ESCRITO POR SERGIO STORCH |
O Brasil teve o privilégio de abrigar, na semana passada, o Fórum Social Mundial pela Palestina Livre (FSMPL), na cidade-berço dessa invenção que está na raiz do pensamento de uma nova cultura política. Lá se vão quase 13 anos desde que criamos este campo de novas possibilidades: “um outro mundo é possível”, conforme o dístico criado em sua fundação. Para alcançar o sentido da importância deste Fórum pela Palestina é importante lembrar a origem do FSM, nascido em 2001 por iniciativa de um grupo de brasileiros, bem conhecidos na nossa sociedade civil, desde a resistência à ditadura militar.
A este Fórum pela Palestina reagiram, apreensivos com possíveis impactos de protestos e manifestações, setores hegemônicos da comunidade judaica brasileira, manifestando pela mídia críticas aos governos federal, estadual e municipal de Porto Alegre, por apoiarem esse evento que, numa visão cartesiana, aparenta desafinação em relação ao discurso de equidistância dos polos do conflito: Israel e Palestina.
É, pois, oportuno registrar a existência de uma outra visão judaica. É bem antiga, remontando aos valores já expressos no Pentateuco, que trouxe em sua legislação o reconhecimento do outro, dos seus direitos e da responsabilidade de cada indivíduo com todos os demais, de seu povo ou estrangeiros. “V’ahavta l’reacha kamocha” (amai ao próximo como a ti mesmo) está nos ensinamentos da Torá, conforme o Rabi Akiva, ícone da ética judaica. Não há nada a temer. Rancor contra Israel haverá, podendo por vezes resvalar para chamamentos à destruição do país e para o antissemitismo rasteiro, como derivação de ignorância que existe de forma recíproca também da parte dos que apoiam incondicionalmente Israel. Todos conhecemos muito pouco de nossas matrizes e histórias, tanto das nossas quanto as dos outros povos. Aos que criticam o FSMPL e os governos que o acolhem, é bom estudarem um pouco.
E aqui vão algumas informações úteis para os que a ele se opõem precipitadamente ao FSMPL. As comunidades judaicas em todo o mundo enfrentam fissuras na pretensa unidade que lideranças institucionais procuram aparentar, tentando cobrir o sol com a peneira. Em Israel, o debate livre pela imprensa é a maior evidência.
Há um abismo, separando ao menos metade da sociedade israelense (que, segundo as pesquisas, apoiam a solução de Dois Estados) dos seguidores da coalizão de direita que está no governo há três anos. É bom lembrar que, em mandato anterior (1996-1999), o primeiro-ministro Benyamin Netanyahu já havia atentado contra os acordos celebrados em Oslo (1993), com o palestino Yasser Arafat, por seus adversários israelenses, Itzhak Rabin e Shimon Peres (atual presidente do país, de oposição). As seguidas procrastinações de Netanyahu, e as provocações feitas por ele, ao ampliarem os assentamentos de colonos judeus em territórios palestinos ocupados, fizeram vencer, à época, o prazo de cinco anos fixado em Oslo para um acordo de paz permanente.
Surgiu, em consequência, uma insatisfação crescente entre as massas palestinas, que explodiu, já de forma incontrolável, na segunda Intifada, no ano 2000. O primeiro-ministro é um personagem de convicções inabaláveis e perseverantes, que não hesita em abusar da memória de tragédias históricas sofridas pelos judeus para justificar uma estratégia míope, baseada tão somente na força militar.
A extensão do abismo que existe em Israel, e não é novo, pode ser apreciada por este trecho de uma carta de Leah Rabin (viúva de Itzhak Rabin, assassinado por um extremista judeu em 1995), na época do primeiro mandato do atual chefe de governo: “Netanyahu é um mentiroso corrupto que está destruindo tudo que nossa sociedade tem de bom”. (...) Netanyahu e seu governo não representam uma unidade dos judeus israelenses, nem tampouco dos judeus na maior comunidade da Diáspora, a estadunidense”.
Há um olhar judaico em Israel que busca – e encontra – o parceiro palestino. Ao contrário da propaganda desse governo manipulador do medo e da insegurança, que martela a ideia de que não existem parceiros para a paz, há inúmeros exemplos de parcerias. O escritor e jornalista israelense Amos Oz colabora com o filósofo palestino Sari Nusseibeh, reitor da universidade Al-Quds. O músico Daniel Barenboim teve como parceiro o maior intelectual palestino, Edward Said, para a formação da sua orquestra de jovens israelenses e árabes, hoje mantida pelo governo da Andaluzia, na Espanha. A cantora israelense Noa canta com sua amiga palestina Mira Awad. Há ex-soldados israelenses e ex-militantes palestinos da luta armada que se encontram no Combatants for Peace. O líder de direitos humanos Edward Kaufman (que levamos no dia 20/11 ao Itamaraty) leciona com um parceiro palestino sobre direitos humanos e resolução de conflitos (seu amigo Manuel Hassassian é embaixador da Autoridade Palestina na Inglaterra).
Nada mais falso do que a mistificação de que não há parceiros para a paz. Há 130 ONGs em que atuam ombro a ombro israelenses e palestinos na defesa dos direitos violentados pelas políticas dos governos israelenses, desde a detenção de prisioneiros sem culpa formada por tempo indeterminado, até a desobediência civil de mulheres israelenses que regularmente contrabandeiam mulheres palestinas para tomarem banho de mar em Tel Aviv ou Haifa.
Falemos da maior comunidade da Diáspora judaica, a estadunidense, cuja população (5 milhões) não é muito menor que a judaica israelense (6 milhões). A tradição liberal dessa comunidade, que teve líderes marchando ao lado de Martin Luther King nos anos 1960 e combatendo à guerra do Vietnã nos anos 70, se expressa hoje em organizações como o Jewish Voice for Peace(do qual rabinos participaram das flotilhas que chamaram a atenção do mundo para o bloqueio israelense a Gaza), o Tikkun (liderado pelo rabino Michael Lerner, que é ativista pela paz desde a resistência à guerra do Vietnã), e o JStreet, um lobby judaico no Congresso que se opõe ao mal-denominado “lobby sionista”, a AIPAC (The American Israel Public Affairs Committee).
Vale destacar que este último, embora financeiramente forte, é tão pouco representativo da maioria da comunidade judaica que sua campanha ostensiva por Mitt Romney nas últimas eleições (doação US$ 100 milhões só da parte do seu presidente, Sheldon Adelson, magnata dos cassinos de Las Vegas) foi respondida pela maioria, de 70%, do voto judaico em favor de Barack Obama. Esse lobby vem corroendo por dentro a democracia israelense, com o investimento em mídia impressa que hoje domina 90% dos leitores do país. E é abertamente aliado a outra força das mais retrógradas da sociedade estadunidense, o chamado “sionismo cristão”, dos fundamentalistas evangélicos, no qual atuam figuras do Tea Party que, como o ex-candidato Glenn Beck, vão a Israel para incitar à distância os seus seguidores nos Estados Unidos (vercomentário na imprensa israelense. A nata da extrema direita norte-americana tem a AIPAC como instrumento. Não pode ser denominada “lobby sionista” ou “lobby judaico”, pois nessa complexa sociedade há revistas progressistas de um século ou mais – The Nation, Forward etc. –, povoadas por judeus destacados).
O anti-lobby JStreet (abreviação de Jewish Street, ou seja, a “rua judaica”) está no seu quarto ano de existência, e tem realizações constantes ao trazer para contato com congressistas e secretários de Obama pessoas eminentes de Israel, que incluem até mesmo generais e oficiais de alto escalão dos serviços de inteligência. Comparecem para demonstrar à opinião pública e aos políticos dos EUA a importância de pressionar o governo israelense no sentido de mudar de direção.
A arrogância dos próceres da diplomacia israelense, hoje chefiada por um ministro que lidera a extrema-direita no país, e visto por muitos embaixadores como destruidor de competências que Israel chegou a ter com figuras lendárias como Abba Eban, vai a ponto de pressionarem governos do Ocidente a não reconhecerem aos palestinos sequer o direito de fazerem parte de instituições como a Unesco. Atribuem ao terrorismo palestino uma natureza cultural dos muçulmanos, enquanto fecham aos palestinos os caminhos do combate não violento pelos seus direitos.
Vale ressaltar a linguagem eivada de ironia e intervencionismo, como a expressa nesta frase de um adido israelense ao Uruguai, por ocasião da celebração de acordo do Mercosul com a Autoridade Palestina: “o acordo do bloco do Cone Sul com a Palestina não é a melhor forma de estimular o processo de paz no Oriente Médio”. Qual seria a alternativa? Aprofundar oapartheid na zona C da Cisjordânia, com a construção de mais colônias de ocupação, enquanto não se dão licenças de construção para os moradores palestinos?
A realização bem-sucedida do Fórum Social Mundial pela Palestina Livre abre, no Brasil, uma oportunidade rara. Permite que brasileiros — de origem judaica, árabe ou qualquer outra — proponham um novo olhar: uma mirada de ação afirmativa que, em vez de recusar os direitos de um ou de outro lado, afirme e defenda esses direitos.
A primeira ação, que pode ter efeitos contínuos e duradouros, pode ser a proposta de um tratamento Fair Trade (Comércio Justo) para o azeite de oliva palestino. Chegaria às mesas de brasileiros dispostos a lutar pela paz. Permitiria, além de consumir um produto de qualidade e repleto de simbologia, estimular contatos com os que o produzem — desde o cultivo das oliveiras à industrialização artesanal. Lembraria que a oliveira, símbolo da paz, é plantada por gente comum que zela pela subsistência de suas famílias, e arrancada às vezes por vândalos, ou destruída por bulldozers que fazem a preparação do terreno para construção do muro de separação.
Importar e distribuir o azeite palestino será trazer ao conhecimento do consumidor-cidadão a existência de filmes como Budrus, que mostram a realidade na escala do humano de palestinos que resistem de forma não violenta, apoiados por israelenses com esse outro olhar.
Há inúmeras formas de intervirmos – nós, brasileiros – com uma pauta de ações afirmativas, no programa “Lado a lado: a construção da paz no Oriente Médio – um papel para as Diásporas”, lançado pelo Itamaraty e que certamente contará, mais cedo ou mais tarde, com apoio das lideranças judaicas mais esclarecidas.
Temos uma grande vantagem: é muito mais fácil arregimentarmos num movimento nesse sentido setores crescentes de uma comunidade pequena – e em certos aspectos provinciana, de 100 mil pessoas – do que seria possível na maior comunidade judaica, 50 vezes maior.
A oportunidade está à nossa frente. Em termos judaicos, poder-se-ia dizer que o Fórum Social Mundial está às vésperas de celebrar o seu Bar Mitzvá, o ritual que marca a passagem dos jovens para a responsabilidade moral pelos seus atos, aos 13 anos. Que possamos amadurecer ações afirmativas para celebrá-las no 13º FSM, na Tunísia, em abril de 2013.
