Muito se fala e escreve sobre energia a obtida a partir de fontes renováveis como uma das principais soluções para enfrentar o problema do aquecimento global, geração de renda e emancipação das comunidades locais. Organizações como a ONU, OCDE, Banco Mundial, FMI entre outros, promovem estudos e recomendações que apontam as energias renováveis como fundamentais para o desenvolvimento “sustentável” no século XXI. Mas o que se observa é que os esforços e investimentos nessa direção estão muito mais centrados na questão pragmática da segurança do abastecimento energético do que nas questões ambientais. As políticas e ações nessa área da Alemanha, França, EUA e China, demonstram haver preocupações muito maiores com o crescente problema do aumento do custo de extração do petróleo e acesso ao produto e rotas de abastecimento do que nas questões ambientais. Uma leitura mais atenta permite perceber que a ênfase maior na questão climática, e sua inclusão na agenda internacional de políticas públicas, vêm principalmente de atores europeus, cujas fontes energéticas estão sob controle direto ou indireto dos EUA ou da Rússia. A necessidade de ampliar a oferta interna de energia para reduzir a dependência alemã ou francesa das fontes do Oriente Médio e da Sibéria, colocam a questão da energia extraída de fontes alternativas ao petróleo e gás natural, como central na política européia. Neste sentido, para os europeus é estratégico promover o uso de outras fontes energéticas, todas com maior custo, nos demais sistemas econômicos concorrentes, sob pena ver inviabilizado o produto europeu no mercado internacional. Como estratégia parece ser fundamental mobilizar a opinião pública internacional em torno da questão do aquecimento global, para que os demais países assumam compromissos na direção da transformação de suas matrizes energéticas, agregando fontes mais caras em suas estruturas de produção. O sucesso de tal empreitada junto à opinião pública também abre espaço para a possibilidade de se desenvolver barreiras de cunho ambiental para a entrada de produtos concorrentes no espaço econômico da União Européia e demais atores engajados nesse debate. A leitura do que se produz em torno dessa questão apresenta um quadro quase que messiânico em torno das fontes renováveis, como se essa fosse uma questão de que necessitasse do voluntarismo engajado das forças sociais, em busca de um mundo melhor, uma nova utopia para a civilização. Não faltam exemplos, e entre eles o Brasil costuma ser apontado como uma “grande solução para um mundo desesperado por encontrar novos caminhos”. A matriz energética brasileira
Esse discurso esquece que a matriz energética brasileira, onde as fontes renováveis representam 45% da matriz, em contraposição aos 7% da OCDE [i], é resultado de uma longa luta histórica para vencer a escassez da oferta de petróleo e gás em seu território, um dos principais instrumentos utilizado pelos grandes centros capitalistas para manter o controle sobre o país. Para se chegar a tal quadro, a sociedade brasileira empreendeu um brutal esforço para constituir cadeias produtivas baseadas em fontes como a hidroeletricidade e o etanol. Recursos públicos enormes foram transferidos, grande parte a fundo perdido, para construir essa infra-estrutura, recursos esses que se deixou de investir na erradicação da miséria, inclusive tendo sido seguramente um dos indutores de desigualdade e pobreza no Brasil. Sem esquecer que grandes projetos como, por exemplo, Itaipu, foi implantado durante a ditadura militar, que impôs à força o projeto muitas vezes lançando mão de atos de barbárie sociais e ambientais que ainda estão para serem descritos, se é que serão algum dia. Nessa história não houve espaço para ações voluntariosas ou apaixonadas em busca de um paraíso na terra. Os brasileiros sabem o quanto custou construir e manter tal matriz, cujo atributo tão propalado mundo afora como uma matriz “limpa”. Sabe-se que, quando vista de perto deixa muito a desejar, ou mesmo, em muitos casos, não passa de discurso carregado de cinismo e hipocrisia. Em contrapartida, boa parte da sociedade brasileira organizada percebe que esta é uma questão de sobrevivência, uma das poucas opções que restaram ao país para enfrentar os brutais mecanismos de subordinação econômica e política e, para tanto, entre um futuro de miséria e submissão imposto pela mecânica capitalista e, um outro, com um mínimo independência e dignidade social, o que tem justificado politicamente os esforços e conseqüências das ações em busca da autonomia, mesmo às custas de grandes passivos ambientais e sociais derivados de tais empreendimentos. Ora, seria pusilânime recomendar este resultado puro e simples da lógica do capital como exemplo para mitigação dos efeitos das mudanças climáticas, quando se sabe que o quadro de degradação ambiental é conseqüência direta das transformações capitalistas, que no mundo contemporâneo atingiu proporções inimagináveis e conseqüências que ainda estão por serem descritas ou entendidas. A economia do Petróleo
