O ator e galã argentino fala sobre as vantagens de ter um papa portenho, por que Pelé é uma besta, o disco brega que gravou nos anos 70, golpes de sorte, cinema brasileiro e o dia em que deu um autógrafo para a mãe de Maradona
Na terceira semana de junho, Ricardo Darín cancelou uma série de apresentações que faria no teatro Maipo, em Buenos Aires, e enfurnou-se em sua casa para tentar baixar uma febre de 39 graus que havia uma semana insistia em castigá-lo. Mesmo febril e muito gripado, na manhã do dia 19 pegou sua BMW preta e foi, sozinho, até o hospital fazer um raio X da face – ele desconfiava estar com uma forte sinusite. Foi o suficiente para os sites e programas de fofoca espalharem a exagerada notícia de que a saúde do ator argentino era preocupante, de que ele havia sido internado em caráter de urgência e até de que estava nas últimas.
Aos 56 anos, Ricardo Alberto Darín é um dos maiores ídolos da Argentina, desfrutando da mesma popularidade de estrelas como o ex-jogador de futebol Maradona, o atual craque do Barcelona Lionel Messi e o novo papa portenho Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. Não é de se estranhar, portanto, que a imprensa de celebridades busque notícias sensacionalistas sobre o astro de filmes como O Segredo dos Seus Olhos, O Filho da Noiva e Um Conto Chinês.
Com quase 50 anos de carreira, 40 filmes e dez peças no currículo, Darín está de volta ao cinema com o suspense Tese sobre um Homicídio, que tem estreia prevista para o dia 26 de julho no Brasil. Também está em cartaz na Argentina com a adaptação teatral de Cenas de um Casamento, escrita pelo dramaturgo e cineasta sueco Ingmar Bergman nos anos 70 para a televisão. Contracena com a atriz Valeria Bertuccelli sob direção de Norma Aleandro, uma espécie de Fernanda Montenegro portenha e com quem ele fez sua estreia na vida artística, aos 8 anos de idade, no rádio. De lá para cá protagonizou incontáveis comerciais, fez novelas, teatro e cinema. No final dos anos 70, desfrutando de grande popularidade por causa de um programa de TV que fazia na companhia de outros jovens galãs, chegou a gravar um disco do qual lembra com certo desgosto: “Aquilo foi um delírio, uma estupidez”. Foi nessa época que ficou amigo de Maradona, durante um concurso de Miss Mundo, ocasião em que o ex-craque, ainda um garoto, lhe pediu um autógrafo para dar à sua mãe.
Darín é tudo o que você não espera de uma celebridade. A começar pelo fato de não se considerar uma celebridade. “O inimigo número um dos atores é o ego”, diz. Filho de um casal de atores “talentosos, mas que não tiveram sorte na vida”, ele conhece todos os meandros, truques e armadilhas do mundo artístico. Insiste em dizer que é um cara de sorte, joga a responsabilidade pelo seu sucesso no talento dos profissionais com quem trabalha e não dá pelota para o Oscar que O Segredo dos Seus Olhos ganhou em 2010. “Não fez diferença alguma na minha vida”, diz.
Para esta entrevista, Darín recebeu o jornalista Ricardo Moreno em sua ampla casa no bairro de Palermo Hollywood, em Buenos Aires, que divide com a esposa, a psicanalista Florencia Bas, de 45 anos, os filhos Chino, 24, Clara, 20, e quatro chachorros: três buldogues franceses e um jack russell, de nomes Kenya, Nelson, Nancy e Marón. Casas, na verdade, pois são duas. Alguns anos atrás, sabendo que a vizinha idosa venderia seu imóvel para uma incorporadora, Darín arrematou-o e ainda deixou a velhinha morando lá.
