segunda-feira, 23 de setembro de 2013

“Americanos e russos são dois lados da mesma moeda”, diz ativista síria

“Americanos e russos são dois lados da mesma moeda”, diz ativista síria


Samir Oliveira no SUL21
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Não havia problema em sair, mas eu não poderia voltar. Se quisesse voltar, teria que ser clandestinamente” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
A ativista síria Sara al-Suri esteve no Brasil durante o ano passado e retornou recentemente ao país com a intenção de promover campanhas políticas contra a ditadura de Bashar al-Assad. Ex-funcionária da ONU em Damasco, ela deixou a Síria em março de 2012 e sua família precisou abandonar o país há sete meses. Com 25 anos de idade, Sara cursava Ciência Política e Sociologia na Síria.
Sara al-Suri observa que os Estados Unidos e a Rússia são “dois lados da mesma moeda” no que diz respeito às negociações em torno do regime sírio. Para ela, as duas potências desejam articular uma negociação política para a saida de Bashar al-Assad do governo. “Todos gostariam de fazer com que Bashar al-Assad, os rebeldes e a oposição burguesa simplesmente sentassem em uma mesa, apertassem as mãos, agendassem eleições para 2014 e fingissem que está tudo resolvido”, critica. Para ela, essa solução apenas levaria a uma “cosmética transição de governo dentro de um país que está em guerra”.
Nesta entrevista ao Sul21, concedida durante sua passagem por Porto Alegre na semana passada, Sara al-Suri também fala sobre a situação das mulheres na Síria. Ela ressalta que tanto os rebeldes quanto os soldados do governo são machistas. “O que a revolução fez foi dar a nós, mulheres, uma chance de sermos ativistas, de lutarmos contra a opressão, contra a exploração e contra a marginalização. Porém, é um engano pensar que a revolução, por si só, nos libertou”, comenta.
“Quanto mais comparecia aos protestos, mais eu conhecia pessoas que não encontraria na universidade ou através dos meus amigos. Era um contexto social completamente diferente”
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“O primeiro protesto que eu participei ocorreu no dia 8 de março de 2011″ | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – De que lugar da Síria tu és e quando começaste a lutar contra o regime?
Sara al-Suri - Sou de Damasco, a capital. O primeiro protesto que eu participei ocorreu no dia 8 de março de 2011. Era uma manifestação em favor dos revolucionários líbios, em frente à embaixada da Líbia. Éramos um grupo de aproximadamente 50 a 60 pessoas. Foi um evento muito pequeno e insignificante comparado ao que aconteceu depois, mas muitos de nós fomos presos. Alguns foram presos por poucas horas, outros por alguns dias. Esse foi meu primeiro protesto antes da verdadeira revolução de massa, que começou no dia 15 de março na cidade da Daraa, no sul do país.
Sul21 – O que tu fazias na Síria?
Sara - Eu trabalhava na ONU e era estudante: graduanda em Ciência Política e mestranda em Sociologia. Eu também trabalhava para o World Food, programa de alimentação das Nações Unidas.
Sul21 – Por que e quando tu saíste do país?
Sara - Deixei a Síria em março de 2012. Não havia problema em sair, mas eu não poderia voltar. Se quisesse voltar, teria que ser clandestinamente. No início, minha atuação na Síria era focada na participação nos protestos. Depois, acabei me dedicando ao Comitê de Coordenação Local em Rukn Eldin – um bairro na área central de Damasco -, organizando manifestações, escrevendo panfletos, fazendo campanhas para a liberação de detidos.
Sul21 – Como está a situação deste bairro atualmente?
Sara - Atualmente é uma das maiores áreas armadas dentro de Damasco em que o regime ainda não conseguiu intervir. É um bairro de classe trabalhadora. No início, eu não me senti muito confortável lá. Meu primeiro contato com a revolução envolveu intelectuais e artistas que apoiavam o processo na Líbia. Porém, quanto mais eu comparecia aos protestos, mais eu conhecia pessoas que não encontraria na universidade ou através dos meus amigos. Era um contexto social completamente diferente. Foi aí que comecei meu ativismo. Não íamos ao centro de Damasco, mas, sim, às partes periféricas da cidade, especificamente a um local chamado Dummar, que é agora uma zona liberada. Era muito interessante, pois as pessoas saíam das áreas centrais da cidade para juntarem-se a esses protestos na periferia, já que Damasco ainda estava sob forte controle do regime.

