Rachel Duarte no SUL21
‘Ele é gay porque foi abusado na infância’. ‘A educação dele foi
muito castrada por isso ele é gay’. ‘Não vou aceitar para ver se meu
filho desiste dessa ideia de ser gay’. Muitas teorias são levantadas
quando se discute a orientação sexual das pessoas que se relacionam com
outras do mesmo sexo. O senso comum ainda acredita na origem da
homossexualidade como doença, perversão ou opção. O psicólogo paulista
com especialização em sexualidade humana Cláudio Picazio esclarece estes
e outros preconceitos relacionados aos homossexuais em entrevista ao Sul21.
Autor dos livros Diferentes desejos, sobre orientação afetiva sexual; Sexo secreto, aulas de temas polêmicos para professores; e Uma outra verdade, com perguntas e respostas para pais e educadores sobre homossexualidade na adolescência,
o psicólogo garante que homossexualidade está relacionada ao desejo
sexual que nasce com as pessoas, não podendo ser ensinado, estimulado ou
adquirido. “As pessoas querem criar teses para justificar a existência
de uma orientação sexual que difere da sua”, diz.
Ele vê como urgente o combate ao bullying homofóbico, partindo da
maior informação de pais e professores a respeito do tema. “Não é o
filho gay que tem que dar suporte a estes pais, são os pais que devem
dar suporte para os filhos gays. Esta história está errada”, defende
Cláudio Picazio.
O psicólogo também estudou psicoterapia esportiva e por três anos
analisou o comportamento dos jogadores de futebol nas categorias de base
dos clubes do sudeste do país. Ele conta como os boleiros lidam com a
homossexualidade e acredita que uma esperança para a revolução sobre
gênero e sexualidade pode estar entre os jogadores de futebol. O afeto
explícito dentro de campo pode alterar a noção machista que dita a
impossibilidade de homens serem afetivos. “Se Neymar e Ganso se abraçam e
se beijam, vemos isso acontecer nas arquibancadas. Existe esta
influência na esfera geral, na massa da população”, afirma.
Sul21 – O senhor tem como explicar como é formada nossa orientação sexual?
Cláudio Picazio – Sempre começo corrigindo a
terminologia. Não se trata de homossexualismo, é homossexualidade. Tem
diferença. Geralmente na ciência tudo que termina com ‘ismo’ é
qualificado como doença. Doença ou perversão. Não se fala
heterossexualismo. Quando usamos heterossexualismo, trata-se de alguém
muito doente nas relações com mulheres. Então, é heterossexualidade,
homossexualidade, travestilidade. Comecemos por aí.
Sul21- Certo. Esclarecida a terminologia, como se desenvolve a orientação sexual?
Cláudio Picazio - Todo mundo acredita que a
sexualidade é imposta ou aprendida. Não é aprendida. Descobrimos o nosso
desejo sexual. Ninguém precisa ensinar o desejo sexual, ele se revela
dentro da gente. Existe um preconceito que na educação de um filho se
forma a sexualidade. Não é verdade. É algo da natureza. Desde a infância
há meninos se interessando por meninos e meninas por meninas. Não
podemos castrar isto. O desejo nasce e se orienta dentro de nós. Nós
descobrimos isso. Querer entender o que faz uma pessoa virar homossexual
também deveria estar relacionado à necessidade de saber o que faz uma
pessoa virar hetero. As pessoas querem criar teses para justificar a
existência de uma orientação sexual que é diferente da sua. ‘Ele foi
muito castrado, por isso virou gay”. Não. As mulheres foram castradas a
vida inteira e não foi por isso que viraram lésbicas. O mundo teme agora
a exposição assumida dos homossexuais, como se um beijo na novela ou em
público fosse influenciar outras pessoas a serem gays. Não é assim.
Isto é uma cretinice.
Sul21 – Como o senhor define a homossexualidade?
