ESCRITO POR FREI BETTO |
Em pleno inverno, a presença do papa Francisco no Brasil, para participar da Jornada Mundial da Juventude, foi uma calorosa primavera. Ele trouxe alegria, esbanjou sorrisos, beijou crianças, apertou as mãos do povo.
Os frutos dessa inesquecível visita podem ser resumidos em 15 pontos:
1. Francisco quer uma Igreja “pra fora”, desenclausurada, missionária, engajada na periferia e servidora dos pobres;
2. Na favela de Varginha, ele delineou seu perfil de Igreja: “advogada da justiça e defensora dos pobres diante das intoleráveis desigualdades sociais e econômicas que clamam ao céu”;
3. Nossa atuação pastoral deve dedicar especial atenção às crianças, aos jovens e aos idosos. Os primeiros, por encarnarem o futuro; os segundos, por guardarem sabedoria;
4. Há que combater a corrupção e, ao mesmo tempo, alentar a esperança em “um mundo mais justo e solidário”;
5. A solidariedade – “quase um palavrão”, disse o papa – deve ser o eixo de nossa pastoral, disposta a “colocar mais água no feijão”;
6. Devemos combater a “cultura do descartável”, que ignora o valor das pessoas e estimula o consumismo e o hedonismo;
7. Precisamos saber “perder tempo” com os pobres, saber escutá-los;
8. A Igreja deve espelhar a simplicidade de Jesus, como Francisco de Assis e o papa Francisco, que dispensou a capa de arminho, os sapatos vermelhos, o anel e a cruz de ouro, os títulos de Sumo Pontífice e Sua Santidade, por preferir ser chamado apenas de papa, bispo de Roma, servo dos servos de Deus;
9. A segurança dos cristãos deve estar na confiança em Deus, e não no excessivo conforto que nos afastam dos pobres e do povo;
10. É preciso recuperar a confiança dos jovens nas instituições políticas, alentá-los na esperança; e “reabilitar a política, uma das formas mais altas de caridade”;
11. A política deve “evitar o elitismo e erradicar a pobreza”, condenando os opressores, como fez o profeta Amós ao denunciar que “vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias”;
12. Precisamos promover a “cultura do encontro”, favorecendo o diálogo sem preconceitos, combatendo os fundamentalismos e as segregações;
13. A sociedade futura, “mais justa, não é um sonho fantasioso”, mas algo que podemos alcançar;
14. Os jovens devem ser os “protagonistas da história”, construtores do futuro, de um mundo melhor.
15. As manifestações dos jovens nas ruas merecem o nosso apoio, pois eles “saíram nas ruas do mundo para expressar o desejo de uma civilização mais justa e fraterna”.
Francisco iniciou a reforma da Igreja pelo papado, como quem está convencido de que, para mudar o mundo, é preciso primeiro mudar a si mesmo. Agora, há algo de novo na barca de Pedro, cujas velas são tocadas pelo sopro do Espírito Santo.
Frei Betto é escritor, autor de “Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros.
Website: http://www.freibetto.org/
Twitter:@freibetto.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
terça-feira, 6 de agosto de 2013
Frutos da jornada
Vazam mais páginas do Globogate!
As novas páginas disponibilizadas referem-se à decisão final da Receita de condenar a Globo ao pagamento de multa de 150%, mais juros de mora, sobre o valor sonegado
Miguel do Rosário,
Mais algumas páginas do relatório da Receita Federal que trata da milionária sonegação da Rede Globo acabam de vazar. O Cafezinho mais uma vez divulga o fato em primeira mão.
As novas páginas disponibilizadas referem-se à decisão final da Receita de condenar a Globo ao pagamento de multa de 150%, mais juros de mora, sobre o valor sonegado. Importante anotar a data deste documento: 21 de dezembro de 2006. Alguns dias depois, estes documentos seriam roubados pela servidora Cristina Maris Meinick Ribeiro.
No documento, os auditores votam, por unanimidade, pela culpa do réu e dão 30 dias para a Globo pagar a dívida, a menos que recorresse ao Conselho de Contribuintes no mesmo prazo. O roubo do processo, alguns dias depois, permitiu à Globo adiar por um longo tempo a renegociação deste débito.
A informação joga mais pressão sobre o Ministério Público. Por que não se aprofundou nas investigações sobre o roubo do processo? Por que não ligou o roubo à sonegação em si? Ambos fazem parte do mesmo ilícito, do mesmo desejo de lesar o Tesouro Nacional. Tinha obrigação de investigar a suspeita, óbvia, de envolvimento do principal interessado: a Globo.
Em uma de suas respostas, a Globo mencionou dívidas sendo negociadas no Conselho de Contribuintes. Tudo leva a crer que a emissora apelou ao Conselho, que conta com a participação de entidades privadas. Mais uma vez, estamos diante de uma situação nebulosa. A Globo disse que pagou o débito através da adesão ao Refis, em 2009. Como assim? No dia 21 de dezembro de 2006, a Receita deu apenas 30 dias, sob pena de cobrança executiva, para a empresa pagar ou apelar ao Conselho. Ela apelou ao Conselho? O roubo do processo lhe deu quantos meses de alívio? Qual foi a decisão do Conselho? Quem fazia parte do Conselho nesta época?
O mais importante: os novos documentos agora obrigam a mídia a não falar mais em “suposta” sonegação. Eles mostram que os auditores decidiram, com unanimidade, pela culpabilidade da empresa.