Sérgio Storch é consultor em Planejamento, ativista de diversas causas ligadas à transformação social. Escreve em Outras Palavras a coluna Outro Israel
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sexta-feira, 7 de dezembro de 2012
Para conhecer Outro Israel – o que luta pela paz
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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
2007-2012: 6 anos que abalaram os bancos
O cenário repetiu-se pelo menos trinta vezes na
Europa e nos Estados Unidos desde 2008: os poderes públicos estiveram
sempre (e sistematicamente) ao serviço dos bancos privados, financiando o
seu resgate através do endividamento público. Primeira parte do artigo
"Bancos contra povos: os bastidores de um jogo manipulado!", de Eric
Toussaint.
Por Eric Toussaint
Foto URBAN ARTefakte/Flickr
Desde 2007-2008, os grandes bancos centrais (BCE, Banco da Inglaterra, a
Fed nos EUA, o Banco da Suíça) têm como prioridade absoluta tentar
evitar o colapso do sistema bancário privado. Contrariamente ao discurso
dominante, a principal ameaça para os bancos não é a suspensão do
pagamento da dívida soberana pelo Estado |1| soberano. Desde 2007,
nenhuma das falências bancárias foi causada por essa falta de pagamento.
Nenhum dos resgates bancários levados a cabo pelos Estados teve como
causa a suspensão de pagamentos por parte de Estados sobreendividados.
Desde 2007 o que ameaça os bancos são as dívidas privadas que os bancos
foram gradualmente fomentando devido à grande desregulação iniciada em
finais dos anos setenta e concluída nos anos noventa. Os balanços dos
bancos privados estão sempre contaminados por ativos |2| duvidosos:
desde ativos tóxicos que são bombas ao retardador até ativos ilíquidos
(que não podem ser vendidos, nem passados, nos mercados financeiros),
passando por ativos cujo valor é bastante superestimado nos balanços
bancários. A venda e a depreciação de ativos que os bancos têm inserido
nas suas contas, com o objectivo de reduzirem o peso desses ativos
explosivos, não são suficientes. Uma parte significativa desses ativos
depende de um financiamento a curto prazo (concedido ou garantido pelos
poderes públicos, com base no dinheiro dos contribuintes) para se manter
à tona |3| e para fazer face às dívidas de curto prazo. Foi o que
aconteceu com o banco franco-belga Dexia, um verdadeiro hedge fund
de grande dimensão, que, em quatro anos, esteve três vezes à beira da
falência: em outubro de 2008, em outubro de 2011 |4| e em outubro de
2012 |5|. Durante o episódio mais recente, que teve início em novembro
de 2012, os estados francês e belga concederam uma ajuda de 5,5 mil
milhões (53% do valor foi garantido pela Bélgica) para recapitalizar o
Dexia SA, sociedade financeira moribunda, que viu desaparecer os seus
próprios fundos. De acordo com Le Soir: «os capitais próprios
do Dexia-casa-mãe passaram de 19,2 mil milhões para 2,7 mil milhões de
euros entre o final de 2010 e o final de 2011. E a nível de grupo, o
total dos fundos próprios foi negativo (-2,3 mil milhões em 30 de junho
de 2012)» |6|. No final de 2011, as dívidas a exigir de imediato ao
Dexia SA ascendiam a 413 mil milhões de euros e os montantes devidos em
termos de contratos de derivados eram superiores a 461 mil milhões de
euros. A soma desses dois valores era superior a mais de duas vezes e
meia o PIB da Bélgica! No entanto, os dirigentes do Dexia, o belga
vice-primeiro-ministro Didier Reynders e os principais meios de
comunicação social ainda alegam que o problema do Dexia SA é em grande
parte causado pela crise da dívida soberana no sul da zona do euro. A
verdade é que os créditos do Dexia SA em relação à Grécia não excediam 2
mil milhões de euros em Outubro de 2011, ou seja, duzentas vezes menos
do que a dívida a pagar de imediato. Em outubro de 2012, as ações do
Dexia valiam cerca de 0,18 euros ou 100 vezes menos do que em setembro
de 2008. Apesar de tudo, os estados francês e belga decidiram, mais uma
vez, salvar esse « mau banco», aumentando de repente a dívida pública
dos seus países. Em Espanha, a quase falência do Bankia foi também
causada por acordos financeiros duvidosos e não por qualquer tipo de
incumprimento por parte do Estado. O cenário repetiu-se pelo menos
trinta vezes na Europa e nos Estados Unidos desde 2008: os poderes
públicos estiveram sempre (e sistematicamente) ao serviço dos bancos
privados, financiando o seu resgate através do endividamento público.
De volta ao início da crise em 2007
A construção gigantesca de dívidas privadas começou a ruir com a explosão da bolha especulativa no mercado imobiliário dos Estados Unidos (seguido pelo mercado imobiliário da Irlanda, do Reino Unido e de Espanha,...). A bolha imobiliária explodiu nos Estados Unidos quando o preço das habitações construídas em grandes quantidades começou a cair, porque cada vez mais as casas não tinham compradores.
As explicações truncadas e enganadoras sobre a crise que eclodiu nos Estados Unidos em 2007, que teve um enorme efeito de contágio principalmente na Europa Ocidental, prevaleceram nas explicações dadas pelos principais meios de comunicação social. Com regularidade, em 2007 e durante boa parte de 2008, explicou-se à opinião pública que a crise tinha começado nos Estados Unidos, porque os pobres estavam muito endividados por terem comprado casas que não eram capazes de pagar. O comportamento irracional dos pobres foi apontado como tendo sido o causador da crise. A partir de finais de setembro de 2008, após a falência do Lehman Brothers, o discurso dominante mudou e começou-se a apontar o dedo às ovelhas negras que no mundo das finanças tinham pervertido o funcionamento virtuoso do capitalismo. Mas mantêm-se as mentiras ou as explicações truncadas, que continuaram a circular. Passou-se dos pobres responsáveis pela crise para as maçãs podres da classe capitalista: Bernard Madoff, que montou um golpe 50 mil milhões de dólares, ou Richard Fuld, o patrão do Lehman Brothers.
As premissas da crise remontam a 2006, quando se inicia nos Estados Unidos a queda dos preços do imobiliário, causada pela superprodução que foi provocada pela bolha especulativa, que, inflacionando os preços do imobiliário, levou o sector da construção a aumentar exageradamente a sua actividade em relação à procura existente. Foi a queda dos preços do imobiliário que levou a um aumento do número de famílias incapazes de pagarem as mensalidades das suas hipotecas subprimes. De facto, nos Estados Unidos, as famílias têm a oportunidade e o costume, quando os preços dos imóveis sobem, de refinanciar as suas hipotecas, após dois ou três anos, a fim de obterem condições mais favoráveis (em particular no sector subprime, a taxa inicial a dois ou três anos é baixa e fixa e ronda os 3%, mas depois dispara e torna-se variável no terceiro ou quarto ano). Dado que os preços do imobiliário começaram a cair em 2006, as famílias que utilizaram empréstimos subprime deixaram de ser capazes de refinanciar a sua hipoteca favoravelmente. Os incumprimentos começaram a aumentar de forma acentuada a partir do início de 2007, o que provocou a falência de 84 empresas de hipotecas nos Estados Unidos, entre janeiro e agosto de 2007.
Apesar de a crise ser explicada com frequência de forma simplista pela explosão de uma bolha especulativa, na realidade, a causa deve ser procurada tanto no sector produtivo como ao nível da especulação financeira. É certo que o facto de a bolha ter sido criada, e de acabar por rebentar, apenas multiplica os efeitos da crise que começou no sector produtivo. Todos os empréstimos subprime e produtos estruturados, criados desde meados dos anos noventa, entraram em colapso, o que teve efeitos terríveis sobre a produção em vários sectores da economia real. As políticas de austeridade ampliaram ainda mais o fenómeno que gera depois o período depressivo e de recessão, que se arrasta e mantém como refém a economia dos países industrializados.
A crise do imobiliário nos Estados Unidos e a crise bancária que se lhe seguiu provocaram um enorme efeito de contágio a nível internacional, levando muitos bancos europeus a investirem de forma massiva em produtos estruturados e derivados norte-americanos. Desde os anos noventa, o crescimento dos Estados Unidos e de várias economias europeias foi apoiado por uma hipertrofia do sector financeiro privado e um aumento muito grande das dívidas privadas: endividamento das famílias |7|, dívida das empresas financeiras e não-financeiras. Ao contrário, as dívidas públicas tenderam a diminuir entre a segunda metade dos anos noventa e os anos de 2007-2008.
Hipertrofia do sector financeiro privado, portanto. O volume de ativos dos bancos privados europeus, em relação ao produto interno bruto, cresceu de maneira exponencial a partir da década de noventa, atingindo, na União Europeia, três vezes e meia o PIB dos 27 países membros da UE em 2011 |8|. Na Irlanda, em 2011, os ativos dos bancos representavam oito vezes o produto interno bruto do país.
As dívidas dos bancos privados |9| da zona euro representam também três vezes e meia o PIB da zona. As dívidas do sector financeiro britânico atingem máximos em relação ao PIB: chegam a ser onze vezes superiores, representando a dívida pública cerca de 80% do PIB.
A dívida bruta dos Estados da zona do euro representava 86% do PIB dos 17 países em 2011 |10|. A dívida pública grega representava 162% do PIB grego em 2011. Por seu turno, as dívidas do sector financeiro representam 311% do PIB, ou seja, o dobro. A dívida pública espanhola atingiu 62% do PIB em 2011. No entanto, as dívidas do sector financeiro atingiram 203%, ou seja, o triplo da dívida pública.
Um pouco de história: a criação de uma regulação financeira rigorosa, na sequência da crise de 1930
O colapso de Wall Street em outubro de 1929, a enorme crise bancária de 1933 e o prolongado período de crise económica nos Estados Unidos e na Europa, na década de trinta, levaram o presidente Franklin Roosevelt, e de seguida a Europa, a regular fortemente o sector financeiro para evitarem a repetição de graves crises bolsistas e bancárias. Consequência: durante os 30 anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial, o número de crises bancárias foi mínimo. É o que mostram dois economistas neoliberais norte-americanos, Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, num livro publicado em 2009, intitulado Desta Vez É Diferente. Oito Séculos de Loucura Financeira. Kenneth Rogoff foi economista-chefe do FMI e Reinhart Carmen, professor universitário, é conselheiro do FMI e do Banco Mundial. De acordo com esses dois economistas, que são tudo menos favoráveis a questionar o capitalismo, a quantidade muito reduzida de crises bancárias explica-se principalmente «pela repressão dos mercados financeiros nacionais (em diferentes níveis), e por um recurso massivo ao controlo de capitais, durante os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial» |11|.
Uma das medidas fortes tomadas por Roosevelt e pelos governos da Europa (nomeadamente sob a pressão de mobilizações populares na Europa, que surgiram após a libertação) consistiu em limitar e regular, de forma estrita, o uso que os bancos podiam fazer do dinheiro das pessoas. Esse princípio de protecção dos depósitos levou à distinção entre bancos comerciais e bancos de investimento, criados pela lei norte-americana Glass-Steagall Act, que foi a mais conhecida, tendo sido aplicada, com algumas variações, nos países europeus.
