Enquanto o Brasil cresce e atrai imigrantes, São Paulo
repete com os bolivianos do século 21 o preconceito contra os
nordestinos do século 20
Por: João Peres na REDE BRASIL
Os irmãos Mamani sofrem da sina do mal viver. Uns nasceram na
Bolívia, outros vieram ao mundo no Brasil. Não importa: os traços
andinos, o jeito tímido e a pele morena são pecados suficientes para
dar-lhes, em vida, o direito ao calvário. Não há idade para começar a
pagar penitência. É o despertar dos colegas à intolerância ao diferente o
que sela a sorte desses meninos e meninas.
Jeferson, de 16 anos: “A maioria dos brasileiros
não fala com a gente. E tudo o que acontece é nossa culpa. Falam que a
gente só traz cocaína para cá”
Laura*, de 11 anos, vive distante do mundo colorido de seus
ancestrais. “Não quero mais ir para a escola”, diz, envergonhada, sem
fitar os olhos alheios, na casa em que vive, uma mistura de oficina de
costura e moradia. Ultrapassado um pesado portão de ferro, revelam-se
uma escadaria íngreme e, logo adiante, uma construção inacabada dividida
em três pisos, todos habitados por várias famílias. A mãe trabalha das
7h às 22h30, de segunda a sexta, e faz umas horinhas no sábado em uma
sala quente, de telhas plásticas, um ventilador ruidoso e luminárias
amarradas por barbantes, prontas para despencar. Os problemas de Laura
aumentaram no ano passado, quando passou a ser xingada dentro e fora da
sala de aula. E também na rua de casa, onde é agredida fisicamente, o
que torna as saídas cada vez mais escassas. “Falam que não gostam de
bolivianos. A professora não faz nada”, queixa-se. Como ocorreu aos mais
velhos, tomam-lhe o dinheiro do lanche. Como lhe ocorreu, contra o
irmão de 7 anos, Álvaro*, atiram maçãs.Também batem e roubam.
A família Mamani, na verdade, não é uma triste exceção. “Boliviano,
vai para casa. Você veio aqui roubar meu emprego” é o resumo do ideário
que move os xenófobos de São Paulo. “Preconceitos que se encontram na
rua estão na escola de maneira bastante evidente. Muitos professores
moram no bairro e acabam por reproduzir o discurso”, afirma a
pesquisadora Giovanna Modé, responsável pela tese de mestrado
“Fronteiras do direito humano à educação”.
Bullying racial: Com tantos ataques, os irmãos Laura e Álvaro não querem mais ir à escola
A São Paulo do século 21, sempre orgulhosa de sua vanguarda, sai na
frente outra vez ao tratar os bolivianos de agora como os nordestinos de
outrora. “À medida que o Brasil se consolida como polo regional,
naturalmente nossas fronteiras vão receber um contingente cada vez maior
de estrangeiros. É uma inversão da história”, afirma o promotor Eduardo
Valério, do Ministério Público Estadual em São Paulo. Em janeiro, ele
enviou ofício à prefeitura da capital e ao governo do estado em que
questiona quais políticas públicas específicas são oferecidas aos
imigrantes bolivianos, calculados em 150 mil pessoas. Há trabalhos de
esclarecimento na área de saúde? Assistência social voltada aos que
chegam? Reforço de aulas de português nas escolas? Valério continua a
esperar por uma resposta. “É o momento de mostrarmos que no Brasil se
acolhe o estrangeiro com respeito aos direitos humanos”, adverte.
Bahia ou Bolívia?
“Cabeça chata” era a expressão generalizadora da segunda metade do
século 20 em São Paulo. Trazia implícito um pacote de adjetivos: lento,
vagabundo, burro, incompetente, todos em oposição a uma suposta aptidão
paulistana ao trabalho e ao sucesso individual. O “Bahia”, designação
para todos os migrantes nordestinos, deu lugar ao “Bolívia”. “Vocês são
índios. Sai daqui” é frase comum aos ouvidos de Cristina Rivas, de 27
anos, há 20 em São Paulo. Um preconceito mal resolvido se soma a outro.
Os traços similares aos de grupos indígenas brasileiros rendem aos
bolivianos chegados à cidade uma série de preconceitos: sujo, preguiçoso
e bêbado. “As crianças viam a gente como se fosse um bicho diferente”,
lembra. “Como eu era tímida, nem falava. Não conseguia aprender porque
tinha medo de perguntar.”