Atentem para o trecho no fac-símile abaixo:
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[Operação Cunhantã] Sobre abuso e exploração sexual de meninas indígenas
Elaíze Farias
Adital
Seis dos dez presos na Operação Cunhantã da Polícia Federal já estão soltos e de volta a São Gabriel da Cachoeira
Das dez pessoas detidas, seis foram soltas e retornaram a São Gabriel da Cachoeira no início de julho, segundo apurou o blog. Elas estavam em prisão temporária (com prazo para encerrar).
A chegada dos presos a Manaus. Os nomes dos acusados não foram revelados pela
Polícia Federal. Fotos: Márcio Macedo/ Free Lancer
Embora seus nomes não sejam divulgados (pelo fato de o caso estar em segredo de justiça), sabe-se que entre as pessoas soltas estão um professor, um militar, um comerciante, um parente de um deputado estadual do Amazonas e duas mulheres que atuavam como agenciadoras dos aliciadores.
Outros quatro réus permanecem em presídios de Manaus (os locais não foram informados pela Justiça Federal). Entre os acusados que continuam presos estão ricos comerciantes do município.
O delegado que comandou a operação da Polícia Federal, Fábio Pessoa, disse que estas quatro pessoas estão em prisão preventiva devido à gravidade dos fatos e os indícios que pesam sobre elas. Um desses agravantes é a ameaça que as vítimas e suas famílias vinham sofrendo por parte do grupo.
Uma das denunciadoras da rede de pedofilia, irmã Giustina Zanatto, que atuava como presidente do Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente de São Gabriel da Cachoeira, foi obrigada a sair do Brasil devido às ameaças de morte.
Segundo informações repassadas pela Justiça Federal ao blog, houve várias tentativas, por diversos meio legais, de soltar as quatro pessoas.
Indagado se os quatro podem continuar presos até o fim do processo, o juiz responsável pelo caso disse, por meio da Diretoria da Secretaria Administrativa (Secad), que existe possibilidade tanto de ficarem presas como serem soltas, dependendo dos elementos de convicção apresentados na hipótese de formulação de novo pedido de soltura. "O juiz analisa de acordo com os elementos trazidos aos autos”, disse a diretoria.
Dos dez presos, seis já foram soltos e estão em São Gabriel da Cachoeira
Programa de proteção
O delegado Fábio Pessoa informou também que três vítimas da exploração sexual que estavam no Programa de Proteção à Criança e Adolescente do Ministério da Justiça pediram para sair. Ele não soube dizer se elas já haviam retornado a São Gabriel da Cachoeira.
Fontes deste blog confirmaram que as três meninas, de fato, pediram desligamento do programa de proteção. Duas delas já retornaram ao município do Alto Rio Negro. Não há informações sobre o paradeiro da terceira, que atualmente tem mais de 18 anos e foi a principal testemunha da rede de prostituição da qual eram vítimas as meninas indígenas. Segundo esta fonte, as meninas retornaram a São Gabriel da Cachoeira há 15 dias.
Pessoa disse ainda que a Operação Cunhantã não terá continuidade. Uma segunda investigação em São Gabriel da Cachoeira pode ocorrer apenas se for requerida.
Inquérito
As dez pessoas foram detidas após investigação da Polícia Federal durante operação que durou seis meses. A investigação foi pedida pelo Ministério Público Federal do Amazonas, que esteve em São Gabriel da Cachoeira no início de setembro de 2012 e recolheu relatos e depoimentos que apontavam a exploração sexual de meninas indígenas entre 10 e 14 anos em troca de alimentos e dinheiro.
Inquéritos com estas denúncias já estavam de posse da Polícia Civil, mas nenhuma investigação vinha sendo realizada no âmbito estadual. Por este motivo, o procurador da República Julio José Araujo Junior transferiu o caso para a esfera federal por envolver menores indígenas. Dois meses após a primeira visita ao município, o procurador retornou a São Gabriel da Cachoeira para dar continuidade à coleta dos depoimentos.
Segundo informações da assessoria de imprensa do MPF, o processo está sob sigilo por causa da natureza do crime e em função da exposição de crianças e adolescentes envolvidas no caso.
Na avaliação do MPF, o fato de os quatro continuarem presos indica que o processo tem
prioridade de tramitação em relação aos outros na justiça federal. O MPF explicou que se trata de uma regra quando há réu preso. Isto ocorre para evitar que fiquem muito tempo presos esperando julgamento e –eventualmente– sejam inocentados depois e venham a processar a União por isso.
Normalidade
Nos primeiros dias após o retorno, os seis acusados optaram pelo recolhimento em suas residências. Passado um tempo, porém, tudo já está "normal” e os agora réus já circulam pelas ruas de São Gabriel da Cachoeira "como se nada tivesse ocorrido”, segundo relatou uma fonte do blog. Esta fonte foi uma das denunciadoras do caso para a imprensa e para o Ministério Público Federal.
"Logo que eles chegaram ficaram apenas nas suas casas, escondidos. Agora, já estão saindo. Pelo que a gente soube, eles foram bem recebidos e tiveram apoio de sua família, apesar do que pesa contra eles. Espero que a justiça federal agilize o julgamento”, disse a fonte, que prefere que seu nome permaneça em sigilo.
Esta fonte disse que até o momento as ameaças que ocorriam contra os denunciadores do grupo aliciador das meninas indígenas não se repetiram. Mas ela teme que isto possa ocorrer novamente. "Eles nos olham estranho, com a intenção de nos intimidar, mas por enquanto ficam na deles. Temos medo, claro, mas não vamos desistir”, disse.
Ela afirmou ainda que a exploração sexual de meninas indígenas em São Gabriel da Cachoeira deu "uma acalmada” diante da repercussão da prisão, mas que a prática pode se repetir com outras garotas e outros (ou até os mesmos) aliciadores.