“Na Síria a relação entre o regime e o Estado é muito mais próxima. É impossível derrubar o regime ou o governo sem fazer cair todo o sistema”

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Ficamos muito felizes por tudo ter começado na Tunísia” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Qual foi o sentimento das pessoas na Síria quando a primavera árabe começou, quando os primeros protestos tomaram conta da Túnisia?
Sara - Foi inacreditável, porque não podíamos nem comemorar publicamente. Ficamos muito felizes por tudo ter começado na Tunísia. (Mohamed) Bouazizi (o cidadão tunisiano que colocou fogo no próprio corpo) se tornou uma figura importante na Síria, todos usavam sua foto. O regime foi tolo o bastante de permitir isso. O clima ainda era de segurança, então podíamos falar sobre isso, desde que não publicamente. Quando Mubarak caiu no Egito, lembro que as pessoas trocavam mensagens de texto utilizando uma expressão em árabe em que uma pessoa diz “parabéns” e a outra responde “espero que você seja o próximo”. É uma expressão utilizada para felicitações em casamentos e nascimentos de crianças. Foi assim que celebramos em Damasco.
Sul21 – Por que você acha que esses protestos se transformaram em um processo revolucionário mais radical na Síria?
Sara – Penso que a Líbia e a Síria passaram por processos muito similares. Talvez na Líbia o fator “tempo” torne isso um pouco difícil de visualizar, já que lá o processo foi mais veloz. Lá, o regime era mais fraco, menos enraizado, havia os fatores do óleo e do petróleo e houve a intervenção da OTAN. A OTAN se dizia a favor dos rebeldes, mas de maneira alguma sua ação teve efeito na vitória da revolução. Na Síria, o regime é mais poderoso e possui mais aliados em nível regional e internacional — não somente a Rússia. Até o ano passado, os Estados Unidos davam declarações muito tímidas acerca do regime sírio e da revolução. Dizer que os únicos aliados do regime eram a Rússia, o Irã e o Hezbollah é subestimar totalmente o papel dos Estados Unidos no seu fortalecimento, tanto histórica quanto atualmente. Por que se tornou um processo mais radical? Porque na Síria a relação entre o regime e o Estado é muito mais próxima. É impossível derrubar o regime ou o governo sem fazer cair todo o sistema. No Egito, isso é possível, o que significa que a revolução continua e ainda tem um longo caminho a percorrer. Mas na Síria a natureza do regime e a relação que ele tem com o Estado é muito mais forte e ditatorial. O Estado foi construído com base no regime. Não há possibilidade de uma derrubada parcial, ao menos não no sentido de uma revolução democrática. Não se pode derrubar Bashar al-Assad sem desconstruir toda a pirâmide da ditadura.
Sul21 – Tu tiveste a oportunidade de ir até as chamadas “zonas liberadas” da Síria, aquelas áreas sob o controle dos rebeldes. Como é a vida nestes territórios?
Sara - Existem dois tipos de zonas liberadas. Há estados inteiros que já estão liberados e há certas áreas dentro de alguns estados. Existem mais áreas livres no norte e nordeste da Síria do que no sul ou nas fronteiras de Damasco. Em Damasco, temos algumas zonas que estão liberadas, mas sitiadas, já que o regime as cerca. São áreas muito importantes. No norte, temos uma cidade que está completamente liberada. Outra cidade, Aleppo. está repartida ao meio. Hoje existe a Aleppo ocidental e a Aleppo oriental, com estilos de vida diferentes. A travessia entre essas áreas é muito perigosa, há franco-atiradores do regime nas fronteiras. As pessoas estão divididas entre essas zonas. Há famílias de um lado e de outro. Aleppo é uma cidade histórica muito importante que vivenciou uma batalha bastante forte, e os combates ainda estão acontecendo. Trata-se de um grande centro econômico, talvez o maior da Síria, então o regime tem uma relação muito forte com a burguesia local. Ao contrário de Damasco, onde a maioria dos rebeldes é da cidade, em Aleppo aqueles que a liberaram são pessoas do interior do país. Lá a situação é um pouco frágil.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Eu diria que pelo menos 45% do país está liberado, mas é uma estimativa precária” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – É possível estimar a quantidade de território que está nas mãos dos rebeldes?
Sara - Se formos falar não de cidades, mas sim de territórios, eu diria que pelo menos 45% do país está liberado, mas é uma estimativa muito precária, pois,às vezes, esse número avança e, às vezes, retrocede. Os números em si não representam nada. Por exemplo, um deserto sob controle dos rebeldes não faz diferença nenhuma. Mas um pequeno aeroporto militar controlado pelos rebeldes vale por uma cidade inteira. Trata-se mais de uma liberação estratégica do que simplesmente geográfica.

“Somos nós, mulheres, que decidimos onde queremos ir. Não são os homens, quer sejam revolucionários ou não, que decidirão por nós.”