Problema parecido passou Carla Yanapa, hoje com 19 anos. Chegou ao
Brasil com 9, já na 4ª série, e logo contou com a compreensão das
professoras para a fase de adaptação: “Vai escrever ou não vai
escrever?” Em seguida, tomava “ponto negativo” por não conseguir redigir
nada em português. Foi na marra, no passeio com o tio pelo bairro, no
diálogo com a televisão, que ela aprendeu a se virar. “As professoras
davam indireta de que boliviano não toma banho.” Quando mudou para outra
escola, passou a contar com a ajuda dos docentes. Mas, aí, eram os
colegas que não davam sossego. “Empurravam, quebravam minha presilha de
cabelo.”
Em oficinas de costura improvisadas, trabalha-se das 7h30 às 22h30. Muitas crianças acompanham os pais
Giovanna Modé analisou um universo estimado em quase 1.500 bolivianos
que estudam na rede pública em São Paulo. Eram raras as iniciativas de
dar reforço escolar aos recém-chegados e de respeitar o tempo de
adaptação a um novo país. Muitos dos imigrantes estão, na verdade, em um
segundo momento de mudança. Primeiro, deixaram o interior da Bolívia,
muitas vezes falando pouco de castelhano – a língua mais usada é o
aimara –, e se mudaram de La Paz, com 900 mil habitantes, para uma selva
de 11 milhões de almas. “Não existe política pública no sentido de
reconhecer as particularidades da população”, aponta a hoje integrante
da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação. No caso de Carla, a
persistência e a vontade de ajudar os pais a terem uma vida melhor
acabaram prevalecendo, e este ano ela começou a cursar Jornalismo.
Mas a cidade que recebe a todos de braços abertos tem os punhos
cerrados para os bolivianos. A cada cinco palavras ditas por María
Sosa*, uma é medo. Outra é insegurança. Desde que apanhou, em novembro
do ano passado, raramente ultrapassa o portão de casa. A filha, Jimena*,
havia se transformado em alvo predileto das “brincadeiras” na classe.
Um dia, colocaram em sua mochila objetos de outra menina, que logo a
acusou de ladra.
Chamada à escola, María deparou com o pai da suposta vítima, que, ao
notar sua origem, se transformou: “Seu lixo, boliviana de merda, vem
aqui no meu país me roubar. Merda de boliviana”. A diretora pediu a
María que esperasse na sala ao lado até que o senhor se acalmasse, mas,
ao primeiro sinal de distração, ele correu atrás dela, puxou-a pelos
cabelos e passou a arrastá-la pelo chão aos gritos de “boliviana de
merda, vai embora”.
A única coisa em que o agressor acertou foi ao dizer que a agredida,
por ser boliviana, jamais conseguiria puni-lo. Ao tentar o apoio da
Polícia Militar, da Polícia Civil e da diretoria da unidade, só
encontrou quem a desencorajasse a levar o caso adiante. Passou, então, a
ter medo e, após dez anos em São Paulo, vive da porta para dentro.
“Minha mãe me levava no parque, no zoológico”, lamenta Jimena, de olhos
doces e fala mansa. “Ela ficou mais nervosa depois daquilo, briga
comigo.” A família espera apenas o término do ano letivo para regressar a
La Paz.
Problemas invisíveis
Se na educação os problemas se multiplicam, eles aparecem também na
saúde e na assistência social. “O ilegal não quer ser notado”, diz Deisy
Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais da
Universidade de São Paulo (USP) e atuante na área da integração
sul-americana. E mesmo o legal enfrenta problemas: a Cristina tocou
trabalhar na costura, outro pacote preconcebido por São Paulo ao
boliviano. “Eu me preparei bem, fiz cursos, mas nas empresas não aceitam
estrangeiros.”
Estrangeiros, aceitam. Segundo dados do Ministério do Trabalho e
Emprego, 70.524 autorizações de trabalho foram concedidas a naturais de
outros países em 2011, 14 mil a mais que no ano anterior e 36 mil a mais
na comparação com 2008. “Acreditamos no mito de que somos um país
aberto. A imigração bem-vinda é a branca, associada a um trabalho de
formação do país”, diz Deisy. “O governo brasileiro dificulta a
regularização. Não regularizar o imigrante é excluí-lo da vida social.”
Sina Cristina vive há 20 anos em São Paulo, mas ainda é vítima de preconceito. Só consegue trabalho nas oficinas de costura
Trancados em oficinas, muitas vezes submetidos a jornadas
extenuantes, de segunda a sábado, não têm acesso a fontes de informação.