Cláudio Picazio – Ser homossexual não é simplesmente
aceitar que se gosta, ter paixão ou desejo por uma pessoa do mesmo
sexo. Se perceber homossexual é se reconhecer como aquilo que o mundo
diz que é o pior. Se o goleiro não pega uma bola quando o time
adversário faz um gol, do que ele é chamado? Veado. Se alguém da uma
fechada no trânsito? É veado. Tudo aquilo que é visto como ruim, errado e
perverso, a sociedade vai alimentando como ‘coisa de veado’.
Sul21 – O senhor afirma que o homem heterossexual precisa do
homossexual para se afirmar como homem. Para ele ver o quanto tem
masculinidade e está distante do ser “afeminado”. Os gays menos afetados
seriam os que mais incomodam, por parecerem homens. Mas, os mais
vulneráveis e os que estão mais presentes nas estatísticas de violência
são os travestis e os mais claramente homossexuais. Como o senhor
explica isso?
Cláudio Picazio – Ele precisa do outro para afirmar a
sua diferença. Por outro lado, ele teme um desejo por este diferente.
Não necessariamente ele tem o desejo, mas ele teme ter. A partir do
momento que ele teme, ele tem que agredir aquele objeto de desejo por
achar que assim ele não sentirá desejo. Há também a inconformidade de
que aquela pessoa que tem uma sexualidade diversa está rompendo com
aquilo que é considerado bom ou correto. No Rio Grande do Sul podemos
fazer uma analogia com o comportamento das torcidas de futebol. Os
gremistas e colorados brigam não por um querer mudar para o time do
outro, mas por entender que a sua opção é superior a do outro. Existe
uma tentativa de superioridade. Você é menos por ser colorado ou menos
por ser gremista na visão das torcidas adversárias. O humano
infelizmente ainda vai muito nesta celeuma de querer hierarquizar as
coisas e se afirmar diante de um poder que acha que tem.
Sul21 – A rivalidade também pode ser compreendida pelo
caráter passional. Mas por que há essa relação de ódio com a sexualidade
alheia? Por que a vida sexual do outro interessa para mim?
Cláudio Picazio – Infelizmente a nossa cultura é
baseada nisso. Eu valho mais por aquilo que eu sou. Sou mais macho e
melhor quanto mais mulher eu pegar. Tenho mais valor assim. E isto
também se transferiu para amulher. As mulheres estão repetindo este
péssimo comportamento masculino. Conforme o número de caras que eu
fiquei na balada, mais legal eu sou. Então vai se baseando um valor
quantitativo e não qualitativo sobre as relações humanas. A mulher copia
o pior do homem neste sentido. Queimaram os sutiãs, conquistaram
inúmeros direitos. Têm sua liberdade sexual e erótica. Mas a revolução
feminina aconteceu e não houve uma revolução masculina. Ela se igualou
aos homens que, na verdade, precisam se transformar. Um homem afetivo
hoje é excluído. Ele não pode ter afeto por que é visto como um ‘não
homem’. Mais do que homofobia, o problema é a aversão ao afeto.
Recordemos o caso dos pai e filho se abraçando em São Paulo que foram
agredidos por trocarem afeto e serem confundidos com homossexuais. Esta
agressão não foi por causa da sexualidade, foi por causa do gesto de
afeto. A nossa sociedade não dá conta da questão amorosa no masculino. A
homofobia tem fundamento nisso. O homem amoroso é excluído. No Rio
Grande do Sul isso é ainda mais forte. É proibido aos homens serem
afetivos, isso é feminino. Se ele transa com outros homens de forma
violenta ele é aceito, porque daí é considerado mais macho ainda. Só não
pode ter amor. O homem afetivo rompe com o que é esperado de um homem.
Quanto menos afetivo for o homem, melhor. Isto é um valor que se
reproduz e afeta os relacionamentos e a humanidade. Percebemos na
infância que os meninos ainda precisam gostar de jogar futebol ou judô.
Se algum menino gostar de escutar Beethoven ou de pintar, o
constrangimento dos pais é enorme. Já está feita a confusão de que ele é
ou pode ser homossexual.
Sul21 – Falando em futebol, o senhor tem um estudo de três
anos nas categorias de base dos times do sudeste do país. O futebol,
apesar de alguns avanços femininos no esporte, é genuinamente masculino.
