Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação do Correio da Cidadania | |
O planeta voltou a se deparar com o fantasma nuclear após o terremoto
seguido de tsunami que varreu principalmente o nordeste japonês,
causando posteriormente a explosão e vazamento dos reatores da usina de
Fukushima. O governo japonês tenta tranqüilizar o público, sempre
reiterando que os níveis de radiação no ar se encontram aceitáveis, mas
não há quem se satisfaça com tais explicações e durma em paz.
Para falar desse tema cada vez mais polêmico em todas as discussões energéticas, o Correio da Cidadania entrevistou o mestre em Engenharia Nuclear e doutor em Energia Joaquim Francisco de Carvalho.
Para o também ex-diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear),
Fukushima apenas revela que a indústria nuclear continua "uma caixa
preta no mundo inteiro", o que se evidencia flagrantemente neste caso,
pois, mesmo com o devido acompanhamento da AIEA (Agência Internacional
de Energia Atômica), não se evitaram as falhas e negligências da empresa
responsável.
No que se refere ao Brasil, Joaquim Francisco considera um
despautério o investimento em novas usinas nucleares, uma vez que nossa
matriz hidro-eólica folga em servir às necessidades de consumo interno.
No entanto, o lobby nuclear, com espaço limitado nos países centrais,
encontra guarida exatamente em países onde as instituições e políticos
são mais vulneráveis. E num ministério aparelhado por Sarney não podemos
esperar investimentos sensatos e voltados ao interesse público.
A íntegra da entrevista pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como o senhor analisa o desastre nuclear de
Fukushima, à luz dos fatos até agora revelados e admitidos pelo governo
japonês?
Joaquim Francisco de Carvalho:
O desastre de Fukushima confirma o que muita gente já sabe: a indústria nuclear é uma "caixa preta" no mundo inteiro.
Correio da Cidadania: O senhor comunga da convicção de boa parte da
opinião pública de que o governo japonês sonega ou segura informações
sobre a real situação da radiação e seus efeitos? É possível crer que a
radiação do ar e do mar esteja em níveis aceitáveis e não nocivos à
saúde humana, como alega o governo nipônico?
Joaquim Francisco de Carvalho:
A Tokio Electric and Power Company (TEPCO), empresa proprietária da
usina, é a responsável pela operação e pela segurança daquela
instalação. O governo japonês é o responsável pela supervisão e controle
da aplicação das normas de segurança das instalações nucleares. Assim,
direta ou indiretamente, empresa e governo são responsáveis e todos
omitem informações, de um lado para salvar o que resta da reputação da
empresa, de outro lado para evitar que o pânico tome conta da população.
Correio da Cidadania: É possível projetar se a radiação emitida após o
acidente pode ter alcance em outros continentes, de forma a afetar os
respectivos ambientes e habitantes?
Joaquim Francisco de Carvalho:
O vazamento de produtos de fissão pelas fendas abertas nas contenções de
pelo menos um dos reatores de Fukushima vai diluindo na atmosfera, de
modo que as retombadas em outros continentes não devem ultrapassar os
limites toleráveis. O problema é mais sério no tocante aos mares
próximos, nos quais os peixes, que constituem a principal fonte protéica
do povo japonês, poderão ficar impróprios para o consumo. Mas eu ainda
não tive acesso a dados quantitativos sobre isso.
Correio da Cidadania: Diante de incidente tão trágico, pode-se também
questionar o papel da AIEA, a Agência Internacional de Energia Atômica,
na regulação e acompanhamento das atividades nucleares?
Joaquim Francisco de Carvalho:
A AIEA cumpre bem a sua função de regulamentar e acompanhar as
ativadades nucleares no mundo. No caso de Fukushima, os jornais informam
que a TEPCO falsificou documentos de vistorias técnicas, realizadas na
usina. Ignoro se era da alçada do órgão fiscalizador do governo japonês
ou da AIEA verificar se os documentos eram falsos.
Correio da Cidadania: Voltando o foco ao Brasil, como localiza a
energia nuclear em nossa matriz energética? Pode ser, de algum modo,
relevante, especialmente pelo fato de ser considerada uma energia limpa?
Joaquim Francisco de Carvalho:
O Brasil pode cobrir seu consumo de energia elétrica apenas com fontes
renováveis de energia primária, sem apelar para usinas nucleares. Isto
não significa que se devam negligenciar as aplicações de radioisótopos
na medicina, na agricultura, na indústria e na pesquisa científica.
Estas aplicações têm importância crescente e deveriam ser tratadas
prioritariamente nos orçamentos federais e estaduais, para ciência e
tecnologia.
Correio da Cidadania: Quanto à estruturação e funcionamento do setor
ligado à energia nuclear no Brasil, o que pensa da Eletronuclear, criada
em 1997 com a finalidade de operar e construir as usinas
termonucleares? Qual é o percentual de energia consumida no país pelo
qual ela se responsabiliza atualmente?
Joaquim Francisco de Carvalho:
A Eletronuclear, que na origem se chamava Nuclen (Nuclebrás Engenharia
S.A.), era uma binacional, com 49% de capital alemão e 51% de capital
brasileiro. Havia um diretor superintendente (que era um político), um
diretor técnico (um engenheiro da KWU-Siemens), um diretor industrial
(um engenheiro brasileiro) e um diretor comercial (um
economista-contador alemão). No começo, era uma empresa razoavelmente
enxuta e eficiente. Agora é 100% estatal e, com a moda da politização e
aparelhamento do governo, eu não sei como vai aquela empresa.
Correio da Cidadania: E quanto à CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear, uma
autarquia federal vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia),
trata-se hoje do órgão mais relevante na regulação do setor? Tem uma
composição e estruturação adequadas ao cumprimento deste papel?
Joaquim Francisco de Carvalho:
O próprio ministro Mercadante respondeu a esta pergunta. Segundo o
noticiário, há duas semanas ele demitiu toda a diretoria da CNEN. Foi o
único que procedeu corretamente nessa história. Agora vamos ver se os
diretores saem mesmo, ou se vão conseguir "apoio político" para
continuarem "pendurados" nos empregos.
Correio da Cidadania: Neste sentido, o que dizer do fato de a usina
de Angra 2 estar há mais de uma década em atividade sem a devida licença
ambiental, além de envolvida até hoje em contestações do Ministério
Público sobre a legalidade de sua atuação?
Joaquim Francisco de Carvalho:
Tem-se por aí uma boa idéia da irresponsabilidade dos supostos
responsáveis pelo setor, pela conivência e omissão da CNEN, que deveria
fiscalizar e controlar as instalações nucleares. E pela atitude ilegal
da Eletronuclear, que opera uma usina sem a devida licença do órgão
competente.
Correio da Cidadania: Como imagina que nosso governo vá proceder de
agora em diante com relação às políticas de energia nuclear? Acredita
que haverá apoio para a expansão do setor, como declaram alguns
integrantes do próprio governo?
Joaquim Francisco de Carvalho:
A julgar pelas declarações das autoridades que deveriam ser responsáveis pelo setor, não vai mudar nada.
Correio da Cidadania: Por que tamanho ‘interesse’ do Brasil em
investir em energia nuclear, a despeito de todos os riscos e
dificuldades de manutenção, da existência de um enorme potencial
hidro-eólico, além da incógnita sobre os rejeitos nucleares no futuro?
Joaquim Francisco de Carvalho:
Na falta de alternativas para gerar energia elétrica, alguns países
europeus, além do Japão e dos Estados Unidos, optaram pelas usinas
eletro-nucleares, que custam muito caro, portanto geram eletricidade a
custos que não podem ser suportados pelas indústrias desses países, que
dependem desse insumo.
Uma das formas encontradas para amenizar esse problema foi a de ratear
os custos dos investimentos nucleares em mercados expandidos sobre
países que, embora dotados de fontes naturais abundantes, como a energia
hidrelétrica, eólica e solar, são governados por políticos
despreparados, que se deixam convencer pelo poderoso (e corruptor) lobby da indústria nuclear, que vende facilmente a ilusão de que "esse é o cara e esta é a solução".
Veja só a leviandade com que o ministro de Minas e Energia dizia em sua
primeira gestão que o Brasil iria implantar 58 mil megawatts nucleares
até 2030 e agora afirma que o Brasil vai construir quatro usinas
nucleares no Nordeste...
Correio da Cidadania: Como o senhor enxerga a atual composição do
Ministério das Minas e Energia? Imagina que o governo Dilma vá se
distinguir, de alguma forma, do de Lula?
Joaquim Francisco de Carvalho:
No tocante e este ministério, o atual governo é um prolongamento do
anterior. Muitos cargos – a começar do ministro, um modestíssimo
"jornalista-sarneysista" do Maranhão – foram preenchidos mediante
indicações políticas, sem nenhum compromisso com a qualificação do
nomeado. Basta dizer que o grande "padrinho" desse ministério é o
lamentável senhor Sarney, personagem dos mais deletérios da cena
política brasileira.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
segunda-feira, 11 de abril de 2011
Investimento nuclear no Brasil é determinado por ‘poderoso (e corruptor) lobby’
domingo, 10 de abril de 2011
Revolta árabe: o sucesso das revoluções que fracassam
Ainda esse ano, haverá eleições na Tunísia e no Egito. Essa é mudança tremenda no mundo árabe. Eleições não resolvem todos os problemas, mas marcam novos parâmetros. Outros terão de ser conquistados. Novas formas de participação, novos espaços para participação, novos sonhos democráticos que acabarão por enterrar, de vez, os restos rançosos do neoliberalismo. Nem todas as transferências de lucros do petróleo do mundo substituem a vida social e politicamente digna. O artigo é de Jiajay Prashad.
Vijay Prashad - Counterpunch - Carta Maior
1. Partilhas
A OTAN errou o
tiro e atirou contra “rebeldes” em Benghazi. Os comandantes da OTAN
dizem que a culpa é das fronteiras que não existem. Difícil saber quem é
quem, dizem, líbios “rebeldes” ou líbios regulares. A Líbia, afinal
está dividida entre leste e oeste.