O encontro, inicialmente agendado para a tarde do dia 20 de junho, uma quinta-feira, teve que ser remarcado para o dia seguinte por causa da forte gripe do ator. Sem a intermediação de assessores de imprensa ou relações públicas, Darín mandou uma mensagem para o celular do fotógrafo Enrico Fantoni perguntando se havia problema em atrasarmos em 24 horas o encontro, pois não se sentia bem. Às 16 horas do dia 20, Darín abriu a porta e pediu para que entrássemos rápido – fazia um frio de 3 graus do lado de fora. “Quer um café? Uma água? Um suco? Uma Coca-Cola?”, ofereceu. Em duas horas de conversa, entre tosses, espirros e um bom humor contagiante, Darín não se esquivou de nenhuma pergunta. Pelo contrário, colocava novos assuntos à mesa enquanto Florencia servia sanduíches de pão de miga recheados de presunto e queijo.
Por que o cinema argentino é melhor do que o brasileiro?
Não estou tão certo de que o cinema argentino seja melhor. Falar do cinema em geral é arriscado. Podemos falar de filmes em particular, mas falar do cinema como indústria de um país é complicado.
Ok, não vamos entrar no mérito da indústria. Mas por que os filmes argentinos vêm tendo mais sucesso do que os longas brasileiros?
Eu acredito que o cinema na Argentina tem a sorte de contar com roteiristas novos, gente desintoxicada do passado. Eles não se sentem na imperiosa necessidade de ter que falar de coisas como a ditadura, por exemplo. Têm liberdade para tratar de outras temáticas. Mas o Brasil deu mostras incríveis de um bom cinema durante muitos anos. E aqui, na Argentina, se consumia muito, mas muito cinema brasileiro.
E quais são os filmes brasileiros de que você mais gosta?Central do Brasil [de Walter Salles, 1998] e Pixote [de Hector Babenco, 1981]. Há outros, muitos outros. Mas os primeiros que me vêm à cabeça são esses.
Voltemos à indústria cinematográfica. Qual é a sua opinião sobre ela?
Todos os cinemas do mundo foram dominados por grandes corporações americanas, que não só fazem os filmes, mas também os distribuem, os promovem, fazem os pacotes completos e ainda vendem a pipoca, a Coca-Cola e te cobram o estacionamento dentro dos complexos que elas mesmas construíram.
No Brasil, a Globo é a maior produtora de cinema. Você acha isso bom?
Ah, esse é outro assunto. Se a Rede Globo capta a maior quantidade de investimentos e, naturalmente, vira a maior produtora de cinema nacional, ela vai querer que os protagonistas de seus filmes sejam os atores e diretores de suas novelas. E há uma distância grande entre o que é fazer televisão e o que é fazer cinema. Não quero dizer que os atores de televisão não possam trabalhar no cinema ou vice-versa. Mas se desde a concepção resolve-se fazer mais ou menos a mesma coisa que se faz na TV para tratar de captar audiência, porque tal novela teve muito Ibope, isso é como um cachorro que corre atrás do próprio rabo. Tem que haver uma independência. Evidentemente há um problema aí. E é tão claro esse problema que nem precisa de um diagnóstico.
Existe algum ator brasileiro reconhecido na Argentina assim como você é no Brasil?
Temo dizer que, neste momento, não há. De uns tempos para cá, as produtoras argentinas simplesmente não lançam quase mais nada do Brasil aqui. A não ser que seja um blockbuster tipo Tropa de Elite. E o que acontece com o cinema argentino no Brasil é o contrário. Eu tive a sorte de filmes como Clube da Lua, O Filho da Noiva, Kamchatka e O Segredo dos Seus Olhos, entre outros, terem estreado e sido muito bem recebidos no Brasil.
E tem alguma ideia de por que eles foram tão bem recebidos?
Tenho algumas teorias. Uma delas é que no Brasil ainda existem alguns pequenos donos de cinema independente que tratam de programar suas salas de uma forma distinta à das grandes empresas. Eles conhecem sua clientela, seu bairro e o tipo de gente que mora por ali. Quem sabe seja por isso que os filmes que faço ainda passem no Brasil.
A gente valoriza muito o Oscar, que nós nunca ganhamos, enquanto a Argentina tem dois. Mudou muita coisa para o cinema argentino ter ganhado as estatuetas?Para mim não fez diferença alguma. Também não sei se ajudou o cinema argentino de uma forma geral, mas me parece que não.
