A ‘tropa de choque’ do agronegócio deve contar, a partir de agora, com um de
seus mais poderosos interlocutores em um dos veículos de maior visibilidade e
circulação do país, o jornal Folha de S. Paulo. Kátia Abreu, a senadora do DEM
que se destaca como uma das figuras mais famosas e entusiastas da bancada
ruralista no Congresso, passará a escrever quinzenalmente no diário.
O tema escolhido para a estréia de sua coluna no caderno Mercado, no último
sábado, 19 de março, não foi nada gratuito. Em uma conjuntura em que volta a se
insinuar fortemente no cenário mundial a crise alimentar, com falta de produtos
e conseqüente aumento de preços, a senadora fez veemente artigo em defesa da
reforma do Código Florestal.
Trata-se de texto habilíssimo na captura do momento adequado para desferir
sua bateria de argumentos em favor do agronegócio.
O pulo do gato
Em introdução ao seu texto, Kátia Abreu enumera superficialmente os fatores
que nos últimos meses vêm sendo apontados por vários estudiosos como
deflagradores dessa crise. Evita, desta forma, possíveis acusações de
desconhecimento do fenômeno a partir de suas causas multifatoriais. Depois
disso, passa ao que realmente pretende: o estabelecimento de um vínculo ‘direto’
e ‘indiscutível’ entre o atual Código Florestal e a crise de alimentos.
Para a senadora, a especulação nos mercados futuros de produtos agrícolas não
tem praticamente nada que ver com o aumento atual dos preços dos alimentos.
Convencida dos poderes do livre mercado na solução dos desajustes entre oferta e
demanda, as cotações dos produtos não se descolariam desse fundamento básico a
não ser por períodos curtos. Quanto aos fatores climáticos, seriam reais, mas
não determinantes, uma vez que, para Kátia Abreu, o mercado também se
encarregaria de estabelecer os vasos comunicantes entre "grãos e carnes
produzidos hoje em tantas latitudes diferentes".
O único motivo que, no espectro da senadora, explicaria a atual subida de
preços seria "a demanda nas regiões pobres do mundo, em especial na Ásia, onde
centenas de milhões de pessoas estão saindo da miséria e comendo mais, comendo
melhor". Neste cenário determinístico e unidirecional, em que o problema é o
excesso de demanda, a solução não poderia, obviamente, ser outra: o aumento da
oferta, com maior produção de grãos, carnes e frutas.
Aqui vem o pulo do gato. Conforme Kátia Abreu, os últimos governos
compreenderam a importância de não ceder a deletérias tentações
intervencionistas, como controle de preços e formação de estoques. Contudo,
ainda viveríamos sob o império de leis retrógradas, anteriores à revolução
agrícola dos anos 70. Este seria o caso do Código Florestal, um obstáculo, para
ela, à expansão da produção agrícola e, portanto, da oferta tão necessária em
meio a uma conjuntura de crise alimentar. Urgente, portanto, se faria sua
‘revisão’ e ‘atualização’, o que não implicaria em desmatamento - faz questão de
ressalvar a senadora -, mas apenas na regularização de áreas de produção abertas
com ‘grande sacrifício e elevados custos’.
Crise alimentar e a complexidade de causas
O discurso da senadora não chega a ser surpreendente em um país em que a
causa ruralista não raramente se impõe no cenário econômico e político. Em um
momento anterior de agravamento da crise alimentar, em 2008, o então governador
do Mato Grosso e hoje também senador, Blairo Maggi, chegou a sugerir o aumento
do desmatamento legal como uma saída para se lidar com as altas de preços. Nada
muito diferente do que aquilo que propõe agora a senadora, mesmo que de modo,
sem dúvida alguma, muito mais engenhoso.
Já naquele momento, o geógrafo e professor aposentado da USP Ariovaldo
Umbelino, em artigos variados na imprensa e em entrevista ao Correio da
Cidadania, ressaltava o desatino por trás dessa abordagem. Num país que tem 120
milhões de hectares de terras comprovadamente improdutivas, registradas no
próprio cadastro do Incra, e que não faz uma reforma agrária porque o governo
não quer, esta avaliação deveria ser encarada como uma loucura do modelo do
agronegócio. Enfatizava ainda Umbelino as causas multifatoriais que desde então
estavam em jogo: a começar pelos fatores conjunturais, como o aumento do preço
do petróleo, até aqueles estruturais, relacionados às novas modalidades em curso
de organização da produção capitalista.
Ainda que a melhoria das condições econômicas em países de grande população,
sobretudo China e Índia, tenha ampliado a importação de alimentos, repercutindo
sobre a elevação dos preços, essa não era, e não é, a principal razão para esta
elevação, como se quer fazer crer no Brasil, e como pretende a senadora.
No início da década de 90, houve uma mudança evidente na sistemática da
produção e comercialização de alimentos, com o aprofundamento do modelo
neoliberal e a imposição das novas regras da OMC (Organização Mundial de
Comércio), baseadas no livre comércio e na regulação pelo mercado. A partir de
então, abolida a regulamentação para o mercado de commodities, contratos de
compra e venda de alimentos puderam ser transformados em derivativos de várias
espécies, sem qualquer vínculo com as atividades agrícolas.