Sul21 – Qual vem sendo o papel das mulheres neste processo e como a vida delas tem sido alterada com a revolução?
Sara – Não podemos presumir que a ordem social que existia durante o regime seja completamente diferente daquela que estamos vivenciando durante a revolução. O que a revolução fez foi dar a nós, mulheres, uma chance de sermos ativistas, de lutarmos contra a opressão, contra a exploração e contra a marginalização. Porém, é um engano pensar que a revolução, por si só, nos libertou. Ela nos libertou politicamente, mas cabe a nós organizarmo-nos e combatermos o machismo. O revolucionário, a quem eu respeito, e o soldado, que é meu inimigo, têm uma coisa em comum: ambos são machistas. Algumas mulheres, depois da libertação, juntaram-se aos combates. Algumas estão atuando através do jornalismo, algumas estão nos comitês de organização local… As mulheres estão atuando em todos os ambientes. Mas, ao mesmo tempo, há certas vilas na Síria que continuam extremamente rurais e extremamente retrógradas, mesmo depois da revolução. Se formos à área rural de Aleppo, constataremos que lá pouca coisa mudou. Há uma revolução e, nesse momento, as mulheres precisam se politizar e se organizar a fim de conseguir o que não poderia ser feito durante o regime de Bashar al-Assad. A questão maior não é em si a emancipação da mulher, mas. Sim, a nova capacidade de o sexo feminino participar da espera política do país.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Quando eu estava em uma área liberada, meu próprio irmão estava segurando uma arma, mas eu me senti muito desconfortável”| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – As mulheres estão se dando conta dessa situação e estão se organizando?
Sara - Sim, mas em certas áreas isso é mais difícil. Isso porque o próprio militarismo é um fenômeno muito machista. Mesmo os rebeldes revolucionários são, por definição, machistas. Quando eu estava em uma área liberada, meu próprio irmão estava segurando uma arma, mas eu me senti muito desconfortável. Afinal de contas, existe essa impressão de que a arma é uma extensão do pênis do homem, e isso é intimidador. Não que eu não esteja disposta a pegar em uma arma e lutar, mas os homens de lá não são simultaneamente rebeldes e ativistas sociais. Na Síria, existe um conservadorismo social. A exploração da mulher e da mulher trabalhadora ocorre não somente dentro dos moldes do capitalismo – com sua proteção à unidade familiar – mas, também, em diferentes setores religiosos que reafirmam o papel secundário da mulher. O problema é que o regime de Bashar al-Assad era concebido como laico, e isso é uma verdade apenas parcial. O regime, por ter um imenso setor público, empregou várias mulheres. Então, para alguns, a emancipação das mulheres está associada com a ditadura, enquanto que a ideia de voltar aos tempos antigos, quando a mulher era mantida dentro de casa, é vista por esses setores como um avanço. É essa mentalidade que temos que combater. Bashar al-Assad nunca foi realmente um libertador. Ele é tão opressor e machista quanto qualquer outro homem da sociedade síria. Somos nós, mulheres, que decidimos onde queremos ir. Não são os homens, quer sejam revolucionários ou não, que decidirão por nós. É um processo longo, está muito longe de terminar e vai ser muito difícil, mas pelo menos agora temos, em algumas áreas, a liberdade política para começar essa luta.

“As mulheres estão atraídas pela revolução porque sentem que se trata não somente da libertação de uma ditadura política, mas, também, da chance de se livrar da própria sociedade patriarcal”.