Mas alguém deve ter se beneficiado, não?
Beneficia os produtores, as pessoas que trabalharam nessas equipes. Para cada uma delas, o Oscar representa notoriedade. O que não podemos deixar de reconhecer no prêmio em si é a transcendência mundial que ele tem. Mas não sei se isso ajuda a fazer filmes melhores. Suponho que se te perguntam se você quer trabalhar em um projeto em que o produtor é alguém que ganhou um Oscar, as coisas facilitam um pouco, você vai prestar mais atenção no discurso do cara. Mas o que tampouco é garantia de alguma coisa.
Você nunca teve vontade de fazer filmes em Hollywood?
A verdade é que não. Talvez porque nunca me propuseram algo realmente atrativo. Quando aparecer algo que eu ache interessante, certamente vou considerar. Leio muitos roteiros. Alguns o meu agente lê e diz: “Nem leia que você vai perder a paciência”.
Que tipo de convite já apareceu?
Custo a entender por que um produtor norte-americano me procura para fazer o papel de um chefe de narcotráfico mexicano. E falando inglês! Não faz sentido. É de uma infantilidade e minimalismo tremendos.
Benicio del Toro fez papéis como esse…
O Benicio é muito mais inteligente do que eu, além de mais jovem e muito melhor ator. E também mais simpático. Ele pode ir e vir, cobrir várias frentes, já provou isso. Mas, sim, teve que pagar esse preço inicial para chegar aonde chegou. Hoje em dia, afortunadamente, ele tem liberdade para escolher papéis que tenham mais a ver com o que acredita.
Três anos atrás você anunciou que faria um filme com o Walter Salles. O que aconteceu?
O produtor associado, Óscar Kramer [produtor de filmes como O Passado, Carandiru e Kamchatka] faleceu em 2010. E isso naturalmente gerou uma pausa no projeto, pois precisávamos digerir e assumir essa perda de alguma maneira. O Walter continuou trabalhando no roteiro enquanto filmava Na Estrada. O projeto não foi abandonado, mas está em stand by pois nossas agendas se complicaram. Mas continuo com vontade e esperança de que ainda possa levar adiante esse projeto de trabalhar com ele.
Seu novo filme, Tese sobre um Homicídio, estreia agora no Brasil. Do que se trata?
É um suspense policial. A história se passa dentro da faculdade de direito em que meu personagem, o professor Bermúdez, dá aula de criminalística. Ele é o responsável por um mestrado para advogados no qual todos têm que fazer, ao final do curso, uma tese. E durante esse curso acontece um assassinato de características muito particulares. Bermúdez fica obcecado com esse crime e resolve ir fundo na investigação.
Há mais de uma década você estreia pelo menos um filme por ano, às vezes até mais. É algo planejado?
Não. As coisas simplesmente acontecem. Cinema é algo que começa a ser feito com muita antecedência, dois, três anos antes de o filme realmente estrear. Tem a ver com a distribuição, com a produtora. Eu nunca planejo nada. A única coisa que tenho planejada e que nunca consigo cumprir são as minhas férias.
Mas você está satisfeito com esse ritmo ou tem vontade de trabalhar menos?
Eu tenho vontade de não fazer nada. A verdade é essa: tenho vontade de não fazer nada. Por mim, se eu pudesse, iria viajar por aí. Mas há compromissos que você vai assumindo, coisas combinadas, amigos, um livro que entusiasma, uma história que parece ser interessante e que valha a pena ser filmada.
Há quanto tempo você não sai de férias?
Muito tempo. Nem lembro. Estive planejando viajar antes de começar esta temporada no teatro e não consegui.
Isso é sinal de que surgem muitos convites para você trabalhar. O que vem por aí?
Terminei de rodar Relatos Selvagens. É o filme de um cineasta jovem e muito talentoso chamado Damián Szifrón. Estou botando muita fé nele. São cinco ou seis contos curtos e que, aparentemente, não têm ligação entre si. Mas, no fundo, todos têm um denominador comum, que é a sobrecarga de violência na sociedade. Algo que vocês, brasileiros, conhecem muito bem, sobretudo neste momento de tantas manifestações pelas ruas.
