Cada vez mais, os grandes debates políticos e projetos de
infraestrutura são cercados pelas questões ambientais, levantando
posturas apaixonadas e açodadas, mas nem sempre respaldadas por alguma
profundidade argumentativa e conceitual. Tal vazio verificou-se
novamente com a recém-encerrada Conferência Rio+20, promovida pela ONU
em reedição da célebre Eco-92. Com a diferença de que o tema da
preservação ambiental adquiriu centralidade muito maior nesses últimos
20 anos, sendo o Brasil palco de extremadas contradições na área.
Após aprovar uma nova versão do Código Florestal, do agrado dos
ruralistas e bombardeado por todas as vertentes do ambientalismo, a
presidente Dilma Rousseff fez todo o esforço possível para angariar ao
país uma imagem vanguardista de responsabilidade ambiental. No entanto,
na análise de José Juliano de Carvalho Filho, entrevistado pelo Correio da Cidadania, tal visão simplesmente “não se aplica à realidade dos fatos da macroeconomia brasileira”.
Para o professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da
USP e membro da Associação Brasileira da Reforma Agrária (ABRA), todas
as medidas do governo em questão no campo vêm no sentido de prejudicar a
preservação ambiental, além de favorecer a concentração de terras.
“Fala-se em nome dos pequenos agricultores, mas, de fato, beneficiam-se
os grandes grileiros, abrem-se terras ao mercado e permite-se o avanço
das monoculturas”, critica, deixando claro que o mesmo vale para outras
decisões, como as MPs 422 e 458, também em benefício do agronegócio e em
detrimento do meio ambiente e da justiça fundiária.
Para além das discussões nacionais, Juliano desacredita de cima a
baixo os novos conceitos de responsabilidade ambiental que o capitalismo
tentar erigir e dos quais já se apropria. “Não sei se defino ‘economia
verde’ como camuflagem, enganação, talvez falte um termo elegante. É
preciso uma ruptura com a forma capitalista, principalmente o
capitalismo financeiro, e tirar tudo da mão do mercado para se almejar
uma ‘economia verde’. Essas conferências servem como um espaço pra
discutir, aumentar a conscientização, mas o fato é que os Brics e os
países ricos não se comprometeram em nada. Não se trata de ver quem é de
direita ou esquerda, a coisa é transversal, todos adotaram esse modelo
macroeconômico”, resume.
A entrevista completa pode ser conferida a seguir.
Correio da Cidadania: Como o senhor avalia o novo Código
Florestal aprovado no Congresso e o processo político que conduziu a
este novo Código?
José Juliano de Carvalho Filho: Acho que segue
aquilo que sempre acontece na nossa organização histórica, desde a
escravidão. Um código que criou necessidades. Quem criou tais
necessidades não foi o país, foram os ruralistas. O processo, em minha
opinião, é uma história antiga, de duas vertentes, a do latifúndio e a
ambiental. A tática foi criar um clima de insatisfação com o Código
Florestal que vigorava e depois colocar o bode na sala. A partir disso,
com o bode na sala (as propostas ruralistas), mal cheiroso, se discutiu o
Código e suas alterações.
Dessa forma, foi um avanço muito grande em prol dos interesses dos
chamados ruralistas – digo “chamados” porque deve ser a classe mais
poderosa do país. Vai implicar em impactos muito negativos. Ainda estou
tentando estudar se a MP editada pelo governo melhora ou piora a
situação, mas o fato é que, comparando com o código anterior, esse é
muito pior, pois permite mais derrubada de reservas, transformação legal
de propriedades enormes em várias propriedades pequenas, consolidação
de áreas agrícolas, além de outras contravenções do campo, como a
anistia a crimes ambientais, contando também com uma justiça
patrimonialista a serviço do latifúndio. São contraventores do campo,
não querem recompor área, desmataram, grilaram.
O fato é que, no contexto geral, aumentou-se a vulnerabilidade da
conservação ambiental brasileira, com claras vantagens aos ruralistas.
Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos que
ressaltam que o Código supostamente protege os pequenos agricultores, o
que se daria, por exemplo, pela não exigência de recomposição da reserva
pra propriedades de até 4 módulos fiscais?
José Juliano de Carvalho Filho: É o agravante:
discursar em favor dos pequenos. É idêntico ao que aconteceu no programa
Terra Legal, por exemplo. Fala-se em nome dos pequenos, mas, de fato,
beneficiam-se os grandes grileiros, abrem-se terras ao mercado e
permite-se o avanço das monoculturas.
Em relação às populações tradicionais, continuarão como pobres
brasileiros. Em linhas gerais é isso, com consonância muito grande com
as medidas que passaram a ser editadas desde o fim do primeiro mandato
de Lula, tais como as MPs que legalizaram grilagem e titulação de
terras, dificultando algumas lutas indígenas pela terra, por exemplo.
Não podemos esquecer de vários casos, como o dos guarani kaiowá, no Mato
Grosso do Sul, em que se chegou a uma situação de barbárie total, com
assassinatos, suicídios, esquartejamentos de índios, o que temos visto
fartamente no noticiário.
É tudo muito consistente da parte deles, pois mexem com todas as
regras passíveis de serem burladas. É o mesmo discurso da Transposição
das águas do São Francisco, do Terra Legal etc. Faço trabalhos no campo
desde os anos 70, já cansei de presenciar casos de políticas para o
campo anunciadas como benéficas ao pequeno agricultor e que na verdade
os prejudicava. Quando se dava crédito para pequenos em alguma área,
eram as grandes empresas quem pegavam, de fato, os créditos subsidiados.
A história se repete, com as mesmas relações sociais. Agora é a mesma
coisa com o Código Florestal, chegando a um ótimo resultado em favor dos
ruralistas. O país pagará tanto em danos sociais como ambientais.
Correio da Cidadania: Ou seja, têm sido, realmente, muitas e
notórias as MPs que, nos últimos anos, beneficiam o latifúndio e os
ruralistas, em detrimento da pequena produção e da agricultura familiar.
E os governos Lula e Dilma seguem a tendência, certo?
José Juliano de Carvalho Filho: Sem dúvidas. Desde o final do primeiro governo Lula. A partir disso, editaram-se as MPs 422, 458 e tivemos o Terra Legal.
São duas questões a respeito da política agrária: se pegarmos todos
os documentos de política agrária do PT, à época da primeira campanha
vitoriosa, e também da segunda, tudo que define reforma agrária, ou
seja, mexe com a estrutura agrária, como a revisão dos índices de
produtividade, foi sumindo. Não ficou nada, de modo que não há
compromisso do governo com a reforma agrária.
Paralelamente, podemos elencar mudanças nas políticas agrárias, com
medidas que invariavelmente beneficiam o agronegócio. É uma mistura de
capital fundiário de pessoas que investem no Brasil em parceria com
“brasileiros” (entre aspas, porque o capital e seus agentes não têm
pátria), avançando cada vez mais sobre as terras. A cana tem capital
externo, o petróleo tem, e essa é a regra geral em nossas commodities.
Como exemplo, no estado de São Paulo, os índices de Gini eram razoáveis,
mas agora o estado é dominado pela cana, que vai crescendo sem parar, e
o índice de Gini só se deteriora.
De um lado, uma série de medidas que favorecem o agronegócio e, por
outro, uma série de medidas que dificultam a vida dos pequenos
agricultores. Agora vemos projetos de políticas que visam criar
obstáculos para a titulação e homologação de terras indígenas e
quilombolas. De vez em quando se faz um mise en scène, mas os fatos são esses.
Com as alianças que fez pra governar, vemos que o governo acabou refém dessa classe ultraconservadora e nociva.
Correio da Cidadania: Em sua opinião, o governo Dilma já
deixou clara sua política para o campo? Ela pode vir a beneficiar em
algum momento a agricultura familiar e a reforma agrária?
