associada ao imperialismo, e o grande latifúndio. Setores dessas classes dominantes bancam de progressistas, o que engana até muita gente de esquerda. Tudo isso ainda impede que o ritmo das reformas estruturais no Brasil seja mais veloz. Não vejo isso como motivo para ansiedade nem pessimismo histórico. O Brasil está avançando, assim como a América Latina.
Vermelho: Nesse aspecto, quais seriam os atuais desafios dos comunistas brasileiros?
JR: Do ponto de vista do Partido Comunista do Brasil, esses desafios foram sistematizados durante o nosso último Congresso – realizado em outubro de 2009 –, quando o nosso partido elaborou um novo programa político. Eu diria que o desafio da esquerda, das forças revolucionárias, dos comunistas é a acumulação revolucionária de forças, através da luta política e social pelas reformas estruturais que vão fazer do Brasil um país democrático, progressista, soberano e socialmente justo, o que passa neste momento pelo apoio ao governo da presidente Dilma, como fizemos em relação a Lula, para que o país avance nas mudanças. O governo de Dilma só terá êxito se avançar nessa direção. Numa perspectiva estratégica, a libertação nacional e social do povo brasileiro só vai se produzir através de um caminho de árdua luta contra a dependência externa, o domínio geral que o imperialismo norte-americano ainda exerce em toda a nossa região e o sistema econômico, social e jurídico-político da classe dominante brasileira. É preciso conduzir uma luta de longo fôlego contra essas classes dominantes e o imperialismo.
Devemos fazer isso assumindo em nosso cotidiano aquelas lutas que correspondem aos anseios profundos das massas populares: a democracia, a justiça social, a independência e a soberania nacional e a paz mundial. Podemos fazer isso em melhores condições políticas atualmente porque o Brasil é um país democrático, com um governo que escuta o povo. Nossa palavra de ordem para a militância deve ser: “Onde há luta tem PCdoB”.
É indispensável também garantir a união de amplas forças políticas progressistas. É positivo que o Brasil seja governado por uma ampla coalizão, mas dentro dela é preciso que exista um núcleo de esquerda, democrático e popular, anti-imperialista, que tenha por objetivo a transformação socialista no país. Em segundo lugar, esta luta só vai dar certo com a ampla mobilização do povo. É por isso que os comunistas não vacilam em apoiar e participar de todas as lutas do povo. São elas que irão desempenhar um papel pedagógico para que o povo, através de suas próprias experiências, saiba quais são os passos que tem que dar no sentido da sua emancipação política e social. Do ponto de vista dos comunistas, o terceiro fator é ter um partido forte.
Vermelho: Com a política macroeconômica atual é possível mesmo o governo da presidente Dilma avançar para maiores mudanças?
JR: Em absoluto, não pode. A política econômica é conservadora e neoliberal. Tem que mudar. Mas, tal como o governo Lula, o da Dilma está em disputa entre os conservadores e os progressistas. Não devemos abandonar o barco. É um bom combate a travar.
Vermelho: Quais seriam os eixos para a construção de um partido comunista forte?
JR: Ter um partido comunista forte também significa enfrentar outros desafios. O primeiro é combater os experimentos que alguns alquimistas estão fazendo de reforma política que visam, entre outras coisas, colocar o partido comunista num gueto. A reforma política proposta por alguns setores da classe dominante e dos grandes partidos vai no sentido contrário do fortalecimento do partido comunista. Eles combatem o voto proporcional, defendem a imposição da cláusula de barreira, a proibição das coligações em eleições proporcionais e a manutenção do financiamento privado – que é a forma da grande burguesia mandar nos políticos. Também se fala no voto distrital, distrital misto e distritão. Tudo isso são experimentos de alquimistas a serviço de soluções anti-democráticas. Para fortalecer o partido comunista é preciso combater essa proposta de reforma política e propugnar uma reforma política democrática.
Vermelho: No quadro da reforma política, o que acha da anunciada fusão entre os dissidentes do DEM, sob a liderança do Kassab, com o PSB? Isto pode contribuir para o reforço das posições de esquerda no governo da Dilma?
JR: Falo em tese. Esse é um dos muitos paradoxos da vida política brasileira. A ida do Kassab para a base da Dilma poderá dar maior governabilidade numérica à presidente, nada mais. Qualitativamente acrescenta o quê? Não impulsiona o governo no sentido progressista, ao contrário. Não há dúvida de que toda cisão na direita deve ser explorada como reserva tática pela esquerda. Mas não vejo como esse movimento fortaleceria a esquerda. Não dou opinião sobre o que será do PSB se este partido se fundir com o bloco kassabista. Nem me refiro ao convite que o prefeito fez ao PCdoB em São Paulo para integrar sua administração. Insisto, falo em tese. Kassab e sua entourage constituem uma parte da direita brasileira. Em minha opinião, o fortalecimento da esquerda passa por outros caminhos. Estamos praticamente às vésperas de uma eleição municipal e seu governo sofre contestação de todos os lados no movimento social, além de ser mal avaliado pela população. Não vejo como a esquerda se unir em torno dele em 2012 nem em 2014. Outra coisa é a convivência política, que não é necessariamente sinônimo de aliança nem de composição orgânica.
Vermelho:Voltando ao PCdoB, como vê a sua transformação num partido forte?
JR:O partido precisa aumentar suas fileiras, adquirir maior densidade eleitoral, enraizar-se entre as massas trabalhadoras, a juventude, as mulheres, a intelectualidade progressista e atuar como força organizada. E acima de tudo, é preciso que o próprio partido reforce o seu caráter, sua identidade e sua ação como força política consciente, organicamente independente na luta pelo socialismo. O Partido Comunista do Brasil não vai crescer escamoteando seu caráter comunista. Nem rebaixando a perspectiva socialista ou ofuscando sua missão histórica. Ele só vai se fortalecer se tornar ainda mais nítida a sua identidade comunista e levantar cada vez mais alto a bandeira do socialismo. Além disso, deve colocar sua militância a serviço das lutas do povo e dos trabalhadores — que constituem o centro de gravidade da atuação do partido. Para nós, não há contradição entre estar na luta do povo e atuar em instituições parlamentares e governamentais. Se fizermos isso, iremos superar nossas metas de crescimento quantitativo, eleitoral e nos tornaremos um partido forte em todos os aspectos.