Por Robert Darnton no Observatorio da Imprensa |
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A confusão em torno da natureza da chamada
idade da informação levou a uma situação de falsa consciência coletiva.
Não é culpa de ninguém, e sim, um problema de todos porque ao tentarmos
nos orientar no ciberespaço, frequentemente apreendemos coisas de forma
errada e esses equívocos se disseminam tão rapidamente que são
incorrigíveis. Considerados em seu conjunto, constituem a origem de uma
proverbial não-sabedoria. Cinco deles se destacam: 1. "O livro morreu." Errado: são impressos a cada ano mais livros que no ano anterior. Até agora, foram publicados um milhão de novos títulos em 2011, no mundo inteiro. Na Grã-Bretanha, em um único dia – a "super quinta-feira", 1º de outubro de 2010 – foram publicadas 800 novas obras. Em relação aos Estados Unidos, os números mais recentes só cobrem 2009 e não fazem distinção entre livros novos e novas edições de livros antigos. Mas o número total – 288.355 – sugere um mercado saudável e o crescimento em 2010 e 2011 provavelmente será muito maior. Além disso, estes números, fornecidos por Bowker, não incluem a explosão na produção de livros "não-tradicionais" – mais 764.448 títulos produzidos por edições dos próprios autores ou editados, a pedido, por microempresas. E o negócio de livros também está crescendo em países emergentes, como a China e o Brasil. Qualquer que seja a forma de avaliar, a população de livros está crescendo, não decrescendo e, com certeza, não está morrendo. Deterioração dos textos digitais 2. "Entramos na idade da informação." Este anúncio normalmente é entoado com solenidade, como se a informação não existisse em outras épocas. Mas toda era é uma era da informação, cada uma à sua maneira e de acordo com a mídia disponível nesse momento. Ninguém negaria que os modos de comunicação estão mudando rapidamente, talvez tão rapidamente quanto na época de Gutenberg, mas é um equívoco interpretar essa mudança como sem precedentes. 3. "Agora, toda a informação está disponível online." O absurdo dessa afirmação é óbvio para quem quer que já tenha feito pesquisa em arquivos. Somente uma mínima fração do material arquivado já foi lido alguma vez, muito menos foi digitalizado. A maioria das decisões judiciais, assim como a legislação – tanto estadual, quanto federal –, nunca apareceu na web. A imensa divulgação de regulações e relatórios por órgãos públicos permanece, em grande parte, inacessível aos cidadãos a quem diz respeito. O Google avalia que existem no mundo 129.864.880 livros e afirma ter digitalizado 15 milhões deles – ou cerca de 12%. Como conseguirá preencher a lacuna se a produção continuar a se expandir a uma média de um milhão de novas obras por ano? E como será divulgada maciçamente, e online, a informação em formatos não-impressos? Metade dos filmes realizados antes de 1940 sumiu. Qual o percentual do atual material audiovisual que sobreviverá, ainda que numa aparição fugaz, na web? Apesar dos esforços para preservar os milhões de mensagens trocadas por meio de blogs, e-mails e instrumentos manuais, a maior parte do fluxo diário de informação desaparece. Os textos digitais deterioram-se muito mais facilmente que as palavras impressas em papel. Brewster Kahle, o criador do Internet Archive, avaliava, em 1997, que a média de vida de uma URL era de 44 dias. Não só a maioria das informações não aparece online, como a maioria das informações que alguma vez apareceu provavelmente se perdeu. Transição para a ecologia digital 4. "As bibliotecas são obsoletas." Biblioteconomistas do país inteiro relatam que nunca tiveram tantos clientes. Em Harvard, nossas salas de leitura estão cheias. As 85 bibliotecas vinculadas ao sistema da Biblioteca Pública de Nova York estão abarrotadas de gente. As bibliotecas fornecem livros, vídeos e outro tipo de material, como sempre fizeram, mas também preenchem novas funções: acesso a informação para pequenas empresas, ajuda nos deveres de casa e atividades pós-escolares das crianças e informações sobre emprego para desempregados (o desaparecimento dos anúncios "precisa-se" nos jornais impressos tornou os serviços da biblioteca fundamentais para os desempregados). Os biblioteconomistas atendem às necessidades de seus clientes de muitas maneiras novas, principalmente guiando-os através dos mistérios do ciberespaço para material digital relevante e confiável. As bibliotecas nunca foram armazéns de livros. Embora continuem a fornecer livros no futuro, também funcionarão como centros nervosos para a informação digitalizada – tanto em termos de vizinhança, quanto dos campi universitários. 5. "O futuro é digital." Relativamente verdadeiro, mas equivocado. Em 10, 20 ou 50 anos, o ambiente da informação será esmagadoramente digital, mas a predominância da comunicação eletrônica não significa que o material impresso deixe de ser importante. Pesquisa feita na História do Livro, disciplina relativamente recente, demonstrou que novos modos de comunicação não substituem os velhos – pelo menos no curto prazo. Na verdade, a publicação de manuscritos se expandiu após Gutenberg e continuou progredindo por três séculos. O rádio não destruiu o jornal, a televisão não matou o rádio e a internet não extinguiu a TV. Em cada caso, o ambiente de informação se tornou mais rico e mais complexo. É essa a experiência por que passamos nesta fase crucial de transição para uma ecologia predominantemente digital. Leituras descontínuas Menciono esses equívocos porque acho que eles atrapalham a compreensão das mudanças no ambiente da informação. Fazem com que as mudanças pareçam muito dramáticas. Apresentam as coisas fora de seu contexto histórico e em nítidos contrastes – antes e depois, e/ou, preto e branco. Uma visão mais sutil recusaria a noção comum de que livros velhos e e-books ocupam os extremos opostos e antagônicos num espectro tecnológico. Devia-se pensar em livros velhos e e-books como aliados, e não como inimigos. Para ilustrar esta afirmação, gostaria de fazer algumas breves observações sobre o mercado de livros – ler e escrever. No ano passado, a venda de e-books (textos digitalizados criados para leitura manual) duplicou, respondendo por 10% das vendas no mercado de livros. Este ano, espera-se que atinjam 15%, ou mesmo 20%. Mas há indícios de que a venda de livros impressos também aumentou no mesmo período. O entusiasmo pelos e-books pode ter estimulado a leitura em geral e o mercado, como um todo, parece crescer. Novos leitores eletrônicos de livros, que operam como o ATM (protocolo de telecomunicações), reforçaram essa tendência. Um cliente entra numa livraria e solicita um texto digitalizado de um computador. O texto é baixado para o leitor eletrônico, impresso e entregue na forma de uma brochura em quatro minutos. Esta versão do serviço "impresso-por-pedido" mostra como o antiquado manuscrito pode ganhar vida nova com a adaptação à tecnologia eletrônica. Muitos de nós nos preocupamos com a diminuição da leitura profunda, reflexiva, de ponta a ponta do livro. Deploramos a guinada para blogs, fragmentos de texto e tuítes. No caso da pesquisa, poderíamos reconhecer que os instrumentos de busca têm vantagens, mas nos recusamos a acreditar que eles possam conduzir ao tipo de compreensão que se adquire com o estudo contínuo de um livro. Seria verdade, entretanto, que a leitura profunda diminuiu, ou mesmo que ela sempre tenha prevalecido? Estudos feitos por Kevin Sharpe, Lisa Jardine e Anthony Grafton provaram que os humanistas dos séculos 16 e 17 muitas vezes faziam leituras descontínuas, procurando passagens que poderiam ser usadas nas ácidas batalhas de retórica em juízo, ou pedaços de sabedoria que podiam ser copiados para livros banais e consultados fora de seu contexto. Informação histórica Em seus estudos sobre cultura entre pessoas comuns, Richard Hoggart e Michel de Certeau enfatizaram o aspecto positivo de uma leitura intermitente e em pequenas doses. Em sua opinião, cada leitor comum se apropria de livros (incluindo panfletos e romances de paixão) à sua maneira, induzindo-lhes o significado que faz sentido para sua compreensão. Longe de serem passivos, esses leitores, segundo Certeau, agem como "plagiadores", pescando um significado daquilo a que têm acesso. A situação da escrita parece tão ruim quanto a da leitura para aqueles que só veem o declínio, com o advento da internet. Um deles lamenta-se: os livros costumavam ser escritos para o leitor comum; agora, eles são escritos pelo leitor comum. É evidente que a internet estimulou a autopublicação, mas o que há de errado nisso? Muitos escritores, com coisas importantes a dizer, nunca haviam conseguido uma editora para publicá-los – e quem achar seu trabalho de pouco valor, pode simplesmente ignorá-lo. A versão online das publicações pagas pelo autor pode contribuir para sobrecarregar as informações, mas os editores profissionais se sentirão aliviados com esse problema e continuarão fazendo o que sempre fizeram – selecionado, editando, diagramando e negociando as melhores obras. Terão que adaptar seus talentos à internet – mas já o fazem – e podem tirar vantagem das novas possibilidades oferecidas pela nova tecnologia. Para citar um exemplo de minha experiência, recentemente escrevi um livro impresso com um suplemento eletrônico, Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris (Harvard University Press). Descreve como as canções de rua mobilizaram a opinião pública numa sociedade amplamente analfabeta. A cada dia, os parisienses improvisavam novas letras para antigas melodias e as canções fluíam com tamanha força que precipitaram uma crise política em 1749. Mas como é que as melodias alteravam seu significado? Depois de localizar as anotações musicais de uma dúzia de canções, pedi a uma artista de cabaré, Hélène Delavault, para gravá-las para o suplemento eletrônico do livro. Assim, o leitor pode estudar o texto das canções no livro ao mesmo tempo em que as escuta online. O ingrediente eletrônico de um antigo manuscrito torna possível explorar uma nova dimensão do passado, capturando seus sons. Poderiam ser citados outros exemplos de como a nova tecnologia reforça velhos modos de comunicação, ao invés de miná-los. Não pretendo minimizar as dificuldades que enfrentam escritores, editores e leitores, mas acredito que uma reflexão com base na informação histórica poderia eliminar os equívocos que nos impedem de usufruir ao máximo da "idade da informação" – se assim a devemos chamar. |
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quinta-feira, 21 de abril de 2011
Cinco mitos sobre a idade da informação
Volta às armas - Reaparelhamento das Forças Armadas
Do blog Aposentado Invocado
A indústria bélica está em polvorosa no Brasil. O governo vai investir mais de R$ 30 bilhões no reaparelhamento das Forças Armadas.
Fusões e aquisições movimentam o mercado e atraem novas empresas, como a
Embraer e a Odebrecht Por Guilherme Queiroz e Carlos Eduardo Valim
Para
a indústria de defesa brasileira, o nome Osório carrega um fardo
histórico. Projetado pela extinta Engesa, em meados da década de 1980,
era tido, à época, como um tanque inovador, mais moderno e mais barato
que os concorrentes. Mesmo com credenciais como essas, o Osório não
conseguiu sair do estágio do protótipo da Engesa.
Numa
concorrência aberta pelo governo da Arábia Saudita, foi derrotado por
um similar dos Estados Unidos, o M1 Abrams. Reza a lenda que foi uma
jogada diplomática não muito leal dos americanos, que acusaram o Brasil
de estar alinhado à antiga União Soviética. A derrota ajudou a
precipitar a falência da então maior fabricante de blindados da América
Latina, que havia investido US$ 100 milhões no protótipo do Osório.
Com
a morte do tanque brasileiro, boa parte da indústria local de
armamentos perdeu o rumo por muito tempo.
Agora, quase duas décadas
depois, o fracasso do Osório começa a ser exorcizado com um novo ciclo
de investimentos. Nos próximos 15 anos, mais de R$ 30 bilhões
devem ser gastos para reaparelhar as Forças Armadas. A boa notícia é
que, em vez de ser gasto na compra de equipamentos de segunda mão,
descartados por outros países – prática recorrente até há pouco tempo –,
esse dinheiro será aplicado na indústria nacional, chamada a
desenvolver tecnologias para modernizar as obsoletas frotas do Exército,
Marinha e Aeronáutica. “Saímos da vida vegetativa para o
renascimento da indústria”, diz Carlos Pierantoni, presidente da
Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa (Abimde).
A justificativa para o novo ciclo de investimentos está no plano do governo de estruturar uma capacidade dissuasória contra ataques à América do Sul. “Temos recursos na região que serão objeto de disputa em 50 anos: água, solo, capacidade energética”, afirma o ministro da Defesa, Nelson Jobim. A nova Estratégia Nacional de Defesa (END) prevê duas frentes principais de investimentos: para o monitoramento das fronteiras e para a mobilidade de tropas.