Sul21 – Tu achas que é possível transformar o processo revolucionário em um processo que também confira autonomia e liberdade às mulheres?
Sara – É um processo que pode nos dar a liberdade política para sermos capazes de trabalhar pela libertação. Em árabe, a palavra “revolução” é feminina. As mulheres estão atraídas pela revolução porque sentem que se trata não somente da libertação de uma ditadura política, mas, também, da chance de se livrar da própria sociedade patriarcal. Existe esse sentimento, mas há muitos desafios. O desafio da superação do regime; o desafio da superação de uma sociedade patriarcal e retrógrada; o desafio da questão religiosa — independentemente de ser islâmica ou não –, já que a religião representa uma proteção à unidade familiar e, portanto, reafirma o papel secundário da mulher. Temos uma série de desafios. Será uma batalha dura para as mulheres.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Estão enfrentando outra espécie de força opressora, que é o fundamentalismo religioso” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Qual é o programa político dos rebeledes?
Sara - Não há um programa político muito articulado. Há muito poucos partidos políticos oficiais na Síria e muitos destes partidos com um programa político não se engajariam na revolução. Porém, há um processo em curso no qual mesmo os rebeldes estão sentindo que precisam de um programa. É possível notar isso pelas discussões deles. Eles não necessariamente se dão conta disso, mas o que precisam é de um partido político. O programa deles é derrubar o regime, mas no momento estão enfrentando outra espécie de força opressora, que é o fundamentalismo islâmico, como, por exemplo, a Al-Qaeda. Eles estão sendo confrontados agora, e eu acho isso bom. É melhor que eles sejam confrontados nesse momento do que depois, porque ainda se trata de um processo revolucionário radical. Ao serem confrontados pela presença da Al-Qaeda em suas fileiras, eles se perguntam: “o que é isso, como nós podemos lidar com isso?”. Eles entendem que apenas derrubar o regime não vai ser suficiente. Também precisam lutar contra o fundamentalismo religioso, o Conselho Nacional e a oposição burguesa. Sem que os rebeldes percebam, seus inimigos estão se ampliando. Mesmo que falte experiência política e organizacional, há um processo em curso que está se radicalizando, pelo menos em alguns segmentos dos grupos rebeldes. Se a situação, em termos de guerra, não se deteriorar violentamente, pode haver uma chance. O que está impedindo a vitória não é somente a falta de experiência política, mas sim a própria guerra. Não se tem comida, aviões do governo bombardeiam as áreas sob controle rebelde, há destruição e deslocamentos em massa de refugiados. Uma cidade com 300 mil habitantes rapidamente fica com 70 mil pessoas. São condições muito duras e adversas. Se isso continuar, progredir politicamente será muito difícil. A guerra precisa terminar e Bashar al-Assad precisa ser derrubado para que qualquer progresso político e qualquer programa possa ser desenvolvido pelos rebeldes.

“Não é possível ser verdadeiramente marxista e não apoiar a revolução na Síria”

Sul21 – Como você vê essa possibilidade de uma intervenção militar dos Estados Unidos na Síria?
Sara - Se lermos as declarações oficiais dos Estados Unidos e da Rússia desde que as armas químicas foram usadas pelo governo sírio, poderemos notar que a administração americana está sendo extremamente cuidadosa com suas palavras. Eles dizem: “não iremos derrubar o regime, nós vamos puni-lo com um ataque de forma cirúrgica”. É como se estivessem andando nas pontas dos pés quando se trata da Síria e da revolução. O governo estadunidense não sabe mais o que fazer. Os Estados Unidos levaram um tapa no rosto, já que os limites estabelecidos por Obama foram desrespeitados por Bashar al-Assad. Fica claro que os americanos e os russos querem uma negociação política. Neste momento, eles são dois lados da mesma moeda. Nem os Estados Unidos, nem a Rússia querem uma quebra radical do status quo. Ninguém quer ficar inseguro quanto ao que acontecerá nos próximos anos. Todos gostariam de fazer com que Bashar al-Assad, os rebeldes e a oposição burguesa simplesmente sentassem em uma mesa, apertassem as mãos, agendassem eleições para 2014 e fingissem que está tudo resolvido. Porém, isso é ilusão. Mesmo que se tente, não acontecerá. Hipoteticamente, se acontecer, teríamos uma cosmética transição de governo dentro de um país que está em guerra! As cabeças do regime estão cientes de que os Estados Unidos e a Rússia estão muito próximos de chegarem a um acordo. O que me preocupa são os grupos paramilitares de Assad. Se os americanos não atacarem nesse momento, esses grupos vão se sentir fortalecidos. Irão pensar que mesmo Obama não pode derrubar Assad. Neste sentido, creio que ainda veremos muitas atrocidades nas próximas semanas.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“As organizações de esquerda que são contra as revoluções na Síria e na Líbia tornaram-se tão burocratizadas que se afastaram da massa de trabalhadores que dizem representar” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Como tu vês os posicionamentos de organizações de esquerda a respeito do que vem acontecendo na Síria? No Brasil, muitos partidos e entidades apoiam o regime.
Sara – Primeiro, há ignorância. Depois, há puro oportunismo. As organizações de esquerda que são contra as revoluções na Síria e na Líbia tornaram-se tão burocratizadas que se afastaram da massa de trabalhadores que dizem representar. Para mim, não são organizações de esquerda. Um militante de um partido comunista brasileiro me disse que a classe trabalhadora que está se juntando à revolução na Síria na verdade é composta por mercenários. Criticam isso enquanto aplaudem o governo brasileiro, que é absolutamente capitalista, baseado na conciliação de classes e não respeita nenhuma minoria: classe trabalhadora, indígenas, negros… São essas pessoas que vêm me dizer que os rebeldes no meu país são mercenários! Não há condições de argumentar. Percorri o Brasil no ano passado em campanha contra o regime sírio e até hoje não conheci nenhum líder de nenhuma organização de esquerda que continuasse apoiando a ditadura depois de saber o que realmente estava acontecendo. Não é possível ser verdadeiramente marxista e não apoiar a revolução na Síria.