Segundo informações do MPF, por meio de sua assessoria, se ameaças se repetirem, mesmo que sejam veladas, as vítimas podem formalizar denúncia contra os réus e estes correm o risco de voltarem para a cadeia mesmo durante a tramitação do processo na justiça.
Crimes
Durante a investigação do MPF, 16 pessoas foram ouvidas entre crianças e adolescentes. Todas elas confirmaram ter sido vítimas de abuso e exploração sexual em diferentes ocasiões. Também foram ouvidos a Fundação Nacional do Índio (Funai) e representantes de entidades de defesa dos direitos da Criança e do Adolescentes, além de psicológicos e lideranças indígenas.
Na sua denúncia, o MPF atribui aos réus vários crimes: estupro de vulnerável, corrupção de menores, satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente, favorecimento da prostituição de vulnerável, rufianismo (tirar proveito da prostituição alheia) e coação no curso do processo.
Dois dos denunciados foram também acusados na prática do crime previsto no art. 241-B do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que afirma que "adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.
O MPF/AM também entendeu que a ofensa à dignidade sexual das vítimas prejudica não apenas a elas próprias, mas também a identidade indígena de toda a comunidade a qual pertencem, o que justifica a atuação dos órgãos federais no caso.
[Fonte: acritica.uol.com.br/blogs/blog_da_elaize_farias/, 29julho2013].
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PSDB e metrô: quadrilha ou cartel?
PSDB e metrô: quadrilha ou cartel?
Do Blog do Cadu
Segundo o dicionário, cartel significa “acordo comercial entre empresas, que se organizam numa espécie de sindicato para impor preços no mercado, suprimindo ou criando óbices à livre concorrência”. E formação de quadrilha é quando um grupo de pessoas age organizadamente para burlar a lei.
Na prática, qual a diferença? E a denúncia da Siemens, empresa de engenharia alemã, sobre o metrô em São Paulo, o que é?
Desde o governo de Mário Covas (1995 – 2001) que, segundo a denúncia da empresa alemã, existe um forte esquema na construção e aquisição de trens de metrô na capital paulista e do Distrito Federal que já teria desviado algo em torno de 500 milhões de reais. Os governos do PSDB abocanhavam 30% dos valores das licitações. Tudo era feito através de empresas de fachada.
O esquema é alvo de investigações desde 2008 e nada foi feito pelos governos tucanos. Geraldo Alckmin e José Serra, assim como Mário Covas, teriam compactuado com jogo. Na armação para tornar as licitações de mentirinha estavam outras multinacionais como a francesa Alstom, a canadense Bombardier, a espanhola CAF e a japonesa Mitsui.
A denúncia foi feita pela revista Istoé na edição 2279, mas o restante da “grande imprensa” demorou a reverberar – a “coisa feita em papel couché” que atende pela alcunha de Veja ainda não elaborou uma de suas mirabolantes capas sobre o tema – e mesmo assim o partido em questão, o PSDB, não é citado, tampouco o nome de Geraldo Alckmin ou do Serra. Tudo virou “governo paulista”.
Como parte da tática de desviar o foco, agora, de mãos dadas, governo tucano e “grande imprensa” jogam a culpa do esquema no CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), autarquia ligada ao Ministério da Justiça. Vale relembrar que o esquema é de 1995, governo Mário Covas, em São Paulo e, FHC era o presidente do país. Se o CADE foi conivente, que os responsáveis paguem por isso com o rigor da lei, mas daí a tentar impor essa desviada de foco, não.
Se algo de bom no comportamento da nossa “querida” autoproclamada “grande imprensa” é mais uma prova de seu partidarismo. Ou você tem dúvidas que se São Paulo fosse governada por partidos de caráter trabalhista as chamadas e trato do tema em geral seria diferente?
Fosse o Fernando Haddad, prefeito eleito de São Paulo no ano passado pelo PT, o governador, as manchetes dos jornalões e as chamadas do Jornal Nacional não seriam muito destoantes dessas: Governo do PT desvia mais de meio milhão de reais do metrô ou Fernando Haddad, do PT, participou de esquema internacional que desviou mais de R$ 500 milhões de reais do transporte público.
A palavra cartel jamais seria usada. A cada cinco linhas, em quatro a palavra quadrilha estaria escrita. As caretas de desaprovação e vergonha moral de William Bonner e Patrícia Poeta na bancada do JN seriam algo digno dos filmes do Jim Carrey. Os comentários do Arnaldo Jabor fariam você ter pesadelos com trens descarrilhando. Folha e Estadão lançariam edições especiais sobre o tema, talvez ligando o esquema às Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
Mas como se trata de governos do PSDB e de multinacionais - a direita brasileira adora multinacionais – chegam a pedir cautela. Imagine só, a Folha de S. Paulo que publicou uma ficha falsa do DOPS da Dilma, em plena campanha eleitoral, feita de forma tosca e divulgada na internet através de, essencialmente, spams em emails, pediu cautela sobre o envolvimento do PSDB no esquema do “trintão do metrô”.
Essa é a nossa “grande imprensa”: tenta fraudar eleições, manipula a informação de forma descarada, denuncia, julga e condena sem o menos traço de prova. Basta ser do campo progressista e pronto, banho de lama em sua reputação. Mas se for tucano, lustre nos bicos e amaciante nas penas.
E você, o que acha sobre o assunto? Cartel ou quadrilha? As perguntas também valem para a grande mídia.