Você acompanhou o que está ocorrendo nas ruas do Brasil?
Sim. E é claro que não foi só por 20 centavos. Falando dos gastos da Copa, especificamente: eu entendo o significado que uma Copa do Mundo tem para nós, latinos. Mas há tantas necessidades sociais importantes, básicas, elementares, e que não podem ser atendidas por falta de orçamento, que eu começo a pensar se não estamos realmente ficando todos loucos com essa Copa. Tento imaginar a presidente Dilma numa dessas reuniões de emergência, sentada à mesa com seus ministros e assessores, e perguntando: “E agora, o que fazemos?” As pessoas têm muita paciência mesmo…
E parece que essa paciência terminou.
Não é preciso ter uma grande educação para se dar conta de quando você está sendo desrespeitado.
O Pelé foi muito criticado por um vídeo feito durante as manifestações em que pedia que as pessoas as esquecessem e apoiassem a seleção brasileira. Você viu?O Pelé sempre foi uma besta. O Pelé sempre esteve do lado do poder. Fez um acordo com uma multinacional e está tranquilo para o resto da vida. É uma pena, um cara tão grande como ele foi, um verdadeiro craque, e que deveria estar do lado do povo. É uma lástima, o Pelé é uma lástima.
E, por falar em Pelé, ouvi dizer que você e o Maradona são amigos desde a adolescência. Qual a relação entre vocês?Conheci-o quando ele tinha 15 anos. Ninguém sabia quem era o Maradona. Estávamos em um programa de televisão, um concurso para escolher a Miss Mundo. Erámos muito jovens: ele com 15 e eu com 18. Os dois sentados, sozinhos, à mesma mesa, e ele me pediu um autógrafo para a sua mãe. Ficamos amigos. Viajamos juntos, jogamos muito futebol, tênis. Mas a relação sempre foi um pouco estranha. Tivemos momentos de grande e profunda amizade e outros de distanciamento. Agora faz muito tempo que não nos vemos. A última vez foi quando a sua mãe faleceu, no velório dela [em novembro de 2011]. Minha mulher ainda é muito amiga da sua ex-mulher e de suas filhas.
E quem você acredita quem foi melhor em campo: Pelé ou Maradona?Não dá para comparar, pois pertencem a duas épocas distintas do futebol. Vi ambos jogarem muita vezes e cada um deles representou, em seu momento, duas formas muito particulares de se movimentar dentro do campo. Pelé foi um atleta, mas Maradona era mais rápido e habilidoso em situações difíceis. Mas não posso ser hipócrita: meu coração está do lado do Diego.
No começo do ano você causou a ira da presidente Cristina Kirchner ao questionar o enriquecimento patrimonial da sua família. Arrepende-se de ter dito aquilo?
De forma alguma. Não disse nada de errado, nem nada que as pessoas não tinham vontade de perguntar. Só que com a maioria das pessoas não há tanta repercussão. Lamentavelmente, em vez de aparecer uma resposta tranquilizadora, o que apareceu foram mais perguntas a respeito.
Ela lhe respondeu por meio do Facebook em um texto em que, em vez de dar a devida explicação, citava um episódio que levou à sua investigação em 1990 por importar um caminhão que teria entrado na Argentina com uma isenção especial para pessoas com deficiência, algo que depois foi provado que não passava de um mal-entendido. Isso o incomodou?
O que me incomodou foi que parecia que eu estava querendo fazer um ataque pessoal a ela, e não era essa a minha intenção. Ela se equivocou na resposta, mas tampouco foi tão grave assim. Há coisas piores.
Como o quê?Eu não deveria nunca mais falar de política, pois toda vez que abro a minha boca forma-se um circo bárbaro ao redor e, como disse um amigo, eu não estou preparado para fazer uma análise certeira, aguda, da situação atual da política argentina. Mas também me pergunto: existe alguém com capacidade para fazer uma análise tão certeira e aguda sobre o que está acontecendo neste país?