Como se lida com a homossexualidade neste universo de boleiros?
Cláudio Picazio – O jogador de futebol, para o homem
brasileiro, é a principal referência de masculinidade. Ele é aguerrido,
combatente em campo e passa essa imagem. Tanto que, se um jogador usa
brinco de brilhante ou pinta os cabelos de colorido não é sinônimo de
homossexualidade. É permitido. Aquilo deixa de ser feminino nos olhos
dos homens se é um jogador de futebol que faz. Eu fico extremamente
feliz quando vejo troca de afeto entre jogadores. Por mais que ainda
choque ou cause estranhamento em algumas pessoas, é comum ver o mesmo
sentimento contagiando a torcida. Se o Neymar e o Ganso se abraçam e se
beijam, vemos isso acontecer nas arquibancadas. Existe esta influência
na esfera geral, na massa da população. Eu chego a afirmar que a
salvação do gênero masculino no Brasil está no comportamento dos
jogadores de futebol.
Sul21 – Sabe-se que existem
muitos jogadores de futebol homossexuais, mas não publicamente. Admitir
isso causaria uma revolução masculina?
Cláudio Picazio– No caso da homossexualidade de
jogadores de futebol, que sabemos que existe bastante, é ainda mais
delicado. O preconceito é muito maior. Entre os jogadores não. Eles
convivem muito, acabam sendo bastante íntimos e conseguem se respeitar. É
como uma grande família. Eles se
apoiam. A relação com os técnicos também tende a ser sempre respeitosa
porque o importante é o desempenho do atleta e não a vida privada dele. E
não existe esta coisa que se pensa no senso comum, que os jogadores
gays saem pegando todo mundo no vestiário ou que não podem estar diante
dos outros que vão querer pegar. O problema é a visão preconceituosa que
vem de fora. Outra coisa: se o homem é gay, ele está condenado a gostar
de coisas femininas, não pode gostar de jogar futebol ou mesmo ser um
jogador de futebol? Não são nossas preferências que fazem nossa
sexualidade. Olhar para um quadro de Monet não fará você se tornar
feminino. O que escutar Vivaldi influenciaria em você gostar de um pênis
ou de uma vagina? É uma cretinice este tipo de pensamento. Mas, o pior
de tudo isso, é a relação com a violência. Para o homem ser homem, ele
tem que ser violento. E depois, este homem é violento com a mulher e
também é condenado pela sociedade. Qual a alternativa que ele tem? Se o
homem não der porrada ele não é homem. Entrando em contato com uma
mulher ele vai resolver as coisas como?
Sul21 – Como romper o ciclo educativo da homofobia e do preconceito? Qual a contribuição da escola e dos pais neste processo?
Cláudio Picazio – Temos que ensinar a população que
agressividade não significa heterossexualidade e homossexualidade não
significa doçura e candura. Prova disso é que existem muitos gays que
não são afetivos e heteros que não são agressivos. Uma coisa não tem
nada a ver com a outra. Certa vez eu presenciei uma cena em uma loja de
brinquedos. Um pai e uma mãe caminhando com um filho pequeno e um bebê
de colo, no colo do pai. O filho menor foi até uma boneca e segurou no
colo como o pai fazia. A atitude da criança causou uma reação imediata
do pai que pediu para a mãe ‘tirar a boneca do menino’. O filho queria
reproduzir o que o pai fazia e foi repreendido por ser homem brincando
de boneca. O pai ficou apavorado e não enxergou o que estava na intenção
do menino. E era uma loja de um lugar nobre de São Paulo. Então, a
questão não é de classe.
