sábado, 7 de julho de 2012

Compreender a Sociedade para entender a educação e o papel da escola

 
A “história da humanidade”
deve sempre ser estudada e elaborada
em conexão com a história da indústria e das trocas.
(Marx e Engels)

O tema da educação não ocupou um lugar central na obra de Marx. Ele não formulou explicitamente uma teoria da educação, muito menos princípios metodológicos e diretrizes para o processo ensino-aprendizagem. Sabemos que sua principal preocupação fora o estudo das relações sócio-econômicas e políticas e seu desenvolvimento no processo histórico. Entretanto, a questão educacional encontra-se inevitavelmente enredada em sua obra. Existem alguns textos que Marx, juntamente com Engels, redigiu sobre a formação e o ensino em que a concepção de educação está articulada com o horizonte das relações sócio-econômicas daquela época. Assim, para compreendermos qual sua perspectiva na análise do fenômeno educativo precisamos passar pelo seu modo de compreender a sociedade. Na seqüência, meu propósito é pontuar algumas das questões que, em nosso entender, chamam a atenção para uma re-leitura de Marx e Engels, hoje, no âmbito educacional.
O ponto de partida da história, para Marx, é a existência de seres humanos reais que vivem em sociedade e estabelecem relações. Para ele a essência do homem é o conjunto das relações sociais. Assim, a corporeidade natural é uma condição necessária mas não suficiente. A humanização do ser biológico e específico só se dá dentro da sociedade e pela sociedade. Gadotti (1984) nos lembra que, para Marx, o homem não é algo dado, acabado. Ele é processo, ou seja, torna-se homem e, isto, a partir de duas condições básicas: a) ele produz-se a si mesmo e, ao fazê-lo, se determina como um ser em transformação, como o ser da práxis e; b) esta realização só pode ter lugar na história.
O que distingue o ser humano dos outros animais, conforme Marx, é o fato de ele, num dado momento da história, começar a produzir os seus próprios meios de existência. O que o ser humano é coincide com “o que” e “como” ele produz. Ao contrário de Hegel, para quem a consciência determina a vida concreta, real; em Marx é a vida concreta e real que determina a consciência. Assim, “O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção” (MARX; ENGELS, 1999, p. 28).
Deduz-se desta perspectiva que, para a compreensão do processo educativo, deve-se compreender aquele (processo) pelo qual os seres humanos produzem a sua existência, isto é, o processo produtivo, o mundo do trabalho e o âmbito de suas relações. Para essa análise é preciso recorrer à situação da divisão do trabalho, o que permite considerar o grau de desenvolvimento das forças produtivas de uma sociedade. Assim, podemos tomar como exemplo a divisão entre campo e cidade, entre trabalho comercial e industrial. A divisão do trabalho conduz a diferentes interesses ocasionando até mesmo interesses opostos.
O advento da propriedade privada provocou um mudança decisiva na divisão do trabalho. A partir da divisão do trabalho em trabalho manual e trabalho intelectual surgem outras dicotomias: gozo e trabalho, produção e consumo, miséria e opulência. Estas dicotomias originam um conflito de interesses: o individual versus o coletivo, o público e o privado.
Marx e Engels (1999, p. 46) apontam para as conseqüências desta divisão: “(...) com a divisão do trabalho fica dada a possibilidade, mais ainda, a realidade, de que a atividade espiritual e a material – a fruição e o trabalho, a produção e o consumo – caibam a indivíduos diferentes; e a possibilidade de não entrarem estes elementos em contradição reside unicamente no fato de que a divisão do trabalho seja novamente superada”.
Aquele caráter edificante, socializante e humanizante do trabalho, onde o indivíduo constrói-se na inter-relacão com os demais indivíduos, desfaz-se sob a economia capitalista, pois o ser humano passa a representar uma força de trabalho que é vendida aos proprietários dos meios de produção como aparente garantia de sua sobrevivência. A vida torna-se, assim, um simples meio de vida. Como conseqüência disso temos aquilo que Marx denominou como alienação, isto é, o trabalho que o ser humano realiza produz objetos que não lhe pertencem e, além disso, voltam-se contra ele como estranhos. A diferença entre o que ele produz e o que ele é na vida cotidiana aumenta cada vez mais. O trabalho torna-se cada vez mais alheio ao trabalhador. Quanto mais o trabalhador produz, mais ele nega-se a si mesmo, mais arruína-se física e espiritualmente.
A propriedade privada, portanto, constitui a base de todo o processo de alienação. O conceito de alienação mostra concretamente o que impede o desenvolvimento do ser humano e como se pode ultrapassar tais impedimentos. Nos Manuscritos Econômico-filosóficos Marx afirma que a superação da propriedade privada significa a emancipação plena de todos os sentidos e qualidades humanos.
A educação, na sociedade capitalista, é, segundo Marx e Engels, um elemento de manutenção da hierarquia social; ou o que Gramsci denominou como instrumento da hegemonia ideológica burguesa. A igualdade política é algo meramente formal e não passa de uma ilusão visto que a desigualdade social é concreta e inequívoca. Atualmente a situação não parece ser muito diferente daquela vivida e descrita por eles.
No entanto, uma das possibilidades de viabilizar a superação das dicotomias existentes e da emancipação do ser humano reside na integração entre ensino e trabalho. A esta integração eles designam ensino politécnico ou formação omnilateral. Por meio desta educação omnilateral o ser humano desenvolver-se-á numa perspectiva abrangente isto é, em todos os sentidos. Conforme Gadotti (1984, p. 54-55) “A integração entre ensino e trabalho constitui-se na maneira de sair da alienação crescente, reunificando o homem com a sociedade. Essa unidade, segundo Marx, deve dar-se desde a infância. O tripé básico da educação para todos é o ensino intelectual (cultura geral), desenvolvimento físico (ginástica e esporte) e aprendizado profissional polivalente (técnico e científico).”
Marx e Engels não só indicaram freqüentemente que o trabalho físico sem elementos espirituais destrói a natureza humana como, também, que a atividade intelectual à margem do trabalho físico conduz facilmente aos erros de um idealismo artificial e de uma abstração falsa. Logo, a união entre os dois dá um caráter integral à educação e tomará o lugar da formação unilateral, especializada e alienada.
Assim, o ensino aparece como instrumento para o conhecimento e também para a transformação da sociedade e do mundo. Este é o potencial e o caráter revolucionário da educação. O proletariado, por si só, não conquista sua consciência de classe, sua consciência política, justamente pelo fato de ter sido privado desde o início dos meios que lhe permitiriam consegui-lo. Por isso, há a necessidade de um processo educativo pautado em um projeto político e pedagógico definido e voltado aos interesses da grande maioria excluída. Aí é que surge o papel estratégico da escola, dos educadores e intelectuais, os quais, em nosso entender, são decisivos para a construção da consciência de classe do trabalhador.
Acreditamos que é extremamente pertinente a concepção educativa de Marx e Engels, visto que sua proposta recupera o sentido do trabalho enquanto atividade vital em que o homem humaniza-se sempre mais ao invés de alienar-se e a educação é concebida, não como instrumento de dominação e manutenção do status quo mas, como processo de transformação desta situação.
A obra destes autores constitui uma crítica fundamental à concepção burguesa do ser humano e de educação. Às concepções metafísicas e idealistas, que são fundamentalmente conservadoras, estes pensadores opõem a concepção materialista, histórica e dialética, isto é, interessaram-se pelo ser humano real em carne e osso, por seus problemas enquanto vivem em sociedade, visando uma transformação positiva e humanizante. Esta concepção dialético-histórica do ser humano toma como premissa fundamental o fato de ele não ser um dado, mas essencialmente um construir-se. Deste modo, a educação deve vir para corroborar esta construção que não é meramente teórica ou abstrata, mas real, prática.
Na sociedade capitalista contemporânea a educação reproduz o sistema dominante tanto ideologicamente quanto nos níveis técnico e produtivo. Na concepção socialista, a educação assume um caráter dinâmico, transformador, tendo sempre o ser humano e sua dignidade como ponto de referência. Uma educação omnilateral é o que continua fazendo falta em nossa sociedade. O atual sistema educativo, sobretudo no Brasil, vem confirmando o que se diz sobre reprodução, exclusão e dominação. Projetos político-pedagógicos até existem e são propostos, mas são postos em andamento aqueles que legitimam o sistema e não representam para ele uma ameaça.

[1] Profª da Rede Municipal de POA, da Rede Estadual do RS e Profª da ACM no RS. `Pesquisadora do Intituto Airton Senna em SP, Pesquisadora do Grupo de Pesquisa da UFRGS “Movimentos Sociais, Trabalho e Educação”
Este Artigo foi retirado da Dissertação de Mestrado “As contradições na Vida e no Trabalho dos alunos da EJA em POA. Um estudo de Caso” 2006.

