Por Katarina Peixoto – Carta Maior
Tem gente querendo reprisar a farsa dos Protocolos dos Sábios de Sião na política brasileira. Pouco importa que haja emprego e que as crianças pobres do Recife não expilam lombrigas pela boca nos sinais de trânsito. A farsa está na invenção de um inimigo bestial a ser revelado e denunciado como responsável por uma suposta onda gigantesca de corrupção.
“Há uma grande conspiração em curso no Brasil. Trata-se da conspiração do PT e da esquerda em geral para assaltar o bolso das famílias, para imporem um modo politicamente correto de pensar, para censurarem o machismo, a homofobia, o sexismo e o nosso direito de andar armados. Essa gente quer assaltar os cofres públicos para nos fazer pagar impostos, com os quais eles só fazem roubar e enriquecer, enquanto eu me sinto vilipendiado e cada vez mais envergonhado. Nunca houve tanta corrupção neste país, nunca. É aquela coisa do pobre que jamais teve algo e que agora se lambuza, minha avó já dizia. Aqui, comediante é levado a sério, só porque é fascista, homofóbico, machista e age contra a lei, enquanto os políticos, ah, os políticos, esses seguem sem ser levados a sério. Por isso eu gosto mesmo é do Bolsonaro, inclusive. Ele vem sendo vítima do festival de autoritarismo e corrupção que assolam este país. Esses petralhas que estão mais preocupados em atacar a liberdade de imprensa do que em governar o país. Sim, porque o país só vai bem graças a Fernando Henrique, que não fosse ele, esses petralhas iam ver. O PT não faz nada que preste e só rouba o nosso dinheiro. O filho de Lula é milionário, Dilma sabe e acoberta Orlando Silva, aquele moleque safado que está podre de rico, caiu porque é culpado, óbvio”.
“Outro dia um jornal muito importante disse no seu editorial que o país precisava de uma limpeza ética! Eu concordo! Cresce no país a consciência de que chega de tudo isso que aí está! E ainda querem mais imposto para a saúde, e fraudam até provas de ensino médio, que são de alta importância para os nossos filhos! Como eles terão certeza de que entrarão por seus próprios méritos na Universidade? Não basta ter direitos negados pelas vagas dadas de presente – às nossas custas – a quem se diz negro (como se houvesse racismo no Brasil, ora essa!), aos desqualificados das escolas públicas e, pasmem, para indígenas. Chega! Está na hora da nossa marcha, da marcha pela dignidade, contra essa gente que quer mandar em nós, que quer controlar o nosso modo de pensar, que pretende ganhar dinheiro às minhas custas e fazer demagogia com os impostos que eu e minha família e você paga!”
Diariamente a Carta Maior recebe comentários de leitores que compartilham o balaio de enunciados contraditórios acima. Essa babilônia de crenças incompatíveis, que não sobrevivem a um inquérito minimamente lógico a respeito da relação entre uma e outra reina na mídia e, até aqui, parece apavorar setores poderosos do governo. Trata-se de uma onda de depravação consciente e deliberada, que convida a barbárie para uma grande orgia semântica, voltada para criar uma farsa. Não porque é contra o PT ou o governo ou a esquerda. A farsa está na invenção de um inimigo a ser revelado e denunciado como responsável pelas ameaças e fragilidades que o poder vem enfrentando. Mas que poder? O da mídia, o do tal do PIG, o da CIA e do FMI? E que fragilidades?
O Protocolo dos Sábios de Sião é uma farsa criada por um serviçal do Czar Nikolai II para tentar, sem sucesso, enfrentar as ameaças ao seu poder. Essa farsa, da virada do século XIX para o XX, denuncia a existência de um grupo de judeus que se reúnem e deliberam como controlar o mundo. Eles traçam planos e estabelecem metas para a empreitada. O texto é tão autêntico que todo judeu denega a sua veracidade, revelando, assim, a sua força, dizem as sumidades de todo tipo que acreditam nessa mentira.