Devido a essa separação, só os bancos comerciais podiam receber depósitos do público, que beneficiavam de uma garantia do Estado. Paralelamente, o seu campo de atividade tinha ficado limitado à concessão de empréstimos a particulares e a empresas e excluía a emissão de títulos, de ações e de outros instrumentos financeiros. Os bancos de investimento deviam, por sua vez, ir buscar os seus recursos aos mercados financeiros, para poderem emitir títulos, ações e outros instrumentos financeiros.
A desregulação financeira e a viragem neoliberal
A viragem neoliberal de finais da década de setenta pôs em causa essas regulações. Após cerca de vinte anos, a desregulação bancária e financeira ficou concluída. Como revelam Kenneth Rogoff e Reinhart Carmen, as crises bancárias e bolsistas multiplicaram-se a partir dos anos oitenta e atingiram níveis cada vez mais preocupantes.
Segundo o modelo tradicional, herdado do período em que existia regulação, os bancos avaliam e assumem o risco, ou seja, analisam os pedidos de crédito, decidem ou não satisfazê-los e, uma vez os empréstimos concedidos, registam-nos nos seus balanços até ao final do prazo do empréstimo (estamos a falar do modelo originate and hold – «originar e manter»).
Aproveitando a tendência de profunda desregulação, os bancos abandonaram o modelo «originar para manter» com o objectivo de aumentarem o rendimento dos fundos próprios. Nesse sentido, os bancos inventaram novos procedimentos, em especial, a titularização, que significa transformar os créditos bancários em títulos financeiros. A finalidade era simples: consistia em não registar nas contas dos bancos os créditos e os respectivos riscos. Os bancos transformaram esses créditos em títulos, os denominados produtos financeiros estruturados, que vendiam a outros bancos e a outras instituições financeiras privadas. Estamos falar de um novo modelo bancário designado originate to distribute, «originar para distribuir», também chamado originate repackage and sell, que consiste em conceder o crédito, titularizá-lo e vendê-lo. Para o banco, a vantagem é dupla: reduz o risco porque os créditos concedidos baseiam-se em ativos e, por outro lado, dispõe de meios suplementares para poder especular.
A desregulação permitiu ao sector financeiro privado, nomeadamente aos bancos, acionar com frequência o chamado efeito de alavancagem. Xavier Dupret descreve, com clareza, o fenómeno: «O mundo bancário envididou-se muito, nos últimos anos, devido ao chamado efeito de alavancagem. A alavancagem significa recorrer ao endividamento para aumentar a rentabilidade sobre o capital próprio. E para funcionar, é necessário que a taxa de rentabilidade do projeto selecionado seja superior às taxas de juro a pagar sobre o montante que se pediu emprestado. Os efeitos de alavancagem tornaram-se cada vez mais importantes ao longo do tempo. É evidente que isso gerou problemas. Na primavera de 2008, os bancos de investimento de Wall Street desencaderam efeitos de alavancagem que oscilavam entre 25 e 45 (para um dólar de fundos próprios, pediam emprestado entre 25 e 45 dólares). O Merrill Lynch, por exemplo, tinha um efeito de alavancagem de 40. Essa situação tornou-se obviamente explosiva, porque uma instituição que tem uma alavancagem de 40 para 1 vê os seus fundos próprios caírem 2,5% (1/40) do valor dos ativos adquiridos.» |12|
Devido à desregulação, os bancos puderam desenvolver atividades que envolviam grandes volumes de financiamento (e, portanto, de dívida), sem registarem isso nos seus balanços. As operações fora do balanço atingiram tal dimensão que, em 2011, o volume da atividade em causa excedia os 67 biliões de dólares (o que equivale aproximadamente à soma do PIB de todos os países do mundo): é o que se chama sistema de bancos-sombra, o shadow banking |13|. Quando as operações fora do balanço provocam perdas avultadas, isso afeta, mais cedo ou mais tarde, a saúde dos bancos que levaram a cabo essas operações. São, sobretudo, os grandes bancos que dominam essa atividade sombra. A ameaça de falência leva os Estados a irem em seu socorro, procedendo a recapitalizações. Apesar de os balanços oficiais dos bancos registarem uma diminuição de volume, desde o início da crise em 2007-2008, o volume das operações fora de balanço, o shadow banking, não seguiu a mesma tendência. Depois de ter caído entre 2008 e 2010, voltou em 2011 e 2012 ao nível de 2006-2007, o que é um sintoma claro da perigosidade da situação das finanças privadas mundiais. De repente, o raio de ação nacional e internacional das instituições públicas, que têm a obrigação, para usar o vocabulário deles, de levar a finança a assumir um comportamento mais responsável, é muito limitado. Os reguladores não disponibilizam os meios necessários para que se conheça a actividade real dos bancos que eles têm o dever de controlar.
O Conselho de Estabilidade Financeira (CEF), o órgão instituído pelo G20 e encarregue de supervisionar a estabilidade financeira mundial, divulgou os números de 2011. «A dimensão do shadow banking, escapando a todo tipo de regulação, é de 67 biliões de dólares, de acordo com o relatório que estuda 25 países (90% dos ativos financeiros mundiais). São mais 5-6 biliões do que em 2010. Esse sector “paralelo” equivale, por si só, a metade do volume dos ativos totais dos bancos. Tomando por referência o Produto Interno Bruto dos países, a banca sombra prospera em Hong Kong (520%), Holanda (490%), Reino Unido (370%), Singapura (260%) e Suíça (210%). Mas, em termos absolutos, os Estados Unidos continuam em primeiro lugar com um sector paralelo de 23 biliões de ativos em 2011, seguido da zona euro (22 biliões) e do Reino Unido (9 biliões).» |14|
Uma grande parte das transações financeiras escapa totalmente ao controlo oficial. Como foi referido anteriormente, a dimensão da actividade dos bancos sombra representa metade do volume dos ativos totais dos bancos! É preciso também avaliar o mercado fora de bolsa (OTC*) – isto é, o mercado que não é controlado pelas autoridades reguladoras dos mercados – os produtos financeiros derivados. O volume de produtos derivados cresceu de forma exponencial entre os anos noventa e os anos 2007-2008. Tendo diminuído ligeiramente no início da crise, o valor nocional dos contratos de derivativos no mercado fora de bolsa atingiu, em 2011, a soma astronómica de 650 biliões de dólares (650 000 000 000 000 $), cerca de 10 vezes o PIB mundial. O volume do segundo semestre de 2007 foi ultrapassado e o do primeiro semestre de 2008 está em vias... os swaps de taxas de juros representam 74% do total, os derivados sobre os mercados de divisas representam 8%, os Credit default swaps (CDS) 5%, os derivados sobre os mercados de ações de 1%, o resto reparte-se por múltiplos produtos.
Após 2008 os resgates bancários não geraram comportamentos mais responsáveis
A crise financeira de 2007 viu os bancos, ainda que culpados por má conduta e por assumirem posições arriscadas e imprudentes, receberem injeções maciças de fundos por intermédio de vários e caros planos de resgate. Num estudo bem documentado |15|, dois investigadores tentaram verificar «se as operações públicas de resgate foram seguidas de uma maior redução do risco na concessão de novos empréstimos pelos bancos resgatados, comparativamente aos bancos que não foram resgatados». Com esse objectivo, os autores analisaram os balanços e os empréstimos sindicalizados (trata-se de créditos concedidos a uma empresa por vários bancos) relativos a 87 grandes bancos comerciais internacionais. Os autores verificaram que «os bancos ajudados continuaram a conceder empréstimos sindicalizados mantendo o risco», adiantando que «os empréstimos sindicalizados dos bancos que receberam ajuda eram, depois do resgate, mais arriscados do que antes da crise, comparando com as instituições que não receberam ajuda». Em vez de serem um remédio e uma proteção eficaz contra os caprichos dos bancos, os planos de resgate dos Estados tornaram-se, pelo contrário, muitos deles, um forte incentivo à continuação e intensificação das práticas pecaminosas. Na verdade, «a perspectiva de um apoio por parte do Estado pode constituir um álibi moral e pode levar os bancos a aumentarem o risco». |16|
Em suma, a grave crise das dívidas privadas, provocada pelo comportamento irresponsável dos grandes bancos, levou os dirigentes norte-americanos e europeus a irem em seu socorro, utilizando fundos públicos. A sirene lancinante da crise das dívidas soberanas pôde, então, ser acionada para impor sacrifícios brutais aos povos. A desregulação financeira dos anos noventa foi terreno fértil para esta crise com consequências sociais dramáticas. Enquanto não regularem a finança internacional, os povos continuarão subjugados. A luta deve ser intensificada o mais depressa possível.
Tradução Maria da Liberdade. Publicado na página do CADTM
O autor agradece a Patrick Saurin, Daniel Munevar, Damien Millet e Virginie de Romanet pela ajuda que deram na elaboração do artigo.
A construção gigantesca de dívidas privadas começou a ruir com a explosão da bolha especulativa no mercado imobiliário dos Estados Unidos (seguido pelo mercado imobiliário da Irlanda, do Reino Unido e de Espanha,...). A bolha imobiliária explodiu nos Estados Unidos quando o preço das habitações construídas em grandes quantidades começou a cair, porque cada vez mais as casas não tinham compradores.
As explicações truncadas e enganadoras sobre a crise que eclodiu nos Estados Unidos em 2007, que teve um enorme efeito de contágio principalmente na Europa Ocidental, prevaleceram nas explicações dadas pelos principais meios de comunicação social. Com regularidade, em 2007 e durante boa parte de 2008, explicou-se à opinião pública que a crise tinha começado nos Estados Unidos, porque os pobres estavam muito endividados por terem comprado casas que não eram capazes de pagar. O comportamento irracional dos pobres foi apontado como tendo sido o causador da crise. A partir de finais de setembro de 2008, após a falência do Lehman Brothers, o discurso dominante mudou e começou-se a apontar o dedo às ovelhas negras que no mundo das finanças tinham pervertido o funcionamento virtuoso do capitalismo. Mas mantêm-se as mentiras ou as explicações truncadas, que continuaram a circular. Passou-se dos pobres responsáveis pela crise para as maçãs podres da classe capitalista: Bernard Madoff, que montou um golpe 50 mil milhões de dólares, ou Richard Fuld, o patrão do Lehman Brothers.
As premissas da crise remontam a 2006, quando se inicia nos Estados Unidos a queda dos preços do imobiliário, causada pela superprodução que foi provocada pela bolha especulativa, que, inflacionando os preços do imobiliário, levou o sector da construção a aumentar exageradamente a sua actividade em relação à procura existente. Foi a queda dos preços do imobiliário que levou a um aumento do número de famílias incapazes de pagarem as mensalidades das suas hipotecas subprimes. De facto, nos Estados Unidos, as famílias têm a oportunidade e o costume, quando os preços dos imóveis sobem, de refinanciar as suas hipotecas, após dois ou três anos, a fim de obterem condições mais favoráveis (em particular no sector subprime, a taxa inicial a dois ou três anos é baixa e fixa e ronda os 3%, mas depois dispara e torna-se variável no terceiro ou quarto ano). Dado que os preços do imobiliário começaram a cair em 2006, as famílias que utilizaram empréstimos subprime deixaram de ser capazes de refinanciar a sua hipoteca favoravelmente. Os incumprimentos começaram a aumentar de forma acentuada a partir do início de 2007, o que provocou a falência de 84 empresas de hipotecas nos Estados Unidos, entre janeiro e agosto de 2007.