Pepe Mujica, entre o palácio e a horta



Pepe Mujica, entre o palácio e a horta /Matilde Campodonico/AP
"Pepe" divide presidência com as lides campeiras em sua chácara, perto de Montevidéu Foto: /Matilde Campodonico / AP

Ao esticar as pernas no sofá puído e sorver o aroma do Tannat produzido por ele próprio na chácara de Quincho Varela, onde também planta acelga, beterraba e flores a 20 minutos de Montevidéu, o presidente do Uruguai alimenta um debate: esse senhor de camisa em mangas e calça de tergal, sorriso de avô traquinas e bigode de cantor de tango é um simplório que vai a reboque de líderes regionais como Brasil e Argentina, ou um homem simples, que faz do estilo caseiro todo um método de gestão?
O debate, não necessariamente nessas palavras, foi um dos temas da semana que passou. "Pepe" Mujica concordou com as presidentes dos países vizinhos ao seu: sim, a Venezuela poderia entrar no Mercosul, como ficou depois decidido.
Horas depois dessa decisão, porém, ministros do seu governo e até o vice-presidente Danilo Astori saíram a público para relatar o que teria sido o encontro tenso entre os líderes, no qual o presidente uruguaio teve de ceder e aceitar a Venezuela, mediante a suspensão do Paraguai – acusado de golpe por causa do impeachment de Fernando Lugo, na semana anterior.
Os uruguaios se dividem a respeito do presidente que pilota seu fusca 1987 avaliado em US$ 920 e que poderia, tranquilamente, ser confundido com um jogador de damas da Praça da Alfândega.
– Ele é sempre a mesma adorável pessoa. É generoso, sabe lidar com a gente. Sim, ainda dirige o fusca azul. Só vejo um problema nisso: ele acaba fazendo propaganda para a Volkswagen – sorri sua secretária particular, Maria Minacapilli, uma das pessoas ouvidas por Zero Hora para desvendar o sentimento uruguaio em relação ao ex-guerrilheiro tupamaro que mantém na parede da sala de sua casa retratos de Salvador Allende e Che Guevara e que recentemente também provocou polêmica ao fazer estatizar o plantio e a venda da maconha.
O contraponto vem, claro, da oposição:
– Ele é errático e confuso. Parece não saber o que quer. Aceitou abrir não das garantias jurídicas que nos davam suporte no Mercosul. Mostrou-se fraco – critica o senador Sergio Abreu, do Partido Nacional e profundo conhecedor do Mercosul.
A discussão a respeito da personalidade de Mujica, 77 anos, o deixa esgotado. Maria conta que o trabalho começa bem cedo. Por volta das 21h, ele já está de volta na chácara, cuidando das suas coisas, recebendo um que outro aliado em frente à lareira ou simplesmente afagando a cachorrinha "de raça indefinida" Manuela, com suas três patas e uma fidelidade raramente vista na política.
Mujica abandonou a clandestinidade da guerrilha e entrou para a política partidária nos anos 80. Desde então, repaginou-se em termos Até aceita eventualmente ceder aos ternos bem cortados e à "gravata burguesa", ainda que não seja seu estilo. Em 2009, ele fez uma frase de efeito, durante entrevista para ZH, para mostrar sua aversão ao maniqueísmo:
– Não creio mais em branco e preto, creio nos tons intermediários. A vida é muito mais complicada, e não aceito as dicotomias.
Antes de chegar a essa visão que ele próprio define como "amadurecida", o presidente uruguaio, de linguajar coloquial e temperamento afável, rompeu com a cultura guerrilheira. Mesmo acatando o uso de armas como resistência à ditadura (que no Uruguai se estendeu de 1973 a 1985), opõe-se hoje aos sequestros, roubos e incêndios que seu grupo, o Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros, praticou. Mais ainda se mostra com as mortes provocadas pela guerrilha – seriam 58, e o que se diz a boca pequena é que foi dele a responsabilidade pela eliminação do policial José Leonardo Villalba, em fevereiro de 1971.
Mujica foi preso pela primeira fez em 1964. Ficou oito meses encarcerado por ter assaltado uma fábrica de tecidos. Mais tarde, tornou-se habitué do cárcere. Fugiu duas vezes. Em uma dessas fugas, liderou 114 companheiros pelo túnel que cavaram até uma casa próxima da prisão. Ficou preso ininterruptamente (e incomunicável por dois anos) de 1973 a 1985.
Os companheiros de armas não são unânimes quanto à participação do presidente nos anos de chumbo. Jorge Zabalza disse a ZH que se retirou da vida pública. Limita-se a distribuir textos por e-mail. Na biografia sobre Zabalza, Cero a Izquierda, Federico Leicht conta que o ex-companheiro de Mujica considera o atual presidente "uma figura sem brilho", que se tornou um mito "por ter habilidade política".
Eleutério Fernández Huidobro, outro companheiro da época, discorda:
– Foi um grande companheiro, na guerrilha e na prisão. Um companheiro trabalhador, honesto e de diálogo direto.
Esse perfil, de trabalhador e honesto, Mujica procura manter ainda hoje. Ele recebe US$ 12,5 mil mensais por seu trabalho à frente do país, mas doa 90% desse valor para ONGs e pessoas carentes. Sobra-lhe US$$ 1,3 mil, o suficiente, segundo ele, para seus hábitos modestos, com uma que outra licença para receber os amigos em um assado dominical regado a whisky e o Tannat sob a vigilância da cachorrinha manca, que a tudo observa em frente à lareira.
A senadora Lucia Topolanski é muito mais que mais uma parlamentar na base de apoio a José Pepe Mujica.
Diz ela própria:
– Sou o soldado mais fiel que tem o presidente no Senado.
Pudera: Lucia é a mulher de Mujica. Parceira de Frente Ampla e companheira de armas nos anos de chumbo. Os dois se conheceram e se apaixonaram quando circulavam pelas sombras da clandestinidade, no início dos anos 70. Juntos, planejaram assaltos, sequestros e fugas. Foi ela, também, quem, no Senado, tomou o juramento do marido como presidente. Por quê? Por amor? Não, porque coube a ela a honra como a deputada mais votada, pelo Movimento de Participação Popular (MPP).
Desde abril de 1972, há 40 anos, são um casal que chama a atenção pela cumplicidade. O casamento tomou corpo depois que Mujica fugiu da prisão de Punta Carretas andando mais de cem metros em meio a fezes e baratas, no subsolo de Montevidéu. Houve, porém, novo encarceramento dos dois e a libertação com a anistia, em 1985. Nunca mais se separaram.
O casal nunca teve filhos.

A vida em dois tempos

> José Alberto Mujica Cordano nasce em 20 de maio de 1934, em Montevidéu.
> Seu primeiro partido político, antes dos anos 60, foi o Nacional, seu atual adversário.
> Depois, passou a integrar o Movimento de Liberação Nacional-Tupamaros, entre os anos 60 e 70.
> Ficou preso durante 14 anos em razão da sua atuação como guerrilheiro.
> Em 1985, deixou a prisão, com a anistia e a redemocratização no Uruguai.
> Foi um dos fundadores da Frente Ampla, como integrante do Movimento de Participação Popular ( MPP).
> Elegeu-se deputado em 1994 e senador em 1999. Em 2004, foi o senador mais votado.
Em 1º de março de 2005, foi designado ministro da Agricultura, no governo do socialista Tabaré Vázquez.
> Deixa o cargo em 3 de março de 2008 e regressa para a sua banca no Senado.
> Vence as prévias da Frente Ampla ao derrotar o agora vice-presidente Danilo Astori, que tinha o apoio de Vázquez.
> Em maio de 2009, enviou uma carta ao MPP, renunciando a qualquer compromisso, para ser o presidente de todos.

Fator previdenciário é uma injustiça contra os mais pobres


Para o economista Eduardo Fagnani, uma alternativa ao fator previdenciário é “manter a contribuição e estabelecer uma idade mínima para a aposentadoria”



   
   
O economista Eduardo Fagnani
Foto: Reprodução
A discussão sobre o fim do fator previdenciário, lançada pelas centrais sindicais, pede o fim de um mecanismo criado após a reforma previdenciária de 1998, e que tem prejudicado os trabalhadores que ingressaram no mercado de trabalho antes dos 18 anos. Na avaliação do economista Eduardo Fagnani, a iniciativa é válida, porque o “fator previdenciário é uma das injustiças introduzidas pela emenda constitucional n. 20, de 1998”. Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, ele explica que o fator previdenciário “impõe uma perda para quem tem 35 anos de contribuição, mas não tem 65 anos de idade”.
Atualmente, o Brasil tem uma das regras mais rígidas do mundo para o acesso à aposentadoria. Entretanto, a solução da previdência "não está em fazer mais reformas para cortar os direitos conquistados" e, sim, em investir num “modelo macroeconômico que não leve à estagnação da economia, ao desemprego, à precarização do trabalho”, assegura o economista. De acordo com Fagnani, “o problema da previdência, ao contrário do que dizem os conservadores, não está relacionado apenas com o crescimento da despesa, mas com a redução das receitas”, por conta da estagnação da economia brasileira nos anos 1990. A eficácia da previdência, resume, depende das opções macroeconômicas do país. “Se a economia crescer, não haverá problema na previdência”.
Eduardo Fagnani possui graduação em Economia pela Universidade de São Paulo – USP, mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutorado em Ciência Econômica pela mesma instituição, onde leciona atualmente.

Como o senhor avalia o projeto de acabar com o fator previdenciário? O que mudaria em relação à aposentadoria?

