terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Moçambicano e canadense contam suas experiências com Vale em seus países

Escrito por Conlutas   


O “Intercâmbio Tri Nacional Brasil/Canadá/Moçambique” entre trabalhadores e comunidades atingidas pela Companhia Vale do Rio Doce ocorreu de 22 novembro a 4 de dezembro no Brasil. Teve como principal objetivo discutir com todos os participantes sobre a política de desrespeito a direitos trabalhistas, comunidades e meio ambiente da Companhia Vale do Rio Doce nos países onde a empresa se faz presente.

O intercâmbio passou pela cidade do Maranhão tendo seu término em São Paulo. A Central Sindical e Popular (CSP) Conlutas entrevistou dois companheiros que nos contaram um pouco da experiência desse encontro e de como a Vale atua em seus respectivos países.

Conversamos com o integrante do Movimento de Defesa da Terra do Moçambique, Rui Vasconcelos Caetano, e com o canadense Randy Koch, ferroviário e membro do sindicato dos metalúrgicos do Canadá, que aglutina diversas organizações.

Qual a importância desse encontro e seu principal objetivo?

Rui Vasconcelos Caetano: Fundamentalmente essa troca de experiência é contra um inimigo em comum, a multinacional Vale. Empresa que viola os direitos das comunidades e dos trabalhadores. Por isso, nesse encontro, definimos estratégias e formas de resistência à Vale do Moçambique e dos países explorados por ela.
Randy Koch: Meu objetivo nesse encontro, como trabalhador ferroviário, é pesquisar a realidade da estrada de ferro da Vale aqui no Brasil, assim como as comunidades de seu entorno. Além de contar sobre minha vivência, já que tenho 28 anos de experiência nos trilhos e lá no Canadá essas ferrovias também são utilizadas com o mesmo objetivo, transporte de minérios.

O que já foi traçado como meta concreta nesse intercâmbio?

R.V.Caetano: Buscaremos a intensificação desse intercâmbio, há experiências positivas no Brasil e Canadá. No Brasil, por exemplo, a experiência de envolver numa luta comum os movimentos sindical e popular é algo que queremos levar como modelo. Em Moçambique a Vale é recente, queremos capitalizar o espaço de mobilização.

R. Koch: Principalmente a troca de experiências com os países que participaram do encontro.

Vocês tiveram a oportunidade de ir ao Maranhão e ver a realidade dos trabalhadores e das comunidades atingidas pela Vale. Qual a semelhança com os ataques da Vale ao seu país?

R.V.Caetano: Em Moçambique, os ataques ao meio ambiente ainda não são tão visíveis como aqui no Brasil. A Vale se instalou em meu país em 2004. O que mais me impressionou no Maranhão foi ver a pobreza e desemprego por onde passa a estrada de Ferro de Carajás (MA), que transporta o minério. É algo que pode acontecer em Moçambique num futuro sombrio, se não lutarmos. Aqui, a empresa era estatal e depois foi privatizada. A Vale foi para Moçambique já privatizada. É importante o envolvimento de todos nessa luta!

R. Koch: A quantidade de pessoas que morrem na estrada de ferro do Carajás me impressionou. É triste ver o descaso das autoridades com relação ao assunto. No meu país as diferenças são basicamente em torno das leis de saúde e segurança do trabalho. No Canadá o Estado se envolve, mas aqui, pelo que pude perceber isso não ocorre. Nossas leis também não são perfeitas, a luta é permanente e tem haver com os políticos que estão no poder, que defendem as empresas e atacam os trabalhadores. Toda a atividade de mineração tem aspectos negativos.

No final de semana foi o desfecho do encontro, como foi esta troca de experiências?

R.V.Caetano: Desse encontro levo a saudade dos locais onde passamos e pudemos ver um Brasil profundo e real. Vamos continuar a ter essa ligação com as pessoas que estão envolvidas nessa causa.

R. Koch: O que me impressionou não foi só aspecto negativo, mas também a solidariedade das pessoas que moram nas comunidades atingidas pela Vale. Essa experiência vou levar comigo.

Qual o verdadeiro papel da Vale? A que essa multinacional tem submetido os trabalhadores em país?

R.V.Caetano: É retirar o máximo de lucro e mão-de-obra barata em Moçambique, país onde a empresa oferece os piores salários. Só traz prejuízos e sofrimento para as comunidades, como a desapropriação de famílias de diversas comunidades para explorar a terra. Perda de direitos e tradição das próprias comunidades. As compensações para essa retirada de direitos são casas, porém, de péssima qualidade e em lugares distantes, tudo para explorar o carvão. Existe um descontentamento generalizado no meu país, ninguém quer a Vale lá, principalmente as populações reassentadas pela empresa.

R. Koch: Não sou empregado da Vale, mas posso dizer que querem rebaixar as leis que protegem os trabalhadores da Vale no Canadá. Ao invés de nossas leis servirem de exemplo para o Brasil é o contrário que está ocorrendo, querem levar a flexibilização das leis que existe aqui para o meu país.

Uma mensagem de solidariedade aos mineiros aqui do Brasil e ao conjunto da classe trabalhadora.

R.V.Caetano: Que os trabalhadores do Brasil tenham muita coragem e nos passem sua experiência, para que nós possamos distribuir para os outros. Assim, nossa luta mobilizará cada vez mais trabalhadores.

R. Koch: Que todos os trabalhadores se unam por melhorares condições de trabalho, por isso é muito importante essa troca de experiências. Quando os trabalhadores e comunidades atingidas pela Vale se unem por suas reivindicações é mais certo que alcancem seus objetivos. Temos muita vontade de compartilhar nossa experiência. A solidariedade internacional é caminho para a construção de um mundo melhor.


Fonte: Site da Conlutas.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Dois olhares: um que se envergonha e se cobre, outro, sereno e altivo

Editorial do SUL21

Diante da foto de Dilma Rousseff, publicada nos principais meios de comunicação brasileiros e de boa parte do mundo, e da matéria de Luiz Cláudio Cunha, publicada no Sul21, não há mais como os oficiais superiores das Forças Armadas Brasileiras, se quiserem manter-se dignos, permanecerem calados e omissos.