“É inconcebível que uma grande potência como o Brasil não tenha uma posição clara sobre a Síria”

Sul21 – Como tu avalias a posição do governo brasileiro a respeito da Síria?
Sara - O governo brasileiro não tem posicionamento. É engraçado… Eu sou uma cidadã síria e meu único passaporte é sírio. Eu tive que implorar pelo visto, tivemos que ligar para amigos que conheciam pessoas e eu precisei esperar na embaixada por sete horas. Foi nojento e muito humilhante. Consegui o visto para apenas um mês, sendo que pretendo ficar no Brasil por um ano. Meu irmão, que é sírio mas também possui passaporte americano, foi até a embaixada brasileira na Turquia e lhe disseram: “não se preocupe, seu visto sairá em cinco dias, está tudo bem”. Então o governo brasileiro não tem posicionamento sobre a Síria. Mas não ter posicionamento já é uma forma de se posicionar. Com relação aos refugiados, é quase impossível para os sírios virem ao Brasil. As pessoas de lá que querem vir ao Brasil são aquelas que costumam ter suas famílias aqui. O governo brasileiro está tornando impossível para os sírios virem ao país e isso é uma das coisas que deveria ser combatida. É algo incompreensível: ser contra o regime de Bashar al-Assad e ao mesmo tempo ser contra os cidadãos sírios. O governo brasileiro afirma que a Síria é um grande país e que precisa ser protegido, mas quando sua população bate às portas do Brasil ele exige que fiquem do lado de fora. Isso é algo muito asqueroso em relação ao Brasil. É inconcebível que uma grande potência como o Brasil não tenha uma posição clara sobre a Síria.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“A história nos prova que mesmo as guerras mais sangrentas podem durar muito” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Quanto tempo tu achas que a guerra ainda poderá durar?
Sara – Acho que pode durar um bom tempo. A história nos prova que mesmo as guerras mais sangrentas podem durar muito. A guerra em sua forma atual talvez não se estenda tanto, mas outras formas de guerra e de caos vão continuar. Mesmo que Bashar al-Assad seja derrubado da presidência, a guerra não acabará. Há grupos paramilitares que não estão dispostos a negociar com ninguém, mesmo que seu presidente esteja. Esses grupos acreditam que a revolução não é uma revolução e que os revolucionários são extremistas sunitas que querem aniquilar todas as minorias religiosas. Eles irão até o fim. Lidar com isso de maneira inteligente também é um desafio para os rebeldes, mesmo que pareça injusto que eles, que estão morrendo, tenham que carregar ainda a obrigação de dizer às pessoas não irão matá-las. Mas precisamos convencer a base social que apoia o regime – pelo menos as pessoas que ainda não sujaram as mãos com sangue – de que Bashar al-Assad não irá protegê-las. Mesmo que elas não se juntem à revolução, pelo menos podem retirar o apoio ao regime. Isso é algo muito difícil. Depois de tanta morte, há muito ódio e sentimentos que nunca serão consertados, especialmente durante esta geração.
Sul21 – Quem está vencendo a guerra atualmente: os rebeldes ou o governo?
Sara – Se levarmos em consideração o equilíbrio de poder, os rebeldes estão perdendo. Mas se você levarmos em consideração o armamento utilizado pelos rebeldes… São armas do tempo da segunda guerra mundial, totalmente disfuncionais. Alguns rebeldes têm armas substanciais, como equipamento antiaéreo, mas são a minoria. Enquanto isso, o regime dispõe de uma poderoa máquina militar. Se considerarmos os equipamentos dos rebeldes e do regime, veremos que a revolução está vencendo. Mas essa é uma equação muito frágil. Precisamos de armas pesadas para que possamos dar um fim nisso. Se a guerra não terminar logo, quanto mais tempo demorar, mais sangrento irá se tornar o confronto e menor será a chance de vitória da revolução. Quem pode fornecer esse aramento para nós? Os Estados Unidos, a Arábia Saudita, o Catar, a Turquia e a França. Esses países não querem armar rebeldes radicais, portanto estamos presos em um ciclo vicioso. Precisamos de armas daqueles que não querem apoiar uma solução radical para o país. É aí que está o perigo: a menos que a revolução seja capaz de avançar e tomar para si o arsenal do regime, o desfecho poderá ser muito ruim.