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domingo, 28 de julho de 2013
A Copa do Mundo, a Crise do Modelo Urbano e a Retomada das Cidades
"Entendemos que os pontos críticos do novo modelo urbano são as políticas de mobilidade baseadas no transporte individual, a política habitacional regulada exclusivamente pelo capital privado e a atração de megaeventos como alavanca para projetos desenvolvimentistas. Os três entrelaçados estão produzindo cidades mais privadas, mais fragmentadas, menos solidárias e de pior qualidade de vida". O comentário é de Paulo Roberto Rodrigues Soares, professor do Departamento de Geografia – UFRGS e membro do Observatório das Metrópoles – Núcleo Porto Alegre em artigo publicado no sítio copa em discu$$ão,
Eis o artigo.
Praça Tahrir, Wall Street, Plaza Mayor, Praça Montevideo (Porto Alegre) e depois São Paulo, Rio de Janeiro, Brasil! As manifestações das últimas semanas nas principais cidades brasileiras ecoam os movimentos de massa que nos últimos anos – especialmente após a eclosão da crise financeira internacional em 2008 – tem (re)tomado praças e ruas das principais metrópoles mundiais em todos os continentes.
Se na escala mundial a motivação é a ausência de democracia e a crise do sistema financeiro que afeta a “economia real”, bem como as políticas de austeridade impostas pela Troika, no Brasil a reivindicação inicial dos movimentos populares foi a redução (ou eliminação) da tarifa do transporte coletivo que onera fortemente estudantes, trabalhadores e trabalhadoras que dependem de um serviço público desorganizado e precário. Diariamente milhões de pessoas são aprisionados na nossa (i)mobilidade urbana que estende a jornada de trabalho e subtrai horas de cultura, formação, qualificação, lazer e ócio (afinal, também temos “o direito à preguiça”).
Outras questões se agregaram aos protestos brasileiros: a mobilização contra as isenções fiscais e os gastos públicos para a Copa do Mundo de 2014 frente às imensas carências de serviços de saúde, educação e segurança.
A visibilidade do país por conta da Copa das Confederações foi aproveitada de modo inteligente e eficaz pelos movimentos de contestação que utilizaram os momentos prévios aos jogos para reunir milhares de pessoas com suas diferentes bandeiras. Não abordaremos aqui os desdobramentos políticos posteriores ao movimento de contestação nas ruas brasileiras. Nos limites deste artigo preferimos apontar três pontos referentes ao modelo urbano que está se implantando no país no último decênio, o qual ainda não conseguiu conciliar (é o projeto?) crescimento econômico e ligeira redistribuição da renda com bem-estar e qualidade de vida nas cidades.
Entendemos que os pontos críticos do novo modelo urbano são as políticas de mobilidade baseadas no transporte individual, a política habitacional regulada exclusivamente pelo capital privado e a atração de megaeventos como alavanca para projetos desenvolvimentistas. Os três entrelaçados estão produzindo cidades mais privadas, mais fragmentadas, menos solidárias e de pior qualidade de vida. Bem ao contrário do que poderíamos esperar de um efetivo programa de reforma social.
A crise de mobilidade é resultante da debilidade das políticas de planejamento e investimento no transporte público e de uma opção de crescimento econômico baseado no consumo de massas, na construção civil e na indústria automobilística (um quarto pilar é a exportação de commodities, que transcende os limites deste artigo). A política de financiamento e isenção de impostos para a aquisição de automóveis, sem os devidos investimentos em infraestrutura urbana, levou ao congestionamento das vias de circulação nas grandes e médias cidades. É o problema das políticas corporativas. Incentiva-se apenas um setor industrial visando que este seja o “motor” da economia. As consequências são sentidas no médio prazo. Ao primeiro sinal de fadiga do setor, a economia como um todo trava. Vão-se os benefícios da política. Ficam os prejuízos (congestionamentos, poluição, acidentes de trânsito).
Quanto ao transporte público novamente são propostas medidas pouco eficazes no longo prazo. Combate-se os resultados e não a raiz da questão. A política de desoneração para as empresas do setor não irá solucionar os problemas. Os mesmos empresários rentistas que lucram com a desorganização das linhas e com a extensão urbana continuarão a gerir o sistema. É preciso promover uma ampla discussão de uma política nacional de mobilidade urbana, que incentive o transporte público, promova a diversidade de modais de deslocamento nas cidades, desde os individuais (bicicletas, por exemplo) até os mais modernos e que exigem grandes investimentos (VLTs, trens, metrô).
Mas é preciso entender a mobilidade na sociedade contemporânea. Nossas cidades, cujo planejamento é herdado do período fordista, necessitam de outra compreensão de planejamento e mobilidade. E esta deve começar por um conjunto de perguntas: o que é a mobilidade hoje? Quem se move nas cidades? Por que nos movemos? As desregulações do capitalismo flexível e da “modernidade líquida” nos colocaram em estado de constante “mobilização geral”. Hoje todos se movimentam em diferentes horários e direções. Aliado a isso, a produção da metrópole e da cidade pós-moderna, mais extensa, mais fragmentada e policêntrica provocou a ruptura dos padrões tradicionais de mobilidade. Mas continuamos presos aos velhos paradigmas de cidade. Por isso é preciso repensar a mobilidade em seus aspectos econômicos, sociais e culturais. As novas tecnologias de informação devem ser utilizadas para promover o planejamento inteligente da circulação urbana. As redes sociais devem ser utilizadas para o planejamento e a gestão participativa da mobilidade, o que pode ser realizado em tempo real nos momentos de crise geral do sistema. É um caminho: democratização e participação.