Eduardo Fagnani – O fator previdenciário é uma das injustiças introduzidas pela emenda constitucional n. 20, de 1998, da reforma previdenciária do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Na época, pretendia-se tornar as regras de acesso à previdência Social extremamente rígidas. Assim, a proposta do governo era de que, para se aposentar, a pessoa deveria ter condições. A primeira, 65 anos de idade, se homem, e 60, se mulher, mais 35 anos de contribuição. Essa fórmula é mais rígida do que a praticada na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, na Europa. O Congresso vetou essa possibilidade e adotou duas formas para a aposentadoria: ou por idade (65 anos, homem; 60, mulher) mais 15 anos de contribuição; ou por tempo de serviço (35 anos de contribuição). No ano seguinte, o governo criou o fator previdenciário, que impõe uma perda para quem tem 35 anos de contribuição, mas não tem 65 anos de idade. Então, a pessoa que contribuiu durante 35 anos, mas tem, por exemplo, 55 anos de idade, é penalizada. Isso é injusto porque, em geral, a população de baixa renda entra no mercado de trabalho mais cedo, e a população mais rica entra no mercado de trabalho mais tarde, porque tem condições de estudar. O pobre não, e começa a trabalhar com 16 anos, em média. Então, uma pessoa que começa a trabalhar com 16 anos, quando tiver 57, tem condições de se aposentar por tempo de contribuição. Só que se ele não tiver 65 anos, será penalizado. É injusto exatamente por isso, por incidir mais sobre a camada mais pobre, que começa a trabalhar mais cedo.

O que difere a proposta do governo e a proposta das centrais sindicais em relação ao fator previdenciário?

A diferença básica é a seguinte: tanto o governo como as centrais sindicais propõem um fórmula que combine tempo de contribuição, os 35 anos, e uma idade mínima. As centrais sindicais propõem uma idade menor, e o governo propõe uma idade maior.

Que modelo seria alternativo ao fator previdenciário?

Uma alternativa é manter a contribuição e estabelecer uma idade mínima para a aposentadoria, mas essa idade não pode ser 65 anos, porque é muito rígida. Tem que ser uma idade menor, em torno dos 60 anos.

Mas há uma cultura de que as pessoas devem trabalhar mais tempo antes de se aposentar, devido ao aumento da expectativa de vida?

As centrais sindicais, muitas vezes, não levam em conta esse aspecto. Então se se estabelecesse uma idade muito baixa, essa questão demográfica não estaria de acordo com o crescimento da expectativa de vida. Mas minha posição é a de que a idade mínima não pode ser 65 anos. Veja, a média de aposentadorias na Europa é 60 anos. Agora, com a crise europeia, estão querendo aumentar a idade mínima na França de 60 para 62 anos. Portanto, não pode ter, em um país de capitalismo tardio como o Brasil, uma regra de idade mínima como a atual, implantada em 1998.

Em que medida essa discussão em torno do fator previdenciário retoma o debate da reforma previdenciária no Brasil? Há ou não necessidade de reformar a previdência?

Essa discussão de reformar a previdência é uma bobagem. Isso por várias razões. Primeiro, porque a reforma da previdência já foi feita em 1998 pelo FHC, e tornou as regras brasileiras mais exigentes em relação à idade mínima para se aposentar e estabeleceu um tempo de contribuição.
Não há como comparar as realidades socioeconômicas e demográficas do Brasil com os países da comunidade europeia. A renda per capita e a expectativa de vida lá são muito maiores, e a realidade social é muito melhor. No entanto, as regras brasileiras são maiores. O que os conservadores querem? Querem passar a idade mínima para 70 anos? Sendo assim, o Brasil será o campeão mundial de idade mínima. O que eles querem fazer, na verdade, é desvincular o piso do mínimo, aumentar a idade de trabalho das mulheres. Enfim, a questão aí é judicial.
O problema da previdência, ao contrário do que dizem os conservadores, não está relacionado apenas com o crescimento da despesa, mas também com a redução das receitas. Eles dizem que a previdência tem um problema financeiro, visto que a despesa cresceu muito, continuará crescendo e, portanto, vai “tornar o país ingovernável”. Isso é uma estultice. O problema da previdência, desde os anos 1990, não é só de aumento da despesa; trata-se de um problema de redução das receitas. E por que houve redução das receitas? Porque a economia ficou praticamente estagnada desde 1990. O Brasil cresceu, em média, menos que 2% ao ano. Quando o país tem um baixo crescimento econômico, tem desemprego, redução de salário etc. e, portanto, cai a massa salarial – e as fontes de financiamento da previdência são baseadas na massa salarial. Resumindo: quando a economia está estagnada, a receita cai.
O que aconteceu de 2007 para cá? A previdência urbana passou a ser superavitária. No ano passado, ela foi superavitária em 40 bilhões. E passou a ser superavitária porque a economia voltou a crescer 4% ao ano. Quando se fala que é preciso fazer uma reforma da questão financeira, diz-se que o problema da previdência é a previdência. Eu estou dizendo que o problema da previdência não está nela própria; está nas opções macroeconômicas que o país faz. Se a economia crescer, não haverá problema na previdência.

A partir do sistema previdenciário, que avaliação faz das finanças do Estado?

De 2007 para cá houve um crescimento econômico e a geração de mais de 20 milhões de empregos. Além disso, o desemprego caiu de 13% para 5%. Qual o efeito disso? Mais pessoas passaram a ser incluídas, mais pessoas passaram a contribuir com a previdência, e aumentou a arrecadação. Então, a previdência urbana em 2011 teve um superávit de mais de 40 bilhões. Portanto, a solução da previdência não está em fazer mais reformas para cortar os direitos conquistados, para tornar as regras mais exigentes. A opção é ter um modelo macroeconômico que não leve à estagnação da economia, ao desemprego, à precarização do trabalho.

Que expectativa os jovens podem ter de se aposentar pelo INSS? Isso vai depender dos rumos da economia nos próximos anos?

Em relação a essa questão, os conservadores dizem que existe a bomba demográfica, ou seja, em 2050 haverá um aumento da população idosa. Mas têm duas coisas que eles não falam. A primeira delas é a redução do número de jovens até 15 anos. Só para se ter uma ideia, hoje existem 46 milhões de crianças em idade escolar. Em 2040, existirão 20 milhões de crianças na escola. Portanto, em tese, vai se reduzir a pressão para a educação. A segunda questão importante é que, até 2050, a população de 15 a 60 anos aumentará, que é a população em idade de trabalho.
Então, se tiver uma política econômica que garanta o emprego, o rendimento etc., haverá também a oportunidade de que esta população tenha escolaridade, renda, educação, ou seja, passe por uma fase de enriquecimento relativo antes de se aposentar. Portanto, ela irá depender menos da previdência pública. Então, existe uma janela de oportunidade demográfica, e isso pode ser positivo se a economia crescer 4% ao ano, ou pode ser um ônus, nos próximos 20 ou 30 anos, caso o Brasil continue a ter um crescimento baixo.

Qual a importância da previdência como um instrumento de seguridade social e, nesse sentido, quais as implicações da previdência privada para os investimentos em seguridade social?

O Brasil teve uma sorte histórica, porque as pessoas que lutaram contra a Ditadura Militar na década de 1970 pensaram em uma agenda democrática que incluía a democracia, a redistribuição da renda e um sistema de proteção social inspirado na social-democracia europeia. Essa agenda, com uma dificuldade enorme, conseguiu ser aprovada na Constituição de 1988, que foi inspirada na ideia de direitos sociais, de seguridade social, ou seja, na concepção de que todas as pessoas têm direito ao mínimo, mesmo não tendo contribuído. Quer dizer, trata-se de princípios de valores que têm a ver com a Declaração dos Direitos Humanos de 1948. Entretanto, a partir dos anos 1980, o neoliberalismo passou a ser o paradigma hegemônico, mas ele não entrou no Brasil até 1988, porque o país estava tratando as contas com a Ditadura Militar, e na agenda brasileira predominava a reforma tributária, os direitos trabalhistas, a seguridade social, o sistema único de saúde, o direito de greve etc. Ou seja, não era a agenda do neoliberalismo.
É evidente que desde os anos 1990 há uma tentativa de retroceder a Constituição de 1988, mas bem ou mau o Brasil tem uma seguridade social e uma previdência social, que é o maior mecanismo de proteção social do país. A seguridade social beneficia diretamente 33 milhões de pessoas: 17 milhões do INSS urbano, 8 milhões do INSS rural, mais 4 milhões do benefício de prestação continuada, e mais 7 milhões de seguro desemprego. 90% desses benefícios equivalem a um salário mínimo. E, atualmente, quase 90 milhões de pessoas recebem pelo menos um salário mínimo, ou seja, trata-se de quase a metade da população brasileira.
Nos últimos anos, o salário mínimo cresceu mais de 60% em termos reais, e 90% desses benefícios equivalem ao piso do salário mínimo. Logo, a renda dessas transferências para a seguridade social aumentou 60%, aumentando o poder de compra das pessoas. Esse é um dos fatores, junto com o crescimento do emprego, que têm sustentado o ciclo recente de crescimento, baseado no mercado interno.

Seguridade social

Hoje, menos de 10% dos idosos estão em situação de pobreza. Se não houvesse a seguridade social, mais de 80% dos idosos estariam abaixo da linha de pobreza. Daí a importância da seguridade social e da sua consolidação. Ainda existem muitas pessoas que não entendem a importância desse mecanismo de proteção social, o qual enfrenta muitas ameaças e riscos.
Por outro lado, quem investe na previdência privada é quem tem uma renda elevada, ou seja, menos de 80% da população brasileira. A previdência privada fez parte da reforma da previdência de 1998. A ideia da emenda constitucional n. 20 era justamente criar um mercado para o setor privado, era permitir que o mercado financeiro nacional e internacional capturasse recursos da previdência. Para isso fizeram uma reforma dos setores público e privado. E em ambos os casos se estabeleceu um teto baixo de aposentadoria. A maior aposentadoria é 3.900 reais, portanto, quem quer ganhar mais, investe no setor privado. Com essa medida foi possível abrir o mercado para o setor privado tanto na previdência complementar privada como na previdência complementar pública. O problema disso é que esses recursos são aplicados pelo setor financeiro, e estão sujeitos às regras de um mercado financeiro que é ganancioso, e pouco regulamentado.