“Dizem que é uma guerra civil. É a típica retórica despolitizada promovida pelas grandes mídias burguesas”

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Internacionalmente, o noticiário se limita a uma fria contagem do número de mortos” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Como tu avalias a cobertura da mídia – tanto na Síria quanto da imprensa internacional – a respeito do que vem ocorrendo no país?
Sara – Dentro da Síria chega a ser engraçado. A mídia estatal mostra corpos de rebeldes e diz: “nós matamos os terroristas que queriam pegar vocês”, ao som de música nacionalista. Mostram um exército bonzinho e soldados inofensivos indo falar com crianças pequenas. “Terroristas” é o termo mais empregado para se referir aos rebeldes. O regime detém a mídia tradicional: eles têm a TV, as rádios e os jornais. Os rebeldes não têm nada. Há páginas de Facebook e alguns pequenos jornais locais. O poder da retórica do regime com sua mídia e propaganda é muito mais forte do que qualquer coisa que os rebeldes poderiam produzir. É claro que isso tem efeitos na guerra. Internacionalmente, o noticiário se limita a uma fria contagem do número de mortos, sem adentrar nos pormenores da revolução. Se a cobertura é feita de outra forma, geralmente vem de ativistas, e não de grandes veículos de comunicação. Ou temos a velha retórica de guerra civil. Dizem que é uma guerra civil, que existem dois lados, que os sírios estão matando uns aos outros, que está uma bagunça e que os turistas não devem ir até o país. É a típica retórica despolitizada promovida pelas grandes mídias burguesas. Há também a cobertura feita por veículos do Golfo Árabe. Na Arábia Saudita e no Catar acontece o oposto. A revolução é propagandeada, mas a propaganda veiculada é de uma revolução que não é minha. Eles só filmam os islamitas. Há tantos lados na revolução síria que se torna complicado reportar sobre ela. Em menos de um ano se tornou muito mais difícil falar sobre a revolução síria.
Sul21 – O que tu pretendes fazer no Brasil agora que não podes retornar à Síria?
Sara - Vim ao Brasil no ano passado como uma ativista independente. Conheci muitas pessoas da CSP-Conlutas, do PSTU e fiquei impressionada com a sua organização, com seu grande interesse pela revolução síria e pelas lutas no Brasil, apesar de todos os problemas. Eu senti que precisava dessa dessa experiência de organização, então me juntei à Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT). Meu plano nesse momento é ficar no Brasil por um tempo para que eu possa ganhar mais experiência em termos de organização política. Na próxima semana, outro rebelde chegará ao Brasil. É um jovem de 22 anos que deixou sua universidade, lutou nas linhas de frente e fez parte de um conselho local. Ele é líder de uma das brigadas e passará pelo Brasil, pela América Latina e espero que também pela Europa, tentando estabelecer mais conexões. Sei que o Brasil é um país muito distante da Síria. As pessoas me perguntam por que não fui à Europa. Há organizações de esquerda na Europa. Elas são muito propagandistas e dão declarações muito bonitas. Mas as únicas organizações de esquerda que realmente apoiaram a revolução síria não só politicamente como materialmente foram a LIT e a CSP-Conlutas. Solidariedade não são só palavras, precisamos de dinheiro.

Sul21 – Tua família ainda está na Síria?
Sara – A minha família está em Beirute, no Líbano. Eles deixaram a Síria há sete meses. Meu irmão estava até agora lutando na linha de frente, mas acabou de conseguir o visto e está vindo para o Brasil.

Chomsky: “Enquanto a Síria se suicida, Israel e EUA desfrutam do espetáculo”

Chomsky: “Enquanto a Síria se suicida, Israel e EUA desfrutam do espetáculo”