Pais e filhos devem entender que os filhos não nascem para suprir as
expectativas dos pais. A gente existe para corresponder às próprias
expectativas. O conselho de alguns colegas é dar um tempo para os pais
absorverem a ideia. Isto é errado. Não é o filho gay que tem que dar
suporte para estes pais, são os pais que devem dar suporte para os
filhos gays. Esta história está errada. Temos nas famílias ainda um
processo educacional que é equivocado: “eu vou tentar falar com aversão a
respeito, para ver se ele deixa de ser”. Como se esta deseducação
pudesse transformar alguém. As pessoas ainda acreditam que
homossexualidade é uma opção. Não é. Mas, mesmo se fosse, requer
respeito das pessoas. Eu já atendi vários casos de pais que se
arrependeram porque os filhos se mataram. Na escola é preciso enfrentar e
orientar os professores para detectar e combater o bullying. O bullying
homofóbico é cometido de muitas maneiras. Uma risadinha, um olhar
torto, chegando até a agressões verbais e físicas. Tudo é muito doido.
Os gays escutam o todo tempo falar coisas a seu respeito que muitas
vezes não são verdadeiras. Blindar este tipo de bullying,
percebido todo o tempo, é muito difícil. Até porque são coisas veladas,
como um tio que não te cumprimenta, pais que não te reconhecem. É tudo
muito pesado. O processo terapêutico é fundamental para apoiar as
vítimas deste bullying.
Sul21 – Já tivemos a oportunidade de falar sobre sexualidade
com outros especialistas que acreditam que o futuro da humanidade será
de relações bissexuais e/ou poligâmicas. O senhor partilha desta visão?
Cláudio Picazio – É muito controverso isso. O
comportamento dos homens e mulheres pode ser bissexual. Homens podem
transar com homens e mulheres, assim como mulheres como mulheres e
homens. Podem existir relações múltiplas. Enfim, todas as formas de
desejo. Agora, para as relações se tornarem bissexuais ou poligâmicas
existe um elemento muito crucial que influencia o ser humano a não
conseguir viver assim: o ciúme. A perda do objeto amoroso. As pessoas
não se acostumam com isso. Os anos 70 não deram certo até hoje por causa
disso. Não é possível assistir nossa amada ou amado transando com outro
na nossa frente de forma feliz sempre. Em termos afetivos, temos
capacidade de amar dois gêneros. Amamos nosso pai e mãe, irmãos e irmãs.
Temos uma esfera amorosa que permite o amor por homens e mulheres, mas
por um gênero temos desejo sexual e por outro não. Eu particularmente
acredito que o futuro da humanidade é ter mais respeito por quem tem
desejo erótico por homens ou mulheres, mas não que todos vão virar
bissexuais ou poligâmicos. Temos mais liberdade para experimentar,
porém, se um gay transa com uma mulher não vai deixar de ser gay e
vice-versa. Ele teve uma atitude sexual de determinada orientação, mas o
desejo sexual não muda sua orientação. A evolução humana tem que ser
para não se preocupar mais com o desejo sexual dos outros. As nossas
transas não serem uma espécie de preenchimento de currículo.
Sul21 – Gostaria de encerrar com uma curiosidade em relação
ao orgasmo masculino que o senhor defende: homens não tem orgasmo toda
vez que ejaculam?
Cláudio Picazio – O mito do orgasmo masculino. Essa tese eu adoro. (risos)
O homem não tem um orgasmo a cada ejaculação, ele tem um gozo. Ele tem
um prazer, mas orgasmo é muito diferente. A grande excitação e a grande
satisfação, é como perder os sentidos. Isso não é em toda relação que
ele tem. Na rapidinha que ele dá, ele ejaculou, mas não foi o grande
prazer erótico que o faz levitar, tremer as pernas. Existe um
desconhecimento neste sentido e que gera uma perseguição em relação ao
orgasmo. O mesmo para mulher. Às vezes as pessoas estão mais dispostas,
mais tranquilas e vão conseguir ter. Outras vezes não estão tão
confiantes ou excitados e não terão. E o problema é que isto é
equiparado com felicidade. Se eu não tive um orgasmo eu não sou feliz.
Se eu não enlouquecer na cama, eu não sou homem ou mulher. Mas a
intimidade e o prazer não se resumem a ter orgasmo. Às vezes não gozar e
só curtir a intimidade é super prazeroso e excitante. Não precisamos
ficar escravos de mitos.