Milton Ribeiro no SUL21
Há um período de nossa adolescência ou logo após, quando somos ou não universitários com algum tempo tempo livre — como diria Kafka, com mais energia do que necessidade de produzir –, em que usamos nosso tempo lendo clássicos. Neste período, procuramos ler os maiores ícones e, dentre estes, estará inevitavelmente Dostoiévski. E ele costuma ser uma experiência inesquecível. Como literatura e visão de mundo, é algo arrebatador. Se a aventura de lê-lo jovem nos causa profundas marcas, também tolhe-nos, pela inexperiência, a análise das razões de tal assombro.
Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (Moscou, 30 de Outubro de 1821 — São Petersburgo, 28 de Janeiro de 1881) foi um escritor russo, considerado um dos maiores romancistas e um dos mais inovadores artistas de todos os tempos.
Fiódor foi o segundo dos sete filhos nascidos do casamento entre o médico Mikhail Dostoiévski e Maria Fedorovna. A mãe do escritor morreu quando ele ainda era muito jovem, de tuberculose, e o pai foi provavelmente assassinado pelos próprios servos, que o consideravam autoritário. Alguns biógrafos afirmam que o assassinato do pai causou a primeira crise epilética em Dostoievski, fato considerado controverso por seus atuais estudiosos.
A obra dostoievskiana explora a autodestruição, a humilhação e aspectos ético-religiosos, além de analisar os estados patológicos que levam ao suicídio, à loucura e ao homicídio. A literatura moderna e várias escolas da teologia e psicologia foram influenciadas por suas ideias. Por exemplo, seu último romance, Os Irmãos Karamazovi, foi considerado por Sigmund Freud como o melhor romance até então escrito e uma grande influência.
Há um outro clássico russo — Problemas da Poética de Dostoiévski, de Mikhail Bakhtin — ,que investiga os procedimentos ficcionais do escritor russo e aquilo que neles há de original. Em um dos capítulos, A Ideia em Dostoievski, é analisado o motivo do assombro e sedução que um escritor nascido há quase dois séculos ainda exerce sobre seus leitores.
Antes de chegar a Dostoiévski, Bakhtin nos fala de Sócrates e sobre a natureza dialógica da idéia. Segundo o grego, o habitat natural das idéias é o diálogo. A idéia internalizada é algo inútil e morto; porém, se a mera divulgação de uma idéia já a altera pelas limitações da linguagem e de quem a expressa, imaginem as transformações que nela ocorrem quando em choque com outras. O diálogo socrático influenciou tanto Dostoievski que ele direcionou sua arte no sentido de tornar-se principalmente um regente de personagens, retirando de seu texto a voz onisciente (que tudo sabe) do autor. Seu objetivo era o de deixar suas criaturas livres e de colocar-se à altura delas, nunca acima. Para fazer isto, o escritor tinha de converter seu pensamento numa arena na qual as diversas vozes do romance lutavam, sofriam, amavam, decidiam e se debatiam, sempre com sua própria lógica interna e verossimilhança — mas sem a aparente mediação do autor. Com esta disposição, Dostoiévski coloca-se como um criador de biografias pessoais e de situações que falam simbolicamente por si mesmas; mas que, pronto isto, deixa seus personagens livres, agindo e opinando de forma independente, enquanto anota o que dizem. Não é simples.
A tal projeto artístico, a esta quase insanidade de tornar sua obra uma arena, temos que acrescentar o fato de que Dostoiévski dá razão a todos e a ninguém, pois NUNCA EMITE JULGAMENTOS DEFINITIVOS. O escritor-voz-da-razão, o que elabora belas teses e aforismos infalíveis foi misturado a seus personagens. Dostoiévski não é divino nem definitivo.
A partir de Crime e Castigo – isto significa eliminar apenas as obras da juventude – só se conhecem as ideias de cada personagem, não a opinião do autor sobre elas. E muito menos se saberá quem o representa dentre os personagens. Ele não nos deixa pistas, pois permanece distante. Some-se a isto uma imensa capacidade de observação, um talento artístico ímpar e o fato de ser um manancial de preocupações éticas muito a frente de seu tempo, e estaremos no caminho de entender porque Dostoiévski é tão apaixonante.
Esta é uma pergunta provocativa não somente porque coloca frente a frente dois monstros do romance russo do século XIX, mas também porque compara dois projetos literários muitíssimo bem sucedidos e distintos. Não chega a ser lógica uma comparação entre seres humanos e romancistas tão diferentes entre si — seja nas posturas, seja nas vivências de cada um — , porém, ao mesmo tempo sabemos que nada é mais lógico do que comparar dois contemporâneos importantíssimos, como hoje fazemos com Saramago e Lobo Antunes, por exemplo. Aqui a armadilha que devemos evitar é o elogio de um para desvalorizar o outro. Eram ambos autores de grandes painéis. Seus romances eram tudo: psicológicos, sociais, filosóficos, picarescos, metafísicos (no caso de Dostoiévski) e tão grandes que empurraram as fronteiras dos gêneros para poderem se acomodar dentro delas.