A foto da militante de esquerda “Estela”, com olhar sereno e postura altiva, captada na 1ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro em novembro de 1970, durante seu julgamento, tendo ao fundo oficiais militares envergonhados a ponto de cobrirem o rosto diante daquela que julgavam e submetiam, para não serem flagrados pela história, é o retrato de uma era de ignomínia que teima, ainda hoje, em não terminar.
Eram jovens idealistas, como a da foto em questão, ainda que ingênuos e com pouca capacidade de avaliar as forças que tinham, os que ousaram enfrentar a ditadura militar (1964-85) e a repressão do Estado. Lançados à luta armada, muitos por falta de outra opção de sobreviviência, foram, em sua imensa maioria, aniquilados.
Eram oficiais superiores, não tão convictos de seus ideais e de suas ações, como revela a foto que correu mundo, os que usurparam do poder e cobriram seus rostos, numa tentativa até aqui bem sucedida de se protegerem da vergonha individual de seus atos, mas incapazes, cada vez mais, de proteger o conjunto das Forças Armadas Brasileiras da vergonha que cola e queima ainda em suas insígnias.
Preferirão, os atuais comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica do Brasil manterem-se fiéis aos velhos e já reformados militares repressores ou sentir-se-ão motivados, após a revelação da foto de Dilma e da leitura da matéria de Luis Carlos Cunha no Sul21, a agir como seus congêneres da Argentina e do Uruguai, que deixaram de lado o espírito de corpo das casernas e se desculparam publicamente pelas atrocidades cometidas por seus antecessores durante os anos negros das ditaduras militares naqueles países?
Não se justifique pela Lei da Anistia, de 1979, a impunidade dos que torturaram, “desapareceram” e mataram. Anistia é concessão dos vitoriosos, não dádiva que os opressores se auto-atribuem. Aprovada e promulgada em plena ditadura, a Lei da Anistia não foi negociada com a oposição, como hoje se afirma, posto que o Congresso era manipulado e a oposição mantida sob controle e mordaça, quando não simplesmente eliminada. A anistia de 1979 foi arrancada nas ruas, com as ações dos Comitês de Anistia e as manifestações organizadas em todos os estados, mas veio mais como prevenção futura para os opressores do que como reconhecimento da inexistência de crimes praticados pelos que ousaram enfrentar a força das baionetas.
Os que se envolveram na luta armada, que assaltaram bancos, que tentaram organizar guerrilhas foram quase todos mortos, antes que fossem anistiados. Muitos se encontram “desaparecidos” até hoje, num eufemismo que ajuda a esconder ainda mais profundamente os cadáveres produzidos pela violência brutal da ditadura. Os combatentes ou os meros opositores que sobreviveram à repressão, tenham eles sido “julgados” ou não pelos tribunais militares, foram presos e torturados, e/ou tiveram que se exilar no exterior (deixando pátria, lares, pais, irmãos, filhos e amigos), antes de serem anistiados.
Foram os que “prenderam e arrebentaram” em nome da ditadura os que nunca foram julgados. Não se trata agora, portanto, de exigência de revanchismo ou de punição unilateral. O que se reivindica é a construção da justiça e o reconhecimento dos crimes cometidos. Só assim se poderá acreditar que crimes semelhantes não venham a se repetir no futuro e que governos de força não tornem a ser confundidos como soluções mágicas para os problemas políticos, econômicos e sociais de nosso(s) país(es).
Que os oficiais superiores militares brasileiros descubram seus rostos, destapem seus olhos e vejam a realidade que os cercam. Reconheçam e se desculpem pelos erros cometidos pela geração que os antecedeu. Só assim poderão se reconciliar com o conjunto da Nação e encarar, sem mágoas e sem máculas, o presente e o futuro. Os erros do passado e de uma geração que já ficou para trás não podem continuar atormentando os vivos e ameaçando o futuro.

domingo, 11 de dezembro de 2011

2011: Bem vindos ao século XXI

Lucas Morais no DIARIO LIBERDADE

Talvez o século XXI tenha sido oficialmente inaugurado com o golpe de Estado de 2001 nos Estados Unidos que, após os suspeitos atentados terroristas não interrompidos pelas forças armadas, instaurou nesta nação, em nome da suposta segurança nacional, um verdadeiro Estado policial-militar. Tudo isso enquanto rasgava a legislação internacional com a desculpa do combate ao terror para a promoção de guerras de ocupação e a penetração em mais de 120 países de modos distintos.

É a Guerra Global ao Terrorismo, doutrina promovida pelas forças armadas e secretas dos Estados Unidos para construírem, uma vez terminada a Guerra Fria, os bodes expiatórios para chantagearem as nações não-alinhadas, e ocuparem se preciso (sob o pretexto de “combater o terrorismo”) aqueles países que interessam às corporações transnacionais sob comando do Estado norte-americano, como nos casos da Líbia, Afeganistão e Iraque. Esta ofensiva imperialista estadunidense atinge diretamente os interesses dos povos árabes, africanos, latino-americanos, asiáticos, persas, palestinos, etc. As próximas vítimas podem ser a Síria ou o Irã, mas os EUA têm mesmo em sua mira prejudicar os interesses estratégicos da China e da Rússia.

Da Primavera Árabe ao Pesadelo Árabe?

A chamada crise alimentar, marcada pela concentração cada vez maior da produção de alimentos sob poder dos monopólios capitalistas transnacionais, afetou drasticamente todos estes povos, especialmente os povos do Chifre da África, que vivem uma das maiores secas em 60 anos e ameaçou a vida de mais de 11 milhões de pessoas na Etiópia, Somália, Quênia, Sudão, Sudão do Sul e Djibuti. Durante dois anos, nenhuma gota d'água caiu dos céus na Somália, Etiópia e Quênia. Mais de 10 mil seres humanos foram mortos.
Para se ter ideia, mais de 800 mil somalianos do sul fugiram rumo ao Quênia e Etiópia em busca de alimentos. Os campos de Dadaab, no Quênia, acolheram perto de 440 mil refugiados, 300% a mais de sua capacidade. São cerca de 1.400 somalianos em fuga por dia nas fronteiras, enquanto preços de alimentos são manipulados de modo a promover maiores lucros aos acionistas de grandes empresas como a Monsanto, afetando diretamente a vida de todos os povos que convivem com a escassez de alimentos em função da especulação capitalista.
Esta crise, junto à violenta manutenção dos regimes ditatoriais em países do norte da África e do Oriente Médio, impediram um maior desenvolvimento da produtividade do trabalho nos países mais desenvolvidos desta região e aprofundaram as consequências da crise capitalista global para estes povos que vivem historicamente submersos na pobreza e na miséria. São estes e vários outros fatores que levaram ao que chamamos hoje de Primavera Árabe.
Entretanto, a Primavera Árabe, que nasceu como um movimento libertário na luta por democracia no Iêmen, Bahrein, Egito, Tunísia e em menor escala na Líbia, transmutou-se para uma contrarrevolução aberta orquestrada pelo Pentágono e a CIA aliada ao braço europeu, a OTAN, e o braço israelense Mossad, junto aos regimes monárquicos da Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes. Todo este aparato está montado contra os interesses de real democratização nestes países e, simultaneamente, contra os interesses estratégicos das potências BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, grupo emergente que se articula conjuntamente para defender seus interesses estratégicos em contraposição política e econômica ao bloco atlantista dos EUA-União Europeia), que possuem investimentos por parte de suas transnacionais por toda esta região e também por toda a África.
Com a conquista da Líbia pelas forças do Pentágono e da OTAN, está sendo viabilizada a instalação da primeira grande base de operações militares dos Estados Unidos na África, o Africom. No Egito, Tunísia e Iêmen as transições estão sendo orquestradas pelo alto, mantendo-se os antigos regimes e o apoio ao/do imperialismo estadunidense. Enquanto isso fortalecem-se as organizações islâmicas conservadoras, que venceram com maioria as eleições na Tunísia e no Egito, enquanto no Iêmen é negociado o afastamento do ditador Ali Abdullah Saleh e a situação ainda segue incerta no país mais pobre e de mais civis armados do Oriente Médio.
O Egito e a Tunísia deverão formar assembleias constituintes e construir jovens democracias capitalistas com inspiração no islamismo conservador a la Turquia, dado que os partidos deste bloco possuem atualmente maior força político-partidária e aptidão para negociar as concessões “democráticas” e as manutenções autoritárias com os antigos regimes.
Esta chama de lutas em um contexto de ditaduras genocidas historicamente apoiadas pelo imperialismo ocidental acabou por reacender e influenciar também as lutas sociais dos povos nas nações centrais do capitalismo global, esfriadas especialmente após 1968.