A expansão da indústria imobiliária se dá pela disponibilidade de crédito e um amplo programa de produção habitacional (o Programa Minha Casa Minha Vida). Entretanto, nosso programa habitacional deixou de ser uma política de Estado para se tornar mais uma fonte de acumulação privada. Especula-se com a terra urbana e com o preço dos imóveis. Os projetos são aprovados a bel prazer dos investidores, facilitados por municipalidades ávidas por resultados de investimentos e geração de empregos. O modelo de produto imobiliário hegemônico combina verticalização desenfreada, condomínios fechados e grandes conjuntos habitacionais na periferia, ressuscitando o antigo modelo de expansão periférica dos anos 1960-1970. A densificação dos centros e a extensão dos perímetros urbanos encarecem a infraestrutura urbana e incidem justamente na questão da mobilidade. Resultados: densificação nociva das áreas mais centrais, periferias homogêneas e segregadas, cidades menos coesas e mais fragmentadas.
Frente a todos os problemas gerados temos a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Com eles a utilização de fundos públicos, seja na forma de investimentos diretos, seja nas isenções fiscais aos grandes grupos econômicos envolvidos. Estádios de futebol e instalações esportivas suntuosas são construídos com diferentes formas de financiamento público. Obras de infraestrutura urbana (re)valorizam setores das cidades permitindo a apropriação da renda diferencial urbana pelo capital imobiliário.
Ao mesmo tempo temos os impactos perversos da desagregação de comunidades pelas remoções e deslocamentos (“involuntários”) de populações dos setores urbanos valorizados pelas obras. Estas remoções se fazem em nome do “interesse geral” da cidade nas obras relacionadas aos megaeventos. É notório que os governos locais estão aproveitando os megaeventos como aceleradores de projetos de infraestrutura, bem como para alterações e/ou afrouxamento dos marcos reguladores da produção do espaço urbano (planos diretores, leis de zoneamento, instrumentos urbanísticos). Acrescentem-se também as políticas de “higienização” das cidades, de ordenamento controlado dos espaços públicos, convertidos em espaços de vigilância permanente e a militarização da questão urbana empreendida pelos governos locais em associação com os governos estaduais e federal. Tudo isto respondendo aos “cadernos de encargos” e à “privatização do território” imposta pelas corporações esportivas. Chamamos aqui de privatização do território, porque as intervenções vão além das arenas esportivas e de seus espaços públicos circundantes. Praticamente toda a cidade está incluída na “zona de controle”.
E todo este processo se realizando com pouca ou nenhuma transparência, com total ausência de democracia local, apesar dos instrumentos do Estatuto da Cidade que prevêem a participação popular e gestão democrática das cidades.
Um caso particular é o de Porto Alegre, cidade com longa e aguerrida tradição de lutas sociais e democracia participativa. Aqui a oposição ao “novo modelo urbano” de “cidade-empresa” vem crescendo nos últimos anos após um período de estagnação das mobilizações sociais. São iniciativas independentes, fragmentadas, mas que neste momento conseguiram se conciliar em oposição ao novo projeto de cidade que se impõe. Movimentos pela mobilidade urbana, pela ocupação pública dos espaços públicos, contra a sociedade controle, movimentos ecológicos e pela qualidade de vida nos bairros, além de movimentos populares pela moradia se (re)encontraram na Praça Montevideo em uma nova e ampla coalizão de forças sociais. O futuro dirá se esta nova corrente será capaz de reverter as tendências de privatização da cidade e de submissão da gestão urbana aos interesses de corporações e grupos privados.
Enfim, o risorgimento dos movimentos de massa no Brasil é, sobretudo, um levante pelo “direito à cidade”. Pelo direito de participar e decidir na elaboração, discussão e implementação das políticas urbanas. Pelo direito a construir e viver em cidades feitas por e para o interesse público e não pelos interesses privados.
Finalizamos com David Harvey e sua conclusão do artigo “O direito à cidade” (2008):
“Dar um passo adiante para unificar estas lutas supõe adotar o direito à cidade como slogan prático e ideal político, porque o mesmo coloca a questão de quem domina a conexão necessária entre urbanização e produção e utilização do excedente. A democratização deste direito e a construção de um amplo movimento social para torná-lo realidade são imprescindíveis se os despossuídos vierem a recuperar o controle sobre a cidade que durante tanto tempo estiveram privados e desejam instituir novos modelos de urbanização (…) a revolução tem que ser urbana, no mais amplo sentido do termo, ou não será”.
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sábado, 27 de julho de 2013
Evo explica a verdadeira dívida externa
Exposição do Presidente Evo Morales ante a reunião de Chefes de Estado da Comunidade Europeia
Com linguagem simples, que era transmitida em tradução simultânea a mais de uma centena de Chefes de Estado e dignitários da Comunidade Européia, o Presidente Evo Morales conseguiu inquietar sua audiência quando disse:
Créditos: Dialogos do Sul
Aqui eu, Evo Morales, vim encontrar aqueles que participam da reunião.
Aqui eu, descendente dos que povoaram a América há quarenta mil anos, vim encontrar os que a encontraram há somente quinhentos anos.
Aqui pois, nos encontramos todos. Sabemos o que somos, e é o bastante. Nunca pretendemos outra coisa.
O irmão aduaneiro europeu me pede papel escrito com visto para poder descobrir aos que me descobriram. O irmão usurário europeu me pede o pagamento de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei a vender-me.
O irmão rábula europeu me explica que toda dívida se paga com bens ainda que seja vendendo seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. Eu os vou descobrindo. Também posso reclamarpagamentos e também posso reclamar juros. Consta no Archivo de Indias, papel sobre papel, recibo sobre recibo e assinatura sobre assinatura, que somente entre os anos 1503 e 1660 chegaram a San Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América.