Se não houvesse a previdência privada, seria possível estabelecer um teto maior para a previdência pública?

Claro que sim. Mas se limita o teto justamente para criar o mercado do setor privado. Esse foi o objetivo da reforma do governo Fernando Henrique Cardoso. Foi isso que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – FMI pediram ao Brasil. Na década de 1990, nove países da América Latina privatizaram seu sistema de previdência, e o Brasil conseguiu resistir. Mas é nessa onda que foi feita a reforma, que tornou as regras exigentes para reduzir a pressão de gastos e, ao mesmo tempo, criar um teto baixíssimo para a aposentadoria a fim de implantar a previdência privada.

Que fatores põem em risco as conquistas em relação à seguridade social?

São várias as questões que colocam em risco as conquistas de 1988. Em relação à reforma tributária, está tramitando no Congresso Nacional a PEC-233, que simplifica o sistema de impostos. A proposta é criar o Imposto de Valor Adicionado – IVA, e extinguir a contribuição sobre o lucro, contribuição sobre o faturamento, o PIS/Pasep, o salário educação. Ou seja, vão extinguir todas as formas de recurso que financiem a seguridade social, todas as fontes de recurso previstas no artigo 195 da Constituição Federal, que fala do orçamento da seguridade social. Se acabarem com essa vinculação constitucional, todos os recursos vão para um fundo comum, e provavelmente esse dinheiro não será destinado à seguridade social.
Outra questão é a desoneração da folha de pagamento, a desoneração da contribuição das empresas. Recentemente, em função da falta de competitividade das empresas nacionais em relação ao mercado internacional, além de baixar os juros, desvalorizar o câmbio, o governo permitiu que vários setores da economia deixassem de contribuir com a previdência social. Eles contabilizam 20% sobre a folha de salário, e tiveram isenção total para garantir o custo mais barato dos produtos, e melhorar a competitividade, embora o salário não seja o fator mais importante para a competitividade das empresas. Agora, qual será a consequência disso? Estão fragilizando as fontes de financiamento da seguridade social.

Gostaria de acrescentar algo?

Ainda em relação à questão da reforma tributária, não se discute um dos maiores problemas tributários do Brasil, que é a injustiça fiscal. Quer dizer, as pessoas mais pobres pagam proporcionalmente mais do que as pessoas mais ricas.
Outra questão importantíssima diz respeito à Constituição de 1988, que criou a seguridade social (saúde (SUS), a previdência urbana e rural, a assistência social e o seguro desemprego), conforme estabelece o art. 194. Depois, o art. 195 criou o orçamento da seguridade social, ou seja, o conjunto de fontes de financiamento desses quatro setores. Conforme a Constituição, esses recursos da seguridade social só podem ser utilizados para a seguridade social, o que de fato não acontece. Esses recursos têm sido desviados para outras finalidades desde 1988.
A Constituição também determina a criação de um Conselho Nacional da Seguridade Social para fiscalizar a aplicação dos recursos. Entretanto, esse Conselho começou a ser criado em 1991 e foi extinto por uma medida provisória em 2001. Portanto, não existe um Conselho Nacional da Seguridade Social. Isso é uma inconstitucionalidade. Esse conselho seria o representante da área da saúde, da previdência, da assistência social para fiscalizar a gestão e a aplicação financeira dos recursos da seguridade social. Como uma medida provisória tem poder para cancelar uma legislação constitucional complementar? Fica aqui minha pergunta ao movimento social: por que vocês não fazem nada?

“Na música, o que dá dinheiro é sempre burrice”, diz Hermeto Paschoal


Pedro Peduzzi

Repórter da Agência Brasil

Brasília – O compositor e mulit-instrumentista Hermeto Pascoal, que acaba de lançar o DVD Hermeto Brincando de Corpo e Alma feito apenas com sons obtidos a partir do corpo,  tem muito a ensinar. Apesar de ser o professor dos sonhos para muitos estudantes, o músico tem encontrado muitas dificuldades para emplacar um de seus maiores projetos: o Templo do Som, uma escola de música que, além de repassar sua vasta experiência de vida, tem a ambição de ensinar músicos e pretensos músicos a fugir dos padrões cada vez mais comuns à música contemporânea.
“Infelizmente não tive apoio financeiro de ninguém. Se eu quisesse montar outra coisa para fazer sensacionalismo e que desse mais dinheiro… mas [na música] o que dá dinheiro é sempre burrice. O câncer da alma chama-se dinheiro”, lamenta o multi-instrumentista que ainda não conseguiu patrocínio para fazer o projeto ir adiante. “Hoje estão dando cursos de música eletrônica até nas universidades. É triste, porque esse é o tipo de coisa dirigida a quem, na verdade, não é músico. Usar computador é programar a alma. E quem é músico [de verdade] não quer saber disso”.
Para Hermeto, as escolas de música tendem a fazer com que músicos repitam formas musicais já existentes, sem agregar aquilo que considera a matéria-prima da boa música: o sentimento. “O que não se pode é colocar o saber na frente do sentir”, disse ele à Agência Brasil. “Na teoria [musical] é a mesma coisa. Colocar teoria é colocar o saber na frente do sentimento. Aprender teoria não é aprender música. Você tem de ter a música na cabeça inclusive para poder escrevê-la, até porque, depois de terminar uma música, eu tendo a esquecê-la totalmente”.
Hermeto diz o que falta para tocar o projeto Templo do Som. “Preciso apenas de um lugar que dê para fazer minha escola, para educar o pessoal por meio da música, passando minha experiência de vida e todas as coisas que sinto, sem padronizações e sem cobrar caro dos alunos”, diz. “Patrocinador que não tem inteligência musical não vai me patrocinar. E eu também não vou procurá-lo. Quero alguém que, de fato, ame a música”.
 
Edição: Fábio Massalli

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Entendendo o sionismo...



Nesta palestra para a Conferência sobre a Palestina, em Stuttgart, o brilhante professor e humanista israelense Ilan Pappe faz uma magnífica exposição do significado do sionismo: suas características inerentemente colonialistas e racistas.

Ilan Pappe também revela como é enganosa a ideia propalada por certos círculos da "esquerda" europeia de que entre os sionistas israelenses há forças democráticas de esquerda que estariam interessadas em chegar a uma solução justa com os palestinos. Ilan Pappe deixa patente que não há diferenças significativas no comportamento colonialista e racista tanto da direita como da "esquerda" sionistas. Ambas correntes compartilham igualmente o objetivo e o desejo de livrar-se da presença do povo palestino nativo. A única grande diferença está em que a "esquerda" sabe manipular as palavras muito mais habilmente que seus pares direitistas. Daí que, para os que lutam realmente para o fim do colonialismo naquela região, esta "esquerda" seja até mais perigosa do que a direita aberta e declarada, uma vez que, com seu palavreado ardiloso, ela consegue neutralizar boa parte da intelectualidade europeia, que parece contentar-se tão somente com palavras de efeito, independentemente da realidade sobre o terreno.

Para Ilan Pappe, a luta contra o colonialismo e o racismo na Palestina exige que o combate seja feito primeira e abertamente contra a ideologia que o impulsa, sustenta e ampara, ou seja, contra o sionismo. Sem a derrota ideológica do sionismo não há perspectivas de paz e justiça na Palestina.

Fonte: 

Grande mídia perde mais uma na Justiça

Por Venício A. de Lima, no Observatório da Imprensa:
O confronto emblemático em torno da legalidade de regras históricas da agência reguladora FCC (Federal Communications Commission), relativas à propriedade cruzada (cross ownership) dos meios de comunicação (jornais, emissoras de rádio e televisão) em mercados locais, teve seu lance mais recente na Suprema Corte dos Estados Unidos, na sexta feira (29/6).


Poderosos grupos de mídia como o Chicago Tribune, a Fox (News Corporation) e o Sinclair Broadcast Group (televisão), além da NAB (National Association of Broadcasters, a Abert de lá), mesmo quando favorecidos, têm reiteradas vezes contestado judicialmente decisões da FCC alegando que elas violam as garantias da Primeira Emenda da Constituição dos EUA – vale dizer, a liberdade de expressão e a liberdade da imprensa.

Quando presidida pelo republicano Kevin Martin (2005-2009), a FCC tomou decisões – coincidentes com os interesses da grande mídia – que“flexibilizariam” normas restringindo a propriedade cruzada, em vigor (à época) há mais de 35 anos.

Organizações da sociedade civil que lutam contra a concentração da propriedade na mídia recorreram ao Tribunal Federal da Filadélfia (U.S. Court of Appeals for the Third Circuit) contra a decisão e venceram a ação.

Não houve julgamento do mérito e a alegação básica foi de que a FCC ignorou os procedimentos legais devidos e não ouviu os grupos contrários à decisão que estava sendo tomada [ver “Propriedade cruzada, lá e cá“].