A juventude ocupa as ruas na Europa contra a austeridade

No Estado espanhol, o Movimento 15 de Março logo irrompeu, com sua juventude fortemente afetada pela crise capitalista, sem perspectivas não somente para o futuro, mas principalmente para o momento atual. Quando movimentos similares começavam a dar sinais na França, logo foram reprimidos com brutalidade pela polícia parisiense sob o tacão de Sarkozy. Na Inglaterra uma ampla rebelião de jovens ingleses e imigrantes sem perspectivas incendiou vários pontos tradicionais de Londres, expressando uma guerra aberta em um contra-ataque enfurecido contra a repressão policial e as políticas de austeridade. O movimento Occupy London resiste em sua luta enquanto no dia 30 de novembro mais de 80 mil trabalhadores do setor público foram às ruas de todo o Reino Unido protestar contra as políticas de austeridade do governo da coalizão conservadora-liberal encabeçada por David Cameron, protagonizando a maior greve dos últimos 30 anos na Inglaterra.
Na Grécia, apesar das contundentes manifestações e das mais de sete greves gerais, governa agora a direita ligada aos bancos, que está quebrando ainda mais o país com suas políticas de desmantelamento do setor público e de todas as conquistas sociais e trabalhistas, em um verdadeiro ataque que mostra o que vem por aí para Portugal, Irlanda, Itália e o Estado espanhol. Por outro lado, na Islândia, o país que não se fala, o povo se organizou, chamou por um plebiscito que votou contra o pagamento das dívidas ilegítimas e está organizando uma Assembleia Constituinte que está dando o exemplo para os povos europeus afogados na inviabilidade dos absurdos pagamentos das dívidas de seus países.
A chamada “austeridade”, que nada mais é que a ofensiva capitalista em meio a sua crise geral, vai se transformando no acirramento das lutas entre as classes capitalistas e trabalhadoras, enquanto os novos jovens proletarizados são os mais atacados e afetados, já que, quando encontram emprego, logo são submetidos a acordos trabalhistas flexibilizados e a salários mínimos.

Ocupe Wall Street

Eis que 2011 chega aos Estados Unidos em torno de um chamado para o Occupy Wall Street, convocado principalmente pelas redes sociais da Internet, rapidamente difundido e já nos primeiros dias contando com presença massiva de alguns milhares de manifestantes, que foram reprimidos com gás de pimenta, cassetetes, bombas lacrimogêneas e, claro, prisões. O movimento ganhou solidariedade, se ampliou, espelhou-se por dezenas das principais cidades deste país e hoje é uma das principais praças de luta dos 99% contra os 1%. A luta é abertamente contra o capitalismo e conta com mais simpatia dos estadunidenses do que o movimento ultraconservador republicano Tea Party.
O movimento é composto fundamentalmente por jovens, tanto nos Estados Unidos quanto nas lutas sociais da Europa. Vale lembrar que em 1968, na vanguarda das revoltas europeias, estavam sempre a combativa juventude, com os partidos comunistas e centrais sindicais, que então possuíam grande força e influência entre o povo, coisa que mudou muito nestes mais de 40 anos.

Para onde vamos nesta tormenta perfeita?

Mas, talvez o século XXI, o nosso século XXI, tenha somente começado em 2011 na Praça Tahrir, a praça da libertação. Não cabe especular o que será destes movimentos, basta notar que eles são sintoma da crise capitalista global, que deverá entrar em fases ainda mais críticas nos próximos meses e anos. Por outro lado, são também expressões das resistências a esta ordem social decadente e destrutiva, que cada vez mais depende do monopólio e do aumento da violência para sobreviver.
Esta juventude tem cada vez mais consciência dos limites da democracia capitalista e, não à toa, lutam por uma “Democracia real já”. Já os trabalhadores de todo o mundo vivem uma crise permanente especialmente a partir da década de 1980. Suportarão por quanto tempo a intensificação da exploração sem se rebelar contra o sistema explorador de seus patrões?
Que venha 2012!

Lucas Morais é jornalista, tradutor e editor de Diário Liberdade.

Gilberto Maringoni: Sobre relações ambíguas com a mídia

As relações ambíguas do governo com a mídia

Gilberto Maringoni*, especial para o Viomundo

Enquanto seus apoiadores acusam a mídia de ser golpista, governo prestigia e destina farta publicidade aos grandes meios de comunicação. Uma única edição de Veja teria recebido cerca de R$ 1,5 milhão em anúncios oficiais. É preciso regular e democratizar as comunicações. Mas também é necessário deixar mais claro os interesses de cada setor nessa disputa
No espaço de pouco menos de dois meses, dois ministros do governo Dilma foram fulminados por denúncias de atividades obscuras. Os demitidos foram os titulares do Esporte, Orlando Silva, e do Trabalho, Carlos Lupi. Os ataques partiram da grande imprensa, mais exatamente da revista Veja e dos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Logo as matérias ganhariam o espaço avassalador das telas de TV, com destaque para o Jornal Nacional, da Rede Globo. No mesmo período, mas dois membros do primeiro escalão entraram na linha de tiro da mídia. São eles Mario Negromonte (Cidades) e Fernando Pimentel (Desenvolvimento).
Aliados do governo tentaram desqualificar não apenas as denúncias, mas os veiculos que as difundem. Volta o debate de que estaríamos diante de uma mídia golpista, que não se conforma com a mudança de rumos operada no país desde 2003, que quer inviabilizar o governo etc. etc. Em parte têm razão.
A grande imprensa, por sua vez viciou-se em acusar todos os que discordam de seus métodos de clamarem pela volta da censura. Há muita fumaça e pouco fogo nisso tudo, mas faz parte do show. Disputa política é assim mesmo.