Gaddafi continua no comando no oeste. Seu filho Saif-al-Islam disse à BBC que a família não se interessa por partir para a Arábia Saudita, Zimbabwe ou Venezuela. Saif e o irmão, Saadi, apresentaram proposta segundo a qual o pai consideraria deixar a posição em que diz que nunca esteve, desde que os filhos mantenham posição de autoridade (Gaddafi père realizou impressionante pluricentralização familiar do poder, chamando-a de descentralização). O ex-deputado dos EUA Curt Weldon, ao que parece, disse a Gaddafi que poderia continuar como chefe honorário da União Africana e que seus filhos poderiam concorrer à presidência em futuras eleições na Líbia. Os “rebeldes” de Benghazi enfureceram-se: não é o que esperavam. (...)
O lento avanço da “rebelião” é causa de tensões entre os líderes “rebeldes”. Os três principais líderes “rebeldes” odeiam-se: Khalifa Hefter, que deixou o estado de Virginia, EUA, direto para Benghazi, é inimigo figadal do ex-ministro do Interior general Abdul Fattah Younis e também de Omar el-Hariri. Dois dos líderes políticos dos “rebeldes” Mahmoud Jibril (que foi assessor muito próximo de Saif-al-Islam, no processo de privatização da Líbia) e Ali Essawi (ex-embaixador na Índia) permanecem na Europa, trabalhando para obter apoio internacional para o “Conselho Provisório”. Mas o descontentamento alastra-se, e o gambito de abertura da negociação de Trípoli não agradou a ninguém. Jibril e Hefter acalentam sonhos grandiosos, embora não tão grandiosos quanto os da comunidade dos direitos humanos. (...)
As terras do petróleo delimitam a fronteira entre as duas partes do país, junto às mutantes dunas do deserto, entre Ras Lanuf e Brega. Haja acordo, haja partilha ou haja divisão da Líbia, é indispensável que se decida quem se responsabilizará pela segurança dos oleodutos e gasodutos e pela partilha dos lucros entre leste e oeste. São assuntos espinhosíssimos, dos quais ninguém fala.
2. Democracia
Há muitos anos, um amigo meu conversava com E. P. Thompson, o historiador marxista. Meu amigo, Dilip Simeon (autor de excelente romance, Revolution Highway), lastimava os limites da “democracia burguesa”. Dilip conta que Edward Thompson pediu-lhe que parasse de repetir o adjetivo “burguesa” ao lado de “democracia. “Esse adjetivo, ao lado de “democracia”, dá-me náuseas” – teria dito Edward Thompson. Esse adjetivo humilha a democracia.
O impacto dos desenvolvimentos das revoluções são quase imprevisíveis.
A contrarrevolução esmagou as revoltas de 1848, mas não lhe quebrou nem o espírito nem a dinâmica. A cultura do feudalismo morreu depois de o feudalismo estar morto, derrotada por novas identidades sociais. “Nossa era, a era da democracia, está raiando”, escreveu Frederick Engels em fevereiro de 1848. Um operário, pistola em punho, invadiu a Câmara Francesa de Deputados e declarou “Deputados, nunca mais! Somos os senhores.” A contrarrevolução foi feroz. “A burguesia, plenamente consciente do que faz, conduz guerra de extermínio contra eles”, comentou Marx. Mesmo assim, 1848 abriu um novo horizonte social, contra a servidão e a subserviência, marcou o meio do caminho entre a promessa de uma revolução anterior (1789) e a possibilidade de outra, depois (a Comuna de Paris de 1871). A Europa nunca mais voltou à era do chicote e das perucas empoadas. Aquele tempo havia passado.
Inúmeras outras revoluções tiveram impacto semelhante, quebrando a espinha dorsal de formas velhas de claustrofobia social, mas sem inaugurar imediatamente novas formas de liberdade social. O 1905 e o 1917 russos fortaleceram o ânimo dos movimentos anticoloniais. Gandhi, ainda advogado na África do Sul, escreveu, sobre a revolução russa de 1905: “os tumultos atuais na Rússia são grande lição para nós. Os trabalhadores russos e os servos declararam greve geral e pararam. Nem todo o poder do czar da Rússia conseguirá fazer os trabalhadores voltarem ao trabalho à ponta de baioneta. Nem o canhão reina, sem a cooperação dos humilhados.” Se os trabalhadores russos e os camponeses podiam fazer greve contra os autocratas, os indianos, os indonésios, os sul-africanos, os persas também podiam. A ideia de não-cooperação de Gandhi chegou-lhe via São Petersburgo.
O projeto dos movimentos de libertação nacional do Terceiro Mundo emergiu, cabeça erguida, nos anos 1920s; e saiu derrotado do palco da história nos anos 1980s. Mesmo assim, também aqui, parte do legado pesado do colonialismo fora despachado para sempre, porque os países, dali em diante, aprenderam que teriam de encontrar soluções suas para problemas seus, que só eles podem encontrar (nessa linha, Fanon escreveu em 1961, “O Terceiro Mundo hoje encara a Europa, como massa colossal cujo projeto tem de ser o de resolver os problemas para os quais a Europa não foi capaz de encontrar solução”). A desigualdade no Sul Global desmente qualquer sucesso que esse projeto suponha ter alcançado, mas, mesmo assim, o formidável exemplo da era do Terceiro Mundo ainda dá amparo e apoio a tantas lutas que germinaram no Sul.
Mais perto do nosso tempo, os levantes em todo o globo, em 1968, de Tóquio à Cidade do México, de Paris a Karachi, pareciam não ter tido grande impacto. Os sonhos revolucionários de trabalhadores e estudantes lá ficaram, degradados, quando tantos meiaoitistas trocaram os slogans da revolução pelas griffes da hora, boemia ou cursos de desenvolvimento pessoal e ganância. Mesmo assim, o impacto social de 1968 é imenso, se por mais não for, pelos horizontes que abriu nas lutas pela igualdade de direitos entre gêneros e raças. Muitos dos meiaoitistas migraram, sim, para o mundo das corporações e academias, e esse afinal, sempre foi o limite daquela revolução. Mas nem por isso apagaram-se das lutas sociais os novos compromissos com a igualdade.
Ainda esse ano, haverá eleições na Tunísia e no Egito. Essa é mudança tremenda no mundo árabe. Uma das muitas lições que ficaram para o mundo depois do experimento dos sovietes e das lutas de libertação nacional é que nos dois casos subestimou-se o anseio dos povos por vida democrática. Não há dúvidas de que Gaddafi transferiu para a população da Líbia parte importante dos ganhos do petróleo; a Líbia vive com altos padrões de desenvolvimento humano avaliado por indicadores de desenvolvimento (o que, sim, diminuiu nos últimos dez anos). Mas nem todas as transferências de lucros do petróleo do mundo substituem a vida social e politicamente digna. Verdade essa que os emires do Golfo um dia também aprenderão, ensinada pelo povo. Eleições não resolvem todos os problemas, mas marcam novos parâmetros. Outros terão de ser conquistados. Novas formas de participação, novos espaços para participação, novos sonhos democráticos que acabarão por enterrar, de vez, os restos rançosos do neoliberalismo.
Não se sabe o que acontecerá na Líbia. O comandante do AFRICOM general Carter Ham já anda dizendo que, por menos que a ideia atraia os EUA, a ocupação por terra talvez seja a única via para ajudar dos “rebeldes”. Guerra prolongada, desse tipo, favorecerá a contrarrevolução, porque enfraquecerá a posição dos que buscam via política, para fazer florescer os novos horizontes criados pelos levantes populares. Como sempre, ante qualquer impasse, os que só sabem de guerras, querem mais guerras. Outros procuram um cessar-fogo, negociações e meios para fazer render o que já foi obtido, que é considerável.
As terras árabes nunca mais serão como antes.
Tradução: Coletivo Vila Vudu
Fonte: http://www.counterpunch.org/prashad04082011.html
Gaddafi continua no comando no oeste. Seu filho Saif-al-Islam disse à BBC que a família não se interessa por partir para a Arábia Saudita, Zimbabwe ou Venezuela. Saif e o irmão, Saadi, apresentaram proposta segundo a qual o pai consideraria deixar a posição em que diz que nunca esteve, desde que os filhos mantenham posição de autoridade (Gaddafi père realizou impressionante pluricentralização familiar do poder, chamando-a de descentralização). O ex-deputado dos EUA Curt Weldon, ao que parece, disse a Gaddafi que poderia continuar como chefe honorário da União Africana e que seus filhos poderiam concorrer à presidência em futuras eleições na Líbia. Os “rebeldes” de Benghazi enfureceram-se: não é o que esperavam. (...)
O lento avanço da “rebelião” é causa de tensões entre os líderes “rebeldes”. Os três principais líderes “rebeldes” odeiam-se: Khalifa Hefter, que deixou o estado de Virginia, EUA, direto para Benghazi, é inimigo figadal do ex-ministro do Interior general Abdul Fattah Younis e também de Omar el-Hariri. Dois dos líderes políticos dos “rebeldes” Mahmoud Jibril (que foi assessor muito próximo de Saif-al-Islam, no processo de privatização da Líbia) e Ali Essawi (ex-embaixador na Índia) permanecem na Europa, trabalhando para obter apoio internacional para o “Conselho Provisório”. Mas o descontentamento alastra-se, e o gambito de abertura da negociação de Trípoli não agradou a ninguém. Jibril e Hefter acalentam sonhos grandiosos, embora não tão grandiosos quanto os da comunidade dos direitos humanos. (...)
As terras do petróleo delimitam a fronteira entre as duas partes do país, junto às mutantes dunas do deserto, entre Ras Lanuf e Brega. Haja acordo, haja partilha ou haja divisão da Líbia, é indispensável que se decida quem se responsabilizará pela segurança dos oleodutos e gasodutos e pela partilha dos lucros entre leste e oeste. São assuntos espinhosíssimos, dos quais ninguém fala.
2. Democracia
Há muitos anos, um amigo meu conversava com E. P. Thompson, o historiador marxista. Meu amigo, Dilip Simeon (autor de excelente romance, Revolution Highway), lastimava os limites da “democracia burguesa”. Dilip conta que Edward Thompson pediu-lhe que parasse de repetir o adjetivo “burguesa” ao lado de “democracia. “Esse adjetivo, ao lado de “democracia”, dá-me náuseas” – teria dito Edward Thompson. Esse adjetivo humilha a democracia.
O impacto dos desenvolvimentos das revoluções são quase imprevisíveis.