E ter um papa argentino é bom para o país?
É, claro. Agora podemos fazer mais piadas e contar mais vantagem em cima dos brasileiros pela competição permanente que temos com vocês. Estou brincando. É sensacional que alguém como o [Jorge Mario] Bergoglio tenha conseguido chegar lá. A Igreja Católica, o grande poder eclesiástico, histórico, arcaico, cometeu um erro, se deu conta desse erro e, finalmente, considerou que a saída para salvar o seu “negócio” era ter um papa argentino [risos]. Bergoglio é um homem muito valioso, um homem que tem experiência de rua. Sempre esteve em contato com as pessoas mais humildes, que é o que definitivamente a Igreja Católica deve voltar a fazer. Além de ser ótimo para toda a América Latina, é bom o fato de termos lá no Vaticano um dos nossos, e que anda pela rua a pé e não em carroças de ouro. Ainda que eu não saiba ao certo o quanto ele pode durar nesse lugar. O que me causa temor é exatamente isso: se uma pessoa como o Bergoglio vai durar nessa posição de papa.
Por quê?
Porque é uma posição política. E ele não dá sinais de ser complacente com o poder. A sensação que tenho é a de que ele está realmente tentando buscar uma renovação dentro da Igreja para captar mais fiéis, para que a gente volte a crer nos sacerdotes, condenando o que as pessoas pedem que se condene lá dentro. Naturalmente não podemos esperar que da noite para o dia ele faça uma revolução. E digo isso sem ser católico. Mas me chamam a atenção as suas atitudes. Imagino que, para os católicos, para a gente de fé, essas atitudes devem emocionar e chamar ainda mais a atenção.
Você tem alguma religião ou acredita em algo?
Não tenho nenhuma religião. Creio na força da natureza e no ser humano, ainda que o ache débil, vulnerável, um ser que comete muitos erros e que é um grande e imperdoável depredador. Conheço certas características de certas religiões – algumas compartilho, outras, não. Mas não sei, mesmo assim, se isso me habilita a dizer que não acredito em Deus. Porque às vezes eu digo: “Meu Deus, me ajude!” O ser humano tem a necessidade de acreditar que algo maior esteja olhando tudo o que acontece aqui. Pode ser uma besteira, uma infantilidade, porque é provável que não tenha nada e nem ninguém. Somos nós contra nós mesmos. Mas quem sabe nós não sejamos valentes o suficiente para aceitar isso. Por isso preferimos acreditar que existe algo superior que nos vá entender, ser misericordioso, perdoar e ajudar.
Dizem que o problema de um papa argentino é que ele já chega pensando que é Deus. Essa fama de povo arrogante tem razão de ser?[risos] Nem todos são arrogantes. Generalizar dessa maneira seria uma injustiça. Aqui em Buenos Aires dizem o mesmo dos brasileiros. São lugares-comuns que, no fim das contas, nos são caros para fazermos piadas uns com os outros e com nós mesmos. Claro, há argentinos muito arrogantes, sobretudo nos aeroportos. Não sei por que, mas me parece que nos aeroportos nós temos a capacidade de fazer reluzir o pior de cada um de nós, e não estou falando apenas dos argentinos, mas de todos os povos. Há argentinos arrogantes, soberbos, mal-educados, intolerantes, gritões, subjugantes, mas também há tanta gente humilde, sensível, transparente, respeitosa. Seria injusto, portanto, dizer que os argentinos são arrogantes. É o tipo de coisa que nos causa graça, então tomamos como se fosse um traço que define todo um povo. Mas não é.
Como é sua relação com os programas e as revistas de celebridades?
Que vão para a puta que os pariu. Ainda assim sempre tive uma relação boa com todo mundo porque respeito o trabalho do cara que está lá, atrás da janela, com frio, na chuva, esperando que eu apareça para dizer alguma coisa. É a minha forma de respeitar o seu trabalho. Só isso.
Você pensava chegar aonde chegou 30, 40 anos atrás?