Em entrevista exclusiva para o portal britânico Cessar Fogo (Ceasefire), o renomado intelectual Noam Chomsky falou com Frank Barat sobre a situação atual no Médio Oriente, em particular a crise da Síria, as negociações de paz entre Israel e os palestinianos e o papel do poder dos EUA na região. “Se os EUA e Israel quisessem ajudar os rebeldes – não o fazem – poderiam fazê-lo sem intervenção militar”.
Qual é a definição das negociações entre Israel e Estados Unidos e porque a Autoridade Palestina (AP) continua a prestar-se a isso?
Do ponto de vista dos EUA, as negociações são, com efeito, um caminho para Israel continuar a sua política de tomar sistematicamente tudo o que quiser na Cisjordânia, mantendo o assédio brutal de Gaza, separando Gaza da Cisjordânia e, claro, ocupando os Montes Golã sírios, tudo com pleno apoio dos EUA. E o marco das negociações, igualmente aos últimos 20 anos de experiência de Oslo, simplesmente proporcionou o encobrimento desta situação.
Em sua opinião, por que a Autoridade Palestina (AP) continua a jogar esse jogo?
Provavelmente, em parte, por desespero. Podemos nos perguntar se é a decisão correta, mas ela não tem muitas alternativas.
Definitivamente, a AP aceita esse marco apenas para sobreviver?
Se ela se nega a negociar, tal como propõem os Estados Unidos, a sua base de apoio seria derrubada. A AP sobrevive essencialmente à base de doações. Israel assegurou que ela não tenha uma economia produtiva. É uma espécie do que em ídiche se chamaria “Sociedade Schnorrer”: pede emprestado e vive do que puder conseguir.
Se a AP tem outra alternativa, não está claro, mas se rejeitar a exigência dos EUA de acudir às negociações em condições totalmente inaceitáveis, a sua base de apoio iria erodir-se. E não tem apoio – externo – suficiente para que a elite palestiniana possa viver de maneira bastante decente – por tabela pródiga – no seu estilo de vida, enquanto a sociedade que a rodeia cai aos pedaços.
Desse modo, seria negativa a queda e desaparição da AP, depois disso tudo?
Depende do que vier a substituí-la. Se fosse permitido a Marwan Barghouti, por exemplo, unir-se à sociedade da forma como fez, por exemplo, Nelson Mandela, poderia ter um efeito dinamizador na organização de uma sociedade palestiniana, que poderia pressionar por exigências mais importantes. Mas lembre-se que eles não têm muitas opções.
De facto, se nos remetemos ao princípio dos Acordos de Oslo, há 20 anos, havia negociações em curso, as negociações de Madrid, nas quais a delegação palestiniana era encabeçada por Haider Abdel-Shafi, uma figura muito respeitada da esquerda nacionalista palestiniana. Abdel-Shafi negava-se a aceitar os termos dos EUA e Israel, que lhes permitiam fundamentalmente a continuidade da expansão dos colonatos. Negou-se, e as negociações estancaram sem chegar a lugar algum.
Enquanto isso, Arafat e os palestinianos do exterior foram paralelamente a Oslo, ganharam o controlo e Haider Abdel-Shafi opôs-se de forma tão contundente que nem sequer se apresentou à dramática cerimónia sem sentido, onde Clinton sorria enquanto Arafat e Rabin apertavam as mãos. Abdel-Shafi não se apresentou porque se deu conta de que era uma traição absoluta. Mas baseava-se em princípios e, portanto, não poderia chegar a nenhuma parte, a menos que conseguisse um importante apoio da União Europeia, dos Estados do Golfo e em última instância dos EUA.
O que acha que realmente está em jogo na Síria neste momento e o que significa para a região em geral?
A Síria está a suicidar-se. É uma história de terror e cada vez está pior. Não há uma saída no horizonte. O que provavelmente acontecerá, se continuar assim, é que a Síria será dividida em três regiões: uma região curda – que já está a formar-se – que poderia separar-se e unir-se de alguma maneira ao semi-autónomo Curdistão iraquiano, talvez com algum tipo de acordo com a Turquia.
O resto do país se dividiria entre uma região dominada pelo regime de Assad – um regime brutal, horrível – e outra secção dominada pelas diversas milícias, que vão desde o extremamente nocivo e violento até ao secular e democrático. Se olharmos o que saiu no New York Times, há uma citação de um funcionário israelita que expressa essencialmente a sua alegria de ver os árabes massacrando-se uns aos outros.
Sim, eu li.
Para os Estados Unidos, assim está bom, não querem outro tipo de saída. Se os EUA e Israel quisessem ajudar os rebeldes – não o fazem – poderiam fazê-lo, inclusive, sem intervenção militar. Por exemplo, com Israel mobilizando forças nos Montes Golã (claro, são as montanhas do Golã da Síria, mas por agora o mundo, mais ou menos, tolera ou aceita a ocupação ilegal de Israel). Se fizessem isso, obrigariam Assad a mover forças até ao sul, o que aliviaria a pressão sobre os rebeldes. Mas não há nenhum indício sequer disso. Mesmo assim, não estão a dar ajuda humanitária à grande quantidade de refugiados que sofrem, não estão a fazer nenhuma das coisas simples que poderiam fazer.