A contrarrevolução esmagou as revoltas de 1848, mas não lhe quebrou nem o espírito nem a dinâmica. A cultura do feudalismo morreu depois de o feudalismo estar morto, derrotada por novas identidades sociais. “Nossa era, a era da democracia, está raiando”, escreveu Frederick Engels em fevereiro de 1848. Um operário, pistola em punho, invadiu a Câmara Francesa de Deputados e declarou “Deputados, nunca mais! Somos os senhores.” A contrarrevolução foi feroz. “A burguesia, plenamente consciente do que faz, conduz guerra de extermínio contra eles”, comentou Marx. Mesmo assim, 1848 abriu um novo horizonte social, contra a servidão e a subserviência, marcou o meio do caminho entre a promessa de uma revolução anterior (1789) e a possibilidade de outra, depois (a Comuna de Paris de 1871). A Europa nunca mais voltou à era do chicote e das perucas empoadas. Aquele tempo havia passado.
Inúmeras outras revoluções tiveram impacto semelhante, quebrando a espinha dorsal de formas velhas de claustrofobia social, mas sem inaugurar imediatamente novas formas de liberdade social. O 1905 e o 1917 russos fortaleceram o ânimo dos movimentos anticoloniais. Gandhi, ainda advogado na África do Sul, escreveu, sobre a revolução russa de 1905: “os tumultos atuais na Rússia são grande lição para nós. Os trabalhadores russos e os servos declararam greve geral e pararam. Nem todo o poder do czar da Rússia conseguirá fazer os trabalhadores voltarem ao trabalho à ponta de baioneta. Nem o canhão reina, sem a cooperação dos humilhados.” Se os trabalhadores russos e os camponeses podiam fazer greve contra os autocratas, os indianos, os indonésios, os sul-africanos, os persas também podiam. A ideia de não-cooperação de Gandhi chegou-lhe via São Petersburgo.
O projeto dos movimentos de libertação nacional do Terceiro Mundo emergiu, cabeça erguida, nos anos 1920s; e saiu derrotado do palco da história nos anos 1980s. Mesmo assim, também aqui, parte do legado pesado do colonialismo fora despachado para sempre, porque os países, dali em diante, aprenderam que teriam de encontrar soluções suas para problemas seus, que só eles podem encontrar (nessa linha, Fanon escreveu em 1961, “O Terceiro Mundo hoje encara a Europa, como massa colossal cujo projeto tem de ser o de resolver os problemas para os quais a Europa não foi capaz de encontrar solução”). A desigualdade no Sul Global desmente qualquer sucesso que esse projeto suponha ter alcançado, mas, mesmo assim, o formidável exemplo da era do Terceiro Mundo ainda dá amparo e apoio a tantas lutas que germinaram no Sul.
Mais perto do nosso tempo, os levantes em todo o globo, em 1968, de Tóquio à Cidade do México, de Paris a Karachi, pareciam não ter tido grande impacto. Os sonhos revolucionários de trabalhadores e estudantes lá ficaram, degradados, quando tantos meiaoitistas trocaram os slogans da revolução pelas griffes da hora, boemia ou cursos de desenvolvimento pessoal e ganância. Mesmo assim, o impacto social de 1968 é imenso, se por mais não for, pelos horizontes que abriu nas lutas pela igualdade de direitos entre gêneros e raças. Muitos dos meiaoitistas migraram, sim, para o mundo das corporações e academias, e esse afinal, sempre foi o limite daquela revolução. Mas nem por isso apagaram-se das lutas sociais os novos compromissos com a igualdade.
Ainda esse ano, haverá eleições na Tunísia e no Egito. Essa é mudança tremenda no mundo árabe. Uma das muitas lições que ficaram para o mundo depois do experimento dos sovietes e das lutas de libertação nacional é que nos dois casos subestimou-se o anseio dos povos por vida democrática. Não há dúvidas de que Gaddafi transferiu para a população da Líbia parte importante dos ganhos do petróleo; a Líbia vive com altos padrões de desenvolvimento humano avaliado por indicadores de desenvolvimento (o que, sim, diminuiu nos últimos dez anos). Mas nem todas as transferências de lucros do petróleo do mundo substituem a vida social e politicamente digna. Verdade essa que os emires do Golfo um dia também aprenderão, ensinada pelo povo. Eleições não resolvem todos os problemas, mas marcam novos parâmetros. Outros terão de ser conquistados. Novas formas de participação, novos espaços para participação, novos sonhos democráticos que acabarão por enterrar, de vez, os restos rançosos do neoliberalismo.
Não se sabe o que acontecerá na Líbia. O comandante do AFRICOM general Carter Ham já anda dizendo que, por menos que a ideia atraia os EUA, a ocupação por terra talvez seja a única via para ajudar dos “rebeldes”. Guerra prolongada, desse tipo, favorecerá a contrarrevolução, porque enfraquecerá a posição dos que buscam via política, para fazer florescer os novos horizontes criados pelos levantes populares. Como sempre, ante qualquer impasse, os que só sabem de guerras, querem mais guerras. Outros procuram um cessar-fogo, negociações e meios para fazer render o que já foi obtido, que é considerável.
As terras árabes nunca mais serão como antes.
Tradução: Coletivo Vila Vudu
Fonte: http://www.counterpunch.org/prashad04082011.html
Ollanta Humala era tido como o mais fraco no início
Janaína Figueiredo – O GLOBO, via blog do Saraiva
BUENOS
AIRES – As últimas pesquisas confirmaram a vantagem de Humala, com
30% das intenções de voto, e colocaram, pela primeira vez, a filha do
ex-presidente Fujimori (1990-2000) em segundo lugar, com 22%. No
entanto, a distância entre Keiko, PPK (17%) e Toledo (15%) ainda é
estreita (Castañeda ficou fora da parada), considerando-se a margem de
erro e os indecisos. Com isso, qualquer um dos três candidatos poderia
comemorar a passagem ao segundo turno. No Peru, dizem analistas
locais, tudo é possível. Em meados de 2010, o Prêmio Nobel de
Literatura Mario Vargas Llosa disse que uma eleição entre Keiko e
Humala seria como optar entre “câncer e Aids”. Na época, Toledo era o
favorito e ninguém acreditava que o cenário ironizado pelo escritor
poderia virar realidade.
” O Peru é uma caixa de surpresas, mas é verdade que Toledo cometeu muitos erros que favoreceram Humala e Keiko (Carlos Novoa) “
Confiante
nas primeiras pesquisas, o ex-presidente adotou pose de vencedor
antes do tempo e mergulhou em disputas de baixo nível com PPK e o
presidente García, deixando espaço para Humala e Keiko crescerem sem
obstáculos. A estratégia foi um desastre, e hoje Toledo está pagando
as consequências.
- O Peru é uma caixa de surpresas, mas é
verdade que Toledo cometeu muitos erros que favoreceram Humala e Keiko
– assegurou o jornalista Carlos Novoa, do “El Comercio”.
A
lista de tropeções do ex-presidente inclui ataques e contra-ataques em
discussões públicas com García e PPK. Durante a campanha, a imprensa
local informou, por exemplo, que no governo Toledo o Executivo comprou
1.753 garrafas de uísque. O ex-presidente ficou furioso e acusou o
presidente de estar por trás “de uma palhaçada”. Toledo chegou a dizer
que “Alan García é uma ameaça para a democracia”. Quinta passada,
Toledo, que nos últimos dias usou sua artilharia contra Humala,
convocou García para “defender a democracia” diante da possibilidade
de um segundo turno entre o nacionalista e Keiko.
Carlos Bruce,
chefe de campanha do ex-presidente, reconheceu que a estratégia de
confronto adotada por Toledo foi equivocada. Mas o mea-culpa chegou
tarde.
- No Peru, muitos eleitores acabam ficando do lado das vítimas – argumentou Novoa.
Para
o analista político Augusto Álvarez, “os candidatos mais moderados
acabaram se dando bem”. De fato, Humala e Keiko evitaram entrar nas
briguinhas entre Toledo, PPK e García. Ambos os candidatos
privilegiaram o contato com a população e decidiram baixar as armas. Na
última semana, Toledo cansou-se de denunciar o “perfil autoritário” de
Humala, questionar sua proposta para os meios de comunicação e seu
suposto vínculo com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. A resposta
do candidato nacionalista, com assessoria de estrategistas brasileiros
que exportaram para o Peru o vitorioso “Lulinha paz e amor”, foi
serena:
” Os peruanos expressam essa insatisfação votando num candidato antissistema (Toledo) “
- A esperança vai derrotar o medo.
Em
fevereiro, Humala era considerado o adversário menos perigoso, já que
tinha, com muito esforço, 10% das intenções de voto. Seus rivais não
se interessavam por seu plano de governo e o nome de Chávez mal era
mencionado. Após semanas de bate-bocas sem sentido, o silencioso
dirigente nacionalista subiu nas pesquisas e mudou radicalmente o
cenário eleitoral.
Na reta final, Humala virou o principal alvo
de ataques e Chávez entrou na jogada. Toledo começou a denunciar uma
“ameaça à democracia”, apesar de reconhecer que o militar reformado
conseguiu captar o voto dos peruanos que se sentem excluídos de um
modelo econômico com taxas de crescimento entre 7% e 8%.
- Os peruanos expressam essa insatisfação votando num candidato antissistema – declarou o ex-presidente.
Hoje,
o candidato considerado por Toledo, PPK e o governo García um perigo
para uma democracia recuperada há apenas 12 anos é o único que tem a
tranquilidade de contar com os votos necessários para ir ao segundo
turno. Seus adversários sofrerão até o último minuto.
Vida e morte do bêbado equilibrista
Escrito por Otto Filgueiras no Correio da Cidadania | |
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos...
A lua, tal qual a dona do bordel, pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens! Lá no mata-borrão do céu chupavam manchas torturadas
Que sufoco! Louco! O bêbado com chapéu-coco fazia irreverências mil prá noite do Brasil Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa Pátria mãe gentil, choram Marias e Clarisses no solo do Brasil...
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A esperança... dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar...
Azar! A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar...
(O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc)
O operário aposentado Antonio Norival Soave, ex-militante da Ação
Popular (AP), morreu na madrugada de 5 de abril de 2011 no Hospital das
Clínicas de Porto Alegre e foi finalmente jogado para fora da ponte da
vida.
Seu corpo foi cremado. Mas os sonhos desse operário que viveu rebelde,
bêbado e equilibrista não serão queimados pelos antigos companheiros que
continuam acreditando na esperança, vermelha, socialista.