Daí à especulação com os alimentos foi somente um instante. Desde o ouro e o
petróleo, até alimentos básicos como soja, café e açúcar, tornaram-se todos
commodities globais negociáveis nos mercados futuros.
Fato é que a especulação com commodities de alimentos tem sido alimentada com
ferocidade crescente após a explosão da crise do ‘subprime’ (hipotecas ‘podres’)
nos EUA, a qual evoluiu para a crise financeira mundial de 2008. Aproveitando-se
da desregulamentação de preços nos mercados globais de commodities, os mesmos
investidores cujas transações financeiras resultaram na crise de 2008 correram
em busca de negócios mais seguros, entre os quais estava o de alimentos. Boa
parte dos fundos de investimentos foi dirigida, assim, à compra de commodities
(mercado de futuro), o que acelerou a redução de estoques de alimentos, com
impactos diretos nos preços.
Uma avaliação e seus múltiplos interlocutores
Em face desta discussão, é bom assumir uma postura de precaução contra
eventuais e previsíveis acusações de ‘parcialidade’. Não são somente os
estudiosos e especialistas de visão dita mais progressista, ligados a causas
agrárias e aos movimentos sociais, não raramente tidos como ‘jurássicos’, que
trazem estas noções à tona. Vejamos.
Segundo apontado por Francisco López Ollés, especialista em matérias-primas e
divisas, citado por Belén Carreño em Público.es no dia 7 de março, "não
há praticamente outro produto no qual investir neste momento cuja procura real
seja tão clara, isto é, que tenha tão bons fundamentos (...) No final, tudo isto
é resultado das operações dos bancos centrais para que haja mais liquidez nos
mercados (conhecido como quantitative easing). O dinheiro tem que procurar
rentabilidade em algum lado", conclui.
Para Paulo Picchetti, doutor em Economia pela Universidade de Illinois e
professor da EESP/FGV (Fundação Getulio Vargas), em artigo no caderno Mercado da
Folha de S. Paulo no dia 19 de fevereiro, "qualquer novo anúncio de previsão de
queda de produtividade é seguido por um movimento intenso de preços nos mercados
à vista e de futuros. Nesse último, principalmente, o comportamento especulativo
passa a ser apontado como fator adicional de pressão sobre os preços dos
alimentos".
Como um exemplo dessa apreciação de Picchetti, Belén Carreño narra um caso
muito revelador: "um só hedge fund tem agarrados pelo pescoço há meses todos os
produtores de chocolate do mundo. O fundo Armajaro, dirigido por um conhecido
executivo britânico, Anthony Ward (...), comprou no passado mês de julho 240.000
toneladas de cacau, o equivalente a 7% da produção mundial, numa só operação. A
compra, que se fez no mercado Euronext, onde não há limites sobre este tipo de
matéria, disparou o preço do cacau até aos seus máximos desde 1977. As milhares
de toneladas de cacau continuam acumuladas (...) nos armazéns de Hamburgo,
Antuérpia e Amsterdã. Ward apostou no cacau, já que um dos seus principais
produtores, a Costa do Marfim, está praticamente em guerra civil, com o que
escasseará o produto em breve".
De acordo ainda com artigo de John Vidal para o The Observer, traduzido para
o site Carta Maior por Wilson Sobrinho em 2 de março, "Olivier de Schutter,
Relator da ONU para o Direito à Alimentação, não tem dúvidas de que
especuladores estão por trás do aumento de preços. Ele diz que ‘os preços do
trigo, do milho e do arroz têm aumentado de modo significante, mas isso não está
ligado a estoques ou colheitas ruins, mas sim a negociantes reagindo a
informações e especulações do mercado’".
Lembremos, ademais, que em 2008, quando chamado a depor no Senado
norte-americano para dar explicações sobre suas atividades especulativas, foi o
próprio George Soros quem admitiu os efeitos altamente desestabilizadores da
especulação para o preço das matérias-primas! Efeitos desestabilizadores esses
que podem, inclusive, ser sentidos bem perto de nós.
No plano do mercado interno brasileiro, os alimentos básicos da população
brasileira, como arroz, feijão e mandioca, não têm aumento significativo da
produção desde 1992, conforme já ressalvou por diversas vezes o geógrafo
Ariovaldo Umbelino. O feijão chegou até mesmo a faltar no mercado nacional. Por
um lado, trata-se de distorção resultante de uma política agrícola que não
permite que os produtores, especialmente os pequenos, reponham até mesmo os seus
custos de produção. De outro lado, está a própria especulação, com seus impactos
sobre os deslocamentos de terras dos cultivos menos lucrativos em direção
àqueles que são a menina dos olhos do mercado internacional. Como, por exemplo,
a cana-de-açúcar, a base de nosso tão prestigiado etanol, e que tem novamente
tornado as regiões sul e sudeste em um extenso canavial.