Maniqueísmo

É preciso colocar racionalidade no debate sobre os meios de comunicação no país, para que não deslizemos para maniqueísmos estéreis. Vamos antes enunciar um pressuposto.
A grande imprensa brasileira está concentrada em poucas mãos. Oito empresas – Globo, Bandeirantes, Record, SBT, Abril, Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e Rede Brasil Sul (RBS) – produzem e distribuem a maior parte da informação consumida no Brasil.
As corporações existentes há cinco décadas – Globo, Estado, Folha e Abril – apoiaram abertamente o golpe de 1964. Até hoje não explicaram à sociedade brasileira como realizam a proeza de falar em democracia tendo este feito em sua história.
Entre todos os meios, a revista Veja se sobressai como o produto mais truculento e parcial da imprensa brasileira.
Sobre golpismo, é bom ser claro. As classes dominantes brasileiras não se pautam pelas boas maneiras na defesa de seus interesses. Sempre que precisaram, acabaram com o regime democrático. Usaram para isso, à farta, seus meios de comunicação.

A imprensa é golpista?

No entanto, até agora não se sabe ao certo porque esta mídia daria um golpe nos dias que correm. O sistema financeiro colhe aqui lucros exorbitantes. A reforma agrária emperrou. Grandes empresários possuem assento em postos proeminentes do Estado – caso de Jorge Gerdau Johannpeter – ou têm seus interesses mantidos intocados.
Algumas peças não se encaixam na acusação de golpismo da mídia. Voltemos à revista Veja. Os apoiadores do governo precisam explicar porque a administração pública forra a publicação com vultosas verbas publicitárias, além de sempre prestigiarem suas iniciativas. Vamos conferir, pois está tudo na internet.
Veja tem uma tiragem de 1.198.884 exemplares, auditados pelo IVC. Alega ter um total de 8.669.000 leitores. Por conta disso, os preços de seus espaços publicitários são os mais altos entre a imprensa escrita. Veicular um reclame em uma página determinada sai por R$ 330.460. Já em uma página indeterminada, a dolorosa fica por R$ 242.200.
Quem anuncia em Veja? Bancos, a indústria automobilística, gigantes da informática, monopólios do varejo e… o governo federal. Peguemos um exemplar recente para verificar isso.
Na edição de 12 de outubro – que noticiou a morte de Steve Jobs – havia cinco inserções do governo federal. Os anúncios eram do Banco do Brasil (página dupla), do BNDES, do Ministério da Justiça, da Agência Nacional de Saúde e da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Supondo-se que as propagandas não foram destinadas a páginas determinadas e que os preços de tabela foram efetivamente cobrados, teremos um total de R$ 1.525.200.
Exato: em uma semana apenas, o governo federal destinou R$ 1,5 milhão ao semanário dos Civita, a quem seus aliados chamam de “golpista”.

Prestígio político

Há também o prestígio político que o governo confere ao informativo. Prova disso foi o comparecimento maciço de ministros de Estado e parlamentares governistas à festa de quarenta anos de Veja, em setembro de 2008. Nas comemorações, estiveram presentes o então vice-presidente da República, José Alencar, o ex-presidente do BC, Henrique Meirelles, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, a então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, o ex-ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, o ex-ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, o ministro da Educação, Fernando Haddad e a senadora Marta Suplicy (confiram em http://veja.abril.com.br/veja_40anos/40anos.html).
E entre julho de 2010 e julho de 2011, nada menos que seis integrantes dos altos escalões governamentais concederam entrevista às páginas amarelas da revista. São eles: Dilma Rousseff, Aldo Rebelo, Cândido Vaccarezza, Antonio Patriota, General Enzo Petri e Luciano Coutinho.
Nenhum demonstrou o desprendimento e a sensatez do assessor especial da presidência, Marco Aurélio Garcia (então presidente interino do PT). Ao ser convidado para conceder uma entrevista a Diogo Mainardi, em novembro de 2006, deu a seguinte resposta: “Sr. Diogo Mainardi, há alguns anos – da data não me lembro – o senhor dedicou-me uma coluna com fortes críticas. Minha resposta não foi publicada pela Veja, mas sim, a sua resposta à minha resposta, que, aliás, foi republicada em um de seus livros. Desde então decidi não falar com a sua revista. Seu sintomático compromisso em não cortar minhas declarações não é confiável. Meu infinito apreço pela liberdade de imprensa não vai ao ponto de conceder-lhe uma entrevista”.
   
RBS, Olívio e Lula

As relações ambíguas do governo e dos partidos da chamada base aliada com a grande mídia não se restringem à Veja.
Entraram para a história a campanha de denúncias e desgaste sistemático que os veículos da RBS moveram contra o governo de Olívio Dutra (1999-2003), do PT, no Rio Grande do Sul. Ataques sem provas, calúnias, mentiras e todo tipo de baixaria foi utilizada para inviabilizar uma gestão que buscou inverter prioridades administrativas. No auge dos ataques, em 2000, o jornal Zero Hora, do grupo, fez um ousado lance de marketing. Convidou Luís Inácio Lula da Silva para ser colunista regular. Até a campanha de 2002, o futuro presidente da República escreveu semanalmente no jornal, como se não tivesse relação com as ocorrências locais. Quando abriu mão da colaboração, Lula afirmou que o jornal prejudicava seu companheiro gaúcho. O jornal ganhou muito mais que o ex-metalúrgico nessa parceria. Ficou com a imagem de um veículo plural e tolerante.
No mesmo ano, o ex-Ministro José Dirceu foi entrevistado pelo Pasquim 21, jornal lançado pelo cartunista Ziraldo. Naqueles tempos, as empresas de mídia enfrentavam aguda crise, por terem se endividado em dólares nos anos 1990. Com a quebra do real no final da década, os débitos ficaram impagáveis. Lá pelas tantas, Dirceu afirmou que salvar a Globo seria uma “questão de segurança nacional”.