Ele estava com a vida por um fio, lutando e tentando ludibriar a morte.
Nos últimos sete meses, por conta de um tumor cancerígeno em um dos
pulmões, ele emagrecera mais de dez quilos e perdera toda a massa
muscular do lado esquerdo do corpo, pois o tumor inflamou, cresceu e
pressionava algumas vértebras junto à coluna cervical.
A biópsia comprovou que se tratava do tumor maligno carcinoma. E os
médicos que o atenderam disseram não ser recomendável cirurgia e sim
tratamento com rádio e quimioterapia, mas sem possibilidade de cura.
Quando ele ainda estava morando no ABC paulista falava com Soave por
telefone todos os dias e num domingo de setembro do ano passado fui até
Santo André, onde ele residia sozinho numa velha casa na rua Guadalupe
490, no bairro Parque das Nações, e constatei sua magreza esquelética,
sentindo muitas dores e com o braço esquerdo praticamente paralisado. Vi
um homem de 63 anos, mas que aparentava ter mais de 75, fragilizado
pela doença.
Na visita encontrei sua filha Semíramis e a neta Camile, de um ano e
meio de idade, que vieram de Porto Alegre dispostas a levar o pai e o
nono para a capital do Rio Grande do Sul e assim tentar tratá-lo da
terrível moléstia no Hospital das Clínicas gaúcho.
Por conta da sua aparência envelhecida, doente e pelas informações que
obtive com a filha e irmãs de Soave, fiquei com a certeza de que o
operário estava sem força física para prolongar o tempo que lhe foi
concedido nesta terra.
No Hospital das Clínicas de Porto Alegre ele foi tratado com
quimioterapia e radioterapia, até que os médicos identificaram que o
câncer se ramificara para o cérebro, onde surgiram outros dois tumores
malignos.
Um dos muitos personagens do livro que estou terminando de escrever
sobre a organização de esquerda Ação Popular, Antonio Norival Soave
nasceu em família operária, em Santo André, na região metropolitana
paulista, em 24 de agosto de 1947. É o único varão entre quatro irmãs –
Iracema, Aparecida, Tereza e Hilda -, filhos de José Soave e Roma
Carolina Fantanesi, já falecidos e descendentes de migrantes do norte da
Itália que vieram para o Brasil no final do século 19.
Em Santo André, a família Soave construiu os seus sonhos, primeiro
vendendo frutas, verduras e legumes em feiras livres, e depois com
macacões nas fábricas do ABC paulista, onde José Soave e Roma Carolina
tornaram-se operários e trabalharam quase quarenta anos nas caldeiras e
tecelagens de indústrias têxteis.
Da mesma forma que os pais operários, e morando em Santo André, no ABC
paulista, desde que nasceu, Antonio Norival Soave começou a trabalhar
ainda menino. Com apenas 11 anos já levantava às 3 horas da madrugada
para trabalhar na feira. Depois, já com 14 anos tornou-se operário na
linha de montagem da Pirelli, onde fazia moldes de colchões de espuma
látex. A empresa também produzia pneus, cabos, fios, entre outros
produtos.
Em 1 de abril de 1964 ele tinha 16 anos, quando o então presidente da
República, João Goulart, foi deposto pelo golpe civil-militar e
trabalhava na Cooperativa da Rhodia. Um ano depois foi demitido por
participar de greve por melhores salários, mas em seguida conseguiu
trabalho como preparador de máquinas na metalúrgica Cima (Companhia
Industrial de Materiais Automobilísticos) e se filiou no Sindicato dos
Metalúrgicos de Santo André.
A partir de 1966, além de atuar no movimento sindical, ele começou a
militar na organização política de esquerda Ação Popular, que também
atuava entre os operários no ABC paulista, com origem principalmente na
JUC (Juventude Universitária Católica), e tinha sido fundada em Salvador
(BA), em 1963.
A partir de 1966 é que ele foi entender melhor as coisas da política e a
mecânica da vida, suas leis e contradições. Ele viveu aquele momento do
Brasil da resistência ao golpe militar e em 1968 já estava trabalhando
como inspetor de qualidade na Chrysler do Brasil, em São Bernardo do
Campo, quando explodiram greves, manifestações estudantis e populares
contra a ditadura pelo país. Na Chrysler ele participou da organização
de paredes por melhores salários e melhores condições de trabalho. E
teve atuação destacada no Primeiro de Maio de 1968, na Praça da Sé.
Em Santo André, ele e seus camaradas começaram a organizar o primeiro de
maio de 1968 com uma passeata de 20 mil pessoas pelas ruas da cidade. E
depois alugaram vários ônibus para trazer os trabalhadores de São
Bernardo e de Santo André até a Praça da Sé, onde já estavam operários
de Osasco, de São Paulo e do interior paulista, além de muitos
estudantes.
Soave estava à frente dos operários da Mercedes Benz que romperam o
cerco dos agentes do DEOPS, na Praça da Sé, e ocuparam o palanque onde
estavam os representantes da ditadura, entre os quais o então governador
Abreu Sodré, seu Secretário de Finanças, Delfim Neto, e os pelegos das
diretorias do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e da Federação dos
Metalúrgicos, que tinham preparado uma comemoração oficial e festiva
para o regime militar.
No momento em que os operários ocuparam o palanque, pelegos e
representantes da ditadura saíram correndo, o microfone foi entregue ao
líder sindical da oposição e militante da AP José Nanci, que discursou e
denunciou o regime militar, conclamando o povo a enfrentá-lo, exigindo
democracia e liberdades democráticas, liberdade de atuação sindical e o
fim do arrocho salarial.
Depois os operários saíram em passeata, com milhares de pessoas, até a
Praça da República, onde o líder metalúrgico de São Bernardo do Campo,
José Barbosa, militante da AP e recentemente falecido, também discursou,
denunciando a ditadura.
A partir de então José Nanci, o operário José Barbosa, além de outros
sindicalistas de oposição e muitos de militantes da AP passaram a ser
perseguidos pela polícia política da ditadura. Ainda assim eles
conseguiram realizar greves na Chrysler, na Mercedes Benz, na
Volkswagen, na Wyllis Overland do Brasil que hoje é Ford, e em algumas
outras indústrias menores do ABC, onde a AP tinha atuação.
A repressão não tardou a chegar. No final daquele ano de 1968, quando a
ditadura baixou o Ato Institucional número 5, centenas de operários
foram sendo demitidos e perseguidos no ABC, a exemplo do que aconteceu
com Antonio Norival Soave, em janeiro de 1969, quando foi dispensado da
Chrysler por causa das lutas que ele e outros operários estavam levando
adiante.
O cerco da ditadura aos movimentos sindical e popular ficou ainda pior
com a nova Lei de Segurança Nacional que entrou em vigor em setembro de
1969, e depois que Emílio Garrastazu Médici foi escolhido para ser o
novo general-presidente da ditadura desde dezembro daquele ano. Além
disso, em maio de 1970, a famigerada Operação Bandeirantes, de São
Paulo, foi legalizada e passou a se chamar DOI-CODI.
Organizados em várias capitais brasileiras, os DOI-CODI se tornaram uma
espécie de campos de concentração, de tortura e assassinatos praticados
pelo regime militar e, junto com o Centro de Informações da Aeronáutica
(CISA), Centro Nacional de Informações da Marinha (CENIMAR) e Serviço de
Informação do Exército (CIEX) e os DEEOPS, estabelecem um regime ainda
mais sanguinário contra os brasileiros, contra as organizações políticas
de esquerda e os movimentos de oposição à ditadura.
Era o tempo do "milagre econômico" dos militares, que precisavam de um
Brasil sem resistência à nova etapa de brutal acumulação capitalista no
país. Um "milagre" baseado no arrocho dos salários dos operários, com o
aviltamento de suas condições de vida, com a retenção ao máximo da
mais-valia do trabalho produzido.
Depois de demitido da Chrysler, Antonio Norival Soave fez testes de
inspetor de qualidade na Volkswagen, passou com as notas mais altas,
passou nos testes da Wyllis Overland do Brasil, mas não foi admitido em
nenhuma delas porque havia uma lista negra entre as indústrias, que
perseguiam os operários que ousavam lutar. Muitas vezes ele chegou a
entrar na fila de emprego da Mercedes Benz, mas o chefe do departamento
de pessoal já o tinha identificado e sempre o mandava sair.
Apesar de toda a repressão, o operário e seus companheiros continuaram a
lutar e o preço disso foi a perseguição e prisão de centenas e centenas
de pessoas pela polícia política da ditadura.
Antonio Norival Soave estava entre elas e a sua prisão ocorreu em 20 de
outubro de 1973, quando foi seqüestrado por agentes do DOI-CODI, sob
armas, por volta das 19 horas, na rua Oratório, no bairro Parque das
Nações, em Santo André, próximo à casa dos seus pais. Naquele dia tinha
passado na casa da família, que estava sendo vigiada e não sabia.
Depois de imobilizado pelos agentes do Exército, foi colocado num carro e
levado para a rua Tutóia, onde funcionava uma delegacia de polícia do
estado de São Paulo e utilizado pelo DOI-CODI, também chamado de OBAN -
Operação Bandeirantes -, que aplicava os meios mais hediondos de tortura
para obter informações e liquidar a oposição ao regime militar.
Lá chegando, ele foi colocado em um compartimento debaixo de uma escada
que servia de depósito dos cavaletes usados na tortura do pau-de-arara.
Pouco tempo depois, foi retirado desse compartimento por dois
torturadores com tapas e socos e levado até a sala de torturas.
Sob o comando do "Capitão Ubirajara", chefe da equipe B da OBAN, e com a
permissão do então major do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra,
comandante do DOI-CODI e conhecido como "o carniceiro da rua Tutóia",
ele foi colocado na "cadeira do dragão", onde ficou levando choques
elétricos nos dedos e braços. Em seguida, foi despido e colocado no
pau-de-arara onde por toda a noite os torturadores intercalavam socos e
pontapés, batiam com palmatória nas nádegas e aplicavam choques
elétricos nos testículos, pênis, anus, dedos das mãos e dos pés, na
garganta, língua, orelhas e no interior dos ouvidos, quando perfuraram
seus tímpanos.
No início da manhã, após dois desmaios, ele foi medicado por um médico
do Exército e levado para uma sala totalmente vedada e com iluminação
por 24 horas, lá ficando completamente isolado durante uns 40 dias, e
saindo somente para a sala de torturas.