Eu não pensava nada. Sou filho de um casamento entre dois atores, dois bons atores, mas que nunca tiveram sorte. Nunca conseguiram ter estabilidade, sempre com problemas econômicos, o dinheiro nunca chegava ao fim do mês. Para mim, o máximo que eu esperava ter era um trabalho. O resto era absolutamente secundário. E, nesse sentido, eu tive toda a sorte que eles não tiveram. Nunca precisei pedir trabalho. Até porque sou um dos que acreditam que essa é uma profissão em que, lamentavelmente, se você precisa de trabalho, não pode pedir. Basta que se deem conta de que está procurando emprego para não te darem. Nunca tive planos de querer ser fulano ou beltrano. Isso passa às pessoas que veem as coisas de fora. Eu sempre vi a partir da cozinha. Ou seja, não me reconheço ambicioso nesses termos. O que não significa que eu não seja ambicioso. Algo devo ter, porque senão não iria para a frente, não evoluiria. Sempre ri demais desse ofício. Não me podem contar nada de como funciona, ou tentar me explicar o que é a essência de um ator, o que passa na cabeça dele, no corpo, na alma. Disso eu vi tudo: dos meus pais, da minha irmã [a atriz Alejandra Darín], de mim. Como uma família de atores tivemos muitas oportunidades de viver e experimentar. Sempre fui, e não me canso de dizer, um cara de muita, muita sorte.
Nos anos 1970, pouca gente no Brasil sabe que você gravou um disco romântico-brega que hoje vale um bom dinheiro nos sebos de Buenos Aires. O que foi aquilo?
Foi uma palhaçada, uma brincadeira, um delírio, uma loucura.
Você não gosta de falar sobre isso?
Não tenho problema em falar. Mas foi uma estupidez, não tinha nada de artístico, nada de nada. Foi uma ideia absurda e estúpida de um cara que se aproveitou do fato de eu ser muito jovem na época, de não ter experiência, que me fez acreditar que podíamos fazer algo que fosse decente, atrativo, e que resultou numa estupidez.
Uma coisa meio Serge Gainsbourg latino?
Tipo isso. Nessa época, na Argentina, existia um cara chamado Roberto Vicario, que era um narrador [Darín emposta a voz, imitando o galã] com muita ênfase em cada coisa que falava. Eu não tinha medo de nada, tudo me causava muita graça, eu topei fazer e o resultado foi desastroso.
Você guardou algum disco?
Sim. Mas é ridículo.
Uma amiga me confessou que só sai com homens que tenham visto – e se emocionado – com O Segredo dos Seus Olhos. Ela está louca?
Adorei saber disso! Mas não faz sentido tentar entender as mulheres. Esqueça. Elas são tão maravilhosas que não existe explicação. São como uma obra de arte. Mulheres têm reações muito estranhas.
Mas o que existe em você que tanto mobiliza o sexo feminino?
Eu não sei. E você já deve ter passado por isso. Às vezes, na rua, você vê aquela mulher extraordinária, espetacular, com um fulano que você pensa: o que ela está fazendo com esse tipo? Por algo será! E nem sempre por aquilo que a gente normalmente imagina. As mulheres têm uma leitura muito mais profunda e delicada da vida, das pessoas e dos acontecimentos.
Pode exemplificar?
Nós somos muito mais pragmáticos, enquanto as mulheres são mais misteriosas. As coisas com elas funcionam de outra maneira.
Muitos de seus personagens são indivíduos desajustados, antipáticos, toscos, perdedores. Tem algum com quem você se identifica mais?
O [diretor e roteirista Juan José] Campanella escreveu quatro filmes – O Mesmo Amor, a Mesma Chuva, O Filho da Noiva, Clube da Lua e O Segredo dos Seus Olhos – pensando em mim. Então não seria uma loucura pensar que os personagens que ele escreve se parecem comigo.
O Campanella, inclusive, já o comparou ao [ator italiano] Nino Manfredi.Ele está louco, louco! Já me comparou também a James Stuart, a [Vittorio] Gassman. Sempre te comparam a alguém.
E você se compara com quem?