A perspectiva de participar como fornecedor dos grandes projetos militares gera uma movimentação intensa no setor bélico brasileiro. Há duas semanas, o LAAD, maior evento de defesa da América Latina, realizado no Rio de Janeiro, reuniu 663 expositores de 40 países, o dobro de 2009.
Um dos “xodós” das Forças Armadas é o cargueiro KC 390, em desenvolvimento na Embraer, que deve consumir US$ 1,7 bilhão em investimento até o voo do primeiro protótipo, em 2014. Candidata a conquistar 30% do mercado mundial, a Embraer já soma 60 intenções de compra de oito países e dois parceiros internacionais na produção: a Argentina FAdeA, para construção de partes da asa, e a tcheca Aero Vodochody, que fornecerá aeroestruturas. A Embraer também já mapeou oportunidades para investir em sistemas de defesa antiaérea e radares e desenvolve um veículo aéreo não tripulado em parceria com a gaúcha AEL Sistemas S.A.
As perspectivas de negócios são tantas que a empresa, sediada em São José dos Campos, criou em março uma divisão específica para executar sua estratégia no setor de defesa. “Estima-mos participar de projetos com valor de até US$ 15 bilhões nos próximos 15 anos”, disse à DINHEIRO Luiz Carlos Aguiar, presidente da Embraer Defesa e Segurança.
A empresa não tem medido esforços para demarcar território no setor. Em março, adquiriu a Orbisat, fabricante paulista de radares, por R$ 28,5 milhões. Neste mês, anunciou a aquisição de 50% da Atech, responsável pelo projeto básico do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), que vai consumir US$ 6 bilhões.
Com a aquisição, um negócio avaliado em R$ 36 milhões, a Embraer ganha espaço para ser a gestora das próximas etapas de instalação de radares e integração dos sistemas. “As Forças Armadas darão esse papel a uma companhia brasileira”, diz o general Antonino Guerra, comandante de comunicação e guerra eletrônica do Exército.
A justificativa para o novo ciclo de investimentos está no plano do governo de estruturar uma capacidade dissuasória contra ataques à América do Sul. “Temos recursos na região que serão objeto de disputa em 50 anos: água, solo, capacidade energética”, afirma o ministro da Defesa, Nelson Jobim. A nova Estratégia Nacional de Defesa (END) prevê duas frentes principais de investimentos: para o monitoramento das fronteiras e para a mobilidade de tropas.
A perspectiva de participar como fornecedor dos grandes projetos militares gera uma movimentação intensa no setor bélico brasileiro. Há duas semanas, o LAAD, maior evento de defesa da América Latina, realizado no Rio de Janeiro, reuniu 663 expositores de 40 países, o dobro de 2009.
Um dos “xodós” das Forças Armadas é o cargueiro KC 390, em desenvolvimento na Embraer, que deve consumir US$ 1,7 bilhão em investimento até o voo do primeiro protótipo, em 2014. Candidata a conquistar 30% do mercado mundial, a Embraer já soma 60 intenções de compra de oito países e dois parceiros internacionais na produção: a Argentina FAdeA, para construção de partes da asa, e a tcheca Aero Vodochody, que fornecerá aeroestruturas. A Embraer também já mapeou oportunidades para investir em sistemas de defesa antiaérea e radares e desenvolve um veículo aéreo não tripulado em parceria com a gaúcha AEL Sistemas S.A.
As perspectivas de negócios são tantas que a empresa, sediada em São José dos Campos, criou em março uma divisão específica para executar sua estratégia no setor de defesa. “Estima-mos participar de projetos com valor de até US$ 15 bilhões nos próximos 15 anos”, disse à DINHEIRO Luiz Carlos Aguiar, presidente da Embraer Defesa e Segurança.
A empresa não tem medido esforços para demarcar território no setor. Em março, adquiriu a Orbisat, fabricante paulista de radares, por R$ 28,5 milhões. Neste mês, anunciou a aquisição de 50% da Atech, responsável pelo projeto básico do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), que vai consumir US$ 6 bilhões.
Com a aquisição, um negócio avaliado em R$ 36 milhões, a Embraer ganha espaço para ser a gestora das próximas etapas de instalação de radares e integração dos sistemas. “As Forças Armadas darão esse papel a uma companhia brasileira”, diz o general Antonino Guerra, comandante de comunicação e guerra eletrônica do Exército.
A Embraer não está sozinha nesse páreo.
Segundo o general Guerra, empresas de outros segmentos demonstraram interesse no projeto. O grupo Odebrecht, potência nas áreas petroquímica e de infraestrutura, aposta muitas fichas na área de defesa. Em 2008, o grupo já havia fechado contrato, no valor de R$ 20 bilhões, com a francesa DCNS para construir submarinos convencionais e de propulsão nuclear, além do estaleiro em que serão fabricados, no Porto de Sepetiba, no Rio de Janeiro.
No ano passado, a Odebrecht assumiu a Mectron, fabricante paulista de mísseis, e firmou uma joint venture com a francesa Cassidian, braço de defesa do grupo EADS. Esses movimentos foram consolidados há duas semanas com a criação de seu braço bélico, a Odebrecht Defesa e Tecnologia. “Acreditamos nesse mercado, mas é um projeto de longuíssimo prazo”, diz Roberto Simões, presidente da nova divisão. Outras aquisições este ano, porém, não estão descartadas.
Nesta nova etapa para o setor, um dos maiores incentivos para as empresas locais é a exigência das Forças Armadas de um percentual mínimo de componentes nacionais nos projetos em curso. A Iveco, de Minas Gerais, fábrica de caminhões da Fiat, estima em um total de 100 as empresas brasileiras que participarão da produção do blindado Guarani, que começa a ser fabricado em Sete Lagoas (MG), no fim de 2012. O contrato de R$ 6 bilhões, firmado com o Exército, prevê a entrega de 2.044 unidades com 60% de índice de nacionalização. “Todas as tecnologias, de mecânica e eletrônica à fabricação do motor, foram desenvolvidas no Brasil”, afirma Marco Mazzu, presidente da Iveco Latin America. Outra empresa instalada em Minas que vê benefícios no índice de nacionalização é a Helibrás, fabricante do helicóptero EC-725 Super Cougar. A empresa tem uma encomenda de 50 aeronaves, que serão produzidas em Itajubá (MG).
Segundo o general Guerra, empresas de outros segmentos demonstraram interesse no projeto. O grupo Odebrecht, potência nas áreas petroquímica e de infraestrutura, aposta muitas fichas na área de defesa. Em 2008, o grupo já havia fechado contrato, no valor de R$ 20 bilhões, com a francesa DCNS para construir submarinos convencionais e de propulsão nuclear, além do estaleiro em que serão fabricados, no Porto de Sepetiba, no Rio de Janeiro.
No ano passado, a Odebrecht assumiu a Mectron, fabricante paulista de mísseis, e firmou uma joint venture com a francesa Cassidian, braço de defesa do grupo EADS. Esses movimentos foram consolidados há duas semanas com a criação de seu braço bélico, a Odebrecht Defesa e Tecnologia. “Acreditamos nesse mercado, mas é um projeto de longuíssimo prazo”, diz Roberto Simões, presidente da nova divisão. Outras aquisições este ano, porém, não estão descartadas.
Nesta nova etapa para o setor, um dos maiores incentivos para as empresas locais é a exigência das Forças Armadas de um percentual mínimo de componentes nacionais nos projetos em curso. A Iveco, de Minas Gerais, fábrica de caminhões da Fiat, estima em um total de 100 as empresas brasileiras que participarão da produção do blindado Guarani, que começa a ser fabricado em Sete Lagoas (MG), no fim de 2012. O contrato de R$ 6 bilhões, firmado com o Exército, prevê a entrega de 2.044 unidades com 60% de índice de nacionalização. “Todas as tecnologias, de mecânica e eletrônica à fabricação do motor, foram desenvolvidas no Brasil”, afirma Marco Mazzu, presidente da Iveco Latin America. Outra empresa instalada em Minas que vê benefícios no índice de nacionalização é a Helibrás, fabricante do helicóptero EC-725 Super Cougar. A empresa tem uma encomenda de 50 aeronaves, que serão produzidas em Itajubá (MG).
Parte
das peças serão importadas da matriz – seu principal controlador é a
Eurocopter, do grupo EADS – e 50% dos componentes serão nacionais. Alguns helicópteros, porém, não devem ser produzidos no Brasil.
Eduardo Marson, presidente da Helibrás, não vê nisso um problema.
“Nossos fornecedores locais serão integrados à enorme cadeia global da
Eurocopter”, diz.
Tornar-se fornecedor em escala global é o sonho de produção de qualquer fabricante que se preze. Ainda mais num segmento que movimenta US$ 1,5 trilhão por ano no mundo. Mas o mercado interno também pode garantir pedidos da indústria para o setor civil. A paulistana Atmos, por exemplo, que desenvolve radares meteorológicos para uso militar, já pensa numa nova finalidade para seus sistemas. “A Copa do Mundo e as Olimpíadas de 2016 vão impulsionar nosso mercado”, diz Cláudio Carvas, presidente da Atmos.
Diversificar mercados é também uma chance de as empresas se tornarem menos suscetíveis às restrições no orçamento do Ministério da Defesa, uma das primeiras pastas a sofrer cortes quando o governo precisa apertar o cinto. Em 2011, a tesourada atingiu R$ 4,3 bilhões dos investimentos, forçando o Ministério da Defesa a malabarismos para manter programas como o do blindado Guarani.
Por outro lado, o setor tem se mostrado otimista com a elevação dos investimentos, que quadriplicaram nos últimos cinco anos, chegando a R$ 7,7 bilhões em 2010. Segundo o Instituto Internacional de Estudos da Paz de Estocolmo (Sipri), entidade que mede e analisa orçamentos de defesa em todo mundo, o Brasil foi o principal responsável pela alta de 5,8% dos gastos militares da América Latina. “O Brasil está buscando projetar seu poder e influência por meio da modernização militar’’, constatou a entidade.
Tornar-se fornecedor em escala global é o sonho de produção de qualquer fabricante que se preze. Ainda mais num segmento que movimenta US$ 1,5 trilhão por ano no mundo. Mas o mercado interno também pode garantir pedidos da indústria para o setor civil. A paulistana Atmos, por exemplo, que desenvolve radares meteorológicos para uso militar, já pensa numa nova finalidade para seus sistemas. “A Copa do Mundo e as Olimpíadas de 2016 vão impulsionar nosso mercado”, diz Cláudio Carvas, presidente da Atmos.
Diversificar mercados é também uma chance de as empresas se tornarem menos suscetíveis às restrições no orçamento do Ministério da Defesa, uma das primeiras pastas a sofrer cortes quando o governo precisa apertar o cinto. Em 2011, a tesourada atingiu R$ 4,3 bilhões dos investimentos, forçando o Ministério da Defesa a malabarismos para manter programas como o do blindado Guarani.
Por outro lado, o setor tem se mostrado otimista com a elevação dos investimentos, que quadriplicaram nos últimos cinco anos, chegando a R$ 7,7 bilhões em 2010. Segundo o Instituto Internacional de Estudos da Paz de Estocolmo (Sipri), entidade que mede e analisa orçamentos de defesa em todo mundo, o Brasil foi o principal responsável pela alta de 5,8% dos gastos militares da América Latina. “O Brasil está buscando projetar seu poder e influência por meio da modernização militar’’, constatou a entidade.
Reforma na saúde coloca Reino Unido à beira de uma crise política
Alfonso Daniels no OperaMundi
Em meio a edifícios semidestruídos no humilde bairro de Tower Hamlets, no leste de Londres, e muito próximo da futura zona olímpica, ergue-se um dos muitos centros médicos públicos espalhados pela cidade. Diante do prédio, uma dona de casa bengalesa de 40 anos que se apresenta como Tara, uma das milhares de imigrantes que lá vivem, afirma indignada que tem de esperar mais de três meses para ser atendida por um médico especialista, embora o tempo máximo de espera seja, em teoria, de 21 dias.
"Um amigo que sentia dores no corpo levou semanas para conseguir consultar um médico de família, que lhe receitou alguns comprimidos", conta ela. "No começo, ele disse que era tuberculose. Depois, câncer. Meu amigo teve de esperar meses para consultar um especialista e acabou morrendo. Sofria de uma doença pulmonar. Neste país, se você é pobre e fica doente, está perdido".