Depois desse período, foi levado para a cela X 1, onde estavam outros
presos, e os interrogatórios e tortura psicológica continuaram. Em 29 de
novembro de 1973, conduziram-no para prestar o depoimento formal no
DEOPS e no mesmo dia trazido de volta para o DOI CODI, onde continuou
incomunicável até os dez primeiros dias do mês de dezembro daquele ano,
quando a sua prisão foi finalmente admitida e os torturadores permitiram
que sua família o visitasse.
Na segunda quinzena de dezembro de 1973, foi transferido com outros
companheiros para o presídio do Hipódromo, onde continuou preso sem
assistência médica, o que agravou o problema nos ouvidos perfurados
durante as torturas.
Somente em março de 1974 é que a ditadura encaminhou para a 1ª Auditoria
da 2ª Circunscrição Judiciária Militar a denúncia contra ele e outros
presos, acusados e processados por militância na organização política de
esquerda Ação Popular Marxista Leninista do Brasil.
Em 9 de abril daquele ano foi qualificado e interrogado na Auditoria
Militar, quando denunciou as torturas a que foi submetido, denunciou o
desaparecimento e assassinatos dos seus companheiros Paulo Stuart
Wright, José Carlos da Mata Machado e Gildo Macedo Lacerda, militantes
da Ação Popular, mortos pela ditadura de Emílio Garrastazu Médici.
Em agosto de 1974, no julgamento do tribunal militar, ele foi condenado a
dois anos de prisão e, portanto, reconduzido ao presídio do Hipódromo
para cumprir a pena, de onde foi transferido depois para a Casa de
Detenção de São Paulo (Carandiru), e mais adiante para o Presídio da
Justiça Militar Federal (Romão Gomes), que funcionava no interior do
Quartel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, no bairro Barro
Branco.
Finalmente, na segunda quinzena de maio de 1975, após julgamento no
Superior Tribunal Militar (STM), que em sessão realizada em 16 de maio
de 1975 decidiu reduzir sua pena para 16 meses de reclusão, Soave foi
libertado depois de passar 19 meses na prisão, incluindo o período em
que esteve encarcerado e torturado no DOI-CODI.
Quando saiu da cadeia Antonio Norival Soave estava com uma perda
acentuada de audição, problema que foi relatado por mim na época em
carta dirigida ao advogado Hélio Navarro, em 13 de maio de 1975, que
denunciou o fato no STM e entregou a carta ao Congresso Nacional.
Posteriormente, em 1978, trecho da carta foi publicado pela revista
IstoÉ.
Depois de sair da prisão, Soave se apaixonou e casou com Nilce Azevedo
Cardoso, também ex-militante da AP, e mudou para Porto Alegre (RS), onde
tiveram dois filhos, Semíramis e Paulo.
Nesse período, Soave combateu com o povo brasileiro na luta da anistia,
pela volta do irmão do Henfil com tanta gente que saiu... Ainda atuou na
organização e fundação do Partido dos Trabalhadores e trabalhou no
jornal O Companheiro.
Mas o seu casamento com Nilce fracassou e, embora continuassem amigos e
solidários, eles se separaram. Morando sozinho em Porto Alegre, com
problemas de saúde, incluindo a perda de muitos dentes, deprimido e
praticamente sem amigos, Soave voltou para Santo André em 1997, foi
morar com seu pai José, que estava muito doente e com o mal de
Alzheimer.
Em junho de 1998, o operário sofreu um acidente quando pintava a casa,
teve o globo ocular esquerdo perfurado por uma faca e desde então estava
completamente cego de um olho e enxergando apenas 40% com o olho
direito, assim mesmo com ajuda de óculos e lente de contato.
De lá para cá o pai José terminou morrendo, velhinho, mas sempre
amparado e bem cuidado pelo filho e filhas até o instante final.
Mais uma vez morando sozinho, embora sempre visitado por suas irmãs,
pelos filhos Semíramis, Paulo e a ex-mulher Nilce, Antonio Norival Soave
ou Ernesto e Bento (nomes pelos quais seus amigos da AP o conheceram)
teve pneumonia e outros graves problemas de saúde.
Ernesto Soave sobrevivia materialmente com muitas dificuldades e contava
apenas com aposentadoria de pouco mais de um salário mínimo. Seu plano
de saúde era o SUS, a exemplo do que acontece com os brasileiros pobres,
a imensa maioria da população do Brasil privatizado.
Na verdade, Ernesto Soave vivia igual ao Bêbado e o Equilibrista, da
canção de João Bosco, Aldir Blanc e eternizada na voz de Elis Regina.
Mas o homem não desistia da caminhada, solitária, embora aos tropeços,
desequilibrando-se e lutando para não ser jogado fora da ponte da vida.
Retraído e solitário, política, pessoal e socialmente, ele sentia falta
dos velhos amigos, antigos camaradas e não conseguiu fazer novas
amizades para compartilhar alegrias, tristezas e dores inerentes à vida.
Mas esse bêbado equilibrista permanecia embriagado pelos sonhos
socialistas e teimava com teimosia vermelha no direito de sonhar.
E continuou sonhando até o dia em que tombou, seu sangue coalhou, ele dormiu para sempre e nunca mais vai acordar.
Viverá na eternidade e despertará apenas no derradeiro sonho, quando
estará mais uma vez com o macacão sujo de graxa, caminhando pelas
fábricas do ABC paulista e lutando com a sua gente contra a espoliação
capitalista, pela revolução socialista e libertação da sua classe.
Nesse derradeiro sonho, com certeza, Ernesto Soave lembrará aos seus
antigos camaradas, e aos que virão depois de nós, que os revolucionários
socialistas não podem perder a ternura jamais. Mas ainda assim esse
operário, que lutou e viveu com a mesma brandura e suavidade que
carregava no sobrenome, dizia que os revolucionários de ontem e de hoje
não podem se esquecer de que a vida dos pobres na sociedade capitalista é
dura, pesada.
Por isso mesmo, homens e mulheres precisam sonhar. Mas com a condição de
acreditar nos seus sonhos, de examinar atentamente a vida real e de
confrontar seus sonhos com a realidade. Aí, então, dizia o operário
rebelde, bêbado e equilibrista, mulheres e homens conseguirão finalmente
realizar as suas fantasias.
Otto Filgueiras é jornalista.
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István Mészáros e a imperiosa necessidade do pluralismo socialista
Escrito por Demetrio Cherobini no Correio da Cidadania | |
Resisto a tudo menos minha própria diversidade,
Sou vasto... contenho multidões.
Walt Whitman
A afinidade eletiva existente entre o Partido dos Trabalhadores e o
capital é visível desde já um bom tempo. Em 2004, por exemplo, num gesto
de autoritarismo extremo acompanhado de um discurso cínico e
oportunista, o partido expulsou quatro de seus parlamentares que não
concordavam com as determinações da cúpula acerca da famigerada reforma
da previdência, então em curso (1).
Esta atitude - a imposição dos interesses de uma parte do partido sobre o
todo de que é composto -, muito aquém de afirmar uma virtude política
indispensável para os tempos atuais, configurou apenas a ilustração
exemplar do imperativo prático que tem orientado as ações do PT ao longo
dos últimos anos: a busca fetichista da unidade, realizada com vistas a
neutralizar as energias críticas dos trabalhadores e a promover a ampla
e irrestrita conciliação das classes estruturalmente antagônicas da
presente sociedade (2). Demonstrou, acima de tudo, como o referido
partido expressa, em sua forma de ser e de se comportar, a maneira de se
estruturar do próprio capital, com seus respectivos interesses e
contradições.
Ora, o capital, explica-nos István Mészáros (2002), é justamente esse
modo totalizante de controle sobre a atividade produtiva humana, que se
configura de maneira hierárquica e autoritária, visando eliminar toda e
qualquer postura que seja diferente do propósito de levar a efeito a
mais elevada extração praticável do trabalho excedente, num movimento
perene, sempre acumulativo e auto-expansivo. Nesse contexto, diz o
filósofo, a única alternativa viável é a crítica radical, feita pelo
trabalho, de tal conjunto de relações sociais, uma crítica que promova a
negação das determinações materiais do sistema e a conseqüente
afirmação de novas maneiras de mediar o metabolismo social humano - a
negação, portanto, do modo de ser hierárquico e excludente do capital e a
afirmação de uma forma de relacionamento genuinamente associativa e
horizontal entre os "produtores livremente combinados" (3). Tal
alternativa se encontra delineada em torno daquilo que Mészáros denomina
de pluralismo socialista, um princípio de organização que visa superar
as contradições inerentes à imposição da unidade e as infelizes
mistificações de que essa proposta vem acompanhada.
Nesse sentido, argumenta o autor de Para além do capital, é
possível observar que já Marx e Engels em sua época estavam atentos para
o fato de que a unidade não é pré-requisito para o êxito do projeto
revolucionário dos trabalhadores. Duas breves passagens dos referidos
autores, listadas por Mészáros, servem para demonstrar o posicionamento
de ambos sobre o assunto. A primeira é de uma carta de Engels a August
Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a influência de
Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: "Da democracia
burguesa ele (Liebknecht) trouxe e manteve uma verdadeira mania de
unificação" (ENGELS, apud Mészáros, 2002, 811). A segunda é de uma carta
de Marx a Wilhelm Bracke, escrita em 5 de maio de 1875, onde se lê que
"é um engano acreditar que este sucesso momentâneo (isto é, a unidade em
redor de um movimento político) não será comprado a um preço muito
alto" (MARX, apud Mészáros, ibid., 811).
Para Marx e Engels, a suspeita em relação à exigência da unidade se
devia ao fato de que tal proposta costumava levar os partidos e as
organizações de esquerda a conseqüências prejudiciais, entre elas a
supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios. Isto era,
evidentemente, um preço alto demais a ser pago pelas forças que lutavam
pela realização de uma comunidade humana livre do jugo do capital, onde
homens e mulheres pudessem desenvolver ao máximo as suas
potencialidades. Ciente desse dilema, Mészáros estabelece uma reflexão
que pretende apontar uma saída para o labirinto no qual se perdem muitos
dos movimentos socialistas da atualidade.