Os grandes grupos de mídia apelaram, então, à Suprema Corte que, agora, ratificou a decisão do Tribunal da Filadélfia (ver aqui).

Revisão das regras

A decisão da Suprema Corte, coincidentemente, foi tomada quando a FCC está realizando audiências públicas para rever exatamente as regras sobre propriedade cruzada. Decisão legal determina que elas devam ser revisadas a cada quatro anos “para levar em conta as mudanças no ambiente competitivo”. E tudo indica que haverá nova tentativa da agencia reguladora – outra vez, no interesse expresso dos grandes grupos de mídia – de “flexibilizar” as normas.

E no Brasil?

Registre-se, em primeiro lugar, que esse tipo de pauta não encontra espaço na cobertura jornalística da grande mídia brasileira. Nada encontrei sobre o assunto nos jornalões.

Aqui, como se sabe, não existe agência reguladora para a radiodifusão (nada sequer parecido com a FCC) e nem mesmo um órgão auxiliar do Congresso Nacional – o Conselho de Comunicação Social previsto no artigo 224 da CF88 – que poderia discutir (apenas, discutir) esse tipo de questão, funciona. Ademais, não há qualquer regra que regule e/ou limite diretamente a propriedade cruzada dos meios de comunicação. Ao contrário, nossos principais grupos de mídia, nacionais ou regionais, se consolidaram exatamente praticando a propriedade cruzada.

Recentemente tive a oportunidade de comentar a posição de grupos de mídia brasileiros que consideram o controle da propriedade cruzada superado pela “convergência de mídias”, além de “ranço ideológico”, “discurso radical que flertava com o autoritarismo”, “impasse ultrapassado” e “visão retrógrada” [ver “Propriedade cruzada – Os interesse explicitados“ e “Marco regulatório – Ainda a propriedade cruzada“].

Nesses tempos, em que a necessidade de um marco regulatório para o setor de comunicações “parece” estar sendo reconhecida até mesmo pelos atores que a ela sempre resistiram, é interessante acompanhar o que ocorre nos EUA. A propriedade cruzada é tema inescapável no debate sobre a regulação do setor.

Nos EUA, a Suprema Corte tem historicamente ficado do lado da diversidade e da pluralidade de vozes.

A ver.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Igualdade, identidades e justiça social

LUTA DE CLASSES OU RESPEITO ÀS DIFERENÇAS?

Historicamente, a luta pela redução das desigualdades se fundamentou na partilha justa da riqueza. Há alguns anos, um novo tipo de demanda articula a igualdade ao respeito às diferenças e minorias e ao combate às discriminações. Podemos pensar na relação dessas concepções, de forma que elas se reforcem reciprocamente?
por Nancy Fraser no LEMONDEBRASIL

O “reconhecimento” se impôs como um conceito-chave de nosso tempo. Herdado da filosofia hegeliana, encontra novo sentido no momento em que o capitalismo acelera os contatos transculturais, destrói sistemas de interpretação e politiza identidades. Os grupos mobilizados sob a bandeira da nação, da etnia, da “raça”, do gênero e da sexualidade lutam para que “suas diferenças sejam reconhecidas”. Nessas batalhas, a identidade coletiva substitui os interesses de classe como fator de mobilização política – cada vez mais a reivindicação é ser “reconhecido” como negro, homossexual ou ortodoxo em vez de proletário ou burguês; a injustiça fundamental não é mais sinônimo de exploração, e sim de dominação cultural.
Essa mutação é um desvio que conduzirá a uma forma de balcanização da sociedade e à rejeição das normais morais universais?1 Ou oferece a perspectiva de corrigir a cegueira cultural associada a certa leitura materialista, desacreditada pela queda do comunismo de tipo soviético, que, cego à diferença, reforçaria a injustiça ao universalizar falsamente as normas do grupo dominante?2
Essas perguntas revelam duas concepções globais de injustiça. Na primeira, a injustiça social resultaria da estrutura econômica da sociedade e se concretizaria na forma de exploração ou miséria. A segunda, de natureza cultural ou simbólica, decorreria de modelos sociais de representação que, ao imporem seus códigos de interpretação e seus valores, excluiriam os “outros” e engendrariam a dominação cultural, o não reconhecimento ou, finalmente, o desprezo.
Essa distinção entre injustiça cultural e injustiça econômica não deve mascarar o fato de que, na prática, as duas formas estão imbricadas e, em geral, se reforçam dialeticamente. A subordinação econômica impede de fato a participação na produção cultural, cujas normas, por sua vez, são institucionalizadas pelo Estado e pela economia.
 
Corrigir ou transformar?

A solução contra a injustiça econômica passa por mudanças estruturais: distribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, submissão das decisões de investimentos ao controle democrático, transformação fundamental do funcionamento da economia. Esse conjunto, como um todo ou em partes, depende da “redistribuição”. A solução para a injustiça cultural, por sua vez, está em mudanças culturais ou simbólicas: reavaliação de identidades desprezadas, reconhecimento e valorização da diversidade cultural ou, mais globalmente, alteração geral dos modelos sociais de representação, o que modificaria a percepção que cada um tem de si mesmo e do grupo ao qual pertence. Esse conjunto de fatores depende, pois, do “reconhecimento”.
Os dois conceitos divergem na concepção de quais são os grupos que vivenciam injustiças. No sistema em que a prioridade é a distribuição, são as classes sociais no sentido amplo, definidas primeiro em termos econômicos, que sofrem injustiças segundo a relação com o mercado ou com os meios de produção. O exemplo clássico, oriundo da teoria marxista, é a classe trabalhadora explorada, mas essa concepção inclui também grupos imigrantes, minorias étnicas etc. No sistema em que o reconhecimento é prioridade, a injustiça não está diretamente ligada às relações de produção, mas a uma falta de consideração. O exemplo mais comum são os grupos étnicos que os modelos culturais dominantes proscrevem como diferentes e de menor valor, assim como os homossexuais, as “raças”, as mulheres. As reivindicações ligadas à redistribuição exigem, em geral, a abolição dos dispositivos econômicos que constituem a base da especificidade dos grupos, e como consequência desse processo essas reivindicações tenderiam a promover a indiferenciação entre esses grupos. Ao contrário, as reivindicações ligadas ao reconhecimento, que se apoiam nas diferenças presumidas dos grupos, tendem a promover a diferenciação (quando não o fazem performativamente, antes de afirmar seu valor). Política de reconhecimento e política de redistribuição figuram, portanto, em tensão.
Como, nessas condições, pensar a justiça social? Deve-se priorizar a classe em detrimento do gênero, da sexualidade, da raça e da etnia e rejeitar todas as reivindicações “minoritárias”? Insistir na assimilação de normas majoritárias em nome do universalismo ou do republicanismo? Ou será preciso tentar aliar o que resta de impreterível na visão socialista e o que parece justificado na filosofia “pós-socialista” do multiculturalismo?
Há duas formas de acabar com a injustiça. As soluções corretivas, em primeiro lugar, visam melhorar os resultados da organização social sem modificá-la em suas causas profundas. As soluções transformadoras, por outro lado, se aplicam em profundidade às causas: a oposição se situa, dessa forma, entre sintomas e causas.
No âmbito social, as soluções corretivas, historicamente associadas ao Estado de bem-estar social liberal, são empregadas para atenuar as consequências de uma distribuição injusta, deixando a organização do sistema de produção intacta. Durante os dois últimos séculos, as soluções transformadoras foram associadas ao socialismo: a mudança radical da estrutura econômica que sustenta a injustiça social, ao reorganizar as relações de produção, modifica não somente a repartição do poder de compra, mas também a divisão social do trabalho e das condições de existência.
Um exemplo esclarece essa distinção. Os auxílios atribuídos em função dos recursos dos quais dispõe certo grupo, orientado geralmente ao apoio material aos mais pobres, contribuem para cimentar as diferenciações que levariam ao confronto. Assim, a redistribuição corretiva no âmbito social toma a forma, nos Estados Unidos, de ação afirmativa(em geral traduzida por “discriminação positiva”). Essas medidas buscam garantir a minorias uma parte equitativa dos postos de trabalho e da formação, sem modificar sua natureza ou nome. No âmbito cultural, o reconhecimento corretivo se traduz por uma nacionalização cultural, que se esforça por garantir o respeito a essas minorias valorizando, por exemplo, a “negritude”, mas sem alterar o código binário branco-negro que lhe dá sentido. A ação afirmativa pode ser vista, portanto, como uma combinação de política socioeconômica liberal antirracista com política cultural – no caso dos negros – blackpower.
A questão é que essa solução não ataca as estruturas que produzem desigualdades de classe e raciais. As reacomodações superficiais se multiplicam sem limites e contribuem para tornar ainda mais perceptível a diferenciação racial, para dar aos mais desprovidos a imagem de uma classe deficiente e insaciável, que sempre necessita de ajuda e até mesmo da orientação de um grupo privilegiado; muitas vezes, essa interação resulta em tratamento de favor. Assim, uma aproximação que visa reverter as injustiças ligadas à redistribuição pode terminar criando injustiças em termos de reconhecimento.
Combinando sistemas sociais universais e imposição estritamente progressiva, as soluções transformadoras, por outro lado, visam restaurar a todos o acesso ao trabalho, com tendência a dissociar esse elemento da satisfação de necessidades fundamentais. Daí a possibilidade de reduzir a desigualdade social sem criar categorias de pessoas vulneráveis, apresentadas como necessitadas da caridade pública. Tal aproximação, centrada nas injustiças da distribuição, contribui para a solução de certas injustiças de reconhecimento.
Redistribuição corretiva e redistribuição transformadora pressupõem, ambas, uma concepção universalista do reconhecimento, ou seja, a igualdade moral das pessoas. Mas elas repousam em lógicas diferentes no que concerne à diferenciação dos grupos.
As soluções coletivas para a injustiça cultural dependem do chamado multiculturalismo: trata-se de acabar com o desrespeito de identidades coletivas injustamente desvalorizadas, ao mesmo tempo deixando intactos o conteúdo dessas identidades e o sistema de diferenciação identitária sobre o qual repousam. As soluções transformadoras, por outro lado, são habitualmente associadas à desconstrução. Buscam acabar com o desrespeito transformando a estrutura de avaliação cultural subjacente. Ao desestabilizarem as identidades e a diferenciação existentes, essas soluções não se limitam a favorecer o respeito a alguém: mudam as percepções que temos de nós mesmos.
O exemplo das sexualidades desprezadas esclarece essa distinção. As soluções corretivas à homofobia são, em geral, associadas ao movimento gay e buscam revalorizar a identidade homossexual. As soluções transformadoras, ao contrário, se parecem mais com o movimento queer, que busca desconstruir a dicotomia homossexual/heterossexual. O movimento gay considera a homossexualidade uma cultura, dotada de características particulares, um pouco como a etnicidade. Esse “modelo identitário”, adotado em diferentes lutas pelo reconhecimento, pretende substituir imagens negativas de si, interiorizadas e impostas pela cultura dominante por uma cultura própria, que, manifestada publicamente, obteria o respeito da sociedade em seu conjunto. Esse modelo traz avanços, mas, ao sobrepor política de reconhecimento e política de identidade, pode engendrar a naturalização da identidade de um grupo e essencializá-la por meio da afirmação da “identidade” e da diferença.
O movimento queer, ao contrário, aborda a homossexualidade como correlato construído e desvalorizado da heterossexualidade: nenhum dos dois termos tem sentido sem o outro. O objetivo não é mais valorizar uma identidade homossexual, mas abolir essa dicotomia. O movimento gay busca valorizar a diferenciação existente entre os grupos sexuais – como as políticas corretivas de redistribuição do Estado de bem-estar social o fazem para as diferenças sociais –; o movimento queerpretende problematizá-la – como o socialismo e a sociedade sem classes.
 