Comemorando juntos

As boas relações com a grande mídia se mantiveram ainda nas comemorações dos 90 anos da Folha de S. Paulo, em janeiro deste ano. Estiveram presentes à festa a presidente Dilma Rousseff – convidada de honra, que proferiu discurso recheado de elogios ao jornal – a senadora Marta Suplicy, colunista do mesmo, Candido Vaccarezza, líder do governo na Câmara, os ex-Ministros José Dirceu e Marcio Thomaz Bastos e o prefeito de São Bernardo, Luiz Marinho. A Folha também recebe farta publicidade governamental, do Banco do Brasil, da Petrobrás, da Caixa Econômica federal, entre outras.
Nos momentos de dificuldade, dirigentes do governo procuram sempre a grande imprensa para exporem suas idéias. Foi o caso de Antonio Pallocci, em 3 de junho último. Acossado por denúncias de enriquecimento ilícito, o ex-Chefe da Casa Civil convocou o Jornal Nacional, para dar suas explicações ao público.
O mesmo Antonio Palocci – colunista da Folha de S. Paulo entre 2009 e 2010 – dividiu mesas com Roberto Civita, Reinaldo Azevedo, Demetrio Magnoli, Arnaldo Jabor, Otavio Frias Filho e outros, em palestra no afamado Instituto Millenium, em março de 2010. A entidade congrega empresários do ramo e seus funcionários e se opõe a qualquer tipo de regulação em suas atividades.
Os casos de proximidade do governo e seus partidos com a imprensa são extensos. Uma das balizas dessas relações é o bolo da publicidade oficial. Segundo a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, a receita publicitária oficial em 2010 foi de R$ 1.628.920.472,60. Incluem-se aí os custos de produção e veiculação de campanhas, tanto da administração direta quanto indireta. Ressalte-se aqui um ponto: é legítimo o governo federal valer-se da publicidade para se comunicar com a população. A maior parte do bolo vai para os grandes grupos do setor.
No caso das compras de livros didáticos feitos pelo MEC, para as escolas públicas, o grande beneficiário é o Grupo Abril, que edita Veja.

Reclamação e democratização

Apesar do PT, partido do governo, ter feito uma moção sobre a democratização das comunicações em seu último Congresso, que gerou um seminário sobre o tema há poucas semanas, e do ex-ministro José Dirceu ter sido injustamente atacado recentemente pela Veja, é difícil saber exatamente que tipo de relação governo e partidos aliados desejam manter com os meios de comunicação. De um lado, como se vê, acusam a mídia de ser go lpista. De outro, lhe dão todo o apoio.
Alguns petistas se especializam também em utilizar o espaço da mídia para suas disputas palacianas. O jornalista Amaury Ribeiro Jr., por exemplo, em seu bombástico A privataria tucana, insinua claramente que o atual presidente do PT, Rui Falcão, teria vazado informações dos bastidores da campanha de Dilma Rousseff, no primeiro semestre de 2010, para nada menos que a revista Veja. Jornalista, Falcão é o mesmo que capitaneou o seminário petista sobre regulação dos meios de comunicação.
Pode ser que petistas e governantes tenham medo da mídia. Mas não se pode é ter um duplo comportamento no caso. Diante da opinião pública falam uma coisa, enquanto agem de forma distinta na prática.
O ex-presidente Lula reclamou muito da imprensa em seu último ano de mandato. No entanto, “Não houve qualquer alteração fundamental no quadro de concentração da propriedade da mídia no Brasil entre 2003 e 2010”. Essa constatação é feita pelo professor Venício Lima em brilhante artigo, publicado no final de 2010.
As resoluções da Conferência Nacional de Comunicação, realizada em 2009, mofam em algum escaninho do Ministério das Comunicações. O Plano Nacional de Banda Larga, que deveria fazer frente ao monopólio das operadoras privadas, acabou incorporando todas as demandas empresariais. O projeto de regulação da mídia elaborado pelo ex-ministro Franklin Martins desapareceu da agenda.
Por fim, vale uma nota. Temerosos com a chegada das gigantes da telefonia produzindo conteúdo televisivo e radiofônico para o mercado doméstico, os grupos Globo, Bandeirantes, Record e SBT fizeram intensa pressão pela aprovação da lei 12.485. O governo cedeu. A nova norma garante uma reserva de mercado para as velhas empresas de comunicação, embora as teles possam atuar da distribuição. O conjunto seguirá como um dos clubes mais fechados do mundo.
Como se pode ver, o governo e seus partidos de sustentação convivem muito bem com a mídia como ela é. Têm muita proximidade e pontos de contato, apesar de existirem vozes isoladas dentro deles, que não compactuam com a visão majoritária.
Nenhum dos lados tem moral para reclamar do outro…

*Gilberto Maringoni é jornalista, doutor em História pela FFLCH-USP e professor da Fundação Casper Líbero. É autor, entre outros, de Ângelo Agostini – A imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal, 1864-1910 (Devir Livraria, 2011)

sábado, 10 de dezembro de 2011

"Socialdemocracia precisa romper com liberalismo"


Em entrevista, Benoït Hamon, líder da corrente mais radical do Partido Socialista francês, faz uma síntese dos estragos do livre comércio liberal sem freio e, sobretudo, da forma pela qual a esquerda renunciou a seus valores históricos e passou a colaborar com o mercado. “Recuperemos a marcha do progresso social” é a consigna do livro que Benoït Hamon acaba de publicar, "Tourner la Page" (Virar a página), cujo eixo é a ideia de deixar para trás os anos nos quais a socialdemocracia foi aliada do liberalismo.


Não há nada melhor que uma travessia pela verdade e pela responsabilidade para entender o colapso mundial que desembocou na crise atual e a parte de responsabilidade que toca à esquerda europeia neste desastre. Benoït Hamon oferece esse duplo componente. Este dirigente socialista da nova geração, hoje porta-voz do PS, líder da corrente mais radical do Partido Socialista francês, fez uma síntese lúcida e responsável não só dos estragos do livre comércio liberal sem freio mas, sobretudo, da forma pela qual a esquerda renunciou a seus valores históricos e passou a colaborar com o mercado.

“Recuperemos a marcha do progresso social” é a consigna do livro que Benoït Hamon acaba de publicar, Tourner la Page (Virar a página), cujo eixo é precisamente a ideia de deixar para trás os anos nos quais a socialdemocracia foi aliada do liberalismo para passar a construir agora uma outra sociedade.

Benoït Hamon constata o abismo onde os mercados financeiros lançaram a humanidade, a forma pela qual o neoliberalismo paralisa o progresso social, o consenso que impera nas elites para que sejam os povos que paguem a conta e a maneira pela qual se questiona o sufrágio universal em benefício de uma tecnocracia impune. Tourner la Page é uma espécie de mapa do caminho, uma estratégia para a recuperação do progresso social e, sobretudo, uma lúcida radiografia da socialdemocracia e seus anos de estreita colaboração com seu inimigo histórico. Frente a uma ideologia baseada na depredação, o socialismo não foi capaz de defender suas próprias alternativas. Hoje, defende Benoït Hamon, chegou a hora de romper o consenso e sair de um sistema econômico, social e monetário que só traz pobreza, destrói empregos e extrai do presente as conquistas sociais obtidas ao longo de décadas de luta.