A unidade política, explica o filósofo, não pode ser um objetivo porque a
classe trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na
verdade, ela constitui um complexo de setores variados - muitas vezes
antagonicamente estruturado - em contraposição à pluralidade de capitais
em torno da qual se baseia o sistema vigente (4). Por isso, o que é
desejável no movimento revolucionário é a articulação pluralista – e não
a unidade, que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos
diversos grupos que combatem pela causa dos trabalhadores.
Como explica Mészáros, "Assim como naqueles dias (isto é, nos tempos de
Marx e Engels), mais uma vez este assunto é de suprema importância. Pois
hoje – talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do
passado recente e do não tão recente – não é mais possível conceber as
formas imprescindíveis de ação comum sem uma articulação consciente de
um pluralismo socialista, que não só reconhece as diferenças existentes,
mas também a necessidade de uma adequada 'divisão do trabalho' na
estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa
identificação da 'unidade' como o único meio de patrocinar princípios
socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição
de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre
princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha
sobre princípios" (2002, 812).
De acordo com Mészáros, somente o pluralismo socialista pode impedir
que, dentro de um movimento de luta social e política complexo e
multifacetado, ocorra a imposição do interesse de uma das suas partes
sobre as demais – imposição esta que, justamente, como o citado caso do
PT o demonstra, origina a supressão da autocrítica e a barganha sobre
princípios, que tanto beneficiam a ordem de reprodução sócio-metabólica
vigente (5).
A práxis pluralista, no sentido que o filósofo atribui ao termo, é
aquela que reconhece e combina as diferenças e as particularidades
concretas inerentes aos variados setores do proletariado (6) em função
do seu objetivo maior. Ao assim proceder, cria uma forma de ação
conjunta que possibilita o combate do próprio fundamento de hoje haver
os particularismos antagônicos de classe, a saber: a dinâmica – sempre
acumulativa e auto-expansiva - da exploração do trabalho excedente que
configura o sistema do capital.
As implicações políticas de tal proposta são claras: o agente social da
transformação revolucionária não pode ser definido como sendo composto
unicamente por este ou por aquele ramo específico dos trabalhadores. Ao
contrário: precisa ser buscado no trabalho como um todo, que,
reconhecendo sua constituição múltipla e heterogênea, age no sentido de
realizar o – também reconhecido - interesse que permeia a classe em sua
totalidade.
Lemos, assim, em O poder da ideologia, que o sujeito social da
emancipação "só estará apto para criar as condições do sucesso se
abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinarem
em uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação
estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de
todos esses grupos não pode ser o 'trabalho industrial', tenha ele
colarinho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do
capital. Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e
historicamente produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que
estão do lado emancipador da linha divisória das classes no interesse
comum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital.
Pois todos esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na
garantia da transição para uma ordem qualitativamente diferente" (2004,
51).
Ou seja, mesmo a classe trabalhadora sendo composta de uma miríade de
setores, cada qual com interesses correspondentes às suas posições
particulares, há, por trás disso, pela própria situação atual do
trabalho enquanto atividade subordinada ao capital, uma condição e um
interesse compartilhado por todos: isto é, respectivamente, a exploração
fetichista do trabalho excedente e a necessidade de superá-la em
direção a uma sociedade emancipada.
No processo revolucionário, portanto, todos os grupos terão papel
fundamental, mas é preciso que estejam alertas para o fato de que, para
uma emancipação realmente digna deste nome, a luta não pode se realizar
com um dos segmentos afirmando o seu interesse sobre os demais. O
pluralismo exige horizontalidade entre os movimentos de trabalhadores.
Somente dessa maneira os socialistas poderão aspirar à radical e efetiva
superação do sistema do capital.
O novo modo de operação dos revolucionários não deverá, então, espelhar a
maneira de se estruturar do próprio capital – isto é, como o PT o faz:
hierarquicamente e afirmando o interesse da parte sobre o todo, com
vistas a eliminar as energias combativas dos trabalhadores. A emergente
força social emancipadora conseguirá ter êxito em seus propósitos apenas
se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de ação e
de organização. A reconstrução das mediações sociais e políticas em
torno das quais estarão reunidos os socialistas já necessitará, pois,
estar baseada naquilo que Mészáros chama de igualdade substantiva, (7)
em contraposição à igualdade meramente formal da atual ordem vigente.
Isto quer dizer, em outras palavras, que a estruturação interna do
movimento terá que apresentar, em seu próprio processo constitutivo,
"prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as
tarefas que possam se apresentar" (8) - 2004, 52. E para que tudo isso
possa, enfim, se realizar, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de
uma "consciência de massa socialista", a ser desenvolvida no processo
mesmo de confrontação prática com a ordem do capital (9).
A proposta mészáriana do pluralismo socialista é, portanto, de
fundamental importância para a esquerda brasileira nos dias atuais.
Depois do tsunami de pelegos que assolou o país com o governo do PT, as
novas forças socialistas a se constituírem precisarão se reformular sem
repetir as mesmas contradições. PSOL, PCB, PSTU e todos os demais grupos
políticos imbuídos do objetivo da superação do capital necessitarão se
articular de forma crítica e pluralista daqui por diante, ou estarão
condenados ao fracasso e à impotência.
Mais do que a falsa unidade – calcada, como vimos, na imposição da parte
sobre o todo e na barganha sobre princípios –, é imperioso coadunar
grupos diversificados, com as suas respectivas particularidades, em
redor do objetivo comum: derrotar o capital e instaurar a comunidade dos
homens e mulheres verdadeiramente emancipados - ou a "associação livre
dos produtores", como a chamou Marx.
Em tempos históricos de profunda crise, torna-se imprescindível que
construamos essa capacidade de atuar em conjunto de forma horizontal. Se
continuarmos mergulhados na inépcia no que diz respeito a travarmos
esse tipo de ação coletiva, estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao
contrário, conseguirmos envidar esforços articulados, mesmo que tenhamos
entre nós algumas eventuais diferenças, teremos, quem sabe, alguma
chance.
Notas:
1) Os parlamentares em questão eram a senadora Heloísa Helena e os
deputados federais Luciana Genro, João Fontes e Babá. Eles alegavam que a
reforma tinha viés privatizante e retirava dos trabalhadores direitos
conquistados historicamente, indo assim em direção contrária ao ideário
mantido pelo PT ao longo da sua trajetória passada. Para um maior
entendimento sobre o caráter conservador da referida reforma, ver
Oliveira (2006).
2) Por meio, entre outras coisas, da administração de políticas
assistencialistas e da cooptação de centrais sindicais, o imperativo da
conciliação de classes foi tão intenso no período das duas primeiras
gestões petistas que o sociólogo Francisco de Oliveira (2010) não
hesitou em afirmar que "se FHC destruiu os músculos do Estado para
implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade,
que já não se opõe às medidas de desregulamentação". O mesmo, ao que
tudo indica, está a se reproduzir no governo Dilma.
3) Este conceito de crítica – articulação material de negação e
afirmação no sentido de promover a "transcendência positiva da
auto-alienação do trabalho" – é desenvolvido pelo filósofo húngaro em
praticamente todas as suas obras. Ver, por exemplo, a esse respeito:
Mészáros (2008).
4) Conforme as palavras de Mészáros: "Na realidade, temos uma
multiplicidade de divisões e contradições e o 'capital social total' é a
categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas
as suas contradições. Ora, se olharmos para o outro lado, também a
'totalidade do trabalho' jamais poderá ser considerada uma entidade
homogênea enquanto o sistema do capital sobreviver. Há, necessariamente,
inúmeras contradições encontradas sob as condições históricas dadas
entre as parcelas do trabalho, que se opõem e lutam umas contra as
outras, que concorrem umas com as outras, e não simplesmente parcelas
particulares do capital em confronto. Essa é uma das tragédias da nossa
atual situação de apuro. (...) Essas divisões e contradições restam
conosco e, em última instância, devem-se explicar pela natureza e
funcionamento do próprio sistema do capital" (2007, 66).
5) A expressão, na forma de atuação prática do Partido dos
Trabalhadores, das exigências materiais do capital deve ser entendida,
evidentemente, a partir dos múltiplos complexos de mediação que permeiam
a relação entre essas duas estruturas, especialmente a crise estrutural
do capital e a crise estrutural da política, que acometem o sistema
sócio-metabólico vigente. Em razão das limitações do presente artigo,
não poderemos nos aprofundar acerca desses temas. Para uma maior
compreensão das crises estruturais do capital e da política, ver
Mészáros (2002). Para uma boa visão das transformações do PT ao longo
dos últimos anos, ver Oliveira (2006, 2010 e 2010b).
6) Segundo Mészáros (2007), proletário não pode ser definido meramente
como o operário de fábrica ou o trabalhador manual. Proletariado,
enquanto categoria social, diz respeito a todos os grupos sociais que,
sofrendo a ação usurpadora do capital em relação aos meios de produção,
se encontram alijados da possibilidade de controle consciente sobre o
sócio-metabolismo humano. Proletarizar-se, nesse sentido, é perder esse
controle.
7) A igualdade substantiva é definida por Mészáros qualitativamente, com
base nas teses de Babeuf que foram endossadas por Marx: "A igualdade
deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pela carência do
consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas (grifo nosso).
Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez
libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força
que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede
abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu
camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do
comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas
consumíveis e tarefas dos trabalhadores" (BABEUF, apud Mészáros, ibid.,
42). Tais são os princípios de organização da produção e da distribuição
a serem implementados na fase superior da sociedade socialista: não a
igualdade de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho
realizadas, mas a igualdade medida pelas capacidades e carências não
alienadas dos indivíduos sociais.
8) Nessa forma de organização política - horizontal e radicalmente
pluralista -, é fundamental, afirma Mészáros, que os trabalhadores
saibam articular as suas demandas parciais com as exigências gerais de
superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez, ler o que escreve o
autor de Para além do capital acerca de sua proposta: "as
demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às
necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais –
empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim
como as demandas inerentes à luta pela libertação das mulheres e contra
a discriminação racial -, podem, sem uma única exceção, ser abraçadas
sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente
diferente quando não são consideradas como questões singulares,
isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que
constantemente as reproduz como demandas não realizadas e
sistematicamente irrealizáveis. Desse modo, o que decide a questão é a
sua condição de realização (quando definidas em sua pluralidade como
demandas socialistas conjuntas), e não o seu caráter considerado
separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa
'politização' destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma
função política direta numa estratégia socialista, mas a efetividade de
afirmar e sustentar tais demandas 'não-socialistas', tão largamente
auto-motivadoras no front mais amplo possível" (2002, 818). Ou seja, as
"demandas urgentes de nossa época" – empregos, educação, saúde etc. –
são todas importantes e não devem deixar de ser reivindicadas. Mas o
essencial, diz Mészáros, não é a "politização destas questões isoladas" e
sim a integração de tais demandas dentro de um quadro reivindicatório
mais amplo, que combata o fundamento real de a sociedade se ver hoje
majoritariamente privada dessas condições básicas: o sistema de controle
sócio-metabólico do capital.