a psicologização

Ao tratar a falta de reconhecimento como um prejuízo engendrado de forma autônoma por valores ideológicos e culturais, a corrente identitária oculta seu vínculo com a justiça distributiva e o abstrai de sua relação com a estrutura social. Por isso, muitas vezes seus defensores ignoram a injustiça econômica e concentram seus esforços unicamente na transformação da cultura, considerada uma realidade em si. Por exemplo, esse sistema poderia negligenciar os vínculos, institucionalizados nos sistemas de assistência social, entre as normas heterossexuais dominantes e o fato de que certos recursos sejam negados às pessoas homossexuais. Por outro lado, essa corrente pode interpretar a desigualdade econômica como simples expressão de hierarquias culturais: a opressão de classe decorre, nessa lógica, da depreciação da identidade proletária. Como imagem inversa de um marxismo vulgar que outrora deixava a política de reconhecimento de lado para priorizar a política de redistribuição, o culturalismo vulgar supõe que a revalorização de identidades depreciadas atacaria também as origens da desigualdade econômica.
Ao modelo identitário (corretivo) se opõe o chamado modelo estatutário (transformador): a negação do reconhecimento não é mais considerada uma deformação psíquica ou um prejuízo cultural autônomo, e sim uma relação institucionalizada de subordinação social, produzida por instituições sociais. O objeto do reconhecimento não deveria ser a identidade própria de um grupo, mas o estatuto dos membros desse grupo de pertencimento integral ao meio social onde estão inseridos. Essa política propõe desconstruir as duas formas conexas (econômica e cultural) de transformar a sociedade e decifrar quais são os obstáculos à igualdade. Não se trata, portanto, de postular direitos iguais a todos,3 mas de reivindicar a paridade da participação de todos nas relações sociais, definir o campo da justiça social como, simultaneamente, redistribuição e reconhecimento, classe e estatuto nas relações sociais. Evitar a psicologização e a moralização talvez seja a chave para construir uma estratégia coerente, que contribua para eliminar os conflitos e contradições entre esses dois grandes modelos de luta.

Nancy Fraser

Titular da catédra Repensando a Justiça Social do Colégio de Estudantes Mundiais da Fundação da Casa de Ciências Humanas. Autora de Les mouvements du féminisme. De L'insurrection des années 60 au néoliberalisme {Os movimentos do feminismo. Da insurreição dos anos 1960 ao neoliberalismo}, Lá Découverte, 2012


Ilustração: Lollo
1 Cf. Richard Rorty, Achieving our country: leftist thought in twentieth-century America [Alcançando nosso país: a esquerda pensada nos Estados Unidos do século XX], Harvard University Press, Cambridge, 1998; Todd Gitlin, The twilight of common dreams: why America is wrecked by culture wars [O crepúsculo dos sonhos comuns: por que os Estados Unidos estão mergulhados em guerras], Metropolitan Books, Nova York, 1995.

2 Cf. Charles Taylor, “The politics of recognition” [A política do reconhecimento], em Amy Gutman (org.), Multiculturalism: examining the politics of recognition [Multiculturalismo: examinando as políticas de reconhecimento], Princeton University Press, 1994.

3 Axel Honneth, La lutte pour la reconnaissance [A luta pelo reconhecimento], Le Cerf, Paris, 2000.

Edgar Morin: “Se não procurarmos o inesperado, não vamos encontrá-lo”

Em palestra realizada em São Paulo, sociólogo destaca que o sistema atual é incapaz de lidar com os problemas vitais da humanidade
Por Felipe Rousselet na REVISTA FORUM
 
Edgar Morin participou de palestra no Sesc Consolação, São Paulo.

Ontem (3), o sociólogo e filósofo francês Edgard Morin ministrou uma palestra no Sesc Consolação com o tema “Consciência Mundial: por um conceito de desenvolvimento para o século XXI”. Morin, pai da teoria da complexidade, defende a interligação de todos os conhecimentos, combate o reducionismo instalado em nossa sociedade e valoriza o complexo.
Morin iniciou sua palestra abordando quatro questões fundamentais: o que eu posso saber; o que eu posso esperar; em que posso acreditar e o que posso fazer. A partir destes questionamentos, o sociólogo abordou os problemas fundamentais da humanidade. Para ele, é preciso unir os inúmeros saberes dispersos a que temos acesso em prol dos problemas vitais da humanidade.
Todas as tentativas de mudança da humanidade somente a partir de sistemas político-econômicos como o socialismo, comunismo e o liberalismo foram fracassadas. “Não se pode mudar apenas a estrutura econômico-social. É preciso mudar também as nossas vidas”, afirmou. Havia uma fé de que o progresso era um movimento irreversível para um mundo melhor, mas hoje essa crença desintegrou-se e o que o futuro nos reserva é angústia e incertezas.

Segundo Morin, se não mudarmos o caminho da humanidade, estamos fadados à tragédia. “O sistema atual é ineficaz para lidar com problemas básicos”, frisou. Para ele, a “nave humanidade” caminha para o desenvolvimento econômico descontrolado e para o egoísmo, porém, lembra que nunca antes a humanidade teve uma causa única, traduzida na própria causa humana, na solidariedade. Ao falar sobre a globalização, Morin citou aspectos positivos e negativos. Os positivos são expressos na capacidade do indivíduo de ser autônomo e na criação de ilhas de prosperidade em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde populações antes miseráveis formam hoje uma nova classe média. Por outro lado, a globalização também gerou exploração comercial de povos por multinacionais e por outros povos, e expulsou os camponeses de suas terras, criando uma população de 1 bilhão de pessoas morando em favelas.

Desenvolvimento e hegemonização

Segundo o pensador, a noção de desenvolvimento aplicada de forma igual em diferentes culturas está equivocada, uma vez que não respeita suas individualidades. Morin afirma que em vez de destruir as culturas por meio da hegemonização, deveríamos fazer um processo de simbiose, de união entre o melhor da civilização ocidental com o melhor de povos de culturas diferentes.
Ao falar sobre a Rio+20, o sociólogo aponta para o que considera um fracasso esperado, uma vez que os líderes de Estado recusam-se a tirar os olhos do próprio umbigo. Para ele, é impossível dissociar os problemas ambientais das outras questões vitais da humanidade e o passo a frente dado pela Rio+20 foi a participação da sociedade civil.
Por fim, Morin deixou uma mensagem de esperança. Lembrou que mesmo diante de um presente que parecia sólido e imutável, a sociedade humana sempre se transformou. “Se não procurarmos o inesperado, não vamos encontrá-lo”, disse. Para ele, o início de grandes mudanças sempre ocorreu de forma modesta. Lembrou do início de três grandes religiões (budismo, cristianismo e muçulmana), que começaram pela ação de indivíduos. “Quando achamos que o presente é eterno, nos enganamos”, afirmou. Para uma transformação da humanidade que evite o seu colapso, o inteletutal sugere um consciência global fundamentada na solidariedade e no sentimento de que fazemos parte de uma “Terra Pátria”, e, a partir desta nova consciência, surgirá um modelo totalmente novo de sociedade. “Vocês tem uma causa justa, que é a solidariedade, e devem levantá-la”.