Com ninguém. O ser humano tem essa necessidade de ser comparado para saber se está melhor ou pior. Não faz sentido. Eu não me comparo a ninguém e nem quero parecer ninguém. Não creio ser um fenômeno.
Nem com o seu pai?
Não. Meu pai era totalmente distinto. Era tremendo. Esse era o meu pai [Darín levanta da cadeira onde está sentado e dirige-se a um aparador de onde traz uma foto em preto e branco, emoldurada, do seu pai em traje de gala, com um ar existencialista, dançando em uma festa na companhia de uma mulher desprovida de grandes atributos estéticos]. Não, não! Este era o meu pai! [apontando a mulher] [risos].
Você realmente parece não levar a sua profissão a sério, não é?
Ser ator é uma profissão em que o narcisismo e a egolatria estão em primeira ordem. Chega alguém e diz que você é um fenômeno e você gosta, afinal faz bem para o ego, e começa a acreditar que realmente é um fenômeno. Minha luta sempre foi contra isso. O inimigo número um do ator é o ego, o narciso que temos dentro da gente. Tem que manter esse sujeito com o pé no pescoço e imobilizado no chão, porque, quando ele se levanta, vira um monstro.
A impressão que tenho é de que você, no bom sentido, sempre atribui aos outros o seu sucesso: o diretor, o roteiro, a equipe, até os golpes de sorte da vida.
Trabalhar com gente de qualidade ajuda a elevar a tua própria qualidade. Ninguém pode ficar com o prêmio para si mesmo. É injusto. Atores são a parte visível de um filme, então fica mais simples dizer: “Ah, eu adoro o filme do fulano!” Mas ali trabalharam 150 pessoas. Profissionais que tiveram que quebrar a cabeça, que passaram dias na moviola, fazendo a trilha… Eu não posso, então, chegar ao ponto de ser tão atrevido, desrespeitoso de achar que o mérito é apenas meu quando há 150 pessoas atrás da câmera fazendo com que eu pareça mais interessante e charmoso do que eu sou.
Você dá muito palpite?
Opino, me meto, discuto, sugiro, brigo. Mas eu diria que sou mais um dialoguista – ajudo, e gosto, de reescrever diálogos. Não se trata de uma exigência particular, e sim de uma questão orgânica. Um ator dificilmente pode estar bem em cena se estiver fazendo algo em que não acredita. O que não significa que ele tenha que pensar como pensa o personagem. Mas, sim, deve acreditar no que está dizendo. E, para isso, é necessário que o texto seja o mais próximo do natural. Às vezes uma palavra escondida no meio de uma fala vira um obstáculo. E ninguém sabe que o problema está ali até que se descubra. É como o ouvido natural dos músicos.
Com quantos anos você começou a trabalhar?
Aos 8, fazendo radionovela. Mas apareci pela primeira vez na televisão aos 2 e meio, em uma cena com os meus pais. Depois do rádio fiz dublagem de filmes infantis, televisão, comerciais. E nos anos 70 comecei a fazer alguns filmes, participações muito pequenas, e depois mais teatro e televisão. Aos 20 anos tive um golpe de sorte grande com um programa de televisão, que fez estrondoso sucesso na Argentina, junto com outros jovens atores.
O que lembra dessa época?
Era muito divertido. Ríamos muito. E, além da TV, tínhamos uma equipe de futebol chamada Los Galancitos. Jogávamos em benefício de vários hospitais da Argentina. Lotávamos estádios. Certa vez fizemos um jogo para 35 mil pessoas. Estávamos convencidos de que também éramos atletas profissionais.
E isso durou quanto tempo?
Mais de dez anos! Fazíamos teatro e televisão durante a semana e jogávamos bola nos fins de semana. E todo o resto do tempo com meninas, sem parar. Foi uma época, digamos, muito agitada.
Devia ser uma vida dos sonhos para um rapaz de 20 e poucos anos.
Era preciso ter muito preparo físico [risos].
E do que você mais sente falta daquela época?
Dos meus joelhos!
- Por: Ricardo Moreno | Fotos: Enrico Fantoni, no site da Playboy