“Nos países de origem não há saúde pública. É importante informá-los”,
diz o coordenador-geral do Centro de Apoio ao Migrante (Cami), Roque
Patussi. “Um dos fatores que afastam o estrangeiro do posto de saúde é o
medo de não ser compreendido.” Ele sugere campanhas no rádio e
panfletos em castelhano como forma de contar aos bolivianos que os
direitos humanos básicos são, afinal, universais e não dependem de
documentação. Faltaria, ainda, combinar com os servidores públicos, que
muitas vezes desconhecem a obrigação do atendimento ao estrangeiro.
A advogada especializada em Direito Sanitário Tatiana Chang Waldman
fez um levantamento com 28 mulheres bolivianas. Delas, três não haviam
utilizado o sistema público de saúde. A dificuldade em ausentar-se do
trabalho, o idioma e as diferentes relações culturais com o tratamento
médico foram detectados como motivos para a frequência relativamente
baixa de consultas. Três em cada quatro entrevistadas disseram haver
diferenciação no tratamento – “olham feio”, “gritam” e “não têm
paciência” foram alguns dos relatos. Para a pesquisadora, porém, a
percepção sobre o preconceito no atendimento de saúde pode ser fruto de
situações vividas em outras partes da cidade.
“Por que não se faz um trabalho na Kantuta?”, questiona Patussi,
fazendo referência à praça adotada pela comunidade na zona norte
paulistana. Aparentemente, não se vê muito glamour nos encontros de
bolivianos. Em 24 de janeiro, a festa de Alacitas, tradicional
celebração andina, tomou a rua Coimbra, na zona leste. Mas rapidamente
apareceu a Guarda Civil Metropolitana, força de repressão municipal,
para tentar barrar a reunião sob a alegação de irregularidades. Isso na
véspera do aniversário do município, ocasião na qual vídeos e fotos
exaltam uma vocação pluralista. “Somos descendentes dos incas. As
pessoas veem que não somos daqui”, constata Marcelo Laura, há 18 anos no
Brasil, hoje dono de um negócio de comidas típicas. Nada próximo do
folclore do Bexiga, a Bela Vista, reduto italiano, ou da harmonia da
Liberdade, de chineses e japoneses, ambos com festas promovidas pela
administração municipal.
Anistia incompleta
O governo federal abriu em 2009 uma anistia aos estrangeiros. Na
primeira fase, inscreveram-se 45 mil pessoas, mas, na hora de fazer a
conversão ao visto permanente, dois anos depois, apenas 18 mil
conseguiram. O problema principal, exposto ao secretário nacional de
Justiça, Paulo Abrão, foi o tratamento pouco amável da Polícia Federal.
Abrão assumiu o esforço de amenizar as exigências, mas esbarrou na
atuação dos agentes federais.
Na tentativa de regularizar a situação, Elizabeth
e Rober foram enganados por um falso advogado. Tiveram de pagar uma
multa de R$ 4.200 à PF e ainda estão sem documentos
A intransigência do órgão levou Elizabeth Espinoza e o marido, Rober
Chuquimia, a cair no conto do vigário. Passando-se por advogado, um
homem cobrou R$ 1.000 para ensinar o caminho da regularização. Por fim,
tiveram de desembolsar R$ 4.200 à PF, o golpista sumiu e os papéis ainda
não saíram. Toda vez que procuram alguma luz entre os servidores da
polícia, recebem a recomendação de esperar. Sem dinheiro no bolso, com
três filhos para sustentar, não conseguem voltar para a Bolívia nem
viver em São Paulo.
Também convidada a sair foi Yeda*, mãe dos sete irmãos Mamani. O mais
velho, de 19, deixou os estudos. A violência atrapalha igualmente os
irmãos do meio. “Foi terrível”, lembra Jeferson*, de 16, sobre o dia em
que bateram no primo. Andar pela rua é sinônimo de ser assaltado. “Tudo
que acontece é nossa culpa. Falam que a gente só traz cocaína para cá.”
Para piorar, em dezembro o marido de Yeda deixou a família. Laura
dorme pouco e, quando o faz, tem pesadelos. “Não tenho mais família.
Quero ir para o orfanato. Aqui está ruim. Na escola está ruim.” A mãe
recebe, em média, R$ 3 por peça costurada, o que toma uma hora e meia de
trabalho. Sem o marido, não dá conta das despesas. Espera angariar R$
1.400 para levar a família de volta. “A inclusão é boa para todos. É a
convivência que faz a diferença para uma sociedade mais justa e
igualitária”, diz Giovanna Modé. Se depender do senso de justiça de
alguns órgãos públicos, o promotor Valério continuará a esperar sentado.
Se depender da ajuda dos vizinhos, Yeda pode começar a rezar para
Pachamama.
* Nomes fictícios