9) Daí a importância atribuída pelo filósofo húngaro (2008b) à educação
revolucionária, que necessita se realizar em meios formais e não
formais, a fim de proporcionar o desenvolvimento contínuo da consciência
e dos valores socialistas exigidos para a efetivação da nova forma
histórica.
Referências:
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, István, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008b.
OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lenin, 2006.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. in OLIVEIRA, Francisco de,
BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia,
política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo,
2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Consenso conservador cria falsa divergência
entre Serra e Dilma (entrevista a Valéria Nader e Gabriel Brito). 2010b.
Disponível em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5102/9/. Acesso em 03/01/11.
Demetrio Cherobini é cientista social (UFSM) e mestre em Educação (UFSC).
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"Al-Gaddafi" não é “Al-Mahdi"
Assim como um Mahdi ( o messias - o ungido), o coronel Kadafi se considera fonte de todo o conhecimento.
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por Filipe Pinto Monteirono LeMonde-Brasil |
Davi era um rei valente e destemido. Nas batalhas que comandou, não
demonstrava misericórdia com seus inimigos. Sua espada era a mais
pesada, sua bravura a mais indômita. Para se manter no poder,
envolveu-se em intrigas palacianas, perseguiu desafetos e transformou a
corte em seu bunker de guerra. Reinou há aproximadamente 1.000 a.C na
antiga Judéia e, dizem os especialistas, serviu de inspiração para seu
povo que, após a sua morte, alimentou a crença no seu retorno. Foi
tomado como um Ungido, um personagem magnífico, às vezes
folclórico, responsável por inaugurar, num futuro próximo, um tempo de
liberdade, paz e felicidade para os Judeus. Muitos entusiastas cristãos enxergaram esse grande Messias na figura de Jesus Cristo quando este andou pela terra e tantos outros aguardam ansiosamente pela sua volta até os dias de hoje. No islamismo, ele também existe e se faz presente. É segundo longa tradição (apontam alguns autores, influenciada por elementos judaico-cristãos), um membro da família do profeta Maomé. Conhecido como Al-Mahdi, foi ressuscitado diversas vezes ao longo da história e influenciou inúmeros movimentos e personagens religiosos no continente africano e até na Europa, principalmente na região espanhola de dominação moura, a Andaluzia, ou como era conhecida na Idade Média, Al-andaluz. Expulsos pelos cristãos do Velho Continente, muitos muçulmanos migraram para o norte da África e os que permaneceram sob a opressão da Cruz e da Coroa, criaram profecias várias que vislumbravam a volta triunfante de um Salvador. Imaginavam incríveis e assombrosas histórias, como a que entrevia uma sangrenta batalha em território norte-africano. Perseguidos desde o mediterrâneo - dizia a tal lenda, encontrada em uma espécie de “apócrifo” do Alcorão - os árabes lutariam pelas terras onde hoje se encontram os atuais Estados da Argélia, da Líbia e seguiriam até o Egito, onde se daria a derrota final dos europeus, sob a mão impiedosa de Mahdi. A Guerra Civil era só questão de tempo. Essas “revelações”, por assim dizer, permaneceram vivas nas tradições populares muçulmanas e foram reinventadas em diversos momentos da História. Mahdi Muhammad Ahmed, por exemplo, foi um líder religioso que venceu as tropas inglesas no Sudão em diversas batalhas campais no séc. XIX, oferecendo séria resistência aos colonialistas. Já na Líbia do século XX, o rei Idris I, ao cair do trono em 1969, abriu caminho para a chegada de Muammar Muhammad Al-Gaddafi (ou Muamar Kadafi, para nós brasileiros), que prometeu perseguir e aniquilar os usurpadores do seu país. A velha monarquia havia se rendido ao ocidente e Kadafi, ao contrário, prometeu reacender a chama do pan-arabismo. Fez do islã, religião oficial do Estado. Assim como deveria ser Mahdi, o coronel Kadafi se considerava fonte de todo o conhecimento. Redigiu de próprio punho o Livro Verde, cujo primeiro capítulo foi impresso em 1975 e cujos princípios deveriam nortear o destino de seu povo. Prometeu, num contexto de forte exacerbação nacionalista, reunir sob seu manto toda a nação árabe, como se fosse o único guardião dos desígnios de Maomé. Tal qual um santo guerreiro, armou seu povo, oferecendo cursos de treinamento militar em escolas, empresas e universidades. Refundou o país à sua maneira e cunhou o termo jamahiriya, ou “Estado das Massas”, como que para refletir o seu desejo de guiar toda a sociedade. Ainda que a maioria da população muçulmana da Líbia seja Sunita, para a qual a força da figura histórica de Mahdi tem menos significado do que para os Xiitas, as tribos árabes do norte sempre mantiveram em perspectiva a sua chegada, como por exemplo, os magrebinos, no Marrocos. Kadafi se apoderou indevidamente das esperanças do povo árabe de sua terra. Subverteu a figura histórica de Mahdi e acomodou-se confortavelmente em seu trono. Diferentemente de Davi - um grande monarca e respeitado chefe militar da história de Israel –, ou milhares de personagens por ele influenciados - como Moisés, Jesus, D. Sebastião de Portugal e etc. - traiu as expectativas do país, se aliou aos inimigos e atacou covardemente seus irmãos de sangue.
Filipe Pinto Monteiro
Mestrando em História Social da UFRJ e bolsista do CNPQ |
Livro “Inclusão Digital – Experiências Brasileiras” está disponível para download
Do blog Nas retinas
Lançado durante o último Fórum TIC Dataprev, o livro “Inclusão Digital –
Experiências Brasileiras” já está disponível para download. Escrito
pelo historiador Maurício Falavigna, o livro reúne depoimentos de
especialistas em ID, a formação dos telecentristas pelo Brasil, a
criação de políticas públicas para a área e a trajetória da Oficina para
Inclusão Digital, desde a sua primeira edição, realizada em 2001.
Licenciado sob Creative Commons, o livro está disponível, gratuitamente, aqui.
O arquivo em PDF tem o tamanho de 22.1 Mb e é totalmente pesquisável.
Basta usar CTRL + F para buscar palavras e tópicos de seu interesse. A
licença CC permite que todo o conteúdo do livro seja utilizado para
pesquisas, teses, replicações, recompilações, impressão, desde que seja
citada a fonte.
Sem geraldinos e arquibaldos
Em meio a falência de clubes, ganância de emissoras e um
mercado voraz, desaparece a possibilidade do pobre torcedor de assistir
ao esporte que adora
Por: Redação da Rede Brasil Atual
Alma Ferida: A reforma do Maracanã vai encolher o estádio,
que na reabertura terá ingressos mais caros. Paulo Roberto lembra
saudoso, com o ingresso na mão, os tempos da popular geral, extinta em
2005. (Foto:Rodrigo Queiroz/Revista do Brasil)
Com a aparente "volta por cima" da Globo nas negociações sobre a transmissão dos campeonatos brasileiros de 2012 a 2014, as esperanças de transmissão de jogos na TV aberta em horários civilizados, para espectadores e atletas, se esvaem. Os clubes, atolados em dívidas, menosprezam a negociação coletiva. Também passam ao largo preocupações com o que o torcedor mortal terá de pagar por ingressos em estádios ou pacotes televisivos para ver seu time ou secar os demais. O esporte mais popular do país é cada dia mais impagável para a maioria da galera. O professor Flávio de Campos, do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), compara a situação a uma briga oligárquica. "Essa cartolagem é muito parecida com determinadas raposas da política brasileira, e às vezes se confundem mesmo", diz.
A realização da Copa de 2014 no Brasil reforça a mudança de foco do
futebol e potencializa a cobiça. Construídos ou reformados, às vezes com
necessidade duvidosa, os estádios serão em tese mais bem aparelhados,
terão capacidade menor e ingressos mais caros, o que evidencia essa
busca pelo público de maior poder aquisitivo. "A questão da transmissão é
um complemento da exclusão que vem sendo feita há anos nos estádios. Em
nome da segurança, um padrão de modernidade se impõe e remove os
setores populares. Como se a violência fosse um atributo desses setores,
o que é uma falácia", acrescenta Campos.
No Maracanã, a geral, conhecida pelo grande número de populares
fantasiados que ali acompanhavam os jogos, foi destruída em 2005 e deu
lugar às cadeiras - setor nobre. Foi o fim dos geraldinos, como eram
conhecidos os frequentadores. E os arquibaldos, a turma da arquibancada,
também não tem vida fácil. Ambos os tipos foram cunhados pelo escritor
Nelson Rodrigues, frequentador do velho Maracanã.
Aperto
O
funcionário público Paulo Roberto Evaristo estava lá no último dia da
geral, em 24 de abril de 2005, no jogo entre Fluminense e São Paulo - e
até guardou o ingresso. "Estudava e trabalhava, o salário era pequeno,
era a opção mais em conta. Além disso, era legal ficar mais perto do
campo. A visão era ruim, mas compensava. Dava para chamar e xingar os
jogadores. Pelo menos ficava a impressão de que podiam ouvir", brinca.
Na despedida, Paulo e alguns amigos foram os últimos a deixar o
estádio. Aos 39 anos, realizou o sonho de muitos meninos: conseguiu
entrar no campo, cobrar pênaltis imaginários e fingir que estava ligando
do orelhão, como alguns jogadores costumavam comemorar seus gols, em
vez de correr para diante da câmera mais próxima. Segundo ele, o
ingresso custava um quarto do da arquibancada, que por sua vez era
metade do preço das cadeiras.
Em 2010, o Maracanã foi fechado. A reforma mira a Copa. Na última, a
capacidade caiu de 120 mil para 86 mil pessoas - que passaram a pagar
mais. Em 1969, o estádio chegou a receber 180 mil torcedores. Com a
reabertura, provavelmente em 2013, caberão apenas 76 mil e esperam-se
preços ainda mais elevados.