Você aponta em seu livro uma das novidades mais emblemáticas da crise atual: a perda da soberania dos povos. Como vimos na Grécia e Itália e por meio das declarações da União Europeia e da chanceler alemã Ângela Merkel, o liberalismo tem medo do voto, ou seja, da coluna vertebral da democracia.

Durante muito tempo o liberalismo viveu mediante um compromisso firmado entre os liberais e os socialdemocratas. No entanto, quando se passou para uma nova fase isso mudou. Quando o livre comércio inaugurou outro ciclo e se produziu uma autêntica globalização da economia com medidas para a derrubada das barreiras tarifárias ou com mudanças como o fato da internacionalização da mão de obra, o capitalismo modificou sua posição.

Em primeiro lugar, ao capital já não interessa mais chegar a um compromisso com o trabalho, mas sim, ao invés disso, romper com ele para obter o máximo de lucros. No antagonismo entre os socialdemocratas e liberais o que hoje está claro é que, para os liberais, o sufrágio universal é um obstáculo à ideia que fazem de um mundo perfeito, sem travas, governado pelos mercados e no qual os instrumentos de regulação devem estar nas mãos de agências independentes, supervisores supranacionais e aparatos tecnocráticos. Os liberais recusam a supervisão política porque têm a íntima convicção de que o sufrágio universal é a ditadura do fraco sobre os fortes, a ditadura dos indigentes cujas condições de vida não permitem entender a complexidade das coisas.

Entre as elites, liberais ou não, persiste a ideia de que elas detêm um saber que as pessoas comuns não têm. Eu estou convencido de que é preciso agir de uma forma radicalmente oposta. Devemos recuperar as bases e os fundamentos da democracia nas sociedades ocidentais e europeias. Esses fundamentos estão hoje amplamente ameaçados por 30 anos de liberalismo. Observe o que ocorre na Europa onde se fala de transferência da soberania. De acordo, transfiramos a soberania da nação para a Europa, mas somente se essa transferência de soberania de uma instância democrática a outra instância democrática não mude meu poder. Aceito que a Europa reivindique a gestão de matérias que a nação não pode administrar com eficácia, mas, uma vez mais, somente quando meu voto e meu poder não sejam menos importantes que antes.

Hoje há um movimento forte nesta direção. O presidente francês e a chanceler alemã defendem que prerrogativas nacionais muito importantes sejam colocadas nas mãos da Europa.

De fato, entre outras coisas estão defendendo a ideia de submeter os orçamentos dos Estados europeus a um regime de sanções decididas por uma instância tecnocrática como a Comissão Europeia ou a Corte de Justiça Europeia. Não. Se eu decido que em meu orçamento nacional haja 10 bilhões de dólares destinados a educação, porque meu povo necessita disso, e depois vem a Corte de Justiça Europeia dizer-me que não, isso é um absurdo. Isso quer dizer que o legislador nacional que tem a legitimidade de seu povo deve modificar seu orçamento para respeitar um critério fixado por outros. Não. Isso não faz nenhum sentido. Estamos nesta situação e creio que é a principal ameaça que paira sobre as sociedades europeias.

Por acaso, o liberalismo não perdeu o medo da revolução, quer dizer, do povo?

Neste momento, na Europa, estão se plasmando características revolucionárias: crise econômica, desconexão das elites, enriquecimento dos mais ricos, sentimento de uma espécie de fatalidade segundo a qual existe só uma política possível que se traduz em mais esforços para as classes médias e populares, corrupção das elites e um clima contrário às mesmas. Tudo isso cria um contexto muito favorável para a extrema direita. Para a esquerda, não há nada pior que o debate se concentre entre, por um lado, a direita defensora da perpetuação do sistema e, do outro, a extrema direita que aparece como a única capaz de encarnar a transformação do sistema.

A esquerda aparece neste contexto como uma mescla de tudo, um pouco de sal, um pouco de azeite, um pouco de pimenta. Estou muito de acordo com o análise que faz o filósofo Slavoj Zizek quando diz que as diferenças entre a esquerda e a direita se resumem no essencial a questões de sociedade, mas questões sociais e econômicas aparecem como subtraídas do debate. Afinal de contas, as diferenças mais claras não aparecem entre os blocos esquerda/direita, mas sim entre a direita e aqueles que pretendem provocar um curto-circuito na construção europeia. A síntese é que, pouco a pouco, a socialdemocracia se dilui e desaparece da paisagem política.

Há uma lógica nisso: a socialdemocracia europeia se aliou com o capital e passou a fazer da arquitetura do mundo atual, e não como oposição, mas sim como sócia do modelo atual.

Foi isso que aconteceu. Mas a socialdemocracia é a grande perdedora deste pacto. A partir do momento em que o liberalismo econômico e o liberalismo político se impuseram, o acordo entre liberais e socialdemocratas tornou-se mortífero. Isso é o que está precipitando a queda da socialdemocracia europeia. A responsabilidade desta fase recai muito sobre os socialdemocratas alemães. Foram eles que, sob o impulso do ex-chanceler alemão Gerhard Schroeder, protagonizaram o giro liberal da socialdemocracia europeia através do pacto com o patronato, os sindicatos e os políticos para fazer baixar o custo da mão de obra. Com isso se criaram empregos mal pagos com o objetivo de ganhar competitividade. Logo depois houve a recusa dos socialdemocratas alemães de se aliar com a esquerda para formar o governo. O partido de Schroeder preferiu se aliar com a direita. O chefe do SPD me disse um dia: “esse acordo foi mortal, fomos o grandes perdedores. Nós morremos e eles prosperaram”.

Seu livro assume plenamente a responsabilidade da socialdemocracia nessa permutação da esquerda e seu conseguinte pacto ou acordo com os liberais. Mas, para você, chegou a hora de dizer basta.

Certamente. Por isso meu livro se chama “Tourner la Page”. Se queremos que as pessoas voltem a acreditar em nós, se queremos que nos escutem quando dizemos que este modelo de desenvolvimento é um modelo esgotado, que o modelo liberal fracassou, tudo isso passa pela vontade de virar a página e também, sobretudo, pelo reconhecimento de que nós estamos dentro dessa página que devemos virar. Quando fizermos isso, quando virarmos a página, deixaremos para trás uma página de nossa história marcada pela corresponsabilidade com o sistema atual.

Não creio que sejamos tão responsáveis como os conservadores ou os liberais, não. Nossa responsabilidade não é equivalente. Eles são hoje os arquitetos do desmantelamento do Estado Providência na Europa, coisa que não queremos. Isso, não obstante, não nos exime do fato de que, em um dado momento, fomos corresponsáveis. Acreditamos que podíamos construir um modelo com os liberais. Por conseguinte, os socialdemocratas europeus têm uma grande responsabilidade com a crise atual.