Apesar de a crise ser explicada com frequência de forma simplista pela explosão de uma bolha especulativa, na realidade, a causa deve ser procurada tanto no sector produtivo como ao nível da especulação financeira. É certo que o facto de a bolha ter sido criada, e de acabar por rebentar, apenas multiplica os efeitos da crise que começou no sector produtivo. Todos os empréstimos subprime e produtos estruturados, criados desde meados dos anos noventa, entraram em colapso, o que teve efeitos terríveis sobre a produção em vários sectores da economia real. As políticas de austeridade ampliaram ainda mais o fenómeno que gera depois o período depressivo e de recessão, que se arrasta e mantém como refém a economia dos países industrializados.
A crise do imobiliário nos Estados Unidos e a crise bancária que se lhe seguiu provocaram um enorme efeito de contágio a nível internacional, levando muitos bancos europeus a investirem de forma massiva em produtos estruturados e derivados norte-americanos. Desde os anos noventa, o crescimento dos Estados Unidos e de várias economias europeias foi apoiado por uma hipertrofia do sector financeiro privado e um aumento muito grande das dívidas privadas: endividamento das famílias |7|, dívida das empresas financeiras e não-financeiras. Ao contrário, as dívidas públicas tenderam a diminuir entre a segunda metade dos anos noventa e os anos de 2007-2008.
Hipertrofia do sector financeiro privado, portanto. O volume de ativos dos bancos privados europeus, em relação ao produto interno bruto, cresceu de maneira exponencial a partir da década de noventa, atingindo, na União Europeia, três vezes e meia o PIB dos 27 países membros da UE em 2011 |8|. Na Irlanda, em 2011, os ativos dos bancos representavam oito vezes o produto interno bruto do país.
As dívidas dos bancos privados |9| da zona euro representam também três vezes e meia o PIB da zona. As dívidas do sector financeiro britânico atingem máximos em relação ao PIB: chegam a ser onze vezes superiores, representando a dívida pública cerca de 80% do PIB.
A dívida bruta dos Estados da zona do euro representava 86% do PIB dos 17 países em 2011 |10|. A dívida pública grega representava 162% do PIB grego em 2011. Por seu turno, as dívidas do sector financeiro representam 311% do PIB, ou seja, o dobro. A dívida pública espanhola atingiu 62% do PIB em 2011. No entanto, as dívidas do sector financeiro atingiram 203%, ou seja, o triplo da dívida pública.
Um pouco de história: a criação de uma regulação financeira rigorosa, na sequência da crise de 1930
O colapso de Wall Street em outubro de 1929, a enorme crise bancária de 1933 e o prolongado período de crise económica nos Estados Unidos e na Europa, na década de trinta, levaram o presidente Franklin Roosevelt, e de seguida a Europa, a regular fortemente o sector financeiro para evitarem a repetição de graves crises bolsistas e bancárias. Consequência: durante os 30 anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial, o número de crises bancárias foi mínimo. É o que mostram dois economistas neoliberais norte-americanos, Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, num livro publicado em 2009, intitulado Desta Vez É Diferente. Oito Séculos de Loucura Financeira. Kenneth Rogoff foi economista-chefe do FMI e Reinhart Carmen, professor universitário, é conselheiro do FMI e do Banco Mundial. De acordo com esses dois economistas, que são tudo menos favoráveis a questionar o capitalismo, a quantidade muito reduzida de crises bancárias explica-se principalmente «pela repressão dos mercados financeiros nacionais (em diferentes níveis), e por um recurso massivo ao controlo de capitais, durante os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial» |11|.
Uma das medidas fortes tomadas por Roosevelt e pelos governos da Europa (nomeadamente sob a pressão de mobilizações populares na Europa, que surgiram após a libertação) consistiu em limitar e regular, de forma estrita, o uso que os bancos podiam fazer do dinheiro das pessoas. Esse princípio de protecção dos depósitos levou à distinção entre bancos comerciais e bancos de investimento, criados pela lei norte-americana Glass-Steagall Act, que foi a mais conhecida, tendo sido aplicada, com algumas variações, nos países europeus.
Devido a essa separação, só os bancos comerciais podiam receber depósitos do público, que beneficiavam de uma garantia do Estado. Paralelamente, o seu campo de atividade tinha ficado limitado à concessão de empréstimos a particulares e a empresas e excluía a emissão de títulos, de ações e de outros instrumentos financeiros. Os bancos de investimento deviam, por sua vez, ir buscar os seus recursos aos mercados financeiros, para poderem emitir títulos, ações e outros instrumentos financeiros.
A desregulação financeira e a viragem neoliberal
A viragem neoliberal de finais da década de setenta pôs em causa essas regulações. Após cerca de vinte anos, a desregulação bancária e financeira ficou concluída. Como revelam Kenneth Rogoff e Reinhart Carmen, as crises bancárias e bolsistas multiplicaram-se a partir dos anos oitenta e atingiram níveis cada vez mais preocupantes.
Segundo o modelo tradicional, herdado do período em que existia regulação, os bancos avaliam e assumem o risco, ou seja, analisam os pedidos de crédito, decidem ou não satisfazê-los e, uma vez os empréstimos concedidos, registam-nos nos seus balanços até ao final do prazo do empréstimo (estamos a falar do modelo originate and hold – «originar e manter»).
Aproveitando a tendência de profunda desregulação, os bancos abandonaram o modelo «originar para manter» com o objectivo de aumentarem o rendimento dos fundos próprios. Nesse sentido, os bancos inventaram novos procedimentos, em especial, a titularização, que significa transformar os créditos bancários em títulos financeiros. A finalidade era simples: consistia em não registar nas contas dos bancos os créditos e os respectivos riscos. Os bancos transformaram esses créditos em títulos, os denominados produtos financeiros estruturados, que vendiam a outros bancos e a outras instituições financeiras privadas. Estamos falar de um novo modelo bancário designado originate to distribute, «originar para distribuir», também chamado originate repackage and sell, que consiste em conceder o crédito, titularizá-lo e vendê-lo. Para o banco, a vantagem é dupla: reduz o risco porque os créditos concedidos baseiam-se em ativos e, por outro lado, dispõe de meios suplementares para poder especular.
A desregulação permitiu ao sector financeiro privado, nomeadamente aos bancos, acionar com frequência o chamado efeito de alavancagem. Xavier Dupret descreve, com clareza, o fenómeno: «O mundo bancário envididou-se muito, nos últimos anos, devido ao chamado efeito de alavancagem. A alavancagem significa recorrer ao endividamento para aumentar a rentabilidade sobre o capital próprio. E para funcionar, é necessário que a taxa de rentabilidade do projeto selecionado seja superior às taxas de juro a pagar sobre o montante que se pediu emprestado. Os efeitos de alavancagem tornaram-se cada vez mais importantes ao longo do tempo. É evidente que isso gerou problemas. Na primavera de 2008, os bancos de investimento de Wall Street desencaderam efeitos de alavancagem que oscilavam entre 25 e 45 (para um dólar de fundos próprios, pediam emprestado entre 25 e 45 dólares). O Merrill Lynch, por exemplo, tinha um efeito de alavancagem de 40. Essa situação tornou-se obviamente explosiva, porque uma instituição que tem uma alavancagem de 40 para 1 vê os seus fundos próprios caírem 2,5% (1/40) do valor dos ativos adquiridos.» |12|
Devido à desregulação, os bancos puderam desenvolver atividades que envolviam grandes volumes de financiamento (e, portanto, de dívida), sem registarem isso nos seus balanços. As operações fora do balanço atingiram tal dimensão que, em 2011, o volume da atividade em causa excedia os 67 biliões de dólares (o que equivale aproximadamente à soma do PIB de todos os países do mundo): é o que se chama sistema de bancos-sombra, o shadow banking |13|. Quando as operações fora do balanço provocam perdas avultadas, isso afeta, mais cedo ou mais tarde, a saúde dos bancos que levaram a cabo essas operações. São, sobretudo, os grandes bancos que dominam essa atividade sombra. A ameaça de falência leva os Estados a irem em seu socorro, procedendo a recapitalizações. Apesar de os balanços oficiais dos bancos registarem uma diminuição de volume, desde o início da crise em 2007-2008, o volume das operações fora de balanço, o shadow banking, não seguiu a mesma tendência. Depois de ter caído entre 2008 e 2010, voltou em 2011 e 2012 ao nível de 2006-2007, o que é um sintoma claro da perigosidade da situação das finanças privadas mundiais. De repente, o raio de ação nacional e internacional das instituições públicas, que têm a obrigação, para usar o vocabulário deles, de levar a finança a assumir um comportamento mais responsável, é muito limitado. Os reguladores não disponibilizam os meios necessários para que se conheça a actividade real dos bancos que eles têm o dever de controlar.
O Conselho de Estabilidade Financeira (CEF), o órgão instituído pelo G20 e encarregue de supervisionar a estabilidade financeira mundial, divulgou os números de 2011. «A dimensão do shadow banking, escapando a todo tipo de regulação, é de 67 biliões de dólares, de acordo com o relatório que estuda 25 países (90% dos ativos financeiros mundiais). São mais 5-6 biliões do que em 2010. Esse sector “paralelo” equivale, por si só, a metade do volume dos ativos totais dos bancos. Tomando por referência o Produto Interno Bruto dos países, a banca sombra prospera em Hong Kong (520%), Holanda (490%), Reino Unido (370%), Singapura (260%) e Suíça (210%). Mas, em termos absolutos, os Estados Unidos continuam em primeiro lugar com um sector paralelo de 23 biliões de ativos em 2011, seguido da zona euro (22 biliões) e do Reino Unido (9 biliões).» |14|
Uma grande parte das transações financeiras escapa totalmente ao controlo oficial. Como foi referido anteriormente, a dimensão da actividade dos bancos sombra representa metade do volume dos ativos totais dos bancos! É preciso também avaliar o mercado fora de bolsa (OTC*) – isto é, o mercado que não é controlado pelas autoridades reguladoras dos mercados – os produtos financeiros derivados. O volume de produtos derivados cresceu de forma exponencial entre os anos noventa e os anos 2007-2008. Tendo diminuído ligeiramente no início da crise, o valor nocional dos contratos de derivativos no mercado fora de bolsa atingiu, em 2011, a soma astronómica de 650 biliões de dólares (650 000 000 000 000 $), cerca de 10 vezes o PIB mundial. O volume do segundo semestre de 2007 foi ultrapassado e o do primeiro semestre de 2008 está em vias... os swaps de taxas de juros representam 74% do total, os derivados sobre os mercados de divisas representam 8%, os Credit default swaps (CDS) 5%, os derivados sobre os mercados de ações de 1%, o resto reparte-se por múltiplos produtos.