José Juliano de Carvalho Filho: Acho que ainda não
está claro. Mas, novamente, pegando os documentos da campanha
presidencial, em determinado trecho vemos que tanto Serra, candidato do
PSBD, quanto Dilma, candidata do PT, com suas coligações e tal, ao
apresentarem seus programas no TSE mostraram as semelhanças na
“política” agrária. Assim como na Carta aos Brasileiros, do Lula, neste
caso os dois programas deixaram claro, além dos discursos e convenções,
que ninguém tinha compromisso com a reforma agrária. O documento do
programa petista terminou apenas com generalidades.
No máximo, a Dilma poderia fazer algo como o Lula, ou seja, algumas
pequenas medidas em favor dos pequenos, como o Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA). Entretanto, fazendo políticas que beneficiam acima de
tudo o agronegócio em termos estruturais. O problema é que não se coloca
a questão da propriedade como origem da pobreza e desigualdade social, o
que é uma “aparente” contradição do programa petista.
Os ministérios da Agricultura e o do Desenvolvimento Agrário fazem
política à parte um do outro. Aquilo que se entende como pequena
política ficou subalterna; negros, pobres, índios, sem terras, podem
fazer o que quiserem desde que não incomodem. Se começam a incomodar a
grande política, isto é, aquilo que gira em torno da macroeconomia...
Não tenho esperança de grandes mudanças no mandato da Dilma. Os
programas do PT têm a tendência de superconcentrar as terras e deixar
avançar as grandes monoculturas de exportação. Já as MPs de benefício ao
agronegócio tornam o governo refém de suas contradições políticas, o
que redunda em políticas pífias para a reforma agrária. O que funciona
mesmo é essa sustentação macroeconômica encampada pelo governo e suas
metas. Temos uma especialização e reprimarização retrógradas, como diz o
professor Reinaldo Gonçalves, opinião da qual compartilho.
Correio da Cidadania: Como o senhor situa as intervenções de
Dilma, que não seguiu a campanha maciça de setores mais progressistas
pelo veto ao novo projeto de Código Florestal, sancionando-o com 12
vetos e 32 emendas?
José Juliano de Carvalho Filho: É difícil responder
com convicção, porque o melhor seria ter em mãos todas as versões: o
Código Florestal anterior, de 1965, o novo, e aquelas versões que
passaram e foram alteradas pela Câmara e Senado, comparando-as ponto a
ponto e tendo uma avaliação mais concreta. É preciso ter cuidado com as
matas ciliares, propriedades familiares, as águas... Tudo isso tem sido
feito em prejuízo do meio ambiente, a exemplo também da questão das
áreas consolidadas. É preciso ver tudo detalhadamente pra saber o que
pode depois ser revertido na justiça. Mais que isso, não posso dizer
ainda.
Correio da Cidadania: Como o senhor tem visto a atuação dos
movimentos sociais, aqueles ligados ao campo em particular, bem como sua
relação com o atual governo?
José Juliano de Carvalho Filho: Sou a favor dos
movimentos, de modo que toda crítica que faço é no sentido construtivo,
pois é neles que vejo esperança de mudanças reais na sociedade. Mas
estão tímidos frente ao governo. Claro que fazem suas reivindicações por
aí, mas estão tímidos. Reforma agrária e justiça no campo sempre foram
conquistas, não concessões, mas as pressões por cooptação são muito
fortes. E os movimentos deveriam estar mais agressivos.
Correio da Cidadania: O que pensa do papel jogado pelo
Brasil, e da imagem que o país tentou vender de si, na conferência
Rio+20? A propaganda oficial de desenvolvimento sustentável, com a
exploração de “energia limpa”, condiz com nossa realidade?
José Juliano de Carvalho Filho: O papel do Brasil é
uma grande contradição. Falando do documento final, de acordo com o
próprio secretário da ONU, podemos falar que foi fraco. Não há medidas
imediatas, de modo que é um fracasso maior ainda que a Eco-92, que pelo
menos tinha propostas. O conceito de sustentabilidade não se aplica à
realidade do nosso país e, na verdade, desde o documento que o criou, em
1987, não existiu de fato. Os povos do campo estão sendo prejudicados
por essas medidas de dita sustentabilidade. Foi uma conferência muito
fraca, do G-7 só a França esteve realmente presente, de modo que não
saiu nada de muito importante desse encontro. Fica uma mistura de
posições, ninguém sabe direito o que é isso (desenvolvimento
sustentável), e todo mundo usa o conceito.