Para você, em que consiste exatamente virar a página? Qual é a direção?

Creio que hoje existem os meios de empreender uma política radicalmente distinta, no mínimo pelo fato de que hoje é possível evocar temas dos quais há dez anos não se podia falar. Sem dúvida, a rapidez da crise contribui para isso. Os temas centrais da transformação são os seguintes: o tema do livre comércio é essencial, ou seja, a necessidade de impor limites ao livre comércio, de regulá-lo. O segundo tema consiste em saber em que condições pode se financiar o Estado Providência, ou seja, a política tributária. Trata-se de saber de que meios se dispõe para financiar a educação, a saúde, os serviços públicos, a proteção social, a aposentadoria.

Evidentemente, o tema da política econômica e monetária é central. Sem uma política monetária e econômica constante não pode haver nenhuma mudança. É impossível dizer que se é de esquerda sem mudar a política fiscal, a política monetária, a política comercial e a doutrina da política econômica que hoje aposta no holocausto, ou seja, na competitividade por meio da diminuição do custo da mão de obra, ou seja, do trabalho.

Ninguém pode acreditar que pode ser mais competitivo em termos de custo da mão de obra que um operário chinês. É preciso mudar as três doutrinas: a doutrina monetária que aposta em um euro forte para controlar a inflação, a doutrina comercial ultra livre-comércio e a doutrina econômica que fundamenta o crescimento sob o baixo custo da mão de obra.

Ao menos na França, a dinâmica social que deveria impulsionar e acompanhar as mudanças parece ausente.

A dinâmica social existe, se estrutura, inclusive se as pessoas estão um pouco esgotadas pelos extensos movimentos sociais que ocorreram na França. A luta contra a reforma do sistema de aposentadorias foi longa e acabou derrotada. Ficou uma espécie de pedagogia negativa da luta social.

As pessoas se dizem: para que lutar se quase nunca ganhamos. Creio que se queremos sair dessa situação, se queremos recuperar a vontade política, se queremos deixar de ser tímidos diante dos bancos, se queremos deixar de ficar congelados perante às agências de classificação de risco, se queremos tudo isso devemos saturar o espaço social com nossas reivindicações.

Para virar a página não basta ter um projeto político. Mesmo quando se está no poder é preciso saturar o espaço social com as reivindicações. Aqueles que lutaram contra a direita quando ela estava no poder tem que entender que a luta recém começa quando a esquerda chega ao poder. É aí, quando a correlação de forças políticas está ao nosso favor que a força social tem que nos acompanhar. Neste sentido, penso que o recurso ao sufrágio universal e ao referendo é um meio para que o poder político legitime suas reformas.

Há uma espécie de limite no pensamento projetivo da socialdemocracia europeia. Sua capacidade de diagnóstico é brilhante, acertada, lúcida e até comovedora. Mas na hora de agir, a força não é equivalente. Por quê? Medo dos bancos? Temor ante o mundo financeiro?

Não é muito complicado: na França fazem falta quatro ou cinco leis para modificar radicalmente a natureza do laço entre os mercados financeiros e a economia real. Com uma lei sobre as transações financeiras, outra sobre a separação entre banco para atendimento do público e banco de negócios, outra sobre comissões bancárias, outra que aponte para uma reforma da aposentadoria fundado sobre o imposto ao capital, e uma outra lei tributária para que as renda pague tanto quanto os rendimentos obtidos mediante o trabalho, com esses textos já haveria uma mudança considerável. Não há nada de revolucionário nisso, tudo é autenticamente socialdemocrata. O senso comum deveria nos conduzir a isso. O assombroso é que, mediante o jogo dos lobbys, as redes e a pressão, as ameaças e os meios de comunicação, quando chega o momento de aplicar essas reformas tudo se torna muito mais complicado.

Você expressou várias vezes seu reconhecimento pelas mudanças que a socialdemocracia conseguiu fazer na América Latina, sobretudo no Brasil, Argentina e, em outro contexto ideológico, Venezuela.

O que me assombrou e interpelou na América Latina, e digo isso sem negar a dureza do combate, é o fato de que as coisas podem mudar. A correlação de forças que foi preciso enfrentar foi poderosa: Lula, Chávez, Evo Morales, Correa, Kirchner, todos enfrentaram essa situação. Não é fácil fazer política. Observo que, no que se refere a várias questões, por exemplo a mobilização de instrumentos econômicos independentes das instituições de Breton Woods, ou a questão das nacionalizações, ou da reapropriação das ferramentas de produção, em especial quando se trata de recursos naturais, em todas essas questões a América Latina demonstrou que, em uma economia globalizada, é possível reapropriar-se desses meios, redistribuir a riqueza, sem que isso arruíne um país. Na América Latina está a última juventude da esquerda mundial. Houve um momento em que essa posição esteve na esquerda europeia. Já não está mais. A esquerda latino-americana tem uma capacidade de questionar a ordem econômica mundial que a socialdemocracia europeia não tem mais.

Tradução: Katarina Peixoto

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A Privataria Tucana: livro coloca José Serra na lona


Por Erick da Silva do ALDEIA GAULESA
 
Eis que venho a luz o tão temido livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr que tirou o sono de José Serra. A Privataria Tucana,  livro de 343 páginas publicado pela Geração Editorial, traz a luz o grande esquema de falcatruas praticadas nas privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso e o papel central do José Serra neste esquema.
Chama a a tenção o gritante silêncio da grande mídia sobre as revelações expostas no livro. Até o momento,  a única menção que a mídia publicou sobre Privataria Tucana é um anúncio da Folha para vender livros, afinal ninguém é de ferro! Digno de nota é que o livro é classificado pela Folha como "polêmico", que diferença de tratamento para as acusações contra aliados do governo Dilma.
A honrosa exceção na mídia impressa foi a 
CartaCapital, na edição que chega às bancas nesta sexta-feira 9,  traz um relato exclusivo e minucioso do conteúdo doe uma entrevista com autor (reproduzida abaixo). A obra apresenta documentos inéditos de lavagem de dinheiro e pagamento de propina, todos recolhidos em fontes públicas, entre elas os arquivos da CPI do Banestado. José Serra é o personagem central dessa história. Amigos e parentes do ex-governador paulista operaram um complexo sistema de maracutaias financeiras que prosperou no auge do processo de privatização.