Após 2008 os resgates bancários não geraram comportamentos mais responsáveis
A crise financeira de 2007 viu os bancos, ainda que culpados por má conduta e por assumirem posições arriscadas e imprudentes, receberem injeções maciças de fundos por intermédio de vários e caros planos de resgate. Num estudo bem documentado |15|, dois investigadores tentaram verificar «se as operações públicas de resgate foram seguidas de uma maior redução do risco na concessão de novos empréstimos pelos bancos resgatados, comparativamente aos bancos que não foram resgatados». Com esse objectivo, os autores analisaram os balanços e os empréstimos sindicalizados (trata-se de créditos concedidos a uma empresa por vários bancos) relativos a 87 grandes bancos comerciais internacionais. Os autores verificaram que «os bancos ajudados continuaram a conceder empréstimos sindicalizados mantendo o risco», adiantando que «os empréstimos sindicalizados dos bancos que receberam ajuda eram, depois do resgate, mais arriscados do que antes da crise, comparando com as instituições que não receberam ajuda». Em vez de serem um remédio e uma proteção eficaz contra os caprichos dos bancos, os planos de resgate dos Estados tornaram-se, pelo contrário, muitos deles, um forte incentivo à continuação e intensificação das práticas pecaminosas. Na verdade, «a perspectiva de um apoio por parte do Estado pode constituir um álibi moral e pode levar os bancos a aumentarem o risco». |16|
Em suma, a grave crise das dívidas privadas, provocada pelo comportamento irresponsável dos grandes bancos, levou os dirigentes norte-americanos e europeus a irem em seu socorro, utilizando fundos públicos. A sirene lancinante da crise das dívidas soberanas pôde, então, ser acionada para impor sacrifícios brutais aos povos. A desregulação financeira dos anos noventa foi terreno fértil para esta crise com consequências sociais dramáticas. Enquanto não regularem a finança internacional, os povos continuarão subjugados. A luta deve ser intensificada o mais depressa possível.
Tradução Maria da Liberdade. Publicado na página do CADTM
O autor agradece a Patrick Saurin, Daniel Munevar, Damien Millet e Virginie de Romanet pela ajuda que deram na elaboração do artigo.
Notas
|1| A dívida soberana é a dívida de um Estado e dos organismos públicos que lhe estão associados.
|2| Em geral o termo «ativo» significa um bem que possui um valor realizável ou que pode gerar rendimentos. Por outro lado, entende-se por «passivo» a parte do balanço que é composta pelos recursos que uma empresa possui (capitais próprios gerados pelos associados, provisões para riscos e encargos, dívidas).Ver:http://www.banque-info.com/lexique-....
|3| Muitos bancos dependem de financiamento a curto prazo, porque têm grande dificuldade em emprestar ao sector privado a custos sustentáveis (ou seja, o mais baixo possível), em especial sob a forma de emissão de títulos de dívida. Como veremos a seguir, a decisão do BCE de emprestar um pouco mais de um bilião de euros a uma taxa de 1%, por um prazo de três anos, a mais de 800 bancos europeus funcionou como tábua de salvação para muitos deles. Na sequência, devido a esses empréstimos do BCE, os bancos mais sólidos tiveram de novo a oportunidade de emitir títulos de dívida para se financiarem. Isto não teria sido possível, caso o BCE não tivesse assumido o papel de credor de último recurso durante um período de três anos.
|4| Sobre o episódio de outubro de 2011, ver Eric Toussaint, «Krach de Dexia : un effet domino en route dans l’UE ?», 4 de outubro de 2011
|5| Sobre o episódio de outubro de 2012, que levou a um novo resgate sob a forma de recapitalização, ver Eric Toussaint, «Fallait-il à nouveau injecter de l’argent dans Dexia ?», Le Soir, 2 de novembro de 2012; ver também: CADTM, «Pour sortir du piège des recapitalisations à répétition, le CADTM demande l’annulation des garanties de l’Etat belge aux créanciers du groupe Dexia», 31 de outubro de 2012; CADTM, «Pourquoi le CADTM introduit avec ATTAC un recours en annulation de l’arrêté royal octroyant une garantie de 54 milliards d’euros (avec en sus les intérêts et accessoires) à Dexia SA et Dexia Crédit Local SA», 22 de dezembro de 2011
|6| Pierre-HenriThomas, Bernard Demonty, Le Soir, edição de 31 de outubro de 2012, p. 19, http://archives.lesoir.be/dexia-ser...
|7| As dívidas das famílias incluem as dívidas que os estudantes americanos contraíram para pagar os seus estudos. As dívidas dos estudantes nos Estados Unidos atingiram o montante colossal de um bilião de dólares, isto é, mais do que o total das dívidas externas públicas da América Latina (460 mil milhões de dólares), de África (263 mil milhões) e do Sul da Ásia (205 mil milhões). Para ver o montante de dívida desses «continentes»: Les Chiffres de la dette 2012, tabela 7, p. 9. Download
|8| Ver: Damien Millet, Daniel Munevar, Eric Toussaint, Les Chiffres de la dette 2012, tabela 30, p. 23. A tabela baseia-se em dados fornecidos pela Federação europeia do sector bancário, http://www.ebf-fbe.eu/index.php?pag.... Ver também Martin Wolf, «Liikanen is at least a step forward for EU banks», Financial Times, edição de 5 de Outubro de 2012, p. 9.
|9| As dívidas dos bancos não devem ser confundidas com os seus ativos. Elas fazem parte do seu «passivo». Ver mais a cima a nota de rodapé sobre «ativo» e «passivo» dos bancos.
|10| Ver Damien Millet, Daniel Munevar, Eric Toussaint, Les Chiffres de la dette 2012, tabela 24, p. 18. Na tabela utiliza-se a base de dados de Morgan Stanley, assim como: http://www.ecb.int/stats/money/aggr... e http://www.bankofgreece.gr/Pages/en...
|11| Carmen M. Reinhart, Kenneth S. Rogoff, Cette fois, c’est différent. Huit siècles de folie financière, Pearson, Paris, 2010. A edição original foi publicada em 2009 pela Princeton University Press.
|12| Xavier Dupret, «Et si nous laissions les banques faire faillite ?», 22 de agosto de 2012, http://www.gresea.be/spip.php?artic...
|13| Ver: Daniel Munevar, «Les risques du système bancaire de l’ombre», 21 avril 2012, Ver também: Tracy Alloway, «Traditional lenders shiver as shadow banking grows», Financial Times, 28 de dezembro de 2011.
|14| Ver : Richard Hiault, « Le monde bancaire « parallèle » pèse 67.000 milliards de dollars », Les Echos, edição de 18 de novembre de 2012, http://www.lesechos.fr/entreprises-... *Nota de tradução: OTC ou Over the Counter em inglês.
|15| Michel Brei e Blaise Gadanecz, “Have bailouts made banks’loan book safer ?”, Bis Quaterly Review, setembro de 2012, pp. 61-72. As citações deste parágrafo são tiradas deste artigo.
|16| Ibid.
|1| A dívida soberana é a dívida de um Estado e dos organismos públicos que lhe estão associados.
|2| Em geral o termo «ativo» significa um bem que possui um valor realizável ou que pode gerar rendimentos. Por outro lado, entende-se por «passivo» a parte do balanço que é composta pelos recursos que uma empresa possui (capitais próprios gerados pelos associados, provisões para riscos e encargos, dívidas).Ver:http://www.banque-info.com/lexique-....
|3| Muitos bancos dependem de financiamento a curto prazo, porque têm grande dificuldade em emprestar ao sector privado a custos sustentáveis (ou seja, o mais baixo possível), em especial sob a forma de emissão de títulos de dívida. Como veremos a seguir, a decisão do BCE de emprestar um pouco mais de um bilião de euros a uma taxa de 1%, por um prazo de três anos, a mais de 800 bancos europeus funcionou como tábua de salvação para muitos deles. Na sequência, devido a esses empréstimos do BCE, os bancos mais sólidos tiveram de novo a oportunidade de emitir títulos de dívida para se financiarem. Isto não teria sido possível, caso o BCE não tivesse assumido o papel de credor de último recurso durante um período de três anos.
|4| Sobre o episódio de outubro de 2011, ver Eric Toussaint, «Krach de Dexia : un effet domino en route dans l’UE ?», 4 de outubro de 2011
|5| Sobre o episódio de outubro de 2012, que levou a um novo resgate sob a forma de recapitalização, ver Eric Toussaint, «Fallait-il à nouveau injecter de l’argent dans Dexia ?», Le Soir, 2 de novembro de 2012; ver também: CADTM, «Pour sortir du piège des recapitalisations à répétition, le CADTM demande l’annulation des garanties de l’Etat belge aux créanciers du groupe Dexia», 31 de outubro de 2012; CADTM, «Pourquoi le CADTM introduit avec ATTAC un recours en annulation de l’arrêté royal octroyant une garantie de 54 milliards d’euros (avec en sus les intérêts et accessoires) à Dexia SA et Dexia Crédit Local SA», 22 de dezembro de 2011
|6| Pierre-HenriThomas, Bernard Demonty, Le Soir, edição de 31 de outubro de 2012, p. 19, http://archives.lesoir.be/dexia-ser...
|7| As dívidas das famílias incluem as dívidas que os estudantes americanos contraíram para pagar os seus estudos. As dívidas dos estudantes nos Estados Unidos atingiram o montante colossal de um bilião de dólares, isto é, mais do que o total das dívidas externas públicas da América Latina (460 mil milhões de dólares), de África (263 mil milhões) e do Sul da Ásia (205 mil milhões). Para ver o montante de dívida desses «continentes»: Les Chiffres de la dette 2012, tabela 7, p. 9. Download
|8| Ver: Damien Millet, Daniel Munevar, Eric Toussaint, Les Chiffres de la dette 2012, tabela 30, p. 23. A tabela baseia-se em dados fornecidos pela Federação europeia do sector bancário, http://www.ebf-fbe.eu/index.php?pag.... Ver também Martin Wolf, «Liikanen is at least a step forward for EU banks», Financial Times, edição de 5 de Outubro de 2012, p. 9.
|9| As dívidas dos bancos não devem ser confundidas com os seus ativos. Elas fazem parte do seu «passivo». Ver mais a cima a nota de rodapé sobre «ativo» e «passivo» dos bancos.
|10| Ver Damien Millet, Daniel Munevar, Eric Toussaint, Les Chiffres de la dette 2012, tabela 24, p. 18. Na tabela utiliza-se a base de dados de Morgan Stanley, assim como: http://www.ecb.int/stats/money/aggr... e http://www.bankofgreece.gr/Pages/en...
|11| Carmen M. Reinhart, Kenneth S. Rogoff, Cette fois, c’est différent. Huit siècles de folie financière, Pearson, Paris, 2010. A edição original foi publicada em 2009 pela Princeton University Press.
|12| Xavier Dupret, «Et si nous laissions les banques faire faillite ?», 22 de agosto de 2012, http://www.gresea.be/spip.php?artic...
|13| Ver: Daniel Munevar, «Les risques du système bancaire de l’ombre», 21 avril 2012, Ver também: Tracy Alloway, «Traditional lenders shiver as shadow banking grows», Financial Times, 28 de dezembro de 2011.
|14| Ver : Richard Hiault, « Le monde bancaire « parallèle » pèse 67.000 milliards de dollars », Les Echos, edição de 18 de novembre de 2012, http://www.lesechos.fr/entreprises-... *Nota de tradução: OTC ou Over the Counter em inglês.
|15| Michel Brei e Blaise Gadanecz, “Have bailouts made banks’loan book safer ?”, Bis Quaterly Review, setembro de 2012, pp. 61-72. As citações deste parágrafo são tiradas deste artigo.
|16| Ibid.