Golpe no Paraguai revela nova face da Operação Condor, diz ativista



Golpe no Paraguai revela nova face da Operação Condor, diz ativistaEm entrevista à Carta Maior, o mais importante ativista dos direitos humanos paraguaio, Martin Almada, disse que o golpe que destituiu Fernando Lugo da presidência revela a atualidade da Operação Condor, a maior ação articulada de terrorismo de estado já imposta ao povo latino-americano. Para Almada, essa nova Condor é muito mais abrangente do que a iniciada em 1964, no Brasil: é mais suave, global e revestida de uma capa pseudodemocrática, por meio da cooptação dos parlamentos.

Najla Passos – CORREIO DO BRASIL

Brasília – Em entrevista exclusiva à Carta Maior, o mais importante ativista dos direitos humanos paraguaio, Martin Almada, disse que o recente golpe que destituiu Fernando Lugo da presidência do seu país revela a atualidade da Operação Condor, considerada a maior ação articulada de terrorismo de estado já imposta ao povo latino-americano.
Prêmio Nobel da Paz alternativo, foi Almada quem descobriu, no Paraguai, na década de 90, o chamado “arquivo do terror”, que contém os principais registros conhecidos da Operação Condor, a articulação dos aparelhos repressivos do Brasil, Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai que, a partir da década de 1960, sob a coordenação dos Estados Unidos, garantiram o extermínio das forças resistentes à implantação de um modelo econômico favorável aos interesses das oligarquias locais e das multinacionais que elas representam.
O ativista está em Brasília justamente para participar, nesta quinta (5), de um seminário sobre a Operação, promovido pela Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça da Câmara.

Confira a entrevista:

- Como se deu a articulação do golpe que destitui Fernando Lugo da presidência do Paraguai?

Foi uma trama muito bem montada pela direita paraguaia. E quando digo direita paraguaia, me refiro à oligarquia Vicuna, aos grandes fazendeiros, me refiro aos donos da terra, os plantadores de soja transgênica, me refiro às multinacionais, como a Cargil e a Monsanto, e também aos partidos tradicionais ligados a essas oligarquias. É um caso muito particular de golpe.

- Mas é possível compará-lo, por exemplo, com o golpe que ocorreu em Honduras?

Ao contrário do que muitos dizem, não se pode comparar. Foram golpes completamente diferentes. Em Honduras, o exército norte-americano interviu, junto com as tropas hondurenhas. A embaixada americana teve uma atuação clara. O presidente caiu em sua cama. No Paraguai, tudo foi articulado via parlamento, que é a instituição mais corrupta do país. No fundo, é claro, sem aparecer, também estava a embaixada americana. Mas sua participação se deu através das organizações não governamentais (ONGs) e dos órgãos de inteligência. Normalmente, um golpe de estado, como ocorreu em Honduras, se dá com tiroteio, bomba, pólvora, morte. No Paraguai, não houve tiroteio, não houve pólvora. O que rolou foi muito dinheiro, muitos dólares.

- E como se comportou a imprensa paraguaia?

Os meios de comunicação estavam todos a serviço do golpe. É por isso que digo que foi um golpe perfeito: quando o presidente golpista assumiu, se cantou o hino nacional com uma orquestra. E uma orquestra de câmara. Foi um golpe planificado com muita antecipação.

- E onde estava o povo, os movimentos organizados que não saíram às ruas?

O presidente Lugo cometeu muitos erros. Primeiro, quando ocorreu a morte de sete policiais e onze camponeses, eu penso, como defensor dos direitos humanos, que tanto a polícia quanto os camponeses eram inocentes. Aquele conflito foi uma trama. Os policiais usavam colete à prova de balas, mas os tiros ultrapassaram estes coletes. E nós sabemos que as armas usadas pelos camponeses são muito artesanais. Não teriam essa capacidade. O que nós imaginamos é que haviam infiltrados com armas muito potentes. E Lugo, após o conflito, fez uma declaração péssima: condenou os camponeses e prestou condolências aos familiares dos policiais. Isso caiu muito mal. Segundo, Lugo firmou uma lei repressiva, uma lei de tolerância zero. Outro erro de Lugo foi firmar acordo com a Colômbia para assessorar a polícia paraguaia.

- Para tentar se manter no poder, ele fez concessões à direita que o desgastaram com as classes populares. É isso?

Exatamente. Então, no momento do golpe, o povo não saiu às ruas. Na verdade, foram dois motivos. Primeiro, a frustração, a indignação e o desencanto com Lugo. Segundo, no Paraguai, as pessoas com mais de 40 anos têm muito medo. Porque nós não vivemos 20 anos de ditadura. Nós vivemos 60. Então, só os jovens saíram às ruas. Aliás sempre, no Paraguai, as manifestações de ruas são protagonizadas por jovens, que tem uma coragem admirável.

- Como o senhor avalia a posição dos demais países do Mercosul e da Unasul de condenarem o golpe?

Este golpe foi um golpe ao Mercosul, um golpe à Unasul, porque Lugo tinha boas relações com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, com o presidente da Bolívia, Evo Morales… e isso desagradava. Lugo, com todos os seus defeitos, melhorou a saúde do povo, melhorou a educação, deu alimentação nas escolas, comida, merenda. Nem tudo estava mal. Mas ao invés de premiar Lugo, o castigaram. É por isso que acreditamos que foi um golpe à unidade regional. Uma conspiração contra a unidade da região, contra a pátria grande com que sonhou Martin Bolívar para todos os latinoamericanos. Isso atenta contra todos. Pode ocorrer, amanhã, aqui, na Argentina… na Bolívia tentam um golpe de estado, no Equador também.

- Então, como na Operação Condor, é uma ameaça a toda a América Latina?

O golpe no Paraguai é a Condor se revelando. É prova que a Condor está se revelando com outro método. Uma Condor mais moderna, mais suave e mais parlamentar.

- E como o campo progressista pode reagir?

Esta reunião aqui no parlamento brasileiro para tratar da Operação Condor, por exemplo, é de extrema importância. Porque já é possível identificar três fases desta Operação. A primeira, que começou aqui no Brasil, em 1964, com a queda do presidente João Goulart, era uma Condor bilateral: Brasil-Argentina, Brasil-Paraguai, Brasil-Uruguai. A segunda, em 1975, já era uma Condor multilateral, com um acordo ratificado entre as ditaduras dos cinco países. Agora, a Condor é global. Depois dos eventos de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, se revelou que havia centros clandestinos de tortura americanos até na Europa. Portanto, há uma Condor global. E nós temos que entender o que é a Operação Condor, como ela funciona, quem a dirige… porque quem dirige a Condor é também quem dirige a Organização das Nações Unidas, o Pentágono, a máfia das drogas…

“Menos Estado”: Feudalismo de natureza financeira - I Parte (Uma perspectiva)