Tolstói talvez seja o maior de todos os narradores clássicos — por que mesmo não recebeu o Nobel se faleceu em 1910? Seus romances são perfeitos, têm ritmo, excelente prosa, envolvem. Se fossemos obrigados a compará-lo com alguém, seria com Turguênev ou com certa parte da obra de Tchékhov. E aqui voltamos às questões de foco narrativo. Tolstói era o típico narrador onisciente que, apesar de detalhista, não era capaz de abandonar sua posição aristocrática, o senso comum da época e o certo e errado da concepção cristã do mundo. Já Dostoiévski, quando comparado a Tolstói, parece um alucinado. O narrador de Dostoiévski localiza-se sob a pele dos personagens, saltando de um para outro, deixando-se reger de tal forma por suas lógicas (ou loucuras) que faz sumir o narrador-julgador.
Tolstói, é claro, chamava os romances de Dostoiévski de mal-acabados. O acabamento era fundamental para clássicos como ele e Thomas Mann, por exemplo. Tolstói não tinha razão ao chamar os romances de Dostoiévski de mal-acabados. Eram muito diferentes. Pois livros como Crime e Castigo e O Idiota — sôfregos, nervosos e tão viscerais — , sob o filtro de Tolstói se transformariam em outra coisa. Quem pensa em acabamento quando quer descobrir quem matou o velho Fiódor? E quem criticaria o acabamento absolutamente impecável da Parábola do Grande Inquisidor — apenas para me referir a dois temas de Os Irmãos Karamázovi? Ora, Dostoiévski não estava preocupado com o acabamento porque as regras vigentes da beleza literária o atrapalhavam; porém, quando precisou, fez uso delas brilhantemente. Na verdade, uma das últimas preocupações que temos ao ler Dostoiévski é com o acabamento. Os personagens de Tolstói sofrem com dignidade, os de Dostô berram e se escabelam. Não obstante, o horror metafísico que cresce de O Idiota não fica nada a dever ao de Ivan Illich.
Enquanto Guerra e Paz é um panorama, Os Irmãos Karamázovi aponta para o fim de uma era, como Dostoiévski já mostrara em Os Demônios. Tolstói é um burguês, Dostoiévski pensa um apocalipse ético e moral. São muito diferentes. E muito bons.
As gerações passadas leram Dostoiévski nas Obras Completas do autor russo da Editora José Olympio. Hoje sabemos que não era nada completa. Eram livros bonitos, vermelhos, de capa dura, o que havia de melhor. Os tradutores eram Rachel de Queiróz, Ledo Ivo, Brito Broca, etc. Todos os livros vinham com esplêndidos prefácios de gente como Otto Maria Carpeaux e Wilson Martins. Minha geração engoliu aqueles livros como se fossem o melhor Dostoiévski possível. Não eram. O que tinham de bom eram os prefácios…
Nos anos 80, começaram a aparacer novas traduções, totalmente diferentes. A explicação era incrível. As traduções antigas, aquelas da José Olympio, eram feitas a partir de outras traduções, francesas, do início do século XX. Os tradutores franceses daquela época não eram nada respeitosos, açucaravam expressões, situações e até criavam frases facilitadoras. Ou seja, eles adaptavam os autores ao gosto francês, aparavam as arestas, retiravam espinhos, deixavam-no… mais bonitos…
Porém, nos anos 90, a Editora 34 montou um time de tradutores para retraduzir todo Dostoiévski. Antes, aqui e ali, já aparecera o verdadeiro autor: havia as traduções de Boris Schnaiderman dos grandes russos; nos anos 80, Moacir Werneck traduziu O Jogador e O Eterno Marido direto do russo. O resultado foi um autor muito mais direto e sem firulas. Muito melhor, limpo e impactante, certamente. Mas a revelação do verdadeiro e completo Dostoiévski veio nos anos 90 com Paulo Bezerra na Editora 34. Digo com a maior tranquilidade que quem leu O Idiota e Crime e Castigo nas traduções antigas, leu outros livros. Dizem meus olhos e minha mente que estes romanções só foram verdadeiramente traduzidos há pouco. As novas versões estão certamente bem mais próximas de Dostoiévski, por mais que Brito Broca tenha feito milagres com sua versão francesa de Crime e Castigo.
Então, indicamos a coleção da 34 ou outras traduções diretas. Para este humilde leitor, O Idiota só se tornou uma obra-prima após a leitura da tradução de Bezerra. A tradução da José Olympio tem todos os méritos associados ao pioneirismo e às parcas possibilidades dos anos 50, mas vão me desculpar, os dois Idiotas têm pouco a ver um com outro. Toda a transcedência e o valor altamente filosófico da obra perdeu-se na passagem para o francês ou para o português.
Dostoiévski não é nada, mas nada romântico. É um escritor bem mais duro do que fazem crer as antigas traduções. Porém, se não houver dinheiro e o leitor do Sul21 encontrar uma das antigas traduções que têm reaparecido ainda hoje a preços módicos, compre do mesmo jeito. Um mau Dostoiévski é superior a quase tudo que haverá em torno.
O que ler? Ora, tudo o que foi escrito após Crime e Castigo, incluindo este, com destaque para Os Irmãos Karamazóvi, Os Demônios, O Idiota, O Jogador e O Eterno Marido.. São todos volumes de mais de 500 páginas, mas é puro tempo ganho.