Eric Toussaint, professor na Universidade de Liège, é
presidente do CADTM Bélgica (Comité para a Anulação da Dívida do
Terceiro Mundo) e membro do conselho científico da ATTAC França.
Escreveu com Damien Millet, AAA. Audit Annulation Autre politique, Seuil, Paris, 2012.
Sobre o/a autor/a
Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo
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analise economica,
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Ditaduras,
imperialismo,
inimigos da coisa pública
quarta-feira, 5 de dezembro de 2012
Lei Geral da Copa prevê paralisação das aulas e gaúchos pedem mudança
Rachel Duarte no SUL21
Todas as instituições de ensino público e privado (Infantil, Fundamental, Médio e Superior) fecharão as portas durante a Copa do Mundo, de 12 de junho a 13 de julho de 2014. Pelo menos é o que determina o artigo 64 da Lei Geral da Copa, que está sendo questionado pelos representantes da educação gaúcha. Governo, Parlamento e entidades de ensino redigirão um documento na próxima sexta-feira (7), pedindo a alteração do texto junto ao Congresso Nacional e Casa Civil da União. O tema é desconhecido da maioria da população e as autoridades gaúchas alertam para o impacto social da paralisação compulsória.
De acordo com a secretária adjunta de Educação, Maria Eulália Nascimento, não houve uma discussão com o setor da Educação para propor este artigo durante a formulação da lei, o que poderia ter evitado o que considera um equívoco. “Isso é contra a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) que diz que os estados e municípios regem os sistemas de ensino e seus calendários. Cada lugar tem seu próprio calendário. Em Porto Alegre ocorrerão apenas cincos jogos, por que os alunos de Livramento, por exemplo, terão que parar um mês inteiro?”, questiona.
O artigo 64 diz que “em 2014, os sistemas de ensino deverão ajustar os calendários escolares de forma que as férias escolares decorrentes do encerramento das atividades letivas do primeiro semestre do ano, nos estabelecimentos da rede pública e privada, abranjam todo o período de realização da Copa do Mundo”. Na opinião do vice-presidente do Conselho Estadual de Educação, Raul Gomes de Oliveira Filho, o ajuste do termo ‘deverão’ para ‘poderão’ retiraria a obrigatoriedade e poderia resolver o problema.
De acordo com Gomes, o artigo 56 da Lei Geral da Copa já determina que a União poderá decretar feriado ou ponto facultativo nos dias de jogos, assim como os estados e municípios sede do mundial. “Há uma contrariedade na lei com estes dois artigos. O erro está na obrigatoriedade. Todas as instituições pararem em dias de jogos é um impacto muito grave. As famílias não terão creches ou escolas infantis funcionando”, alerta.
Para a secretária estadual Eulália Nascimento, outro aspecto negativo na paralisação total das atividades na rede de ensino será a vulnerabilidade das crianças e adolescentes. “Muitas crianças são exploradas para trabalho de comércio ambulante ou outros similares em grandes eventos. Sem a escola, eles ficam ainda mais suscetíveis a isto”, afirma. Além de ser um desperdício pedagógico. “O fato de o Brasil sediar uma Copa, receber outras culturas, é extremamente positivo para ser abordado em sala de aula”, diz.
Educadores e autoridades gaúchas convergem pela não paralisação total das aulas durante a Copa
O artigo 64 da Lei Geral da Copa gerou contrariedade na educação gaúcha a ponto de ser levado para uma audiência pública na Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia, da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. O debate ocorreu nesta terça-feira (4), a pedido da União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe).
Para a representante da Undime, Liege Barbosa, a audiência foi fundamental para divulgar a existência do artigo e mobilizar a sociedade civil. “As pessoas não se dão conta do alcance destas decisões. Este será o momento que a economia estará mais acelerada no país, não podemos fechar as portas das creches. Na Alemanha teve Copa sem precisar fazer férias para a rede de ensino”, compara.
Na audiência, entidades, governo estadual e Parlamento convergiram sobre necessidade de se manter as aulas. “Queremos alertar o Congresso sobre este impacto na comunidade escolar, famílias e professores. Ninguém é contrário à Copa. Queremos que o Brasil acolha muito bem este evento, mas nossa preocupação é com a obrigatoriedade das férias gerais por 30 dias”, ressalta o conselheiro Raul Gomes.
Após redigir o termo pedindo a alteração do artigo 64, o grupo de educadores gaúchos irá agendar a audiência no Congresso Nacional e Palácio do Planalto. Tradicionalmente no Rio Grande do Sul o calendário letivo prevê férias de apenas duas semanas para os alunos e uma semana para os professores da rede pública.
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
Os 12 Mandamentos do Esquerdista Moderno
I – Não ter o dinheiro como norte
II – Respeitar o próximo como a ti mesmo (não precisa nem amar, respeitar tá de bom tamanho)
III – Não roubar o povo
IV – Ser pacifista (violência, só contra a tirania)
V – Amar a natureza
VI – Ser contra o latifúndio, os transgênicos e o uso abusivo de agrotóxicos
VII – Não perder a capacidade de se indignar
VIII – Acreditar e lutar por direitos iguais para todos, independentemente de raça, credo, origem, condição social ou orientação sexual
IX – Ser consciente da dívida histórica com índios e negros e apoiar políticas de ação afirmativa
X – Ser um defensor intransigente da liberdade: de pensamento, de expressão, de culto, de ir e vir, cognitiva
XI – Ser a favor do estado laico
XII – Jamais se esquecer (ou se envergonhar) do que sonhava aos 20 anos de idade
Fonte: Por SOCIALISTA MORENA
segunda-feira, 3 de dezembro de 2012
MAHMUD DARWICH - POETA E RESISTENTE PALESTINO
O poeta Mahmud Darwich é uma das figuras mais notáveis da Palestina
contemporânea. Personagem singular, Darwich conciliou a actividade
intelectual (além de poeta foi prosador, ensaísta, jornalista) com a
actividade de resistente contra a ocupação israelita, tendo-se tornado
uma referência para o Médio Oriente. A sua poesia ultrapassou as
fronteiras da geografia e tornou-se conhecida em todo o mundo árabe, que
lhe conhece os versos e os recita de cor. A sua voz ergueu-se sempre,
tanto através da escrita como na arena política, em defesa de uma
Palestina independente, num combate em que lutou até aos seus últimos
dias. Darwich, foi, de facto, durante a segunda metade do século XX, a
voz e a consciência do Povo Palestino e o seu nome ficará indelevelmente
registado na história da literatura e na história política, da
Palestina e do Mundo.
Mahmud
Darwich nasceu em Al-Birwa, uma aldeia da Galileia perto de São João
d'Acre, então território sob mandato britânico, em 13 de Março de 1941.
Após a criação do Estado de Israel, em 1948, a sua aldeia foi invadida e
a família fugiu para o Líbano, onde permaneceu um ano. Quando
regressaram a Israel, descobriram que a aldeia fora completamente
arrasada e substituída por um colonato judaico. Instalaram-se, então em
Deir Al-Assad, onde Mahmud frequentou a escola primária, tendo partido
mais tarde para Haifa.
Publica o seu primeiro livro de poesia aos 19 anos: Asâfîr bilâ ajniha
("Pássaros sem asas"). Em 1964 começa a ser reconhecido a nível
nacional, e mesmo internacional, como uma voz da resistência palestina
com o livro Awrâq al-zaytûn ("Folhas de oliveira"), que inclui o
célebre poema "Bilhete de identidade". Continua a escrever poemas e
artigos em jornais e revistas, é preso várias vezes pelos seus escritos e
actividades políticas e, em 1970, parte para a União Soviética, onde
frequenta a Universidade de Moscovo. Em 1971, trabalha no jornal Al-Ahram, no Cairo e, em 1973, dirige, em Beirute, a revista Shu'un Filistiniyya (Assuntos Palestinos).
Ainda em 1973, Darwich adere à Organização de Libertação da Palestina
(OLP), sendo, por isso, proibido de voltar a entrar em Israel. Em 1982
abandona Beirute, em consequência do bombardeamento israelita e exila-se
no Cairo, depois em Tunis e por fim em Paris. Em 1987 é eleito para o
comité executivo da OLP mas, na sequência dos Acordos de Oslo (1993), e
como forma de protesto contra a atitude da OLP, que considerou demasiado
conciliatória nas negociações, abandona a Organização. Finalmente, em
1996, Darwich é autorizado por Israel a instalar-se em Ramallah
(Cisjordânia), onde se encontra o governo de Yasser Arafat. Com o cerco e
ataque das tropas sionistas de Ariel Sharon a Ramallah, em 2002,
muda-se para Amman, na Jordânia, embora volte algumas vezes aos
Territórios Ocupados e a Israel. Em 2007, assiste, em Haifa, a uma
sessão em sua honra organizada no Monte Carmelo pelo partido israelita Hadash (Frente Democrática para a Paz e a Igualdade) e pela revista Masharaf;
aí discursa e lê poesia para milhares de pessoas. Doente cardíaco há
longos anos, Darwich, realiza a sua última intervenção pública em 1 de
Julho de 2008, em Ramallah, lendo poemas para uma vastíssima audiência,
numa sessão que foi considerada a sua despedida dos palestinos.
Mahmud Darwich morreu em 9 de Agosto de 2008, com 67 anos, num
hospital de Houston, nos Estados Unidos, na sequência de complicações
decorrentes de uma delicada intervenção cirúrgica ao coração. Foi
sepultado em Ramallah, junto ao Palácio da Cultura.
A obra de Darwich, composta por mais de 30 livros de poesia e de
prosa, encontra-se traduzida em cerca de 40 línguas, e foi interpretada
por diversos cantores, como o libanês Marcel Khalifa, que musicou e
cantou vários dos seus poemas, entre os quais o famoso "À minha mãe". No
cinema, devem assinalar-se dois documentários: "Mahmoud Darwich, et la
terre comme la langue", realizado em 1997 para a televisão francesa por
Simone Bitton e Elias Sanbar e "Écrivains des frontières", realizado em
2004 por Samir Abdallah e José Reynes. Neste momento, está a ser
produzido um filme sobre Darwich, da autoria de Nasri Hajjaj, em que o
realizador recolhe depoimentos de diversas figuras da vida cultural
internacional que privaram com o poeta, e que será estreado no primeiro
aniversário da sua morte.