Saque? Não acredito! Porque seria pensar que os irmãos cristãos pecaram em seu Sétimo Mandamento.
Expoliação? Guarde-me Tanatzin de que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue de seu irmão!
Genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomé de las Casas, que qualificam o encontro como de destruição das Indias, ou a radicais como Arturo Uslar Pietri, que afirma que o avanço do capitalismo e da atual civilização europeia se deve à inundação de metais preciosos!
Não! Esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser considerados como o primeiro de muitos outros empréstimos amigáveis da América, destinado ao desenvolvimento da Europa. O contrário seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito não só de exigir a devolução imediata, mas também a indenização pelas destruições e prejuízos. Não
Eu, Evo Morales, prefiro pensar na menos ofensiva destas hipóteses.
Tão fabulosa exportação de capitais não foram mais que o início de um plano ‘MARSHALLTESUMA’, para garantir a reconstrução da bárbara Europa, arruinada por suas deploráveis guerras contra os cultos muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho cotidiano e outras conquistas da civilização.
Por isso, ao celebrar o Quinto Centenário do Empréstimo, poderemos perguntar-nos: Os irmãos europeus fizeram uso racional, responsável ou pelo menos produtivo dos fundos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indoamericano Internacional?Lastimamos dizer que não. Estrategicamente, o dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em armadas invencíveis, em terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo, sem outro destino que terminar ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como no Panamá, mas sem canal. Financeiramente, têm sido incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de cancelar o capital e seus fundos, quanto de tornarem-se independentes das rendas líquidas, das matérias primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo. Este deplorável quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e os juros que, tão generosamente temos demorado todos estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus as vis e sanguinárias taxas de 20 e até 30 por cento de juros, que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos adiantados, mais o módico juros fixo de 10 por cento, acumulado somente durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça.
Sobre esta base, e aplicando a fórmula europeia de juros compostos, informamos aos descobridores que nos devem, como primeiro pagamento de sua dívida, uma massa de 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambos valores elevados à potência de 300. Isto é, um número para cuja expressão total, seriam necessários mais de 300 algarismos, e que supera amplamente o peso total do planeta Terra.
Muito pesados são esses blocos de ouro e prata. Quanto pesariam, calculados em sangue?
Alegar que a Europa, em meio milênio, não pode gerar riquezas suficientes para cancelar esse módico juro, seria tanto como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a demencial irracionalidade das bases do capitalismo.
Tais questões metafísicas, desde logo, não inquietam os indoamericanos. Mas exigimos sim a assinatura de uma Carta de Intenção que discipline os povos devedores do Velho Continente, e que os obrigue a cumprir seus compromissos mediante uma privatização ou reconversão da Europa, que permita que a nos entregue inteira, como primeiro pagamento da dívida histórica
Guardiões de sementes crioulas promovem encontro
Marco Aurélio Weissheimer.
O município de Ibarama, localizado na região central do Rio Grande do Sul, sediará nos dias 8 e 9 de agosto, o 2º Seminário da Agrobiodiversidade Crioula. Desde 1998, Ibarama destaca-se pela produção de milho crioulo no Estado. Em 2008, agricultores da região, comprometidos com essa cultura, criaram a Associação dos Guardiões das Sementes Crioulas de Ibarama, com o objetivo de manter vivo os saberes tradicionais locais que passam de geração a geração, buscar conhecimentos sobre práticas agroecológicas e desenvolver o cultivo de milho crioulo, diminuindo a dependência da agricultura em relação aos atuais pacotes tecnológicos das grandes empresas transnacionais do setor.
Ao todo, quatro eventos ocorrerão nestes dois dias (no Ginásio Esportivo João Lazzari) : o 12º Dia da Troca de Sementes Crioulas de Ibarama, o 2º Seminário da Agrobiodiversidade Crioula, a 2ª Feira da Economia Popular Solidária do território centro Serra e o 2º Semionário Regionalo de Guardiões Mirins de Sementes Crioulas. Todos esses eventos compartilham os seguintes objetivos: troca de experiências e sementes, exposição e comercialização de produtos oriundos de empreendimentos solidários e a discussão da importância do reconhecimento da identificação geográfica para o milho crioulo de Ibarama e seus derivados, assim como para o desenvolvimento regional sustentável.
Estimulados por técnicos da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater/RS) e trabalhando com apoio de professores e técnicos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) , um grupo de agricultores familiares está envolvido com procedimentos de resgate, conservação e multiplicação de cultivares crioulas, em especial do milho. Desde 2009, uma equipe da UFSM vem trabalhando junto com os agricultores para consolidar essa experiência e disseminá-la para outros municípios.
Os eventos são promovidos em conjunto pela Associação dos Guardiões de Sementes Crioulas de Ibarama, Emater, UFSM, Prefeitura de Ibarama, Colegiado do Território Centro Serra e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Clima Temperado
A professora Lia Rejane Reinger, do Departamento de Fitotecnia da UFSM, destaca que as sementes crioulas constituem um imenso repositório genético não somente para as comunidades que as conservam, mas para toda a humanidade. Sua importância, enfatiza, “vai além dos cenários locais e regionais, uma vez que seus genes podem ser importantes para garantir a sobrevivência dos cultivos agrícolas, esgotados, muitas vezes, em seu germoplasma pelos programas convencionais de melhoramento genético”.