Ao seu lado, Monique, uma jovem francesa que trabalha como assistente social e mora em Londres há oito anos, concorda acenando a cabeça: "Em meu país, você sempre pode visitar seu médico. Aqui, você é atendido por alguém diferente a cada vez, e o serviço é péssimo. Há muita burocracia, é um desastre".
Justamente para resolver esses problemas e economizar 33 bilhões de dólares em quatro anos, em meio a uma crise econômica e com um déficit público nas nuvens, o governo da coalizão conservadora e liberal-democrata britânica propôs no outono a maior reforma do Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) desde a criação da instituição, depois da Segunda Guerra Mundial. A proposta já percorreu metade do caminho para a aprovação parlamentar.
A ideia é conceder aos médicos de família o controle de 80% do orçamento de saúde, incluindo a distribuição de fundos e a compra de serviços para os pacientes, hoje a cargo de centros de gestão sanitária. A reforma também prevê a participação de empresas privadas e associações de caridade na oferta de serviços de saúde.
Alfonso Daniels
O Gill Street Health Care Center é um dos muitos centros hospitalares que apresentam problemas em Londres.
No entanto, o governo pouco esperava a tormenta política que provocaria, com fortes críticas dos sindicatos e associações médicas até a oposição trabalhista. O último a levantar a voz contra a reforma foi Norman Lamb, assessor político do vice-primeiro-ministro liberal, Nick Clegg, que neste fim de semana ameaçou renunciar se a proposta não for modificada.
Ele a qualificou de "arriscada", pois não fica claro o funcionamento da nova estrutura, embora ela deva entrar em vigor já em 2013. Outros afirmam que a entrada de empresas privadas poderia levar estas a escolher tratar os casos simples e deixar os mais complexos e custosos para os serviços públicos. E advertem para a falta de um sistema de controle sobre os novos administradores da saúde, as associações de médicos de família.
A crescente pressão obrigou na semana passada o primeiro-ministro David Cameron e seu ministro da Saúde, Andrew Lansley, a suspender temporariamente a reforma. Eles também anunciaram que, nas próximas semanas, participarão de diversos eventos para "escutar" a opinião dos cidadãos antes de reapresentar sua proposta – algo que, dizem muitos, deveria ter sido feito antes da apresentação ao Parlamento.
“É raríssimo um governo frear uma proposta nessa etapa da ratificação parlamentar. Isso reflete seu grau de preocupação”, afirmou ao Opera Mundi Chris Ham, diretor da fundação King's Fund e um dos mais destacados especialistas no tema. “O plano atual tem muitos problemas. No final, certamente haverá modificações substanciais, e não seria absurdo abrir um período de consultas”.
Ham observou que quase todos concordam com a necessidade de uma reforma. O fato é que, apesar de o sistema ter melhorado na última década graças a um maior investimento por parte de governos trabalhistas, a Inglaterra continua atrás da Europa, entre outros, no tratamento do câncer e nos cuidados ao idoso. Mas Ham advertiu: “A reforma, como está proposta agora, poderia piorar as coisas ainda mais. Se o governo não mudar seu curso, tentando evoluir, em vez de revolucionar o sistema, o desfecho poderá ser fatal. Logo veremos”.
Em meio a edifícios semidestruídos no humilde bairro de Tower Hamlets, no leste de Londres, e muito próximo da futura zona olímpica, ergue-se um dos muitos centros médicos públicos espalhados pela cidade. Diante do prédio, uma dona de casa bengalesa de 40 anos que se apresenta como Tara, uma das milhares de imigrantes que lá vivem, afirma indignada que tem de esperar mais de três meses para ser atendida por um médico especialista, embora o tempo máximo de espera seja, em teoria, de 21 dias.
"Um amigo que sentia dores no corpo levou semanas para conseguir consultar um médico de família, que lhe receitou alguns comprimidos", conta ela. "No começo, ele disse que era tuberculose. Depois, câncer. Meu amigo teve de esperar meses para consultar um especialista e acabou morrendo. Sofria de uma doença pulmonar. Neste país, se você é pobre e fica doente, está perdido".
Ao seu lado, Monique, uma jovem francesa que trabalha como assistente social e mora em Londres há oito anos, concorda acenando a cabeça: "Em meu país, você sempre pode visitar seu médico. Aqui, você é atendido por alguém diferente a cada vez, e o serviço é péssimo. Há muita burocracia, é um desastre".
Justamente para resolver esses problemas e economizar 33 bilhões de dólares em quatro anos, em meio a uma crise econômica e com um déficit público nas nuvens, o governo da coalizão conservadora e liberal-democrata britânica propôs no outono a maior reforma do Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) desde a criação da instituição, depois da Segunda Guerra Mundial. A proposta já percorreu metade do caminho para a aprovação parlamentar.
A ideia é conceder aos médicos de família o controle de 80% do orçamento de saúde, incluindo a distribuição de fundos e a compra de serviços para os pacientes, hoje a cargo de centros de gestão sanitária. A reforma também prevê a participação de empresas privadas e associações de caridade na oferta de serviços de saúde.
Alfonso Daniels
O Gill Street Health Care Center é um dos muitos centros hospitalares que apresentam problemas em Londres.
No entanto, o governo pouco esperava a tormenta política que provocaria, com fortes críticas dos sindicatos e associações médicas até a oposição trabalhista. O último a levantar a voz contra a reforma foi Norman Lamb, assessor político do vice-primeiro-ministro liberal, Nick Clegg, que neste fim de semana ameaçou renunciar se a proposta não for modificada.
Ele a qualificou de "arriscada", pois não fica claro o funcionamento da nova estrutura, embora ela deva entrar em vigor já em 2013. Outros afirmam que a entrada de empresas privadas poderia levar estas a escolher tratar os casos simples e deixar os mais complexos e custosos para os serviços públicos. E advertem para a falta de um sistema de controle sobre os novos administradores da saúde, as associações de médicos de família.
A crescente pressão obrigou na semana passada o primeiro-ministro David Cameron e seu ministro da Saúde, Andrew Lansley, a suspender temporariamente a reforma. Eles também anunciaram que, nas próximas semanas, participarão de diversos eventos para "escutar" a opinião dos cidadãos antes de reapresentar sua proposta – algo que, dizem muitos, deveria ter sido feito antes da apresentação ao Parlamento.
“É raríssimo um governo frear uma proposta nessa etapa da ratificação parlamentar. Isso reflete seu grau de preocupação”, afirmou ao Opera Mundi Chris Ham, diretor da fundação King's Fund e um dos mais destacados especialistas no tema. “O plano atual tem muitos problemas. No final, certamente haverá modificações substanciais, e não seria absurdo abrir um período de consultas”.
Ham observou que quase todos concordam com a necessidade de uma reforma. O fato é que, apesar de o sistema ter melhorado na última década graças a um maior investimento por parte de governos trabalhistas, a Inglaterra continua atrás da Europa, entre outros, no tratamento do câncer e nos cuidados ao idoso. Mas Ham advertiu: “A reforma, como está proposta agora, poderia piorar as coisas ainda mais. Se o governo não mudar seu curso, tentando evoluir, em vez de revolucionar o sistema, o desfecho poderá ser fatal. Logo veremos”.
Refazendo o mundo a golpes de bisturi.
O
crescimento do setor de cirurgias plásticas – de 465% na última década –
reflete uma tentativa de resolver a contradição entre os sonhos cada
vez mais grandiosos alimentados pela mídia.
|
por Mona Cholllet no DiploBrasil |
Na primavera de 2007, falando ao telefone com dois banqueiros, em seu
escritório na Universidade de Middlebury, em
Vermont, Laurie Essig anunciou que os Estados Unidos estavam na
iminência de uma crise grave. Seu conhecimento de economia era parco,
mas seu campo de pesquisa em sociologia, a cirurgia estética, a colocava
num lugar privilegiado para assistir ao que ela chama de “a crise subprime do corpo1”.
Nos Estados Unidos, de fato, 85% dos procedimentos estéticos – não só
cirurgia, mas também tratamentos a laser ou injeções – são pagos por
empréstimos. Eles não requerem nenhuma contribuição
mínima, como é o caso em todos os países,
exceto México e Austrália. Essa situação se deve a
duas medidas tomadas pelo presidente Ronald Reagan logo após sua
ascensão à presidência em 1981: por um
lado, a autorização da publicidade médica e, por outro, a
desregulamentação do crédito. As empresas que se especializam no
financiamento de procedimentos médicos, sendo a mais importante
a CareCredit, uma subsidiária da General Electric,
concedem empréstimos para todos, incluindo a população de baixa renda.
As taxas podem chegar a 28% e dobram quando o devedor não efetua o
pagamento mensal2. Anteriormente reservada aos ricos,
a cirurgia plástica se tornou um empreendimento maciço de
“padronização do rostos e do corpo”. Ela visa atingir,
disse um médico, “tanto as cabeleireiras como as executivas da rede
WalMart”. A clientela é 90% feminina e 80% branca. Entre 2000 e 2010, os
estadunidenses gastaram anualmente cerca de US$ 12,5 bilhões
em procedimentos estéticos.
O crescimento do setor foi de 465% na última década e acompanhou o
aumento da disparidade entre ricos e pobres. Isso reflete uma tentativa
de resolver a contradição entre os sonhos cada vez mais grandiosos –
alimentados pela exibição midiática do estilo de vida das classes
privilegiadas – e os rendimentos cada vez menores. Mas a cirurgia
estética corresponde também a uma visão liberal de
um indivíduo infinitamente maleável, livre de qualquer
pré-determinação e trabalhando continuamente para seu próprio
aperfeiçoamento. Ela beneficia a crença de que todos os problemas
e soluções, tanto o fracasso como o sucesso, são essencialmente
individuais, não coletivos.
Essa lógica fechada explica por que essa indústria foi pouco
afetada pela crise. Laurie Essig logo descobriu que seus
conterrâneos estavam mais determinados que nunca em ir para o
bisturi, mesmo que isso significasse assumir uma segunda hipotecaem sua
casa. Eles percebem seu corpo como um capital a ser valorizado
num mercado, seja o do amor ou o do trabalho, para ter
uma chance de ver finalmente realizado o tal sonho americano.
Modificá-lo para torná-lo mais agradável parece ser o mais
sábio investimento. “Achei que talvez se eu não parecesse tão
velha, tão cansada, conseguiria mais clientes”, disse uma amiga de Essig
que é profissional autônoma e, embora falida, gastou, apenas em
injeções, US$ 800 para encher o sulco nasogeniano (entre o nariz e
o canto dos lábios). Encontrou aí a única resposta que poderia conceber
uma insegurança de ordem estrutural.
Na França, a indústria cosmética não deixa de explorar essa
insegurança, como fica evidente no recente dossiê “Rejuvenescimento
Especial”, da revista Elle. O caso de Chloe, 36
anos foi submetido, entre outros, à opinião de dermatologistas: “No
futuro, não é de ácido hialurônico que ela vai precisar nos sulcos
leoninos da face, mas de toxina botulínica3. Quanto
à sua forma oval, é necessário começar a mantê-la hoje. Aos 50, se ela
realmente perder a sua firmeza, só o facelift poderá consertá-la”4.
A ideologia liberal, lembra Laurie Essig, repousa na crença
da “liberdade de escolha”. Mas o que impressiona é a impotência que
surge no discurso de seus entrevistados: “Gostemos ou não, somente a
aparência conta em nossa sociedade”; “O fato é que o emprego sempre
vai para aquele ou aquela que parece ser mais jovem etc.” O facelift
ou botox parecem ser inevitáveis, “assim como os impostos e a morte”,
observa ela. Dessa forma, eles mesmos criam a realidade à qual
alegam estar submetidos como se o impacto de suas ações coletivas, de
tanto ser negado, se voltasse contra eles. Como todos querem se
destacar, vemos uma escalada absurda em que as frontes devem ser sempre
mais suaves, as linhas cada vez mais congeladas e os seios
maiores. A avalanche de imagens de corpos artificiais, lisos e
brilhantes dos supermodelos e celebridades dá o tom, alimentando a
ansiedade e o ódio ao corpo real.
Ironia suprema, a maioria dos médicos sonhava, inicialmente, com outra
coisa, particularmente com a cirurgia reparadora ou reconstrutiva, mas
eles se especializaram em implantes mamários e lipoaspirações a partir
do momento em que tiveram seus próprios empréstimos para pagar.