Ribeiro Jr. elenca uma série de personagens envolvidas com a “privataria” dos anos 1990, todos ligados a Serra, aí incluídos a filha, Verônica Serra, o genro, Alexandre Bourgeois, e um sócio e marido de uma prima, Gregório Marín Preciado. Mas quem brilha mesmo é o ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil, o economista Ricardo Sérgio de Oliveira. Ex-tesoureiro de Serra e FHC, Oliveira, ou Mister Big, é o cérebro por trás da complexa engenharia de contas, doleiros e offshores criadas em paraísos fiscais para esconder os recursos desviados da privatização.
O livro traz, por exemplo, documentos nunca antes revelados que provam depósitos de uma empresa de Carlos Jereissati, participante do consórcio que arrematou a Tele Norte Leste, antiga Telemar, hoje OI, na conta de uma companhia de Oliveira nas Ilhas Virgens Britânicas. Também revela que Preciado movimentou 2,5 bilhões de dólares por meio de outra conta do mesmo Oliveira. Segundo o livro, o ex-tesoureiro de Serra tirou ou internou  no Brasil, em seu nome, cerca de 20 milhões de dólares em três anos.
Confira a entrevista a seguir, onde Ribeiro Jr. explica como reuniu os documentos para produzir o livro, refaz o caminho das disputas no PSDB e no PT que o colocaram no centro da campanha eleitoral de 2010 e afirma: “Serra sempre teve medo do que seria publicado no livro”.
CartaCapital: Por que você decidiu investigar o processo de privatização no governo Fernando Henrique Cardoso?
Amaury Ribeiro Jr.: Em 2000, quando eu era repórter de O Globo, tomei gosto pelo tema. Antes, minha área da atuação era a de reportagens sobre direitos humanos e crimes da ditadura militar. Mas, no início do século, começaram a estourar os escândalos a envolver Ricardo Sérgio de Oliveira (ex-tesoureiro de campanha do PSDB e ex-diretor do Banco do Brasil). Então, comecei a investigar essa coisa de lavagem de dinheiro. Nunca mais abandonei esse tema. Minha vida profissional passou a ser sinônimo disso.
CC: Quem lhe pediu para investigar o envolvimento de José Serra nesse esquema de lavagem de dinheiro?
ARJ: Quando comecei, não tinha esse foco. Em 2007, depois de ter sido baleado em Brasília, voltei a trabalhar em Belo Horizonte, como repórter do Estado de Minas. Então, me pediram para investigar como Serra estava colocando espiões para bisbilhotar Aécio Neves, que era o governador do estado. Era uma informação que vinha de cima, do governo de Minas. Hoje, sabemos que isso era feito por uma empresa (a Fence, contratada por Serra), conforme eu explico no livro, que traz documentação mostrando que foi usado dinheiro público para isso.
CC: Ficou surpreso com o resultado da investigação?
ARJ: A apuração demonstrou aquilo que todo mundo sempre soube que Serra fazia. Na verdade, são duas coisas que o PSDB sempre fez: investigação dos adversários e esquemas de contrainformação. Isso ficou bem evidenciado em muitas ocasiões, como no caso da Lunus (que derrubou a candidatura de Roseana Sarney, então do PFL, em 2002) e o núcleo de inteligência da Anvisa (montado por Serra no Ministério da Saúde), com os personagens de sempre, Marcelo Itagiba (ex-delegado da PF e ex-deputado federal tucano) à frente. Uma coisa que não está no livro é que esse mesmo pessoal trabalhou na campanha de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, mas sob o comando de um jornalista de Brasília, Mino Pedrosa. Era uma turma que tinha também Dadá (Idalísio dos Santos, araponga da Aeronáutica) e Onézimo Souza (ex-delegado da PF).
CC: O que você foi fazer na campanha de Dilma Rousseff, em 2010?
ARJ: Um amigo, o jornalista Luiz Lanzetta, era o responsável pela assessoria de imprensa da campanha da Dilma. Ele me chamou porque estava preocupado com o vazamento geral de informações na casa onde se discutia a estratégia de campanha do PT, no Lago Sul de Brasília. Parecia claro que o pessoal do PSDB havia colocado gente para roubar informações. Mesmo em reuniões onde só estavam duas ou três pessoas, tudo aparecia na mídia no dia seguinte. Era uma situação totalmente complicada.
CC: Você foi chamado para acabar com os vazamentos?
ARJ: Eu fui chamado para dar uma orientação sobre o que fazer, intermediar um contrato com gente capaz de resolver o problema, o que acabou não acontecendo. Eu busquei ajuda com o Dadá, que me trouxe, em seguida, o ex-delegado Onézimo Souza. Não tinha nada de grampear ou investigar a vida de outros candidatos. Esse “núcleo de inteligência” que até Prêmio Esso deu nunca existiu, é uma mentira deliberada. Houve uma única reunião para se discutir o assunto, no restaurante Fritz (na Asa Sul de Brasília), mas logo depois eu percebi que tinha caído numa armadilha.
CC: Mas o que, exatamente, vocês pensavam em fazer com relação aos vazamentos?
ARJ: Havia dentro do grupo de Serra um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) que tinha se desentendido com Marcelo Itagiba. O nome dele é Luiz Fernando Barcellos, conhecido na comunidade de informações como “agente Jardim”. A gente pensou em usá-lo como infiltrado, dentro do esquema de Serra, para chegar a quem, na campanha de Dilma, estava vazando informações. Mas essa ideia nunca foi posta em prática.
CC: Você é o responsável pela quebra de sigilo de tucanos e da filha de Serra, Verônica, na agência da Receita Federal de Mauá?
ARJ: Aquilo foi uma armação, pagaram para um despachante para me incriminar. Não conheço ninguém em Mauá, nunca estive lá. Aquilo faz parte do conhecido esquema de contrainformação, uma especialidade do PSDB.
CC: E por que o PSDB teria interesse em incriminá-lo?
ARJ: Ficou bem claro durante as eleições passadas que Serra tinha medo de esse meu livro vir à tona. Quando se descobriu o que eu tinha em mãos, uma fonte do PSDB veio me contar que Serra ficou atormentado, começou a tratar mal todo mundo, até jornalistas que o apoiavam. Entrou em pânico. Aí partiram para cima de mim, primeiro com a história de Eduardo Jorge Caldeira (vice-presidente do PSDB), depois, da filha do Serra, o que é uma piada, porque ela já estava incriminada, justamente por crime de quebra de sigilo. Eu acho, inclusive, que Eduardo Jorge estimulou essa coisa porque, no fundo, queria apavorar Serra. Ele nunca perdoou Serra por ter sido colocado de lado na campanha de 2010.
CC: Mas o fato é que José Serra conseguiu que sua matéria não fosse publicada no Estado de Minas.
ARJ: É verdade, a matéria não saiu. Ele ligou para o próprio Aécio para intervir no Estado de Minas e, de quebra, conseguiu um convite para ir à festa de 80 anos do jornal. Nenhuma novidade, porque todo mundo sabe que Serra tem mania de interferir em redações, que é um cara vingativo.