No centro do problema energia versus meio ambiente estão as energias fósseis como o petróleo, gás natural e carvão, mas erra-se ao identificá-las como o problema em si, como se a sua erradicação ou substituição por fontes alternativas poderiam mudar o encontro marcado que a sociedade contemporânea tem com as conseqüências das mudanças climáticas em curso, senão vejamos. A indústria petrolífera internacional constitui-se numa gigantesca cadeia produtiva, envolvendo milhões de trabalhadores, milhares de empresas, dezenas de Estados e governos, etc. De grande densidade social e econômica, esta cadeia envolve um arcabouço complexo de subsídios diretos e indiretos, explícitos e implícitos, com mecanismos sofisticados de autodefesa e sobrevivência. Tal estrutura complexa é o resultado da expansão capitalista nos últimos 120 anos, e não existem indícios visíveis de que tal sistema esteja com seus dias contados ou iniciando uma trajetória decadente. Muito pelo contrário, os preços atuais do barril de indicam que a cada dia os combustíveis fósseis se tornam um negócio ainda mais atraente. É necessário ampliar a análise e se perguntar por que o petróleo chegou a tal lugar no centro da cadeia produtiva moderna. Este debate normalmente é dominado por justificativas técnicas e operacionais, mas entendo que tais alegações só servem para encobrir a verdadeira razão pela qual ele e os demais combustíveis fósseis, como o gás natural e o carvão, estão na base da matriz energética mundial. Tais cadeias produtivas, pela sua natureza, exigem grandes concentrações de capital na construção, operação e manutenção dos seus processos de produção e distribuição. Na verdade, são instrumentos perfeitos de dominação e hegemonia capitalista. Alternativas energéticas somente encontrarão espaço para substituir fontes fósseis se tecnicamente permitirem manter ou construir mecanismos similares de dominação. Alternativas energéticas de características emancipatórias encontram diante de si barreiras políticas intransponíveis em todos os lugares, e somente em casos especiais, e muito específicos, como foi o caso brasileiro, poderão vingar como base de uma matriz energética, desde que não tenham grande impacto sobre o sistema internacional. A marginalidade continuará sendo a marca característica de tais fontes e, acredito eu, não há messianismo, voluntarismo, ou mesmo vontade política localizada que possa modificar tal situação. O tamanho e a complexidade dos interesses políticos e econômicos mobilizados em torno de tal cadeia produtiva, envolvendo capitalistas e trabalhadores, dificilmente poderá ser modificado com eficácia através de discursos e ações localizadas. Corre-se o sério risco de assistirmos à transferência pura e simples de mais recursos públicos para os cofres de grandes corporações por conta do discurso fácil e indefinido da “sustentabilidade”, aprofundando ainda mais as desigualdades no mundo em que vivemos. A febre do petróleo e do gás natural
Nesse contexto, o que está acontecendo no Brasil pode sim servir de exemplo de como funciona a lógica capitalista com relação à energia. A analise do que está acontecendo em torno das reservas do Pré-Sal é bastante ilustrativa. Grandes forças políticas estão sendo mobilizadas em torno do petróleo e do gás, envolvendo boa parte do mundo político brasileiro, desde prefeitos das mais humildes cidades do interior, passando por vereadores, deputados estaduais, federais, senadores, o executivo até o judiciário, todas as suas esferas públicas estão mobilizadas em torno da discussão da partilha dos benefícios da exploração dessa fonte. Sem esquecer o engajamento direto das grandes federações de indústrias, centrais sindicais, universidades, imprensa e a comunidade científica. Os anúncios de investimentos de recursos públicos não são questionados, e não existe debate público para definir os rumos dos investimentos. Não é demais afirmar que as principais forças organizadas da sociedade brasileiras estão vivendo a febre do petróleo. O debate do desenvolvimento futuro do Brasil está galvanizado em torno do petróleo e, ao que parece, o pensamento crítico nacional foi anestesiado pelo cheiro do óleo e do gás encontrado na costa brasileira. O antigo sonho nacionalista, pelo qual a