Alguns até afirmam que seu trabalho é feminista porque ajuda as
mulheres a “obter melhor opinião de si mesmas”. Isso é confundir a
autoestima com o alívio que vem de “provar sua lealdade à ordem
dominante”, nas palavras de Laurie Essig, em uma eficiente síntese da
obra de Michel Foucault sobre o moderno exercício do poder pela
disciplina dos corpos. Ela aponta que, desde sua origem, o projeto
da cirurgia estética tem sido o de normalização, tanto racial
como sexual, tentando apagar todos os marcadores que poderiam catalogar
um sujeito como “não branco” e liberá-lo de seu corpo “degenerado”,
mas também para acentuar a diferença entre os sexos, vista como
sinal de superioridade racial. Os primeiros médicos praticantes queriam
corrigir o “nariz de judeu ou irlandês”; hoje em
dia, um cirurgião iraniano constata que “a Disney fez um dano
considerável ao nariz persa”. Quanto à paixão das mulheres brancas
pelos ases do bisturi, cada vez mais dedicados a torná-las mais
“femininas”, só tem feito crescer.
“Ser mais feminina e aumentar a confiança em si mesma” são os
objetivos das “Jornadas de Ação Relooking”, organizadas na França
pelo Polo de Emprego para mulheres desempregadas por longos
períodos, em parceria com o Fundo Ereel. Quando a campanha foi lançada,
com ampla cobertura da mídia, em janeiro5, a comediante Marie-Anne
Chazel explicava sua confiança nos “truques de mulher” para combater o
desemprego em massa. Quem sabe logo teremos um crédito especial para os
beneficiários de baixa renda?
Mona Cholllet é autora de Rêves de droite (Sonhos de direita), Paris, editora Zones, 2008.
1 Laurie Essig, American Plastic. Boob Jobs, Credit Cards, and Our Quest for Perfection, Beacon, Boston, 2010. O mesmo vale para as citações seguintes, salvo indicação em contrário.
2 Em agosto
de 2010, o procurador-geral do Estado de Nova York lançou uma
investigação sobre a CareCredit e outras agências
de créditos médicos, acusadas de enganar seus clientes.
3 As injeções de toxina botulínica diminuem temporariamente as rugas por meio do congelamento dos músculos faciais.
4 “Spécial Rajeunir “, Elle, 4 de fevereiro de 2011.
5 “Opération relooking pour des chômeuses”, www.nouvelobs.com, 11 de janeiro de 2011.
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Ação na Aracruz representou um marco para o movimento ambientalista
Por Raquel Casiraghi
Da Página do MST
Mesmo com a abordagem bastante negativa feita pela mídia burguesa na época, a ocupação do horto florestal da Aracruz e a destruição das mudas, que completou cinco anos em 8 de março, conseguiram levar a discussão dos impactos da monocultura do pínus e do eucalipto para a população. Ambientalistas avaliam também que a ação das mulheres da Via Campesina, em 2006, foi um divisor de águas para o movimento ambientalista.
"Na hora, dentro das entidades, não conseguia se avaliar o que fazer. Me lembro que vinha, dos movimentos, solicitações de apoio formal. Nas organizações, se deu este debate de como iríamos apoiar, de como iríamos encarar esta situação porque, a partir dali, mudou tudo. Aquela ação foi um marco", diz
Clarissa Trois Abreu, da organização não-governamental Amigos da Terra Brasil.
"Esta ação representou um 'corte' entre quem apoiava a iniciativa da Via Campesina e quem se assustava com as questões de propriedade privada e de pesquisa da empresa. Possibilitou o debate interno das organizações e auxiliou muito para que se posicionassem de forma crítica em relação às empresas e ao capital, essa compreensão do que é o agronegócio, juntou tudo, se formou uma frente", avalia Fernando Campos Costa, também da Amigos da Terra Brasil,
Para Clarissa, a ação das mulheres também contribuiu para que os movimentos sociais e os ambientalistas se unissem em torno do debate e da luta contra a monocultura dos eucaliptos. "Antes da ação, o movimento em si ainda não tinha também entrado na luta. Com aquela ação, o movimento mostrou que entrou com tudo. E a partir daí, ou todos se unem, já que a causa é a mesma de todos, ou não. O que aconteceu foi que os movimentos ambientalistas e social se aproximaram", avalia.
Os ambientalistas acreditam que entrada da Via Campesina no tema contribuiu na luta já travada contra a monocultura de eucalipto. Clarissa afirma que a ocupação do horto pelas mulheres criou o fato que faltava para que a população conseguisse vislumbrar o debate que até então se fazia contra a monocultura e os seus prejuízos.
"Por mais que naqueles primeiros momentos a mídia convencional fez tudo para que o protesto prejudicasse a luta, isso ao longo do tempo foi sendo limitado e agora, cinco anos depois, a gente tem a nítida noção de que aquele momento foi importante. Foi criado o fato, foi colocado o marco, a 'estaca' que não se tinha. E que provavelmente o movimento ambiental não iria ter esse poder, essa força popular. A entrada da Via colocou a estaca, marcou, e criou a polêmica, acho que esse era também o objetivo. Agora, tanto tempo depois, a avaliação é positiva. A ação na Aracruz e a entrada da Via foi um marco da luta contra a monocultura", analisa.
A ação das mulheres da Via Campesina, diz Clarissa, também fez com que as entidades ambientalistas se posicionassem sobre a problemática da monocultura de eucalipto. “Com a ação na Aracruz, as organizações tiveram que se mostrar, se definir, o que não era um processo fácil internamente, já que as organizações também têm seus debates internos e seus não-consensos. A ação das mulheres foi um divisor de águas também para o movimento”, afirmou Clarissa.
Depois disso, o movimento social e as organizações ambientais que se juntaram e compartilhavam das mesmas visões seguiram construindo a luta juntos.
Celulose, cinco anos depois
Entre a ação das mulheres da Via Campesina na Aracruz, em 2006, e o
estopim da crise financeira mundial, em 2008, as empresas fizeram
grandes investimentos no setor da celulose.
“Tentaram mostrar muito poder, até por causa da ação das mulheres,
criminalizar e se promover. Mostrar um ‘outro lado’ do setor, para que a
sociedade ignorasse a ação das mulheres e criminalizasse. Usaram o
dinheiro para se colocar na mídia como um fator importante e que iria
trazer o desenvolvimento, tanto econômico como social e ambiental“,
analisa Clarissa.
“Tinham um repertório grande de publicidade em parques, nos jornais. Foi reflexo da ação das mulheres”, lembra Fernando.
Após a ação das mulheres, as três principais empresas do setor no Rio Grande do Sul – Aracruz, Votorantim e Stora Enso – expandiram seus negócios e seus plantios até 2008. Foi neste ano, com o estouro da crise financeira mundial, que as empresas, principalmente a Aracruz, que na época foi acusada até mesmo pelo governo brasileiro de fazer especulação financeira, paralisaram seus investimentos no estado.
Após a ação das mulheres, as três principais empresas do setor no Rio Grande do Sul – Aracruz, Votorantim e Stora Enso – expandiram seus negócios e seus plantios até 2008. Foi neste ano, com o estouro da crise financeira mundial, que as empresas, principalmente a Aracruz, que na época foi acusada até mesmo pelo governo brasileiro de fazer especulação financeira, paralisaram seus investimentos no estado.
Em 2009, o preço da celulose, taxado em dólar no mercado
internacional, caiu, bem como o da lenha e o da madeira. Com isso, todos
que tinham expectativa de fazer muito dinheiro também perderam.
“A falência da Aracruz só foi mais uma conseqüência da crise. Mas,
por outro lado, também gerou uma oportunidade de negócio, já quem que
com a quebra dela foi criada a Fibria [empresa resultante da fusão entre
a Aracruz e a Votorantim], então não foi de todo prejudicial. Por mais
que no mercado local as pessoas que apostaram nesse projeto foram
prejudicadas, a empresa em si acabou criando uma ótima oportunidade de
negócio para outras empresas que tinham condições de bancar. Assim, veio
a Fibria, que ficou maior do que a própria Aracruz”.
No entanto, este negócio, que é positivo para as empresas, não
refletiu na geração de emprego nem no desenvolvimento e no crescimento
regional, dos municípios.
Atualmente, não há notícias de que as empresas estejam comprando
grande quantia de terras no Rio Grande do Sul. A empresa chilena CMPC
assumiu a fábrica da Aracruz na cidade de Guaíba, região metropolitana, e
as demais estruturas da empresa. Ainda há a Stora Enso, que desistiu –
pelo menos momentaneamente - de implementar uma fábrica de celulose no
estado, ficando somente com as terras que tinha comprado, migrando para o
Uruguai e para o projeto da Veracel na Bahia.
“Muito por conta da antipatia que eles tiveram, junto à opinião
pública, de ser uma empresa estrangeira e ter comprado terras na faixa
de fronteira. Ainda teve a ação das mulheres da Via Campesina em 2008 na
área da empresa em Rosário do Sul, em que dezenas ficaram feridas após
uma ação violenta da Brigada Militar. Isso, para a imagem da empresa,
foi complicadíssimo”, opina Clarissa.
Monocultura contra Reforma Agrária
Para Clarissa Trois Abreu, da ONG Amigos da Terra, o primeiro impacto
da expansão das monoculturas do Rio Grande do Sul pôde ser verificado
na disputa das empresas por terras que seriam destinadas à reforma
agrária.
“A partir de 2004, com a compra de terras pelas empresas, o que mais
se sentiu de imediato foi bater de frente com a questão da Reforma
Agrária, pois disputaram os mesmos territórios. Até podemos lembrar
aquela situação da Fazenda Southall [São Gabriel, Fronteira Oeste do
RS], em que o proprietário, na época, oferecia a área tanto para o Incra
[Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) quanto para a
Aracruz”.
Antes do impacto ambiental, ficou mais clara a disputa por
território, pois as empresas pretendiam comprar áreas na metade Sul
gaúcho e ali já tinha todo o processo de democratização da terra, que já
vinha muito antes. “O preço da terra subiu bastante, paralisando a
Reforma Agrária”, avalia a ambientalista.
Em relação ao meio ambiente, Clarissa lembra que os órgãos ambientais
dos governos não estavam preparados para licenciar milhares de hectares
de terra das empresas em tão pouco tempo, o que provocou com que o
setor da celulose dissesse que estavam emperrando o processo.
Ela também relembra toda a mobilização de organizações ambientais,
movimentos populares e cientistas para que fosse feito o zoneamento
ambiental da silvicultura no estado, a fim de proteger os biomas
naturais da monocultura, e a pressão dos setores do agronegócio, da
celulose e do próprio governo Yeda Crusius para facilitar os plantios.
“Resultou no zoneamento que a gente tem hoje, que não conseguiu
restringir o plantio exatamente nas áreas naturais mais frágeis, muitas
por problema de solo e de deficiência hídrica, que é o caso da Metade
Sul do estado, a mesma região que atualmente sofre muito com a estiagem.
Não é a toa que o zoneamento diz que é uma região frágil e que teria
que ter limitação”, diz a ambientalista.
Os sacerdotes da privataria e seus braços ideológicos
É de um cinismo e desfaçatez vergonhosa a caricatura que Gustavo Ioschpe, articulista da revista Veja, faz da luta docente por condições de trabalho e salário dignos. Caberia perguntar se o douto senhor estaria tranquilo com um salário base de R$ 1.487,97, por quarenta horas semanais, para lecionar em até 10 turmas de cinquenta jovens. O desafio é: em vez de “peitar os sindicatos”, convide a sua turma para trabalhar 40 horas e acumular essa “fortuna” de salário básico. Ou, se preferir fazer um pouco mais, trabalhar em três turnos e em escolas diferentes. O artigo é de Gaudêncio Frigotto, Zacarias Gama, Eveline Algebaile, Vânia Cardoso da Mota e Hélder Molina.
Gaudêncio Frigotto, Zacarias Gama, Eveline Algebaile, Vânia Cardoso da Mota e Hélder Molina na CARTA MAIOR
Vários meios de comunicação utilizam-se de
seu poder unilateral para realizar ataques truculentos a quem ousa
contrariar seus interesses. O artigo de Gustavo Ioschpe, da edição de 12
de abril de 2011 da revista Veja (a campeã disparada do
pensamento ultra-conservador no Brasil), não apenas confirma a opção
deliberada da revista em atuar como agência de desinformação –
trafegando interesses privados mal disfarçados de interesse de todos –,
como mostra o exercício dessa opção pela sua mais degradada face, cujo
nível, deploravelmente baixo, começa pelo título – “hora de peitar os
sindicatos”. Com a arrogância que o caracteriza como aprendiz de
escriba, desde o início de seu texto, o autor considera patrulha
ideológica qualquer discordância das suas parvoíces.