A terminar, duas afirmações de Mahmud Darwich:
- "Triunfámos sobre o plano para nos expulsarem da História"
- "Um povo sem poesia é um povo vencido"
[Júlio de Magalhães]
TRÊS POEMAS DE MAHMUD DARWICH
BILHETE DE IDENTIDADE
Toma nota!
Sou árabe
O número do meu bilhete de identidade: cinquenta mil
Número de filhos: oito
E o nono... chegará depois do verão!
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Trabalho numa pedreira com os meus companheiros de fadiga
E tenho oito filhos
O seu pedaço de pão
As suas roupas, os seus cadernos
Arranco-os dos rochedos...
E não venho mendigar à tua porta
Nem me encolho no átrio do teu palácio.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Sou o meu nome próprio - sem apelido
Infinitamente paciente num país onde todos
Vivem sobre as brasas da raiva.
As minhas raízes...
Foram lançadas antes do nascimento do tempo
Antes da efusão do que é duradouro
Antes do cipreste e da oliveira
Antes da eclosão da erva
O meu pai... é de uma família de lavradores
Nada tem a ver com as pessoas notáveis
O meu avô era camponês - um ser
Sem valor - nem ascendência.
A minha casa, uma cabana de guarda
Feita de troncos e ramos
Eis o que eu sou - Agrada-te?
Sou o meu nome próprio - sem apelido!
Toma nota!
Sou árabe
Os meus cabelos... da cor do carvão
Os meus olhos... da cor do café
Sinais particulares:
Na cabeça uma kufia com o cordão bem apertado
E a palma da minha mão é dura como uma pedra
... esfola quem a aperta
A minha morada:
Sou de uma aldeia isolada...
Onde as ruas já não têm nomes
E todos os homens... trabalham no campo e na pedreira.
Será que ficas irritado?
Toma nota!
Sou árabe
Tu saqueaste as vinhas dos meus pais
E a terra que eu cultivava
Eu e os meus filhos
Levaste-nos tudo excepto
Estas rochas
Para a sobrevivência dos meus netos
Mas o vosso governo vai também apoderar-se delas
... ao que dizem!
... Então
Toma nota!
Ao alto da primeira página
Eu não odeio os homens
E não ataco ninguém mas
Se tiver fome
Comerei a carne de quem violou os meus direitos
Cuidado! Cuidado
Com a minha fome e com a minha raiva!
(1964)
[Tradução de Júlio de Magalhães]
À MINHA MÃE
Tenho saudades do pão da minha mãe,
Do café da minha mãe,
Do carinho da minha mãe...
Estou a crescer,
De dia para dia,
E amo a vida, porque
Se morresse,
Teria vergonha das lágrimas da minha mãe!
Se um dia voltar, faz de mim
Uma sombrinha para as tuas pálpebras.
Cobre os meus ossos com a erva
Baptizada sob os teus pés inocentes.
Ata-me
Com uma mecha dos teus cabelos,
Um fio caído da orla do teu vestido...
E serei, talvez, um deus,
Talvez um deus,
Se tocar o teu coração!
Se voltar, esconde-me,
Lenha, na tua lareira.
E pendura-me,
Corda da roupa, no terraço da tua casa.
Falta-me o ânimo
Sem a tua oração diária.
Envelheci. Faz renascer as estrelas da infância
E partilharei com os filhos das aves,
O caminho do regresso...
Ao ninho onde me esperas!
(1966)
[Tradução de Júlio de Magalhães]
ESTRANGEIRO NUMA CIDADE DISTANTE
Quando eu era pequeno
E belo,
A rosa era a minha morada,
E as fontes eram os meus mares.
A rosa tornou-se ferida
E as fontes, sede.
- Mudaste muito?
- Não mudei muito.
Quando voltarmos à nossa casa
Como o vento,
Olha para a minha testa.
Verás que as rosas são agora palmeiras,
E as fontes, suor,
E voltarás a encontrar-me, como eu era,
Pequeno
E belo...
(1969)
[Tradução de Júlio de Magalhães]
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O Estado da Palestina
Politicamente a vitória
da Palestina é incontestável, com uma maioria absoluta dos votos (138
favoráveis, 9 contrários e 41 abstenções) que ajudam a apagar (ou ao
menos diminuir a lembrança) a recusa do Conselho de Segurança, em 2011,
de aprovar a entrada da Palestina na ONU
O
que se pode esperar agora do processo de paz entre Israel e Palestina
após esta ter sido finalmente reconhecida como Estado não-membro
(observador) da ONU, um status semelhante ao do Vaticano?
Politicamente
a vitória da Palestina é incontestável, com uma maioria absoluta dos
votos (138 favoráveis, 9 contrários e 41 abstenções) que ajudam a apagar
(ou ao menos diminuir a lembrança) a recusa do Conselho de Segurança,
em 2011, de aprovar a entrada da Palestina na ONU.
Aumenta a pressão internacional e, sem dúvida, ajuda a reclamação palestina sobre os territórios ocupados.
Se,
através de inúmeras resoluções, a ONU já reconheceu o direito dos
palestinos aos territórios que lhe forma usurpados ou estão sendo (como
Jerusalém Orienta, por exemplo), agora a coisa muda de figura. A ONU não
reconhece posse ou soberania sobre territórios conquistados por guerra,
invasão ou ocupação, mas o status indefinido da Palestina dificultava a
aplicação desta norma. Agora, não há mais desculpas e a ilegalidade das
ocupações é ainda mais flagrante.
Torna-se mais
difícil para Israel sustentar a ocupação anterior e futuras anexações do
território de um Estado, e não apenas de uma entidade política
indefinida. Agora Israel não ultrapassa barreiras criadas por si, mas
ultrapassa e desrespeita fronteiras definidas pela ONU e por um Estado
soberano.
A Palestina pode, ainda, recorrer ao
Tribunal Penal Internacional e outros fóruns internacionais e buscar uma
condenação de Israel contra seus inúmeros e repetidos crimes de guerra,
ainda que seus efeitos possam ser meramente cosméticos, em uma guerra
de propagandas isto conta bastante.
Outra vitória
palestina foi a de impor, ao mesmo tempo, duras derrotas a Israel e aos
EUA, do prêmio Nobel da paz Barack Obama. Exceto por Canadá e República
Tcheca, apenas os costumeiros protetorados estadunidenses ficaram ao
lado de Israel, demonstrando que, ao menos neste assunto, a influência
dos EUA é limitada ou que, talvez, tenha crescido a insatisfação pela
falta de soluções propostas pelos aliados de Israel.
A
abstenção do Reino Unido não foi uma surpresa, dada a proximidade deste
país com os EUA, nem o voto do Paraguai governado por golpista. Por
outro lado, a Espanha e seu voto favorável - pese a posição contrária
anterior de Mariano Rajoy - surpreende devido aos "problemas" domésticos
que enfrenta em termos de autodeterminação dos povos, um instrumento
muitas vezes esquecido ou sufocado à base da força por diversos Estados.
Foi
uma pequena vitória palestina na ONU, de efeitos práticos limitados,
especialmente no que concerne a recuperação de suas terras, o Direito de
Retorno e o bloqueio criminoso a Gaza.
Ainda assim, foi uma vitória
Mas
nem tudo é motivo para festa. As eleições em Israel se aproximam (menos
de dois meses) e as autoridades do país não escondem sua insatisfação
com a decisão da ONU - a qual consideram "unilateral" - e o resultado
das eleições pode ser diretamente influenciado, ampliando o poderio e os
discursos de extrema-direita e os anseios por extermínio.
A
minoria palestina com cidadania israelense pode vir a sofrer os
primeiros golpes e o bloqueio pode se tornar ainda mais criminoso. Gaza,
que já é o maior campo de concentração do mundo, tende a ver a situação
piorar caso o discurso de extrema-direita se fortaleça ainda mais e
prevaleça.
Mas o pior dos efeitos da decisão é político
Fecha-se
a porta para outras opções para a resolução do conflito. Acaba-se a via
do Estado único, laico, com poder compartilhado por uma via em que
teremos um Estado nuclear, governado por uma extrema-direita disposta a
todos os crimes de guerra para assegurar seu poder e movida pelo medo e
ódio, e um Estado palestino fraco, ocupado, sem exército ou
possibilidade de formar uma força digna desse nome e sem sequer fontes
de renda própria, dividido em dois e com imensas fraturas internas.
Esta
situação se perpetua já a longos anos e não dá mostras de se alterar. O
Hamas acabou por ceder e apoiar o reconhecimento na ONU, mas não por
vontade própria e sim pela situação de isolamento e enfraquecimento
interno (seu governo é mal avaliado em Gaza e um de seus maiores
parceiros, o sírio Assad, ameaça cair). Aceitar uma solução de dois
Estados equivale a reconhecer Israel enquanto Estado, algo que o Hamas
se recusa desde sua fundação.
O grande vencedor,
porém, é Mahmoud Abbas, que detém hoje o controle da ANP (Autoridade
Nacional Palestina) e sua facção, a Fatah, que vinha sofrendo diversos
golpes de grupos de esquerda, membros da OLP (Organização pela
Libertação da Palestina), em eleições locais e junto à população.
Os
EUA saem como grandes derrotados ao verem seu lobby pró-Israel não
resultar em convencimento junto aos demais Estados-membro da ONU e
também pelo esgarçamento de sua relação com Israel, que já vinha sendo
objeto de debates e desconfiança.
Enfim, entre
vitoriosos e derrotados, os Palestinos conseguiram sair de cabeça
erguida e derrotaram Israel e os EUA de forma incontestável. A
retaliação pode ser imensa e dolorosa, mas para muitos o esforço foi
válido. Resta agora aguardar os desdobramentos e torcer para que as
próximas eleições israelenses sejam um marco de mudança, ainda que isto
seja improvável. Na Palestina, a esperança é a de um entendimento entre
Hamas e Fatah e a possibilidade de um acordo entre as facções para
negociarem unidas o fim do bloqueio à Gaza e as futuras campanhas de
resistência e ações no âmbito internacional possíveis com a conquista de
um novo status.
Raphael Tsavkko Garcia é
bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em comunicação pela Faculdade
Cásper Líbero.
Blog do Tsavkko - The Angry Brazilian
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Bolívia e Equador reforçam o Mercosul
Por Altamiro Borges
Dilma Rousseff, Cristina Kirchner, José Pepe Mujica e Hugo
Chávez participam nesta sexta-feira (7) da Cúpula dos Chefes de Estado do Mercosul,
em Brasília. Segundo a Agência Brasil, “o encontro discutirá alternativas para
incentivar a participação dos empresários no Mercado Comum do Sul e o ingresso
de mais dois países no bloco econômico sul-americano: Equador e Bolívia”. O
Paraguai, devido ao recente golpe, segue excluído da Cúpula e as
tratativas para a adesão dos dois novos parceiros estão avançadas.