Vaz de Carvalho
 



Neste tema mostraremos como a ideologia capitalista vive de fórmulas alheias à experiência e ao conhecimento de que a insistência no “Menos Estado” representa um regresso ao obscurantismo de tempos há muito ultrapassados nas nossas sociedades, apesar de todas as proezas tecnológicas. Mostraremos por fim como o neoliberalismo é uma regressão civilizacional do próprio sistema capitalista.
I – O “MENOS ESTADO”
O encerramento de escolas, centros de saúde, hospitais, tribunais, redução de Municípios e Freguesias, é um aspeto da regressão civilizacional e de soberania a que se procede sob a égide neoliberal do “Menos Estado”. Acentua-se o vazio do território, a desagregação do poder do Estado, as populações ficam entregues a si próprias ou à mercê de outros poderes.
Por esse mundo fora (e em Portugal também) os lucros da finança e dos grandes grupos sobem, os impostos que efectivamente pagam, descem. Apesar das crises os 1 200 multimilionários da listagem da Forbes tinham em 2011 aumentado as suas imensas fortunas, acumulando 4,5 milhões de milhões de dólares. (1) No entanto a fome e a pobreza alastram, os Estados endividam-se. Eis o resultado do “Menos Estado”. O neoliberalismo é a sua expressão doutrinária na atualidade.
O processo não tem nada de original nem de “modernidade”; pelo contrário é uma constante das sociedades desde a criação do que se designou por “Estado” baseado em classes sociais de interesses contraditórios e antagónicos.
A História mostra-nos um processo que em linhas gerais se repete, seja no Egipto faraónico (30 séculos de civilização!), na Grécia, em Roma, no feudalismo ou no capitalismo. Em todos os períodos e sistemas políticos e económicos se registam sucessivas oscilações de concentração e difusão do poder do Estado que muito simplificadamente resumimos.
A partir de uma fase inicial de poder disperso, em povos que partilham territórios e hábitos idênticos, por força dos interesses comuns ou das armas, as comunidades são reunidas sob uma mesma liderança. É o princípio da formação ou da reorganização do Estado. O Estado estabelece-se com base na constituição de forças armadas e de um corpo de funcionários, para submeter e controlar territórios e populações e para a cobrança de impostos.
De início, na fase de expansão e consolidação do Estado o seu chefe detém grandes poderes, mas a gestão local, tem de ser exercida por uma camada social que controla o poder armado, judicial e mesmo o sistema produtivo, cria-se uma aristocracia ou oligarquia que em breve fará reverter em seu benefício as riquezas produzidas.
Para se estabelecer e consolidar, este poder aristocrático necessita de uma forte autoridade central que é consagrada pela manipulação religiosa e ideológica. A partir do objectivo original de gerir e garantir a produção material, acentua-se divisão da sociedade entre senhores e dominados, proprietários e proletários. O poder desta oligarquia ou “aristocracia” consolida-se, deixa de ser um poder delegado e dependente do central, assume-se cada vez mais autónomo; passando a ser a expressão efectiva do poder, a rapina das populações submetidas é cada vez maior.
Simultaneamente, a parte do rendimento nacional em despesas improdutivas aumenta de forma desmedida, nobres ou oligarcas competem no luxo; acumulam riquezas, são também a causa das misérias, das desgraças e das revoltas do povo. É o esteio da crise económica e social enquanto o Estado deixa de cumprir as suas funções e obrigações de defesa dos interesses colectivos.
O mais curioso é que este processo é cíclico. No Egipto torna-se nítido dada a constância do contexto civilizacional durante tão longo período, mas de formas semelhantes observamos estas mutações nos mais diversos lugares e épocas: China, Japão, Roma, Europa.
Sendo o Estado entregue aos interesses privados e imediatos surgem os germens da crise e da desagregação social. O processo histórico mostra-nos como a degradação das funções do Estado conduz ao enfraquecimento do espírito colectivo, à decadência civilizacional e à crise. À medida que enfraquece o poder do Estado aumenta a autoridade despótica da dita aristocracia ou dos oligarcas.
Segundo Platão nos seus “Diálogos”, Sócrates analisando a política da grega refere o governo aristocrático como gerando a discórdia. “Subjugam-se os cidadãos, os homens livres são tratados como servidores e perdem seus direitos”. “Tais homens (os oligarcas) são ávidos de riquezas, adoram o ouro e a prata, furtam-se aos olhos da lei, têm tesouros e riquezas escondidas, habitações rodeadas de muros, verdadeiros ninhos privados nas quais gastarão à larga”. Quanto à oligarquia: “ (é) um governo cheio de vícios inumeráveis, onde o rico manda e o pobre não participa no poder (…) Quanto mais a riqueza e os ricos são honrados menos estima se tem pela virtude e pelos virtuosos, por consequência o governo não é entregue aos mais capazes e virtuosos, mas aos ricos ou aos que melhor defendam os seus interesses. (…) Resta ainda uma liberdade: a de uns serem excessivamente ricos e outros serem excessivamente pobres e indigentes.”
Trata-se de um exemplar retrato das sociedades neoliberais.
Os antagonismos sociais criados pelas oligarquias que controlam as riquezas e o poder retiram aos governos na sua dependência capacidade de agir. A corrupção, as contradições internas, as intrigas dessa camada cada vez mais arrogante e impune consagram a desagregação social.
Para proteger os seus interesses as oligarquias não hesitam em buscar apoio externo. Sob o controlo das oligarquias, são feitas sucessivas concessões ao estrangeiro. Os países caiem na completa dependência, não podem seguir políticas autónomas, pouco lhes resta de soberania, com chefes de Estado e governantes fantoches, uma imagem de ilusório poder que se mantém para garantir a manipulação ideológica e a repressão sobre as camadas exploradas, o que nos faz lembrara a retórica da “mais Europa”.
Para manter o poder e defender os seus interesses a aristocracia ateniense submeteu-se ao arqui-inimigo Esparta no designado governo dos “30 tiranos” - o senado oligárquico que destruiu a democracia ateniense. Os “30 tiranos” são as hoje as megaempresas financeiras e transnacionais.
A História mostra-nos também que em resultado da crise económica e social, do caos estabelecido ou da sua ameaça, sob a acção de um grupo e do seu líder, colocando-se ao lado das aspirações populares é restabelecida a autoridade e a unidade. Há de novo o fortalecimento da organização do Estado e a expansão económica. O povo sente-se protegido, o nível de vida aumenta, as actividades produtivas desenvolvem-se, o prestígio dos Chefes de Estado é grande. O povo proclama: “grandes são os desígnios de Sesóstris” – faraó do Médio Império.
Contudo no período seguinte, após este impulso, as contradições da sociedade dividida em classes antagónicas mantêm-se. O poder muda de mãos, mas a sociedade no essencial continua a funcionar da mesma forma. A ambição do enriquecimento individual, o aumento do poder das camadas privilegiadas sobrepõe-se às necessidades coletivas. Há um acentuar das diferenças, há uma insensibilidade e egoísmo das camadas privilegiadas e dos que vivem na sua órbita, desprezando a situação cada vez mais difícil das populações trabalhadoras submetidas à exploração.
Sendo o rendimento nacional absorvido de forma crescente por estas camadas, o Estado deixa de poder fazer face às suas tarefas. As necessidades sociais não satisfeitas provocam a instabilidade social, a revolta do povo que se vê cada vez mais sujeito a arbitrariedades e sobrecarregado de impostos.
A clique neoliberal instituiu um sistema semelhante ao da França antes da Revolução. A nobreza, apropriava-se do excedente social por via das rendas e pelo peso dos impostos. Porém desde os anos 70 do sec. XVIII que os rendimentos agrícolas baixavam; a crise agravou-se nos anos 80, levando a nobreza a aumentar a exploração com mais impostos e prestações e a apropriar-se de bens comunais.
No século XVIII, os designados “déspotas esclarecidos”, reconheceram de uma forma geral a inutilidade social e a acção nefasta ao Estado da alta nobreza. Podemos dizer a desprezavam em alto grau, procurando o desenvolvimento e o predomínio da burguesia. José I em Portugal, José II na Áustria, Carlos III em Espanha, Frederico II na Prússia, tentaram o reforço do papel do Estado e a melhoria da situação das classes oprimidas pelos poderes feudais, com êxitos muito relativos e desiguais, como se sabe, pois continuavam a basear a estrutura social numa hierarquia de classes tradicional.
Luís XV e Luís XVI são em França exemplos destas contradições. Para resolver o problema dos défices do Estado e da crise económica, pretenderam aplicar impostos à nobreza e ao clero cujos gastos sumptuários levavam o Estado à bancarrota. Foram, chamados ministros que para a época se poderiam considerar progressistas, como Necker e Turgot – discípulo de Quesnay, o autor de Reflexões sobre a Formação e Distribuição das Riquezas – mas tiveram de ser demitidos por pressão da nobreza e do alto clero. As suas reformas foram abolidas. A cedência às camadas exploradoras que lançava o povo na miséria, precipitou a Revolução.
As aristocracias de hoje são as financeiras, o seu papel perante as estruturas governativas é idêntico. A sua prática baseia-se no axioma seguinte: “tudo o que nos é prejudicial prejudica toda a sociedade”. Assim, fazem dos seus interesses privados os interesses gerais, consideram-se intocáveis e acima das críticas. Aos escribas ao seu serviço compete estabelecer a dogmática, criando ficções teóricas para mascarar a ganância e a usura, de que a forma como funcionam a UE, o BCE, a zona euro, são evidentes expressões.
Assumindo cada vez maior poder social efectivo recusam os consensos e cedências feitas em períodos anteriores às outras classes. O seu objectivo é liga-las de pés e mãos ao seu sistema, torna-las incapazes de pensamento e acção autónoma de forma significativa e determinante. Actualmente, a consagração mediática das oligarquias, faz o seu caminho neste sentido.
Dizia Ignácio Ramonet, acerca da “opinião pública fabricada pelos grandes grupos mediáticos”: “Criticam aos políticos, mas nenhum critica o grande poder financeiro, ninguém critica os verdadeiros donos do planeta”.(2)
Menos Estado - Mais Estado é uma questão que nada tem que ver com as liberdades e direitos democráticos: tem que ver em benefício de que classes e camadas sociais o poder é exercido. Ditaduras execráveis eram afinal a expressão dos interesses monopolistas e latifundiários, em completa subordinação a interesses neocoloniais e imperialistas.
O “Menos Estado” deixa o campo livre ao poder financeiro para manobrar à sua vontade, soltando as peias às forças mais maléficas. O dinheiro sujo penetra por todos os poros da sociedade, pois o Estado não tem meios de controlar a economia sem nela interferir. Os pobres são deixados à sua sorte, o Estado deixa de fazer face ao crime organizado, as leis não são eficazes porque têm de permitir que a classe privilegiada escape.
O “Menos Estado” nunca significou na História progresso, mas prelúdio da queda de civilização. A decadência dos povos dá-se quando o Estado fica dominado por interesses privados. As oligarquias estabelecem o aumento das desigualdades, confiscam em seu proveito os frutos do esforço colectivo. O progresso verifica-se quando o Estado é capaz de concretizar as aspirações colectivas e satisfazer as necessidades sociais. O progresso corresponde ao reforço da consciência colectiva e só o Estado, pode congregar o colectivo, desde que objectivamente proceda nesse sentido.

1 - Em 2012 na lista da Forbes Magazine o número de bilionários ascende a 1226, aumentando o total para 4,6 milhões de milhões. Nos 50 primeiros concentra-se 25% do total.
2 - Fidel Castro Con Los Intelectuales – Havana - 10 fevereiro 2012

Nota - Na segunda parte deste tema mostraremos como o neoliberalismo em vigor na UE se assemelha a uma forma de feudalismo, sob a suserania dos poderes financeiros.