Na década de 1960, Pier Paolo Pasolini escrevia que o fascismo arranhou a Itália, mas o monopólio da mídia a arruinou. Cinquenta anos depois, a história lhe deu inteira razão. O mesmo poderia ser dito a respeito das ditaduras e reiterados golpes que violentaram vidas, saquearam o Brasil, enquanto o monopólio privado da mídia o arruinava e o arruínam. Com efeito, os barões da mídia, ao mesmo tempo em que esbravejam pela liberdade de imprensa, usam todo o seu poder para impedir qualquer medida de regulação que contrarie seus interesses, como no caso exemplar da sua oposição à regulamentação da profissão de jornalista. Os áulicos e acólitos desta corte fazem-lhe coro.
O que trafega nessa grande mídia, no mais das vezes, são artigos de prepostos da privataria, cheios de clichês adornados de cientificismo para desqualificar, criminalizar e jogar a sociedade contra os movimentos sociais que lutam pelos direitos que lhes são usurpados, especialmente contra os sindicatos que, num contexto de relações de super- exploração e intensificação do trabalho, lutam para resguardar minimamente os interesses dos trabalhadores.
Os artigos do senhor Gustavo Ioschpe são um exemplo constrangedor dessa “vocação”. Os argumentos que utiliza no artigo recentemente publicado impressionam, seja pela tamanha tacanhez e analfabetismo cívico e social, seja pelo descomunal cinismo diante de uma categoria com os maiores índices de doenças provenientes da super-intensificação das condições precárias de trabalho.
Um dos argumentos fundamentais de Ioschpe é explicitado na seguinte afirmação:
"Cada vez mais a pesquisa demonstra que aquilo que é bom para o aluno na verdade faz com que o professor tenha que trabalhar mais, passar mais dever de casa, mais testes, ocupar de forma mais criativa o tempo de sala de aula, aprofundar-se no assunto que leciona. E aquilo que é bom para o professor – aulas mais curtas, maior salário, mais férias, maior estabilidade no emprego para montar seu plano de aula e faltar ao trabalho quando for necessário - é irrelevante ou até maléfico aos alunos".
A partir deste raciocínio de lógica formal, feito às canhas, tira duas conclusões bizarras. A primeira é relativa à atribuição do poder dos sindicatos ao seu suposto conflito de interesses com “a sociedade representada por seus filhos/alunos”: “É por haver esse potencial conflito de interesses entre a sociedade representada por seus filhos/alunos e os professores e funcionários da educação que o papel do sindicato vem ganhando importância e que os sindicatos são tão ativos (...)”.
A segunda, linearmente vinculada à anterior, tenta afirmar a existência de uma nefasta influência dos sindicatos sobre o desempenho dos alunos. Neste caso, apóia-se em pesquisa do alemão Ludger Wossmann, cujas conclusões o permitiriam afirmar que “naquelas escolas em que os sindicatos têm forte impacto na determinação do currículo os alunos têm desempenho significativamente pior”.
Os signatários deste breve texto analisam, há mais de dois anos, a agenda de trabalho de quarenta e duas entidades sindicais afiladas à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) e acompanham ou atuam como afiliados nas ações do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior - ANDES-SN. O que extraímos destas agendas de ação dos sindicatos é, em tudo, contrário às delirantes e deletérias conclusões do articulista.
Em vez de citar pesquisas de segunda mão, para mostrar erudição e cientificidade em seu argumento, deveria apreender o que demanda uma análise efetivamente científica da realidade. Isto implicaria que de fato pesquisasse sobre a ação sindical docente e sobre os processos econômico-sociais e as políticas públicas com as quais se confrontam e dialogam e a partir das quais se constituem. Não imaginamos que um filho de banqueiros ignore que os bancos, os industriais, os latifundiários, a grande mídia têm suas federações ou organizações que fazem lobbies para ter as benesses do fundo público.
Um efetivo envolvimento com as pesquisas e com os processos sociais permitiria ao autor perceber onde se situam os verdadeiros antagonismos e “descobrir” que os sindicatos não se criaram puxando-se de um atoleiro pelos cabelos – à moda do Barão de Münchhausen –, auto inventando-se, muito menos se confrontando com os alunos e pais de alunos.
As análises que não levam isto em conta, que se inventam puxando-se pelos cabelos a partir dos atoleiros dos próprios interesses, não conseguem apreender minimamente os sentidos dessa realidade e resultam na sequência constrangedora de banalidades e de afirmações levianas como as de Ioschpe.
Uma das mais gritantes é relativa ao entendimento do autor sobre quem representa a sociedade no processo educativo. É forçoso lembrar ao douto analista que os professores, a direção da escola e os sindicatos também pertencem à sociedade e não são filhos de banqueiros nem se locupletam com vantagens provenientes dos donos do poder.
Ademais, valeria ao articulista inscrever-se num curso de história social, política e econômica para aprender uma elementar lição: o sindicato faz parte do que define a legalidade formal de uma sociedade capitalista, mas o ultra conservadorismo da revista na qual escreve e com a qual se identifica já não o reconhece em tempos de vingança do capital contra os trabalhadores.
Cabe ressaltar que todos os trocadilhos e as afirmações enfáticas não conseguem encobrir os interesses privados que defende e que afetam destrutivamente o sentido e o direito de educação básica pública, universal, gratuita, laica e unitária.
Ao contrário do que afirma a respeito da influência dos sindicatos nos currículos, o que está mediocrizando a educação básica pública é a ingerência de institutos privados, bancos e financistas do agronegócio, que infestam os conteúdos escolares com cartilhas que empobrecem o processo de formação humana com o discurso único do mercado – educação de empreendedores. E que, muitas vezes com a anuência de grande parte das administrações públicas, retiram do professor a autoridade e autonomia sobre o que ensinar e como ensinar dentro do projeto pedagógico que, por direito, eles constroem coletivamente e a partir de sua realidade.
O que o sr. Ioschpe não mostra, descaradamente, é que esses institutos privados não buscam a educação pública de qualidade e nem atender o interesse dos pais e alunos, mas lucrar com a venda de pacotes de ensino, de metodologias pasteurizadas e de assessorias.
Por fim, é de um cinismo e desfaçatez vergonhosa a caricatura que o articulista faz da luta docente por condições de trabalho e salário dignos. Caberia perguntar se o douto senhor estaria tranquilo com um salário base de R$ 1.487,97, por quarenta horas semanais, para lecionar em até 10 turmas de cinquenta jovens. O desafio é: em vez de “peitar os sindicatos”, convide a sua turma para trabalhar 40 horas e acumular essa “fortuna” de salário básico. Ou, se preferir fazer um pouco mais, trabalhar em três turnos e em escolas diferentes. Provavelmente, este piso para os docentes tem um valor bem menor que o que recebe o articulista para desqualificar e criminalizar, irresponsavelmente, uma instituição social que representa a maior parcela de trabalhadores no mundo.
Mas a preocupação do articulista e da revista que o acolhe pode ir aumentando, porque quando o cinismo e a desfaçatez vão além da conta, ajudam a entender que aqueles que ainda não estão sindicalizados devem fazê-lo o mais rápido possível.
Gaudêncio Frigotto, Zacarias Gama, Eveline Algebaile são professores do
Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ).
Vânia Cardoso da Mota é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e colaboradora do PPFH/UERJ.
Hélder Molina é educador, assessor sindical e doutorando do PPFH/UERJ.
Na década de 1960, Pier Paolo Pasolini escrevia que o fascismo arranhou a Itália, mas o monopólio da mídia a arruinou. Cinquenta anos depois, a história lhe deu inteira razão. O mesmo poderia ser dito a respeito das ditaduras e reiterados golpes que violentaram vidas, saquearam o Brasil, enquanto o monopólio privado da mídia o arruinava e o arruínam. Com efeito, os barões da mídia, ao mesmo tempo em que esbravejam pela liberdade de imprensa, usam todo o seu poder para impedir qualquer medida de regulação que contrarie seus interesses, como no caso exemplar da sua oposição à regulamentação da profissão de jornalista. Os áulicos e acólitos desta corte fazem-lhe coro.
O que trafega nessa grande mídia, no mais das vezes, são artigos de prepostos da privataria, cheios de clichês adornados de cientificismo para desqualificar, criminalizar e jogar a sociedade contra os movimentos sociais que lutam pelos direitos que lhes são usurpados, especialmente contra os sindicatos que, num contexto de relações de super- exploração e intensificação do trabalho, lutam para resguardar minimamente os interesses dos trabalhadores.
Os artigos do senhor Gustavo Ioschpe são um exemplo constrangedor dessa “vocação”. Os argumentos que utiliza no artigo recentemente publicado impressionam, seja pela tamanha tacanhez e analfabetismo cívico e social, seja pelo descomunal cinismo diante de uma categoria com os maiores índices de doenças provenientes da super-intensificação das condições precárias de trabalho.
Um dos argumentos fundamentais de Ioschpe é explicitado na seguinte afirmação:
"Cada vez mais a pesquisa demonstra que aquilo que é bom para o aluno na verdade faz com que o professor tenha que trabalhar mais, passar mais dever de casa, mais testes, ocupar de forma mais criativa o tempo de sala de aula, aprofundar-se no assunto que leciona. E aquilo que é bom para o professor – aulas mais curtas, maior salário, mais férias, maior estabilidade no emprego para montar seu plano de aula e faltar ao trabalho quando for necessário - é irrelevante ou até maléfico aos alunos".
A partir deste raciocínio de lógica formal, feito às canhas, tira duas conclusões bizarras. A primeira é relativa à atribuição do poder dos sindicatos ao seu suposto conflito de interesses com “a sociedade representada por seus filhos/alunos”: “É por haver esse potencial conflito de interesses entre a sociedade representada por seus filhos/alunos e os professores e funcionários da educação que o papel do sindicato vem ganhando importância e que os sindicatos são tão ativos (...)”.
A segunda, linearmente vinculada à anterior, tenta afirmar a existência de uma nefasta influência dos sindicatos sobre o desempenho dos alunos. Neste caso, apóia-se em pesquisa do alemão Ludger Wossmann, cujas conclusões o permitiriam afirmar que “naquelas escolas em que os sindicatos têm forte impacto na determinação do currículo os alunos têm desempenho significativamente pior”.
Os signatários deste breve texto analisam, há mais de dois anos, a agenda de trabalho de quarenta e duas entidades sindicais afiladas à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) e acompanham ou atuam como afiliados nas ações do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior - ANDES-SN. O que extraímos destas agendas de ação dos sindicatos é, em tudo, contrário às delirantes e deletérias conclusões do articulista.
Em vez de citar pesquisas de segunda mão, para mostrar erudição e cientificidade em seu argumento, deveria apreender o que demanda uma análise efetivamente científica da realidade. Isto implicaria que de fato pesquisasse sobre a ação sindical docente e sobre os processos econômico-sociais e as políticas públicas com as quais se confrontam e dialogam e a partir das quais se constituem. Não imaginamos que um filho de banqueiros ignore que os bancos, os industriais, os latifundiários, a grande mídia têm suas federações ou organizações que fazem lobbies para ter as benesses do fundo público.
Um efetivo envolvimento com as pesquisas e com os processos sociais permitiria ao autor perceber onde se situam os verdadeiros antagonismos e “descobrir” que os sindicatos não se criaram puxando-se de um atoleiro pelos cabelos – à moda do Barão de Münchhausen –, auto inventando-se, muito menos se confrontando com os alunos e pais de alunos.
As análises que não levam isto em conta, que se inventam puxando-se pelos cabelos a partir dos atoleiros dos próprios interesses, não conseguem apreender minimamente os sentidos dessa realidade e resultam na sequência constrangedora de banalidades e de afirmações levianas como as de Ioschpe.
Uma das mais gritantes é relativa ao entendimento do autor sobre quem representa a sociedade no processo educativo. É forçoso lembrar ao douto analista que os professores, a direção da escola e os sindicatos também pertencem à sociedade e não são filhos de banqueiros nem se locupletam com vantagens provenientes dos donos do poder.