Para o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antonio
Patriota, o ingresso da Bolívia e Equador dará mais força ao bloco regional. “É
uma base maior. Um projeto maior de integração sul-americana”. Com estas adesões,
será possível articular as áreas amazônicas, andina e caribenha da América do
Sul e aumentar os benefícios gerados pelo bloco. “Os defensores da proposta
argumentam que o Mercosul assumirá papel relevante em decorrência dos temas
relativos à segurança energética e alimentar”, relata a Agência Brasil.
A área de atuação do bloco, com a recente inclusão da
Venezuela, reúne 270 milhões de habitantes, o equivalente a 70% da população
sul-americana. O Produto Interno Bruto alcança US$ 3,3 trilhões, aproximadamente 83,2% do PIB de toda a
América Latina, em um território de 12,7 milhões de quilômetros quadrados (72%
do continente). A adesão da Bolívia e do Equador aumentará ainda mais o papel
geopolítico do Mercosul, num contraponto ao hegemonismo dos EUA e da Europa.
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domingo, 2 de dezembro de 2012
Direito de retorno a terras é inegociável, dizem palestinos em Porto Alegre
Samir Oliveira no SUL21
Um dos últimos painéis do Fórum Social Mundial Palestina Livre, realizado na manhã deste sábado (1) em Porto Alegre, discutiu o direito que os palestinos têm de retornar às suas terras originais – que lhes foram tolhidas com a criação de Israel e seu consequente projeto expansionista.
Os ativistas sustentam que Israel não vêm assegurando o direito de retorno dos palestinos, que já foi reconhecido pela ONU, em sua resolução 194, de 1948. O coordenador do Comitê Palestino em Defesa do Direito de Retorno, Omar Assaf, lamentou que essa luta ainda seja contemporânea.
“Desafio alguém a dizer que, nos últimos 200 anos, qualquer outro povo no mundo tenha sido transferido de território graças à ocupação de outras pessoas. A comunidade internacional ajudou a promover esse crime contra os palestinos, expulsando-nos de nossas terras”, criticou.
Dentre os ativistas palestinos, o direito de retornar às suas terras originais é tão essencial quanto o da constituição de um Estado soberano. “O direito de retorno é a base fundamental dos direitos tradicionais palestinos. É um direito individual, coletivo, histórico, indivisível e irrenunciável. E as negociações com Israel até hoje têm significado um retrocesso dessa pauta”, lamentou Omar Assaf.
Integrante do escritório político da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), Omar Shehadeh, disse que a criação de Israel teve, desde o início, um papel estratégico para as grandes potências mundiais. “Não foi simplesmente a construção de um Estado, foi um projeto estratégico e expansionista. Israel é o protetor dos interesses imperialistas e capitalistas no Oriente Médio. Passa ao mundo a imagem de ser a única democracia da região, um modelo a ser seguido”, criticou.
Integrante de um dos partidos mais à esquerda dentro da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), Omar Shehadeh entende que Israel necessita da opressão aos palestinos para sobreviver. “O sionismo se estabelece sobre a negação de direitos ao povo palestino. É um Estado racista e criminoso que não respeita o direito internacional”, qualificou.
Para o ativista, é preciso rever os acordos de paz selados em Oslo, sob a benção do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton, e “estabelecer uma nova estratégia de resistência, sob a luz do direito internacional”.
Husam Zomlot, uma liderança mais jovem do Al-Fatah – partido que governa a Autoridade Nacional Palestina (ANP) com o presidente Mahmoud Abbas -, disse que as negociações que ocorriam entre a ANP e Israel sempre impuseram derrotas ao povo palestino. “Não eram processos de paz, eram processos de desarticulação da nossa luta por um Estado soberano”, observou.
Ele defendeu o direito de os palestinos resistirem militarmente às ocupações israelenses em seus territórios. “Eu nasci em um campo de refugiados e não vou negociar com ninguém o direito legítimo que tenho de retornar a minha terra. Israel saiu do Egito e do Líbano porque foi derrotado nessas regiões. O Estado de Israel só entende uma linguagem: a da resistência. Temos o direito de lutarmos com todos os recursos possíveis, inclusive com as armas”, conclamou.
Jornalista espanhola relata cobertura de áreas conflagradas na Cisjordândia
A jornalista espanhola Teresa Aranguren esteve presente no Fórum Social Mundial Palestina Livre e falou sobre sua experiência na cobertura da região. Ela participou da conferência “Direito de retorno e autodeterminação”, na manhã deste sábado (1), na Usina do Gasômetro.
Teresa foi uma das primeiras jornalistas a ingressar na cidade de Jenin, na Cisjordânia, após ela ter sido invadida pelo exército de Israel em 2002. “Mais de 100 edifícios foram destruídos. Eu ouvi um soldado isralenese comemorar, dizendo que haviam construído um imenso campo de futebol”, contou.
Ela recordou que as pessoas ficaram por três semanas sujeitas ao toque de recolher imposto pelos israelenses. “Quem saísse de casa saía para a morte. Após três semanas, homens e mulheres olhavam apavorados para a destruição dos seus bairros”, relatou.
A lembrança que mais marcou a jornalista foi a de uma mulher que estava sentada sob os escombros de sua casa, cercada pelos filhos pequenos. “Era um dia muito quente e ela voluntariamente me ofereceu uma garrafa de água. Não foi um gesto apenas de solidariedade e de hospitalidade, como é bastante comum na Palestina e no mundo árabe. Foi um gesto de resistência. Ao me oferecer água, ela estava reafirmando sua identidade e seu poder sobre aquele território. Era como se ela dissesse: ‘Eu sou a anfitriã deste lugar, sou uma mulher árabe e não deixarei de tratar bem quem vier à minha casa’”, recordou Teresa, emocionada.
Para Teresa, a situação da Palestina não irá se modificar enquanto as grandes potências continuarem apoiando Israel. Mas ela entende que, enquanto a conjuntura política mundial não se altera drasticamente, a maior arma de resistência é a memória. “A própria existência de refugiados é uma afronta para Israel, pois comprova os crimes de origem. É preciso recordar disso sempre e não deixar que a versão transmitida por Israel se torne uma verdade absoluta”, defendeu.
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sexta-feira, 30 de novembro de 2012
Gênero e resistência na Palestina: a luta das mulheres contra a ocupação israelense
Samir Oliveira no SUL21
Tema bastante discutido no Fórum Social Mundial Palestina Livre, o
papel das mulheres na luta pela construção de um Estado Palestino
soberano foi retomado em um painel no início da tarde desta sexta-feira
(30). Na quinta-feira (29), outra conferência havia exposto a situação das mães que lutam pela independência palestina.
Desta vez, o foco foi a discussão em torno da resistência
protagonizada pelas mulheres – inclusive com fortes auto-críticas a essa
atuação. O público questionou, por exemplo, até que ponto a luta de
mulheres por libertação não acaba dominando a pauta de movimentos
sociais e camuflando ações em torno de mudanças mais profundas nos
governos e sociedades da região.
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Uma das presenças mais ilustres no painel foi a de Leila Khaled, que
participou via teleconferência por Skype, já que não pôde vir a Porto
Alegre. Leila é uma das lideranças da Frente Popular pela Libertação da
Palestina (FPLP) – considerada uma organização terrorista pelos Estados
Unidos e por Israel.
Em 1969, Leila e um outro colega da FPLP sequestraram o voo 840 da
Trans World Airlines, que viajava de Roma em direção a Tel Aviv. O
objetivo era tomar como refém o embaixador israelense nos Estados
Unidos, Yitzak Rabin, que acabou não embarcando naquele avião. A ação
terminou na Síria, onde a aeronave foi forçada a pousar, e não houve
mortos ou feridos.
Atualmente, a FPLP integra a Organização Palestina pela Libertação
(OLP), da qual faz parte do Fatah, partido que comanda a Cisjordânia e a
Autoridade Nacional Palestina, com o presidente Mahmoud Abbas. Em sua
fala no painel do Fórum Social Mundial Palestina Livre, Leila explicou
que não há divisão de tarefas ou responsabilidades entre homens e
mulheres na luta pela independência palestina.
“A partir de 1967, muitas mulheres começaram a se engajar nessa luta,
fazendo exatamente as mesmas coisas que os homens. No movimento pela
libertação da Palestina, não há divisão de tarefas por gênero”, disse.
Ela acredita que, atualmente, é preciso que as mulheres ocupem cada
vez mais os espaços de comando da resistência. E defendeu veementemente o
direito de o povo palestino lutar – inclusive militarmente – pela
soberania do seu território.
“Mulheres e homens palestinos não podem se sentir orgulhosos de sua
identidade por qualquer outra via que não seja a resistência. É preciso
resistir de todas as formas à ocupação israelense – inclusive através
das armas, conforme assegura a ONU, quando diz que um povo tem o direito
de se insurgir contra um governo opressor”, esclareceu.
Professora da Universidade Estadual de São Francisco, nos Estados
Unidos, Rabab Abdulhadi é especialista em estudos étnicos e em diásporas
do povo árabe e muçulmano. Ela falou sobre os estereótipos que as
forças contrárias à causa Palestina tentam imprimir nas mulheres que
resistem às ocupações.
“Dizem que a mulher se junta à luta porque sente atração pelas
lideranças masculinas da resistência. Atribuem à mulher militante um
caráter de não-feminilidade, alegando que elas têm pelos pelo corpo e
são todas lésbicas”, explicou. Para a professora,”a revolução palestina
não é uma exclusividade masculina”.
Também esteve presente no painel a ativista norte-americana Angela
Davis. Líder do Partido Comunista dos Estados Unidos nos anos 1960, ela
tinha vínculos muito próximos com os Panteras Negras, apesar de nunca
ter integrado formalmente a organização. Atualmente, Angela é professora
aposentada da Universidade da Califórnia. Em 1969, chegou a ser
demitida da instituição a mando do presidente Ronald Reagan, devido à
sua ligação com os comunistas.
Angela Davis chegou a criticar a organização da marcha de abertura do
fórum. “Eu estive o tempo inteiro atrás de um caminhão de som. De todas
as pessoas que falaram, nenhuma delas era uma mulher palestina. Parece
que algumas coisas ainda não mudaram muito”, observou. A mesma crítica
foi feita por uma refugiada palestina que estava na plateia e disse ter
conseguido, depois de muito esforço, subir no caminhão para se
pronunciar.
A ativista avalia que, atualmente, as mulheres palestinas ocupam um
papel central na mobilização feminista ao redor do mundo. “Quero
agradecer às mulheres palestinas. A luta delas trouxe à tona a
mobilização contra o racismo, o apartheid e o colonialismo”, elogiou.
Provocada a fazer uma avaliação do governo de Barack Obama, a
norte-americana qualificou como “horrendo” o apoio incondicional do país
a Israel e lembrou da resolução da ONU que reconheceu, nesta
quinta-feira (29), a Palestina como um Estado observador não-membro das
Nações Unidas. “Israel ficou totalmente isolado do mundo inteiro e,
ainda assim, os Estados Unidos os apoiaram. Esse voto contrário foi
horrendo. Ainda temos muito trabalho a fazer”, disse.
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