esquerda, e parte da direita, lutaram nos últimos 100 anos se realiza com a descoberta e exploração dos campos de petróleo a 350 km da costa brasileira, de frente para o principal mercado consumidor formado por São Paulo e Rio de Janeiro. Boa parte da sociedade brasileira percebe-se como protagonista de um momento de ruptura histórica, que está redefinindo as estruturas da produção capitalista brasileira, e por conseqüência, a estrutura social do país, que sente ter finalmente encontrado o seu futuro. O sentimento é de que o Brasil finalmente recebeu seu passaporte, ou o bilhete premiado, para entrar no fechado clube dos países ricos, aqueles de dominam os processos de divisão da produção internacional. Certamente que nesse cenário, os 45% de energia “limpa” poderá ser, em boa parte, queimado em nome do crescimento econômico, talvez, quem sabe, algo em torno de 27% poderá ser literalmente carbonizado na pira do desenvolvimentista, igualando o Brasil aos demais países “desenvolvidos” da OCDE, cuja grande meta é chegar em 2035 com uma matriz onde as fontes renováveis ocuparão um glorioso lugar de 18%1. Declarações do poder público brasileiro, como as da presidenta Dilma no dia de sua posse, reafirmando o compromisso com a manutenção da proporção das fontes renováveis na matriz energética, encontram diante de si a crescente articulação de grandes interesses sociais e econômico em torno do petróleo. As ações concretas na direção de aumentar os investimentos em fonte renováveis para manter sua proporção atual na matriz energética, terão que ser adotadas, sinalizando que as ações ultrapassam o campo da retórica. O problema é que o Pré-Sal exige e exigirá muito mais recursos, e é grande a probabilidade dele se tornar um enorme sorvedouro do orçamento público e privado brasileiro nos próximos trinta anos. Guardadas as devidas proporções, uma febre parecida está ocorrendo nos EUA, só que em torno do gás natural de xisto, também conhecido como “ shale gas”, que promete reduzir consideravelmente a crescente dependência daquele país de fontes de energia no exterior. Após a publicação do relatório com o mapa internacional da mina pela USDA em abril de 2011 [ii], é grande a probabilidade de que tal febre também contamine a Europa e China, onde estão grandes reservas, e até mesmo o Brasil, cujo potencial estimado das reservas próximas aos grandes centros consumidores, possivelmente não deixará o país de fora desse possível grande movimento de expansão capitalista. O interessante e sintomático, é que tais movimentos estão ocorrendo concomitantemente com a chamada “primavera árabe”, na qual parece que aqueles povos estão divisando algumas luzes de autonomia e liberdade, ao custo de muito sangue, numa história de dominação brutal determinada pelo petróleo. Ao que parece, a questão das fontes de energia continuará sendo fundamental para o sistema capitalista internacional, e não ha indícios de que a escolha das fontes deixará de ser determinada pela dinâmica da hegemonia e dominação do capital. Daí enxergar a possibilidade de transformar as fontes de energias renováveis em solução para o combate ao aquecimento global ou instrumento de emancipação das comunidades parece ser um exercício sem grandes perspectivas de sucesso. Soluções tecnológicas para energia “mais limpas” são conhecidas do mundo cientifico desde a segunda metade do século XIX, e os lugares que elas ocupam nas esquecidas prateleiras empoeiradas das universidades e laboratórios só servem para demonstrar que a questão chave parece estar em outro lugar, no campo das opções de modelos de organização social da produção. Ao que parece, é grande a probabilidade de que qualquer coisa diferente disso resultará no aprofundamento e reafirmação da hegemonia do petróleo e numa longa e grave crise ambiental global. Sem uma reflexão mais cuidadosa provavelmente a busca por um mundo capitalista movido à energias renováveis não passe de um belo sonho em uma noite de verão ou, em termos mais modernos e midiáticos, apenas um delírio na “primavera” energética. Thulio Cícero Guimarães Pereira Doutor em Sociologia Política e professor e pesquisador da Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR. Atualmente desenvolve pós-doutorado em Planejamento Energético na COPEE/UFRJ.
[i]IEA - International Energy Agency. Energy. World Energy Outlook 2010. OECD/IEA, Paris, 2010, p. 622 e 690.
[ii]U.S. Department of Energy - USDOE.. World Shale Gas Resources: An Initial Assessment of 14 Regions Outside the United States. U.S. Energy Information Administration, Washington, D. C, April, 2011. Disponível em . Acesso em 15 ago. 2011.
Ilustração: Felipe Luigi |