Ademais, valeria ao articulista inscrever-se num curso de história social, política e econômica para aprender uma elementar lição: o sindicato faz parte do que define a legalidade formal de uma sociedade capitalista, mas o ultra conservadorismo da revista na qual escreve e com a qual se identifica já não o reconhece em tempos de vingança do capital contra os trabalhadores.
Cabe ressaltar que todos os trocadilhos e as afirmações enfáticas não conseguem encobrir os interesses privados que defende e que afetam destrutivamente o sentido e o direito de educação básica pública, universal, gratuita, laica e unitária.
Ao contrário do que afirma a respeito da influência dos sindicatos nos currículos, o que está mediocrizando a educação básica pública é a ingerência de institutos privados, bancos e financistas do agronegócio, que infestam os conteúdos escolares com cartilhas que empobrecem o processo de formação humana com o discurso único do mercado – educação de empreendedores. E que, muitas vezes com a anuência de grande parte das administrações públicas, retiram do professor a autoridade e autonomia sobre o que ensinar e como ensinar dentro do projeto pedagógico que, por direito, eles constroem coletivamente e a partir de sua realidade.
O que o sr. Ioschpe não mostra, descaradamente, é que esses institutos privados não buscam a educação pública de qualidade e nem atender o interesse dos pais e alunos, mas lucrar com a venda de pacotes de ensino, de metodologias pasteurizadas e de assessorias.
Por fim, é de um cinismo e desfaçatez vergonhosa a caricatura que o articulista faz da luta docente por condições de trabalho e salário dignos. Caberia perguntar se o douto senhor estaria tranquilo com um salário base de R$ 1.487,97, por quarenta horas semanais, para lecionar em até 10 turmas de cinquenta jovens. O desafio é: em vez de “peitar os sindicatos”, convide a sua turma para trabalhar 40 horas e acumular essa “fortuna” de salário básico. Ou, se preferir fazer um pouco mais, trabalhar em três turnos e em escolas diferentes. Provavelmente, este piso para os docentes tem um valor bem menor que o que recebe o articulista para desqualificar e criminalizar, irresponsavelmente, uma instituição social que representa a maior parcela de trabalhadores no mundo.
Mas a preocupação do articulista e da revista que o acolhe pode ir aumentando, porque quando o cinismo e a desfaçatez vão além da conta, ajudam a entender que aqueles que ainda não estão sindicalizados devem fazê-lo o mais rápido possível.
Gaudêncio Frigotto, Zacarias Gama, Eveline Algebaile são professores do
Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ).
Vânia Cardoso da Mota é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e colaboradora do PPFH/UERJ.
Hélder Molina é educador, assessor sindical e doutorando do PPFH/UERJ.
Complexidade em educação
JUREMIR MACHADO DA SILVA*
Ontem,
falei aqui das dificuldades de ser complexo. É muito complicado. Daí a
preferência de alguns pelos simplismo. Em educação, complexos e
simplistas travam batalhas e mais batalhas. O nostálgico pedagógico
adora dizer que no seu tempo era melhor. Antigamente é que era bom. De
que tempo se fala? Do século XX da Primeira ou da Segunda Guerra
Mundial? Do nazismo ou do comunismo? Das ditaduras sul-americanas ou da
Guerra Fria? Antigamente é que era bom: o professor ensinava e o aluno
aprendia. A maioria esmagadora da população era de analfabetos. Eta,
tempo bom! Conheço um sujeito, latinista deslumbrado, cujos raciocínios
confusos me impressionam, que vive dizendo: "Quem estuda latim pensa com
mais clareza".
Os nostálgicos desse passado mítico defendem a volta do "ensino tradicional", algo como disciplina férrea, tabuada na ponta da língua, ditado todo dia, os afluentes do Amazonas na memória, alunos levantando quando o professor entra e, se duvidar, aula de moral e cívica. Estou, claro, simplificando. Sonham com um tempo em que memorizar era decisivo, pois não havia memória artificial. Querem voltar à era pré-Google. Já os novos pedagogos apostam no lúdico, na liberdade e na construção do conhecimento pelo principal interessado, o aluno. Costumam detonar as chamadas aulas expositivas, aquelas em que o professor fala e o aluno escuta. Ou finge. Exageram um pouco. As aulas podem e devem ser lúdicas. Mas sempre haverá a exigência de uma pontinha de sacrifício. Também se aprende ouvindo. Ou ninguém pagaria R$ 200 mil por uma palestra do Lula. Nem haveria público para o Fronteiras do Pensamento. Ou é puro espetáculo?
É mais difícil ser professor hoje: precisa convencer, encantar, mobilizar e liderar. Não funciona na palmatória, no grão de milho, no castigo ou no discurso de autoridade. É mais fácil ser professor hoje: há mais informação disponível e mais meios tecnológicos de acesso a essas informações. Quem busca soluções simplistas para problemas complexos, pensa assim: precisamos reprovar mais. É a "doma" tradicional. Na paulada. Sempre me revoltou uma coisa na administração do ensino: o aluno cursava, sei lá, seis matérias num determinado ano da escola. Rodava numa. Era obrigado a repetir todas. Por quê? Porque a escola não sabia se organizar de outra maneira para oferecer-lhe a repetição da disciplina em que fora reprovado permitindo que avançasse nas outras. Para ficar nessa linguagem crua, a punição era desproporcional ao erro. A questão maior era de custos.
Obrigava-se o aluno a repetir tudo por uma questão de economia. Era mais fácil e mais barato inseri-lo totalmente na turma seguinte. Ainda é? Sou professor universitário. O nível dos alunos que nos chega a cada semestre é muito bom. Não fica atrás, por exemplo, do nível da minha turma, que entrou na universidade em 1980. Em alguns aspectos, os alunos de hoje são superiores. Por exemplo, em domínio de língua estrangeira. Chega de nostalgia. Cada época produz o seu imaginário pedagógico.
*JUREMIR MACHADO DA SILVA é escritor, jornalista e professor
** Artigo publicado no jornal Correio do Povo, edição de 19 de abril de 2011
Os nostálgicos desse passado mítico defendem a volta do "ensino tradicional", algo como disciplina férrea, tabuada na ponta da língua, ditado todo dia, os afluentes do Amazonas na memória, alunos levantando quando o professor entra e, se duvidar, aula de moral e cívica. Estou, claro, simplificando. Sonham com um tempo em que memorizar era decisivo, pois não havia memória artificial. Querem voltar à era pré-Google. Já os novos pedagogos apostam no lúdico, na liberdade e na construção do conhecimento pelo principal interessado, o aluno. Costumam detonar as chamadas aulas expositivas, aquelas em que o professor fala e o aluno escuta. Ou finge. Exageram um pouco. As aulas podem e devem ser lúdicas. Mas sempre haverá a exigência de uma pontinha de sacrifício. Também se aprende ouvindo. Ou ninguém pagaria R$ 200 mil por uma palestra do Lula. Nem haveria público para o Fronteiras do Pensamento. Ou é puro espetáculo?
É mais difícil ser professor hoje: precisa convencer, encantar, mobilizar e liderar. Não funciona na palmatória, no grão de milho, no castigo ou no discurso de autoridade. É mais fácil ser professor hoje: há mais informação disponível e mais meios tecnológicos de acesso a essas informações. Quem busca soluções simplistas para problemas complexos, pensa assim: precisamos reprovar mais. É a "doma" tradicional. Na paulada. Sempre me revoltou uma coisa na administração do ensino: o aluno cursava, sei lá, seis matérias num determinado ano da escola. Rodava numa. Era obrigado a repetir todas. Por quê? Porque a escola não sabia se organizar de outra maneira para oferecer-lhe a repetição da disciplina em que fora reprovado permitindo que avançasse nas outras. Para ficar nessa linguagem crua, a punição era desproporcional ao erro. A questão maior era de custos.
Obrigava-se o aluno a repetir tudo por uma questão de economia. Era mais fácil e mais barato inseri-lo totalmente na turma seguinte. Ainda é? Sou professor universitário. O nível dos alunos que nos chega a cada semestre é muito bom. Não fica atrás, por exemplo, do nível da minha turma, que entrou na universidade em 1980. Em alguns aspectos, os alunos de hoje são superiores. Por exemplo, em domínio de língua estrangeira. Chega de nostalgia. Cada época produz o seu imaginário pedagógico.
*JUREMIR MACHADO DA SILVA é escritor, jornalista e professor
** Artigo publicado no jornal Correio do Povo, edição de 19 de abril de 2011
O diário do Araguaia
Durante 605 dias, o Velho Mário, nome verdadeiro Maurício
Grabois, dirigente histórico do PCdoB e líder da Guerrilha do Araguaia,
registrou em diário a saga dos 68 combatentes que se isolaram na
Amazônia com o propósito de tomar o poder dos militares. Entre registros
factuais e impressões pessoais, o comandante escreveu mais de 86 mil
palavras até ser executado pelos militares em 25 de dezembro de 1973. O
diário foi recolhido pelos seus algozes e, posteriormente, copiado em
forma de documento digitado e guardado na grande gaveta de papéis
secretos do Exército.
O mistério acabou. CartaCapital obteve uma cópia integral do
diário. Trata-se de uma visão particular de Grabois, quase sempre
sozinho a anotar os momentos de angústia e tensão na mata. Em
entrevista, o jornalista Lucas Figueiredo, autor da reportagem de capa
da edição que chega às bancas a partir desta quinta-feira 21, fala sobre
o diário, cuja íntegra original pode ser lida aqui e uma versão explicativa, aqui.
CartaCapital: O que mais chamou a sua atenção no diário de Grabois?
Lucas Figueiredo: Esse diário é o registro histórico
mais aprofundado da Guerrilha do Araguaia. O documento possui mais de
86 mil palavras. Para se ter uma ideia, o texto digitalizado completou
150 páginas de tamanho A4, que cobrem 605 dias de conflito. Além de
lançar luzes sobre esse episódio nebuloso da ditadura, o documento é uma
peça valiosa por incluir o relato pessoal de Grabois. Toda a sua dor,
angústia, solidão, saudades da família estão contempladas no texto, que
revela o lado humano do guerrilheiro.
CC: O que esse material acrescenta para a compreensão da guerrilha?
LF: Pela primeira vez temos acesso a um relato mais
profundo por parte dos guerrilheiros do período mais sangrento da
Guerrilha do Araguaia. Grabois foi executado em 25 de dezembro de 1973.
Foi um dos últimos insurgentes a morrer. Na prática, houve três grandes
campanhas dos militares contra a guerrilha. Na última, não houve
preocupação de efetuar prisões, e sim de eliminar os combatentes. Como o
diário vai de abril de 1972 a dezembro de 1973, temos mais informações
sobre essa fase final. Os poucos sobreviventes, não mais do que meia
dúzia, não deixaram relatos consistentes. Um deles, Ângelo Arroyo,
morreria em 1976 na chacina da Lapa, no Rio de Janeiro. Os demais eram
desertores, não quiseram falar muito sobre o que aconteceu. Esse diário
está nos arquivos sigilosos das Forças Armadas desde então. Só foi
revelado agora por CartaCapital.
CC: Como você definiria a liderança exercida por Grabois?
LF: Ele era muito mais rígido com os outros do que
com ele mesmo ou com o seu partido, o PCdoB. Grabois tinha sob o seu
comando 68 combatentes, em sua maioria jovens na faixa dos 25 anos,
estudantes universitários ou profissionais liberais. Gente que nunca
pegou em armas antes, que nunca teve treinamento militar. Ele esperava
que esses 68 neófitos, como costumava dizer, fossem capazes de enfrentar
soldados profissionais das três Forças Armadas, agentes da Polícia
Federal e policiais de três estados diferentes. Exigia rigor absoluto,
erro zero. Como se esse pequeno grupo pudesse atuar como rambos no
Araguaia. Além disso, Grabois teve graves erros de avaliação. Imaginava
que, com o tempo, as massas iriam aderir à guerrilha. Mas a população
local oferecia apenas apoio pontual, doava comida e oferecia abrigo para
os combatentes pernoitarem em algumas ocasiões. Jamais os campesinos se
dispuseram a engrossar as fileiras da insurgência. Grabois também
costuma ouvir muito a Rádio Tirana, da Albânia, que pregava
propaganda comunista e alardeava um grande movimento insurrecional no
Araguaia. Ele passou a acreditar no que escutava. A rádio passava
propaganda e ele tomava como verdade. Trata-se de um erro de avaliação
indesculpável para um líder revolucionário.
A reportagem completa sobre o diário de Grabois está na edição impressa de CartaCapital que chega às bancas em São Paulo na quinta-feira 21 e no resto do País na sexta-feira 22.