A conservação da agrobiodiversidade crioula, adverte Lia Reinger, sofre hoje uma série de ameaças: “inexistência de uma infraestrutura eficiente de conservação, que a proteja de eventuais perdas por intempéries de natureza climática ou ações antropogênicas; carência de estudos técnico-científicos que possibilitem o seu resgate, conservação e uso sustentável e, também, pelo risco de que a reputação do germoplasma crioulo conservado em Ibarama e seus derivados, em especial a farinha, sejam indevidamente apropriados por outrem, dada a inexistência de registro de uma marca coletiva ou do reconhecimento de identificação geográfica, estratégias que podem proteger e, simultaneamente valorizar esses produtos locais”.
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segunda-feira, 22 de julho de 2013
Corporativismo médico e miséria moral
Nos dias tensos e intensos que o país vive nas últimas semanas em virtude da emergência de vários fatores, a incerteza sobre os destinos da economia e, em especial, as manifestações massivas dos jovens de classe média, abriram a caixa de Pandora do país, expondo seus males históricos e estruturais, entre eles, a precariedade absurda da mobilidade urbana das grandes metrópoles. O Movimento Passe Livre (MPL), que fez as primeiras convocações, teve uma adesão enorme e, com isto, tornou público o sofrimento cotidiano da ida e vinda ao trabalho de milhares de pessoas que padecem horas em trens, metrôs e ônibus superlotados, pagando caro por um serviço indigno.
A magnitude das manifestações pareceu a muitos um raio em céu azul. Penso que surpreendeu a todos. Ainda estamos ensurdecidos e perplexos com a forma como tomaram as ruas, e mais ainda com a violência da repressão policial que se abateu sobre elas, em especial em São Paulo e no Rio de Janeiro, ampliando ainda mais o número de manifestantes. A geração de 1968 não teve como não se lembrar das pancadarias que viveu sob a ditadura militar a cada protesto coletivo realizado.
Os manifestantes escancararam a precariedade da prestação de todos os serviços públicos. No bojo da explosão reivindicatória, em que a questão da Saúde Pública compareceu fortemente, tornou-se público, ou mais difundido, o projeto governamental Mais Médicos, que se apresentara inicialmente como a necessidade emergencial de contratação de médicos estrangeiros diante da carência desses profissionais no Brasil. Logo mais, a proposta de inclusão de um estágio no SUS de dois anos, com certa semelhança à residência médica. Depois disto o governo anunciou a precedência nos contratos para médicos brasileiros, com salários de R$ 10.000, casa e alimentação para a família, desde que aceitassem trabalhar nas regiões brasileiras mais carentes destes profissionais. O que se viu diante dessas propostas? Passeatas de jovens estudantes de medicina contestando com veemência retórica e gestual o projeto governamental. Alguns cartazes exibidos foram escritos com dizeres de um grotesco assustador, além de escancararem preconceitos de várias ordens.
Um dos males de nossa caixa de Pandora reside na péssima formação cívica que guardamos como herança intocável de nossa formação. Habita soberana entre nós uma enorme ausência de qualquer coisa como espírito público e republicanismo. Aspecto ressaltado por todos os nossos clássicos. Imediatamente, mesmo se consideramos que o projeto foi apresentado de modo inábil, ou sem a devida discussão com a sociedade e com os movimentos sociais, a grande mídia não teceu nenhuma crítica à falta de civic culture dos nossos doutores. Ao contrário, em vez de se preocupar com a sorte dos sem-médicos, entrou em cena desqualificando completamente as propostas, e com isto reforçando o já poderosíssimo corporativismo médico.
Todos conhecem no Brasil a força dessa corporação e a “eficácia de sua voz”, para usar um conceito do economista Albert Hirchsmann. É bom lembrar que os que tiveram o privilégio de estudar nas universidades públicas – infelizmente no Brasil ingressar em uma universidade pública, e muito mais em um curso de medicina, constitui um privilégio, e não um direito universal – tiveram seu curso pago com dinheiro de todos nós. È o povo brasileiro que paga os doutorados e pós-doutorados no exterior e o resultado deste investimento da nação foi excelente: temos ótimos médicos. A medicina brasileira não deve nada aos melhores centros médicos de excelência mundial. Contudo, no interior deste processo de formação de médicos de alta qualidade técnica se oculta uma grande tragédia. Essa medicina está concentrada nas regiões ricas do país e serve a pouquíssimos brasileiros, ou melhor, serve aos ricos.
Na outra ponta da nação existem milhões de brasileiros cujas vozes e grandes sofrimentos ninguém ouve, pois a grande mídia não fala deles, são invisíveis, são silenciados exatamente pela sua pobreza. Estes não têm médicos. Centenas de cidadezinhas não dispõem de nenhum profissional para socorros emergenciais e para salvar vidas. Estão alijadas do sistema de saúde porque são vítimas de uma mentalidade e de uma visão de profissão elitista e individualista. Existem outras formas mais nobres de enxergar a medicina – por exemplo, a de uma organização como Médico Sem Fronteiras, que enfrenta situações mais duras em países em guerra, como o Afeganistão e outros, totalmente desprovidos de qualquer estrutura de equipamentos médicos. Salvo engano, são considerados excelentes profissionais. Mas esta é outra história.
Em uma viagem de pesquisa, nos fundões da Bahia, entrevistei uma mulher que chegara aos 50 anos sem conhecer este personagem, o médico. Passara a vida em curandeiros/as e ingerindo as tais garrafadas “medicinais”. Nossa tragédia neste campo não para aí. A pergunta que temos na garganta é: por que os médicos agem de forma tão desumana, se recusando a sair das grandes e médias cidades para salvar vidas e, com isto, respeitar o direito mais elementar dos homens, o direito à vida?