Correio da Cidadania: Falando em conceito, o que o senhor
teria a dizer sobre a “economia verde”, a grande novidade no vocabulário
do capitalismo global?
José Juliano de Carvalho Filho: O mercado se
apropriou dessa história e começou a falar em “verde”. Um exemplo de
agora, pequeno, mas emblemático do que acontece, é essa história das
sacolinhas de supermercado. São eles, os supermercados, que vão mudar a
cultura nacional sobre preservação ambiental? Na verdade, apenas
defendem seu interesse econômico, que também está envolvido, uma vez que
forneciam as sacolinhas gratuitamente aos seus clientes. A imagem que o
Brasil deixou foi um pouco superior pela falta de representação dos
outros países. Mas os resultados são fracos. Quais são os resultados e
compromissos? Nenhuns.
Não sei se defino “economia verde” como camuflagem, enganação, talvez
falte um termo elegante. Cada um entende de um jeito e passa a imagem
de estar fazendo algo pela preservação. É o capitalismo buscando novas
formas de se reproduzir. Com o atual momento, a Europa em sua crise não
resolvida, além da concentração de renda de alguns países, é uma
roupagem nova.
Não vejo esperanças de economia realmente verde, não vejo
compromissos realmente sérios e um freio na acumulação capitalista. São
questões políticas importantes e diretamente relacionadas. É preciso uma
ruptura com a forma capitalista, principalmente o capitalismo
financeiro, e tirar tudo da mão do mercado para se almejar uma “economia
verde”.
Outro exemplo é esse mercado de carbono, que não faz sentido, seria
muito melhor taxar as empresas poluidoras. Uma empresa poluidora compra
créditos de Moçambique, polui por lá, contamina grande parte do meio
ambiente local, das águas, e ficamos assim. Acontece aqui no Brasil
também.
Essas farsas de mercado não vão deixar de seguir a lógica do capital.
Daqui a pouco vão comercializar o ar que o teu neto vai respirar no
futuro, vai tudo pro mercado. Dessa forma, tal como já vemos acontecer,
teremos a monopolização das águas e bens naturais mais essenciais.
Empresas como Nestlé e Coca Cola estão adquirindo territórios que lhes
garantem abastecimento de água, o que na verdade é uma apropriação da
natureza. A Monsanto é outro exemplo dessa monopolização, como se vê com
as sementes, enquanto as propostas e denúncias da Via Campesina, ainda
que sendo as melhores para os povos, são ignoradas.
Lendo os cientistas (aqueles que merecem consideração), vemos que
podemos atingir um desequilíbrio mundial sem retorno, com falta de bens
naturais, aumentando ainda mais a pobreza, a barbárie, as disputas,
impedindo os agricultores de terem sementes, tendo que se suprir de
Monsantos e afins... Tais conferências e governos beneficiam esse
modelo, dando pouca esperança para a humanidade.
Servem como um espaço pra discutir, aumentar a conscientização, mas o
fato é que os Brics e os países ricos não se comprometeram em nada. Não
se trata de ver quem é de direita ou esquerda, a coisa é transversal,
todos adotaram esse modelo. Usam seus argumentos de sustentabilidade e o
mundo se encaminha para mais desastres, prejudicando as populações mais
pobres, um dos resultados mais diretos desse “desenvolvimento
sustentável”. Os resultados pífios, mornos, da reunião não mudarão isso.
E o modelo macroeconômico do país beneficia tal lógica destrutiva.
Elogiei algumas medidas do governo Lula, mas elas vêm acompanhadas
dessas histórias, do aumento da força da monocultura e da concentração
de terras. Os camponeses saem do campo, vão pra cidade e vemos se
agravarem as questões agrárias, sociais e ambientais.
Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania; Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania.
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