A bolha restaurada (ou a turbulência em céu azul)
O duplo choque ao qual estão sujeitos os países periféricos, após o desdobramento da crise de 2008, traz novos constrangimentos e não pode ser gerido tão somente com instrumentos macroeconômicos convencionais, sob pena de produzir graves crises nesses países. Por exemplo, a tentativa de reduzir o choque inflacionário decorrente do aumento de preços das commodities, por meio da política monetária, além de relativamente inócuo, exacerba a atração de novos capitais. Deixar a moeda nacional apreciar como resposta, compromete de modo significativo a competitividade das exportações de manufaturados. O artigo é de Ricardo Carneiro.
Ricardo Carneiro (*) na Carta Maior
A economia brasileira, da América Latina, e
por que não dizer, do conjunto dos países periféricos, vive hoje uma
conjuntura peculiar marcada por um duplo choque: o dos elevados e
crescentes fluxos de capitais para eles direcionados, e o dos altos e
voláteis preços das commodities. Aquilo que poderia ser uma benesse
termina por se constituir numa perturbação, internalizando desde fora
desequilíbrios com quais a política econômica tem que lidar, obrigando-a
a abandonar prioridades domésticas em benefício da gestão desses
choques externos.
O momento atual ressalta como patéticas as intepretações das agências multilaterais – FMI e Banco Mundial – e segmentos dos mercados financeiros internacionais, que desde alguns anos vêm insistindo no decoupling das economias emergentes, entendida como a capacidade dessas últimas em manter elevados ritmos de crescimento, de forma independente da trajetória das economias desenvolvidas. Esta tese esteve ancorada em observações empíricas - como o ritmo mais rápido de crescimento dos emergentes – desconsiderando os mecanismos de geração e transmissão desse crescimento e, mais recentemente, enfatizou a capacidade de preservação desse último, sem novamente atentar para as implicações da forma pela qual a crise foi equacionada nos países centrais.
O que parecia ser uma trajetória benigna e independente, tem se transformado numa crescente perturbação, com apreciações cambiais indesejadas, pressões inflacionárias e desaceleração do crescimento doméstico nos países periféricos. Para lidar com essas consequências do duplo choque, a política macroeconômica convencional tem sido impotente exigindo a crescente utilização de instrumentos não convencionais, como as políticas macro-prudenciais e de regulação, sob pena de agravar ainda mais os desequilíbrios iniciais e lançar essas economias numa trajetória de baixo crescimento ou recrudescimento da inflação. As tarefas que se exige da política econômica no plano nacional são, portanto, ingentes e tão mais complexas quanto menores forem as mudanças a serem implementadas no plano internacional.
1. Os choques internacionais
Em trabalho recente, Ilmar Akyuz, o economista chefe do South Center, discute os determinantes dos fluxos de capitais para os países periféricos nos vários ciclos, desde o pós-guerra. Com a correta perspectiva de que esses fluxos tem seu determinante principal, nas variações da preferencia pela liquidez/aversão ao risco nas economias centrais, o autor chega aos determinantes do ciclo recente associando-os à política monetária americana, de criação de liquidez por meio do quantitative easing, uma forma de injeção de moeda na economia, em alta escala, por meio de compra de títulos públicos de maturidade variada e, portanto, de manutenção de baixas taxas de juros em vários prazos. O autor ressalta o baixíssimo patamar de taxa de juros de curto prazo, próxima da fronteira zero, com fator crucial na originação de fluxos de capitais especulativos em direção aos países periféricos, cujo sentido maior é a busca de retorno mais altos proporcionados por diferencial por taxas de juros ou, simplesmente por rendimentos mais altos nos vários mercados de ativos. Como tem sido observado historicamente, esses fluxos de capitais geram bolhas expressivas nos mercados cambiais, de ativos e de crédito, além de deprimirem a competitividade das exportações de manufaturas.
A particularidade do auge do ciclo recente, após 2003, é que nele se observa também um substancial aumento e volatilidade nos preços das commodities. Com o mesmo padrão dos fluxos de capitais, esses preços sobem continuadamente desde essa data, sofrendo uma brusca queda em 2009, mas já ultrapassando o pico anterior após o primeiro trimestre de 2011. O essencial a destacar é que a simultaneidade entre os dois movimentos cria uma situação peculiar, de duplo choque, com determinantes semelhantes, exacerbando as suas implicações e as dificuldades em lidar com seus movimentos.
Atribuir ao ciclo de preços de commodities, as mesmas causas dos fluxos de capitais parece, à primeira vista, uma impropriedade. Isto porque a elevação desses preços está bastante associada ao ciclo forte e continuado de crescimento dos países asiáticos, em particular da China e da Índia, e às características da produção desses bens. Todavia, o argumento não desconhece esses importantes impulsos para o aumento dos preços, mas ressalta o caráter especulativo implícito tanto na magnitude da sua variação como também na sua volatilidade.
Diversos trabalhos da UNCTAD têm procurado caracterizar a relevância dos processos especulativos na formação dos preços das commodities. O aspecto mais saliente é a crescente dominância dos mercados de derivativos – futuros e opções - e dos investidores financeiros, na determinação dos preços nesses mercados que se transmitem por arbitragem para os mercados à vista. A presença maciça desses especuladores, para os quais as commodities passam a constituir parte relevante de seus portfólios, termina por conectar os mercados desses bens ao comportamento de variáveis-chave com a taxa de juros de curto prazo, conformando uma operação de carry trade. O baixo patamar da taxa de juros e as expectativas de sua preservação, decorrentes da política monetária americana, têm estimulado as operações de especulação, o overshooting, e a volatilidade dos preços das commodities.
O mesmo tipo de argumentação pode ser utilizado para explicar o aumento desmesurado dos fluxos de capitais. De um lado, não se pode negar que há fatores de atração relevantes, pois a melhora do comércio exterior desses países, decorrentes do crescimento global e, para vários latino-americanos, da melhoria dos preços de intercâmbio, permitiu aprimorar consideravelmente os fundamentos, por meio da acumulação de reservas internacionais e redução do endividamento público líquido, externo e interno. Mas, o overshooting só se explica pelo diferencial de rentabilidade que foi significativamente ampliado com a redução da taxa de juros americana e das demais economias desenvolvidas.
Em defesa da política econômica vigente, argumentam as autoridades monetárias norte-americanas que esta é a única forma de manter o estímulo ao crescimento, em uma economia debilitada pela crise financeira. Dado que o socorro inicial, por parte do setor público, implicou numa absorção de dívida do setor privado e num aumento substancial do déficit, o que contribuiu ainda mais para ampliar a dívida pública, a política fiscal viu-se crescentemente manietada. De novo, embora não falte significância ao argumento, ele não explica porque se despreza os efeitos que esse perfil de política tem no restante do mundo, ainda mais porque se trata de ações de política em torno de uma moeda reserva.
O fato apontado acima põe em relevo a contradição clássica, da moeda reserva internacional ser uma moeda nacional, no caso, o dólar. Sendo assim, a política deveria prever salvaguardas para os demais países contra os seus efeitos colaterais. Se estas salvaguardas existissem, na forma, por exemplo, de limitação da mobilidade de capitais, elas certamente não inviabilizariam a implementação e a efetividade das políticas monetárias.
Todavia, implicariam em reduzir o papel do dólar como moeda reserva. Essa é a razão essencial que explica a sua não disseminação, ou seja, o interesse norte-americano em preservar o papel do dólar e sua seignioriage.
2. Os contornos da política econômica
Num importante documento lançado após a crise de 2008, o FMI examina criticamente a política econômica posta em prática nos países desenvolvidos, concluindo que a ênfase exclusiva na estabilidade de preços e, a despreocupação com as dimensões regulatórias do sistema financeiro, terminaram por engendrar a crise. Dentre as suas propostas de revisão do arcabouço da política econômica nos países centrais, destaca-se claramente uma revisão do papel e ênfase acentuada na política regulatória. A combinação desta última com políticas macroeconômicas adequadas – sem precedências ou hierarquias – criaria o clima de estabilidade para a operação da economia, sem os riscos de eventuais desequilíbrios financeiros como os observados na crise recente.
Não deixa de ser curioso que ao tratar da mesma questão com foco nos países emergentes, o FMI mude as suas ênfases. Assim, por exemplo, ao discutir as relações entre as políticas macroeconômicas e a política regulatória – no caso a política de controle dos fluxos de capitais – estabelece uma hierarquia entre elas propugnando que as últimas só devam ser utilizadas como instrumento de última instância. Partem do princípio de que as políticas de regulação dos fluxos de capitais seriam utilizadas para reparar o mau funcionamento das políticas macroeconômicas, ou seja, o caráter disciplinador da abertura financeira sobre o perfil da política macroeconômica seria impedido de funcionar, num contexto de restrição da mobilidade de capitais.
O argumento, além de incoerente; talvez porque questiona a mobilidade de capitais, e fira os interesses do maior sócio do FMI; deixa de considerar importantes implicações dos fluxos de capitais para os países periféricos: a desregulação desses fluxos tem os mesmos efeitos para esses países, do que a desregulação financeira para os países centrais. Ou seja, por meio da valorização/desvalorização das moedas locais, o movimento de capitais tem sido um dos principais determinantes das bolhas de preços de ativos e/ou de crédito, do seu inflar quando da fase de absorção e, do estouro, durante a saída. De forma diferente do que diz o FMI, em muitas ocasiões, um perfil saudável e adequado de políticas e situações macroeconômicas se viu deteriorado pelo excessivo afluxo de capitais.
O duplo choque ao qual estão sujeitos os países periféricos, após o desdobramento da crise de 2008, pela sua intensidade, traz novos constrangimentos e não pode ser gerido tão somente com os instrumentos macroeconômicos convencionais, sob pena de produzir graves crises nesses países. Por exemplo, a tentativa de reduzir o choque inflacionário decorrente do aumento de preços das commodities, por meio da política monetária, além de relativamente inócuo, exacerba a atração de novos capitais. Deixar a moeda nacional apreciar como resposta, compromete de modo significativo a competitividade das exportações de manufaturados. A utilização da política fiscal via saldo primário, para anular o choque, tem os mesmos inconvenientes no que tange à trajetória inflacionária. Pode ser mais eficaz, no que se refere à esterilização do saldo de divisas, mas a magnitude do choque pode torná-la insuficiente, além de inviabilizar políticas redistributivas e de estímulo ao crescimento em curso nesses países.
De tudo isso, se conclui que a política econômica dos países periféricos terá que mudar necessariamente seu perfil encaminhando-se para práticas não canônicas, sem esperar mudanças significativas no arcabouço da regulação global. O seu sentido geral, será o de combinar a política regulatória com as políticas macroeconômicas convencionais, sem estabelecimento de hierarquias ou prioridades. O objetivo maior, pelo menos na atual conjuntura, será o de insular as economias do duplo choque em andamento. Para tanto, terá que aperfeiçoar os instrumentos de controle dos fluxos de capitais com a preocupação de estendê-los aos mercados de derivativos. Por outro lado, precisará criar ou aperfeiçoar políticas capazes de dirimir os choques de preços das commodities. Nessa direção, uma medida importante seria o estabelecimento ou ampliação dos fundos de estabilização com recursos oriundos da tributação extraordinária das exportações de commodities.
(*) Professor do Instituto de Economia e Diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da UNICAMP
O momento atual ressalta como patéticas as intepretações das agências multilaterais – FMI e Banco Mundial – e segmentos dos mercados financeiros internacionais, que desde alguns anos vêm insistindo no decoupling das economias emergentes, entendida como a capacidade dessas últimas em manter elevados ritmos de crescimento, de forma independente da trajetória das economias desenvolvidas. Esta tese esteve ancorada em observações empíricas - como o ritmo mais rápido de crescimento dos emergentes – desconsiderando os mecanismos de geração e transmissão desse crescimento e, mais recentemente, enfatizou a capacidade de preservação desse último, sem novamente atentar para as implicações da forma pela qual a crise foi equacionada nos países centrais.
O que parecia ser uma trajetória benigna e independente, tem se transformado numa crescente perturbação, com apreciações cambiais indesejadas, pressões inflacionárias e desaceleração do crescimento doméstico nos países periféricos. Para lidar com essas consequências do duplo choque, a política macroeconômica convencional tem sido impotente exigindo a crescente utilização de instrumentos não convencionais, como as políticas macro-prudenciais e de regulação, sob pena de agravar ainda mais os desequilíbrios iniciais e lançar essas economias numa trajetória de baixo crescimento ou recrudescimento da inflação. As tarefas que se exige da política econômica no plano nacional são, portanto, ingentes e tão mais complexas quanto menores forem as mudanças a serem implementadas no plano internacional.