O modelo desse embuste é muito simples e imbecilizante: ele mobiliza o medo do lobo mau que habita as memórias infantis apontando um inimigo ao mesmo tempo genérico e específico que introduz, contamina e assegura a permanência de todo o mal na floresta, quer dizer, na sociedade. Na Rússia czarista, eram os judeus. Depois, no nazismo, eram os judeus comunistas, porque, como se sabe, a Revolução de 17 foi coisa de judeu, segundo nos disse Hitler, o sábio. Já na década de 30, quando as trevas do stalinismo assaltaram o Partido Comunista, os Protocolos foram recuperados, porque ali estariam claros os planos trostskistas – portanto judeus – para atacar o guia dos povos.
Quando os delinquentes argentinos que agora estão sendo condenados (finalmente) deram o golpe de estado em 1976, com a missão de exterminar a esquerda, usaram essa bíblia de oligofrenia e irracionalidade para levarem a cabo o extermínio de aproximadamente 30 mil pessoas. Talvez fosse o caso dizer que, no caso da Argentina dos anos Videla-Massera – com o auxílio de refugiados nazi –, da Alemanha nazista e da barbárie stalisnista os tais sábios de Sião tenham aumentado um pouco o número. Porque somando esse horrores se chega na casa dos milhões de “sábios”. Mas não é o caso dizer, quando se respeita a verdade e a razão que viabiliza o seu acesso.
A Política e a inocência são e devem ser inimigas desde a gestação. Disso obviamente não se segue que a Política seja coisa de bandidos; só as pedras são inocentes, disse Hegel, dessa vez com razão: disso se segue que a defesa da inocência é a defesa de uma quimera, não apenas do reino que seria próprio às coisas do poder, mas do da razão. A origem da reclamação de inocência e pureza no mundo está na crônica mítica do pecado original, a primeira corrupção que teve sua CPI vendida pelo governo de Deus, no caso em tela.
Até hoje há gente séria da teologia que debate se Adão levou a serpente a sério por curiosidade intelectual ou por desejo. A primeira vertente de interpretação defenderia que o livre arbítrio dos homens deriva da sua racionalidade; a segunda vertente, que deriva do seu desejo. Mas a coisa mais importante é que a liberdade dos homens, na qual, aliás, veio a se fundar a Política, não deriva nem pode derivar da inocência. Já na sua origem, a liberdade tem a ver com as condicionalidades da contingência.
É claro que não é por isso que o Ministro x ou y cai ou não; por isso se torna evidente, apenas, que a gritaria por inocência não é nem pode ser inocente: ou tem alguma racionalidade, ou tem um desejo incontrolável. Em ambos os casos, é o poder, e não a inocência e a pureza de intenções, que organiza a sua inteligibilidade.
Essas observações também vigoram quanto ao PT e aos seus aliados, em tempo. Não são poucos os que se lembram dos anos 90, no Brasil. Mas eu lembro como se fosse ontem do quanto me indignava com o PT, com o PCdoB e com muitos outros da oposição ao governo Fernando Henrique e Paulo Renato, no MEC de então, naqueles anos tristes. Enquanto a Vale do Rio Doce era entregue à iniciativa privada com financiamento do BNDES, enquanto a CSN e as companhias de energia elétrica eram entregues, enquanto bancos públicos estatais eram praticamente doados, enquanto tudo isso acontecia com o discurso de que era para se qualificar o Estado e este, no período em que o dinheiro das supostas vendas de patrimônio público deveriam estar entrando nos seus cofres, definhava, com os banheiros nas universidades fedendo e os professores doutores ganhando salários ridículos, o que fazia a esquerda, em geral?
Denunciava a corrupção e berrava por CPIs, no Congresso. Eram poucos os que, à esquerda, investigavam e buscavam, amiúde, diagnosticar a destruição que estava em curso no país e que apontavam as dificuldades que viriam pela frente, não apenas para um eventual governo do PT, mas para o país mesmo – este que não se resume ao bolso e ao imaginário classe média cuja vida é do tamanho do sábado com uísque e os amigos, para reclamar do que a revistinha semanal declara.