Ressalte-se o controle oligopólico que algumas poucas empresas possuem
atualmente sobre o comércio agrícola mundial. Com seu poder quase absoluto na
imposição de preços, independentemente dos reais custos de produção, estas
empresas potencializam os efeitos deletérios da ciranda especulativa sobre a
oferta e os preços dos alimentos.
Finalmente, em face dessas circunstâncias reais e pouco animadoras, fiquemos
atentos ao alerta de Umbelino. Segundo o geógrafo, "somos o único país do mundo
em que se prega essa tese maluca do neoliberalismo, de que comida tem de ser
oferecida no mercado a quem puder pagar mais. Isso tira do país a possibilidade
de obter uma mínima segurança alimentar, nem digo soberania. O mercado de
alimento não pode sobreviver ao mercado livre. Seguir essa trilha é colocar em
risco a possibilidade de sobrevivência da humanidade. O mercado não é capaz de
regular nada, exceto as vantagens dos capitalistas. E o problema da fome está
aí, para demonstrar essa incapacidade".
Coragem ou costas quentes?
Em meio a tamanhas catástrofes naturais, no Brasil e no mundo - a mais
recente delas a tragédia ambiental e humana que abate o Japão -, deve-se admitir
que a senadora Kátia Abreu teve muita coragem para tecer uma argumentação com o
naipe acima narrado. Afinal, não é preciso ser especialista para intuir que a
diminuição das áreas de reservas naturais e de proteção permanente em nossas
matas, objetivo da revisão do Código Florestal, terá, inelutavelmente,
repercussões negativas sobre o clima e o meio ambiente. Mas quando se pensa na
rede de colaborações e cumplicidade na qual está enredada a senadora, parece não
estar envolvida assim tanta coragem.
O movimento de alinhamento da mídia grande com interesses conservadores
ligados a poderosos lobbies e grupos econômicos, na grande maioria das vezes
reforçando a impossibilidade de a população discernir e defender seus interesses
básicos, não é mais novidade. Até mesmo nos órgãos que se auto-intitulam como
progressistas, que teoricamente prezam a comunicação democrática e a
apresentação das diversas opiniões em jogo no tratamento de um tema, tem sido a
cada dia mais escancarado o posicionamento em favor do lado que de fato lhes
interessa. O ‘caminho único’ impõe-se com evidência crescente.
A Folha é aqui um exemplo significativo. Sempre sorrateira em suas
articulações, de modo a poder preservar o caro discurso sobre seu progressismo,
tem tido bem menos peias ultimamente na demonstração de seu verdadeiro caráter.
A recente transformação de seu caderno Dinheiro em Mercado, com a dispensa de
colunistas capazes de tecer considerações mais amplas e profundas sobre a
economia nacional e internacional, e sua substituição por nomes, quando não
mercadistas, ligados a grupos de interesses muito específicos, escancaram de
modo contundente o seu verdadeiro viés. A demissão, há alguns meses, do renomado
economista Paulo Nogueira Batista Júnior, e a estréia de nomes como Antonio
Palloci, hoje menina dos olhos do sistema financeiro, e agora de Kátia Abreu,
dispensam maiores comentários.
Mais alarmante, no entanto, do que o apoio que figuras como a da senadora
encontram na mídia é a constatação inequívoca do suporte que vem do próprio
governo a estas posturas. Para aqueles que acompanham de perto a conjuntura
agrária e agrícola do país e os movimentos sociais a ela associada, não é
estranho o fato de que os números advindos do governo Lula indicam privilégio
aos grandes produtores e obras polêmicas. Os pequenos produtores, a promessa de
uma efetiva reforma agrária e a postura de respeito verdadeiro ao meio ambiente
foram lançados às calendas. E nada indica, por sua vez, que o novo governo vá
traçar rumos diferenciados.
Rumos inusitados estão fora de perspectiva não somente pelo fato de ser o
novo governo apoiado pelo anterior, cuja presidente eleita foi praticamente
arremetida ao Planalto pelas mãos de Lula. No clima de lua de mel com o público
típico dos inícios de mandatos, e enquanto ainda se pode surfar na estupenda
popularidade deixada por Lula, algumas sugestivas medidas foram anunciadas. Elas
devem dar o tom da preocupação com o que vem pela frente.
Para além das políticas gerais já em andamento, como o maior arrocho na
economia, a partir de restrições orçamentárias e elevações das taxas de juros,
há outras providências mais específicas e de menor visibilidade. Em sintonia com
o estilo tecnocrático da nova presidente, está em estudo, por exemplo, um
‘choque de gestão’ na área de licenciamento ambiental. Buscam-se regras mais
simples, além de prazos menores e redução de custos para os investidores, com o
objetivo imediato de acelerar a aprovação às grandes obras do PAC (o Plano de
Aceleração do Crescimento), a maioria delas envolta em consideráveis polêmicas
sociais e ambientais.
É neste tipo de ‘providências’ aparentemente mais prosaicas que se deve ficar
de olho... A partir delas, o governo - que ainda se pretende e se auto-intitula
‘popular’ - poderá encontrar os artifícios para aprofundar a inexorável rota
conservadora imposta pelo modelo econômico escolhido.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
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