Às vezes, alguém reclama. Como na partida entre Santos e Cerro
Porteño, pela Taça Libertadores, em março. O time paulista aproveitou o
jogo contra o rival paraguaio para cobrar R$ 100 pelo ingresso.
Resultado: protestos e pouca gente no estádio.
Em Salvador, o gerente financeiro Marcus Vinícius Vilas Boas, o Kiko,
torcedor do Bahia e fã de carteirinha do estádio da Fonte Nova conta
que os preços não esperam reformas para subir. "Já está tudo mais caro.
No Pituaçu (que vem sendo utilizado para jogos maiores), os ingressos
para o campeonato baiano estão R$ 50, R$ 40 no mínimo, dependendo do
jogo. Na Fonte Nova custavam R$ 10, R$ 20, R$ 30 no máximo."
O palco da Fonte Nova foi fechado em 2007, após a queda de um pedaço
da arquibancada que matou sete pessoas. Kiko estava a poucos metros.
"Lembro o dia da tragédia, nunca teve só 65 mil torcedores ali", diz,
referindo-se ao público oficial informado. "No mínimo, uns 80 mil." O
tradicional estádio foi implodido. No local, será construído um novo,
com capacidade para pouco mais de 50 mil pessoas.
Elitização
Em artigo publicado em O Estado de S. Paulo no final de 2010, o
professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcos Alvito cita a
Soccerex, feira internacional realizada no Rio com foco no futebol como
negócio, na qual "especialistas" decretaram que a modalidade no Brasil
terá a classe A como clientela-alvo, deixando as classes B e C para
trás. "Porque as D e E há muito não sentam em uma arquibancada. Hoje os
estádios viraram estúdios para um show televisivo chamado futebol",
observa o antropólogo, para quem está em curso um processo de elitização
perversa do esporte.
O docente foi um dos criadores, em 2010, da Associação Nacional dos
Torcedores. Incipiente, mas com reivindicações como maior transparência
no futebol, além de igualdade de acesso aos estádios. "Vai acabar com
toda e qualquer possibilidade de a população pobre ou de classe média
baixa frequentá-los. Claro que a gente aprova o conforto. O problema é
transformar o estádio num grande shopping center", diz o estudante
Matheus Serva, da ANT. "E tem o agravante da televisão. Quarta-feira às
10 da noite é impossível para um trabalhador assistir ao jogo."
O historiador Felipe Dias Carrilho vê na questão da TV um
aprofundamento da lógica empresarial, que não chega a ser novidade, mas
se torna mais visível à medida que a Copa se aproxima. "É a
capitalização máxima do esporte. Nossos cartolas são os coronéis dentro
do futebol." O jornalista Juca Kfouri fala em um país sui generis, em
que os capitalistas não gostam de praticar o capitalismo que apregoam.
"Por um lado, uma emissora (Record) capta recursos de forma 'espúria',
no 'mercado da fé'. De outro, a concorrente (Globo) não demonstra
interesse em seguir as regras da concorrência."
No mundo do consumo, os europeus estão muito à frente. Considerado
pela revista Forbes o time mais rico do mundo, o Manchester United, da
Inglaterra, acumula patrimônio de US$ 1,8 bilhão. Seu canal pago é
exibido em 192 milhões de residências. O segundo na lista, o Real
Madrid, da Espanha (US$ 1,3 bilhão), mostra equilíbrio nas fontes de
receitas: 30% vêm da bilheteria de seu estádio, 34% do comércio de
produtos e 36% de direitos da televisão - aqui, a dependência da TV
supera os 50%. Em meados de março, o site do clube tinha poucos
ingressos disponíveis a não sócios para um jogo do campeonato local que
seria realizado três semanas depois, contra o Sporting Gijon: € 225 (R$
530).
Arquibancada
O executivo e consultor espanhol Esteve Calzada calcula que um fã do
Real ou do rival Barcelona gastará aproximadamente € 3.000 (mais de R$
7.000) se acompanhar seu time por toda a temporada europeia. "Em tempo
de crise", lembra. Ele também prevê que, na temporada 2011-2012, o Barça
desbancará o Real e se tornará o clube com maior arrecadação no mundo. O
time catalão tem mais de 170 mil sócios-torcedores e mantém sempre
lotado seu estádio, o Camp Nou, com capacidade para 99 mil espectadores.
No Brasil, os clubes, endividados, as TVs e seus patrocinadores
caminham para consolidar a tipificação do torcedor de "arquibancada de
prédio", na definição do professor Flávio de Campos: aquele que assiste
ao jogo em casa e faz barulho para perturbar o vizinho simpático ao
adversário - que também não vai ao estádio.
O professor vê o país perder a oportunidade de fazer uma correção de
rota. Eventos como Copa do Mundo (2014), Jogos Militares (2011),
Olimpíada e Paraolimpíada (2016) deveriam ser determinantes para
formular políticas de investimentos na formação de atletas. "É incrível a
falta de interesse em vincular essa agenda esportiva à educação", diz.
"Se equipassem as escolas públicas, essa revalorização poderia
transformá-las em centros de difusão do esporte. Não seria muito difícil
pensar num projeto mais interessante e criativo, em vez de gastar
bilhões em estádios ultramodernos."
Autor, 30 anos atrás, do livro História Política do Futebol
Brasileiro, o professor Joel Rufino dos Santos, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), considera que a chave para essa completa
mercantilização é a separação entre o esporte e o espetáculo. "Eu
gostava muito de ver jogos no campo do Palmeiras, da proximidade dos
jogadores. Não sei por que vão construir outro estádio. É para o
espetáculo", ironiza.
"Vai-se ao campo como se vai ao teatro", confirma Juca Kfouri. O
jornalista também detecta um aspecto inexorável de elitização e de
transformação dos estádios em estúdios para programas televisivos.
Corintiano, ele lembra quando saboreava o show da torcida. "O lugar é
para sentir em cima da pedra, no degrau (da arquibancada). Se estivesse
lotado, ia para o alambrado." Juca conta a "sensação paradoxal" que
experimentou, no Allianz Arena, na Copa da Alemanha, em 2006. "Um lugar
suntuoso, limpíssimo e quase esterilizado. Não dá para xingar o juiz.
Você faria isso no Teatro Municipal?", brinca. "Cada vez mais a sensação
que tenho é de que os estádios não têm alma."
Na Argentina, a transmissão dos jogos é de graça
Enquanto no Brasil quem gosta de futebol praticamente fica à mercê de
um conglomerado televisivo, na vizinha Argentina o governo comprou a
briga com o Clarín, principal grupo de mídia do país, e assumiu as
transmissões, que passaram a ser gratuitas e exibidas pela TV pública,
com o lançamento do programa Futebol para Todos. A mudança faz parte da
substituição da antiga Ley de Radiodifusión pela Ley de Medios
Audiovisuales.
"Um capítulo importante dessa lei era precisamente garantir o direito
ao acesso ao esporte mais importante dos argentinos", afirmou a
presidenta Cristina Kirchner, na assinatura do convênio entre a AFA, a
associação de futebol argentina, e o Sistema Nacional de Medios Públicos
(SNMP), em agosto de 2009. Segundo ela, é obrigação do Estado "garantir
a todos, sobretudo àqueles que não podem pagar, o direito a ver seu
esporte predileto".
Para Gustavo Bulla, diretor da Autoridade Federal de Serviços de
Comunicação Audiovisual, órgão regulador argentino, a exclusividade de
direitos para televisionamento de futebol foi um dos fatores que levaram
à concentração no meio audiovisual. "Agora, aquele adolescente de 18,
19 anos está vendo pela primeira vez um jogo de futebol, porque muitas
cidades, devido ao sistema a cabo, não podiam transmitir", afirmou,
durante evento em Brasília no final de 2010.
O governo argentino ofereceu US$ 150 milhões por ano, até 2019, para
televisionar o campeonato. O valor é aproximadamente três vezes maior
que o da TV privada. O acordo foi aceito pelos clubes, todos em
dificuldade financeira, e intermediado pela AFA.
No Brasil, nas negociações pelo direito de transmissão do Campeonato
Brasileiro de 2012 a 2014, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(Cade), vinculado ao Ministério da Justiça, até conseguiu impor um
pouco de concorrência ao tema. A Globo ficou de fora do leilão elaborado
pelo Clube dos 13 e implodiu o órgão ao assediar individualmente os
clubes. Ofereceu bem mais do que pagou no contrato anterior a alguns dos
principais times do país. A Rede TV! entrou como única concorrente e
ganhou a licitação no atacado. A Record, da qual se esperava a maior
oferta, nem entrou no leilão depois dos movimentos da Globo "por fora" -
e, como a rival, partiu para as negociações individuais.
As dúvidas se multiplicam. Durante o programa Observatório da
Imprensa, o procurador-geral do Cade, Gilvandro Araújo, afirmou que a
autoridade antitruste poderá se manifestar novamente se acionada. "Isso
(as discussões entre TVs e clubes) talvez vá ensejar no futuro um outro
tipo de análise, não só do Cade, mas de todos os interessados nesse
setor."
No campeonato inglês, os clubes negociam juntos. Na Espanha,
separados, com grande parte do bolo destinada ao Barcelona e ao Real
Madrid. Enquanto na Inglaterra o troféu é disputado por várias equipes, a
Espanha criou "o melhor campeonato gaúcho do mundo", conforme expressão
do jornalista esportivo Paulo Vinicius Coelho, em referência ao
campeonato do Rio Grande do Sul, quase sempre vencido por Internacional
ou Grêmio.
A questão, no Brasil, passa também pela política. Parte dos clubes é
aliada de Ricardo Teixeira, presidente da Confederação Brasileira de
Futebol (CBF) há 22 anos, parceiro da Globo e candidatíssimo ao comando
da Fifa, a entidade maior da modalidade mundialmente. Antes de assistir
de camarote à implosão, Teixeira tentou sem sucesso emplacar na
presidência do Clube dos 13 seu aliado Kléber Leite, ex-presidente do
Flamengo.
Entre os cotados para substituí-lo na CBF, se o mundo não acabar até
lá, estão o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, companheiro de
primeira hora, e até Marcelo Campos Pinto, executivo da Globo e
principal articulador do atual imbróglio do futebol brasileiro - que não
está livre de acabar nos tribunais.
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