No início dos anos 2000 e no começo da primeira gestão de Lula na presidência ficou claro que essa tática tinha sido inconsequente: a destruição do Estado, o definhamento da República e o sequestro de seu financiamento pela política parasitária do sistema financeiro causaram uma gigantesca confusão em muitos que, como eu, tinham apostado na interdição do horror que assolou o país nos anos 90. A confusão não acabou, mesmo que muito daquele horror tenha sido revertido, pelo menos quanto ao futuro ou às gerações posteriores às dos beneficiários do Bolsa Família, quanto ao futuro da pesquisa, da Universidade, da ciência, do financiamento público-estatal por meio dos bancos públicos do Estado, do PAC, do Minha Casa, Minha Vida, da redução das desigualdades, enfim, de tudo isso que se tornou o Brasil, dos últimos 6 anos para cá, ao menos.
E qual é a inconsequência, mesmo? É trazer a farsa dos Protocolos dos Sábios de Sião para a cena Política. A inconsequência, que emergiu na mais regressiva e violenta campanha eleitoral da jovem democracia brasileira, em 2010, é convidar o adão de antes da maçã para juiz das coisas do poder. Pouco importa que ditadura alguma leve a sério a pesquisa e a universidade, como se leva a sério no Brasil, hoje. Não interessa à imbecilidade que não entendeu o que aconteceu há quinze anos, saber o que realmente aconteceu no Ministério dos Esportes hoje ou no do Planejamento, em 1995. Pouco importa que haja emprego e que as crianças pobres do Recife não expilam lombrigas pela boca nos sinais de trânsito. Nada importa que a abundância tenha se tornado regra até para a classe média, mesmo que nos cartões de crédito. Não se preocupam com o valor, sobretudo nas próprias vidas, do automóvel, desde que se angustiem com os impostos a pagar. Desde que os Sábios de Sião sejam os culpados.
É desnecessário e inútil dizer o quanto esse convite à orgia semântica dos Protocolos dos Sábios de Sião é depravado e perigoso. É desnecessário porque na mídia das oito famílias abundam declarações com documentos e atas das reuniões dos Sábios que conspiram para prejudicar as pessoas de bem deste país. E é inútil porque parte do PT aceitou esse convidado indecente, o adão de antes da maçã, para juiz da Política. Então, não é útil, aqui, lembrar que não adianta denunciar a mídia das 8 famílias, nem lembrar que houve, sim (mesmo que seja verdade), um gigantesco e brutal saque do erário no processo de privatização. Não se combate a criação de monstros com uma briga de arquibancada. Na melhor das hipóteses, a briga contra o tal do PIG enche o saco de quem pensa e quer saber o que diabos está acontecendo, até mesmo quando não se tem mais muita esperança de que se vai, afinal, ter alguma ideia do que realmente ocorreu com aquela licitação ou com aquela fraude declarada numa manchete daquele panfleto com papel jornal.
A história dos Protocolos dos Sábios de Sião não parece nem próxima do fim, mas isso não implica que o seu uso seja ou deva ser triunfante. Porque a única vitória dessa irracionalidade é a destruição e o empobrecimento, a morte e a barbárie. No início dos anos 2000, o Rio Grande do Sul foi sequestrado pelos profetas que denunciavam uma grande conspiração petista para destruir a propriedade, os valores das famílias de bem e as mentes das criancinhas. O que aconteceu aqui não se compara à tragédia argentina nem ao horror alemão e nem mesmo ao stalinismo, obviamente.
Mas é um bom exemplo de um estado que, “livre dos Sábios de Sião”, empobreceu, destruiu suas escolas, sucateou os serviços públicos, empobreceu no campo e dilacerou-se nas cidades, com o aumento da violência e do tráfico. É um exemplo de emburrecimento midiático, de estupidez cultural, de indigência literária, de depauperamento geral.
Não dá para dizer quem é o Nikolau II da vez, no Brasil. Quem está exatamente frágil e quem se sente ameaçado, porque a confusão não é pouca e porque o governo não parece estar contribuindo muito para elucidar o estado do que é racional e do que não pode sê-lo. Mas dá para dizer, e se deve dizer, que essa imbecilidade dos balaios de crenças contraditórias e incompatíveis deve ser combatida.
Aqui, na Carta Maior, essa farsa não tem vez.