Esta questão se desdobra na constituição de uma medicina sem alma, calcada em uma ideologia absolutamente mercantil da profissão. Tal processo formativo modela a expectativa entre os jovens candidatos a médicos, que se tornam pessoas, donas de atitudes e sentimentos desprovidas de qualquer compromisso com seus concidadãos, com seu país.
Justíssima a posição de vários deles de dizer que o crônico problema da Saúde Pública no Brasil não se resolve apenas com mais médicos, mas com investimentos vultosos em postos de saúde, hospitais e equipamentos médicos. No entanto, as pesquisas mostram que isso não é tudo. O jornal O Estado de S. Paulo exibiu em suas páginas uma reportagem, no dia 14 de julho/2013, com a seguinte informação: “Número de médicos não segue crescimento de infraestrutura. Nos últimos cinco anos, a infraestrutura de Saúde no Brasil cresceu em ritmo mais acelerado do que o número de médicos que atendem a população.” Ainda mais, demonstra graficamente a grande defasagem entre as duas variáveis. Ou seja, existem hospitais fechados por ausência de médicos dispostos a trabalhar neles e as populações dessas cidades têm de enfrentar viagens longas para ter acesso a uma consulta em uma cidade maior. Muitas destas travessias terminam com a morte precoce de pessoas que não suportaram a viagem. E as periferias e hiperperiferias urbanas têm a mesma carência de médicos. Tornou-se comum aos doentes esperarem horas, às vezes dias, depois de viajar nos malfadados ônibus lotados e chegarem aos postos de saúde e não encontrarem médicos.
Em suma, como começar a desatar, ou para ser mais precisa com a lenda, cortar o nó górdio da ausência de médicos? Puxando algum fio, pode ser pelo caminho mais carregado de interesses particularistas, ou seja, daqueles interesses voltados à reserva de mercado e à exclusividade da pratica médica para brasileiros que não querem se deslocar dos grandes centros, portanto um profissional escasso. Isto tem um nome: chama-se manutenção de privilégios corporativos e absoluta ausência de responsabilidade moral. Começa por não se colocar uma questão simples: devolver à sociedade que pagou os seus estudos alguma dedicação a ela.
Muitos médicos com quem converso há anos sobre isso atribuem esta atitude ao tipo de formação profissional que as atuais faculdades de medicina fornecem aos seus estudantes, ou seja, as escolas formam mentes excessivamente voltadas para o mercado, para as especialidades mais rentáveis, e ignoram as necessidades do País e de seu povo. Como se sabe, muitos países adotam a contratação de médicos estrangeiros, uma vez diagnosticada a carência destes profissionais. Vejamos os nossos dados sobre a distribuição dos médicos pelo território nacional. Segundo o Ministério da Saúde, existe no País 1,8 médico por mil habitantes, ao passo que na Argentina a fração é 3,2; no Uruguai, 3,7; em Portugal, 3,9, e na Grã-Bretanha, 2,7. Portugal, que tem 4 médicos por mil habitantes, tem um programa de atração de médicos cubanos, hondurenhos e costa-riquenhos para atender nas regiões rurais. Dezessete por cento dos médicos que atuam no Canadá são estrangeiros; em algumas províncias, o número chega a 60%. Lá se atrai o médico sem a validação do diploma.
A validação do diploma e o controle da qualidade dos profissionais estrangeiros contratados deve ser um quesito inegociável. Fora disto, e da constatação absolutamente verdadeira de que o financiamento a saúde permanece precário e insuficiente, as manifestações da corporação até agora só revelam uma coisa: tratam-se de posições corporativas, estreitas, egoístas e com facetas de insensibilidade moral e social assustadoras.
Que setor profissional recebeu a oferta de começar a vida na profissão com salários de R$ 10.000 – em alguns municípios até de R$ 20.000? Ainda assim, os doutores não consideram essas vantagens suficientemente atrativas para salvar vidas nos cantos mais pobres de nosso país e de nossas grandes cidades. A nota predominante é a recusa de servir às populações mais indefesas, mais carentes. Em outras palavras, os médicos se mostram incapazes de cooperar para a melhoria da qualidade de vida dos seus concidadãos.
John Stuart Mill dizia que um dos princípios cardeais do desenvolvimento da cidadania estava na formação de pessoas com “capacidade de cooperar” na busca de melhorias para a sociedade. O que estamos assistindo, por parte da corporação médica, com as louváveis exceções de sempre, é o oposto disto. Tem prevalecido o mais absoluto individualismo negativo, aquele que é totalmente indiferente ao sofrimento socialmente evitável de seus concidadãos. Com isto, predomina a miopia ética e social e a perda completa da capacidade de olhar o outro e suas necessidades. Trata-se de um caso – ou de mais um caso – de escancaramento de incapacidade cooperativa no país.
Outro grande autor, Antonio Gramsci insistia que se deter apenas no momento corporativo da ação coletiva significa que o interesse geral jamais será contemplado. O particularismo dos interesses se torna quase uma segunda natureza, que endurece as pessoas a tal ponto que a vida e a morte do outro passa a não fazer parte do seu universo mental.
Como na abertura da caixa de Pandora, que joga ao mundo todos os males, permaneceu no seu fundo apenas um elemento, a esperança. Mas, depois de assistir pela televisão que o grande número de inscrições para o concurso médico era maior que a oferta de vagas, e que paira no ar a suspeita da sabotagem dos doutores ao concurso, a esperança posta no fundo da nossa caixa de Pandora se metamorfoseou em pessimismo da indignação. O caso dos médicos pode se transformar em caso de polícia.
* Walquíria Leão Rego é professora titular de Teoria Sociológica da IFCH-Unicamp
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