1. Os choques internacionais
Em trabalho recente, Ilmar Akyuz, o economista chefe do South Center, discute os determinantes dos fluxos de capitais para os países periféricos nos vários ciclos, desde o pós-guerra. Com a correta perspectiva de que esses fluxos tem seu determinante principal, nas variações da preferencia pela liquidez/aversão ao risco nas economias centrais, o autor chega aos determinantes do ciclo recente associando-os à política monetária americana, de criação de liquidez por meio do quantitative easing, uma forma de injeção de moeda na economia, em alta escala, por meio de compra de títulos públicos de maturidade variada e, portanto, de manutenção de baixas taxas de juros em vários prazos. O autor ressalta o baixíssimo patamar de taxa de juros de curto prazo, próxima da fronteira zero, com fator crucial na originação de fluxos de capitais especulativos em direção aos países periféricos, cujo sentido maior é a busca de retorno mais altos proporcionados por diferencial por taxas de juros ou, simplesmente por rendimentos mais altos nos vários mercados de ativos. Como tem sido observado historicamente, esses fluxos de capitais geram bolhas expressivas nos mercados cambiais, de ativos e de crédito, além de deprimirem a competitividade das exportações de manufaturas.
A particularidade do auge do ciclo recente, após 2003, é que nele se observa também um substancial aumento e volatilidade nos preços das commodities. Com o mesmo padrão dos fluxos de capitais, esses preços sobem continuadamente desde essa data, sofrendo uma brusca queda em 2009, mas já ultrapassando o pico anterior após o primeiro trimestre de 2011. O essencial a destacar é que a simultaneidade entre os dois movimentos cria uma situação peculiar, de duplo choque, com determinantes semelhantes, exacerbando as suas implicações e as dificuldades em lidar com seus movimentos.
Atribuir ao ciclo de preços de commodities, as mesmas causas dos fluxos de capitais parece, à primeira vista, uma impropriedade. Isto porque a elevação desses preços está bastante associada ao ciclo forte e continuado de crescimento dos países asiáticos, em particular da China e da Índia, e às características da produção desses bens. Todavia, o argumento não desconhece esses importantes impulsos para o aumento dos preços, mas ressalta o caráter especulativo implícito tanto na magnitude da sua variação como também na sua volatilidade.
Diversos trabalhos da UNCTAD têm procurado caracterizar a relevância dos processos especulativos na formação dos preços das commodities. O aspecto mais saliente é a crescente dominância dos mercados de derivativos – futuros e opções - e dos investidores financeiros, na determinação dos preços nesses mercados que se transmitem por arbitragem para os mercados à vista. A presença maciça desses especuladores, para os quais as commodities passam a constituir parte relevante de seus portfólios, termina por conectar os mercados desses bens ao comportamento de variáveis-chave com a taxa de juros de curto prazo, conformando uma operação de carry trade. O baixo patamar da taxa de juros e as expectativas de sua preservação, decorrentes da política monetária americana, têm estimulado as operações de especulação, o overshooting, e a volatilidade dos preços das commodities.
O mesmo tipo de argumentação pode ser utilizado para explicar o aumento desmesurado dos fluxos de capitais. De um lado, não se pode negar que há fatores de atração relevantes, pois a melhora do comércio exterior desses países, decorrentes do crescimento global e, para vários latino-americanos, da melhoria dos preços de intercâmbio, permitiu aprimorar consideravelmente os fundamentos, por meio da acumulação de reservas internacionais e redução do endividamento público líquido, externo e interno. Mas, o overshooting só se explica pelo diferencial de rentabilidade que foi significativamente ampliado com a redução da taxa de juros americana e das demais economias desenvolvidas.
Em defesa da política econômica vigente, argumentam as autoridades monetárias norte-americanas que esta é a única forma de manter o estímulo ao crescimento, em uma economia debilitada pela crise financeira. Dado que o socorro inicial, por parte do setor público, implicou numa absorção de dívida do setor privado e num aumento substancial do déficit, o que contribuiu ainda mais para ampliar a dívida pública, a política fiscal viu-se crescentemente manietada. De novo, embora não falte significância ao argumento, ele não explica porque se despreza os efeitos que esse perfil de política tem no restante do mundo, ainda mais porque se trata de ações de política em torno de uma moeda reserva.
O fato apontado acima põe em relevo a contradição clássica, da moeda reserva internacional ser uma moeda nacional, no caso, o dólar. Sendo assim, a política deveria prever salvaguardas para os demais países contra os seus efeitos colaterais. Se estas salvaguardas existissem, na forma, por exemplo, de limitação da mobilidade de capitais, elas certamente não inviabilizariam a implementação e a efetividade das políticas monetárias.
Todavia, implicariam em reduzir o papel do dólar como moeda reserva. Essa é a razão essencial que explica a sua não disseminação, ou seja, o interesse norte-americano em preservar o papel do dólar e sua seignioriage.
2. Os contornos da política econômica
Num importante documento lançado após a crise de 2008, o FMI examina criticamente a política econômica posta em prática nos países desenvolvidos, concluindo que a ênfase exclusiva na estabilidade de preços e, a despreocupação com as dimensões regulatórias do sistema financeiro, terminaram por engendrar a crise. Dentre as suas propostas de revisão do arcabouço da política econômica nos países centrais, destaca-se claramente uma revisão do papel e ênfase acentuada na política regulatória. A combinação desta última com políticas macroeconômicas adequadas – sem precedências ou hierarquias – criaria o clima de estabilidade para a operação da economia, sem os riscos de eventuais desequilíbrios financeiros como os observados na crise recente.
Não deixa de ser curioso que ao tratar da mesma questão com foco nos países emergentes, o FMI mude as suas ênfases. Assim, por exemplo, ao discutir as relações entre as políticas macroeconômicas e a política regulatória – no caso a política de controle dos fluxos de capitais – estabelece uma hierarquia entre elas propugnando que as últimas só devam ser utilizadas como instrumento de última instância. Partem do princípio de que as políticas de regulação dos fluxos de capitais seriam utilizadas para reparar o mau funcionamento das políticas macroeconômicas, ou seja, o caráter disciplinador da abertura financeira sobre o perfil da política macroeconômica seria impedido de funcionar, num contexto de restrição da mobilidade de capitais.
O argumento, além de incoerente; talvez porque questiona a mobilidade de capitais, e fira os interesses do maior sócio do FMI; deixa de considerar importantes implicações dos fluxos de capitais para os países periféricos: a desregulação desses fluxos tem os mesmos efeitos para esses países, do que a desregulação financeira para os países centrais. Ou seja, por meio da valorização/desvalorização das moedas locais, o movimento de capitais tem sido um dos principais determinantes das bolhas de preços de ativos e/ou de crédito, do seu inflar quando da fase de absorção e, do estouro, durante a saída. De forma diferente do que diz o FMI, em muitas ocasiões, um perfil saudável e adequado de políticas e situações macroeconômicas se viu deteriorado pelo excessivo afluxo de capitais.
O duplo choque ao qual estão sujeitos os países periféricos, após o desdobramento da crise de 2008, pela sua intensidade, traz novos constrangimentos e não pode ser gerido tão somente com os instrumentos macroeconômicos convencionais, sob pena de produzir graves crises nesses países. Por exemplo, a tentativa de reduzir o choque inflacionário decorrente do aumento de preços das commodities, por meio da política monetária, além de relativamente inócuo, exacerba a atração de novos capitais. Deixar a moeda nacional apreciar como resposta, compromete de modo significativo a competitividade das exportações de manufaturados. A utilização da política fiscal via saldo primário, para anular o choque, tem os mesmos inconvenientes no que tange à trajetória inflacionária. Pode ser mais eficaz, no que se refere à esterilização do saldo de divisas, mas a magnitude do choque pode torná-la insuficiente, além de inviabilizar políticas redistributivas e de estímulo ao crescimento em curso nesses países.
De tudo isso, se conclui que a política econômica dos países periféricos terá que mudar necessariamente seu perfil encaminhando-se para práticas não canônicas, sem esperar mudanças significativas no arcabouço da regulação global. O seu sentido geral, será o de combinar a política regulatória com as políticas macroeconômicas convencionais, sem estabelecimento de hierarquias ou prioridades. O objetivo maior, pelo menos na atual conjuntura, será o de insular as economias do duplo choque em andamento. Para tanto, terá que aperfeiçoar os instrumentos de controle dos fluxos de capitais com a preocupação de estendê-los aos mercados de derivativos. Por outro lado, precisará criar ou aperfeiçoar políticas capazes de dirimir os choques de preços das commodities. Nessa direção, uma medida importante seria o estabelecimento ou ampliação dos fundos de estabilização com recursos oriundos da tributação extraordinária das exportações de commodities.
(*) Professor do Instituto de Economia e Diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da UNICAMP
Nova Constituição húngara: “Deus, Pátria, Família”
A maioria de direita que governa a Hungria e
preside à União Europeia aprovou o novo projecto de Constituição do
partido do primeiro ministro Victor Orban no qual se sublinham a
importância do cristianismo na “preservação da nossa nacionalidade”, a
pertença do país à “Europa cristã” e o papel da família como base da
sociedade, conceito que, no limite, permitirá aos pais votar em nome dos
filhos menores.
“Deus abençoe a Hungria” é o subtítulo do projecto constitucional
aprovado terça-feira pelo Parlamento de Budapeste e que deverá entrar em
vigor em 1 de Janeiro de 2012. O documento afirma a separação das
igrejas e do Estado mas no preâmbulo “reconhece o papel do cristianismo
na preservação da nossa nacionalidade”, embora admita a existência de
“diferentes tradições religiosas no nosso país”.
“Estamos orgulhosos de que o nosso rei Santo Estêvão tenha criado a
Hungria com alicerces fortes há mil anos tenha tornado o nosso país
membro da Europa cristã”, afirma o preâmbulo da nova Constituição.
O documento salienta igualmente o papel da Hungria “batalhando ao longo
de séculos para proteger a Europa”, querendo isso dizer, segundo os
autores, o envolvimento nas guerras contra os turcos e os soviéticos.
O novo texto é apresentado pelos autores como “uma Constituição para o
século XXI” e define a família como “base para a sobrevivência da
nação”, estabelecendo vantagens fiscais e eleitorais para os agregados
familiares mais numerosos.
Um aspecto considerado “único” pelos dirigentes do partido Fidesz de
Orban é o conteúdo do artigo XXI, no qual uma super-maioria de dois
terços poderá proporcionar poderes adicionais aos pais de famílias
numerosas para votarem em nome dos filhos menores. O artigo é omisso
quanto à situação de pais divorciados mas permite concluir, por exemplo,
que a família do actual primeiro ministro, com quatro filhos ainda
menores, poderá votar seis vezes.
O artigo afirma que “não pode ser considerada uma infracção à lei da
igualdade dos direitos de voto” a atribuição de votos adicionais aos
pais em nome de filhos menores. Associações de cidadãos começaram já a
lutar contra este artigo por considerarem que viola a Declaração
Fundamental dos Direitos do Homem, mas o partido de Orban dispõe de
super-maioria de dois terços no Parlamento.
A nova Constituição húngara é discriminatória, designadamente para os
homossexuais. A Hungria, afirma, “protege a instituição do casamento
entre o homem e a mulher, uma relação matrimonial voluntariamente
estabelecida”. Interrogado sobre a eventualidade dos casamentos
homossexuais, um porta-voz do Fidesz explicou que nada na legislação
europeia impõe que esse tipo de união seja questão para uma Constituição
do século XXI.
A interrupção voluntária da gravidez torna-se liminarmente
anti-constitucional à luz da nova Lei Fundamental húngara: “a vida de um
feto deve ser protegida desde a concepção”, lê-se no documento.
De acordo com a nova Constituição, o Estado deve manifestar “sentido de
responsabilidade” na defesa dos húngaros fora do país, designadamente
apoiando “os seus esforços para preservarem a cultura húngara”.
A Lei Fundamental da Hungria passa a exigir maiorias de dois terços no
Parlamento para aprovar legislação europeia, designadamente eventuais
alterações ao Tratado de Lisboa.
Artigo publicado no site do Grupo Parlamentar Europeu do Bloco de Esquerda.
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