Tudo isso sugere que tanto Israel como os EUA preferem exatamente o que está a acontecer, tal como informava o NYT que mencionámos. Enquanto isso, Israel pode celebrar, a sua condição do que chamam de “cidade na selva”. Houve um interessante artigo do editor do Haaretz, Aluf Benn, que escreveu sobre como os israelitas vão à praia, desfrutam e congratulam-se de serem uma “cidade na selva”, enquanto as bestas selvagens de fora se desgarram entre si. E, claro, Israel, sob essa imagem, não está a fazer nada, exceto defender-se. Eles gostam dessa imagem e os EUA tampouco parecem muito descontentes com ela. O resto é conversa.
Assim, podemos falar de um ataque dos EUA, você acredita que ocorra?
Um bombardeamento?
Sim.
É uma espécie de debate interessante nos Estados Unidos. A ultra-direita, os extremistas da direita, que são uma espécie de espectro internacional, opõem-se, ainda que não seja pelas razões que me agradariam. Opõem-se porque pensam: “por que se dedicar a resolver os problemas dos outros e perder os nossos próprios recursos?” Estão literalmente a perguntar: “quem nos vai defender quando nos atacarem, se nós mesmos estamos dedicados a ajudar outros países, no estrangeiro?” Essa é a ultra-direita. Se nos fixamos na direita “moderada”, gente como, por exemplo, David Brooks, do New York Times, considerado um comentarista intelectual de direita, o seu ponto de vista é de que o esforço dos EUA em retirar as suas forças da região não está a ter um “efeito moderador”. Segundo Brooks, quando as forças norte-americanas estão na região, isso tem um efeito moderador, melhora a situação, como se pode ver no Iraque, por exemplo. Mas se vamos retirar as nossas forças, então já não somos capazes de moderar e melhorar a situação.
Essa é a visão normal da direita intelectual na corrente principal, os democratas liberais e outros. De modo que há um monte de indagações sobre como “devemos exercer a nossa ‘responsabilidade de proteger’”. Bom, basta dar uma olhada nos registos históricos dos EUA sobre a ‘responsabilidade de proteger’. O facto, inclusive, de dizer tais palavras revela algo de, certamente, insólito nos EUA e, de facto, na cultura moral e intelectual do Ocidente.
Isso é, à parte do facto em si, uma grave violação do direito internacional. A última linha de Obama é que ele não estabeleceu uma “linha vermelha”, mas que o mundo a estabeleceu, por meio das suas convenções sobre a guerra química. Bom, na verdade o mundo tem um tratado, que Israel não assinou e que os EUA descuidam totalmente – por exemplo, quando apoiaram o uso, realmente horrível, de armas químicas por Saddam Hussein. Hoje, isso é utilizado para denunciar Saddam Hussein, ignorando o facto de que não só se tolerava, mas, basicamente, havia o apoio do governo de Reagan. E, claro, a convenção não tem mecanismos de aplicação de sanções.
Tampouco existe o que se denomina ‘responsabilidade de proteger’, isso é uma fraude promovida na cultura intelectual do Ocidente. Há um conceito, na verdade dois: um aprovado pela Assembleia Geral da ONU, que se refere à ‘responsabilidade de proteger’, mas que não oferece nenhuma autorização a qualquer tipo de intervenção, exceto nas condições da Carta das Nações Unidas. Outra versão, que se aprovou só por parte do Ocidente, os EUA e os seus aliados, que é unilateral e diz que tal responsabilidade permite a “intervenção militar das organizações regionais na região da sua autoridade, sem a autorização do Conselho de Segurança”.
Pois bem, traduzindo, isso significa que se proporciona a autorização aos EUA e à NATO de utilizarem a violência aonde quiserem, sem autorização do Conselho de Segurança. Isso é o que se chama ‘responsabilidade de proteger’ no discurso ocidental. Se não fosse tão trágico, seria ridículo.
Frank Baraté coordenador do Tribunal Russell sobre a Palestina. O seu livro “Gaza in Crisis: Reflections on Israel's War Against the Palestinians”, com Noam Chomsky e Ilan Pappe, já está disponível. A edição francesa do livro, publicada em 2013, conta com uma extensa entrevista com Stephane Hessel.
Entrevista originalmente publicada no portal Ceasefire. Tradução para espanhol de Rebelióne para português de Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

‘Precisamos rediscutir o modelo de sociedade, antes de determinar a forma de eleição de políticos’



ESCRITO POR VALÉRIA NADER E GABRIEL BRITO, DA REDAÇÃO
 do CORREIO DA CIDADANIA





Ainda estamos no calor da onda de manifestações que fazem crer em novos rumos para o país, a despeito do desconcerto que ainda afeta os governos instituídos, incapazes sequer de abrir mão da repressão militar nas ruas, enquanto desengavetam propostas há muito tempo fora de suas pautas, postas à mesa com pressa jamais vista.

Para comentar um pouco sobre o mês que abalou as estruturas do país, e também sobre a propalada reforma política, agora entusiasticamente oferecida por Dilma, o Correio da Cidadania entrevistou o jurista e livre docente da USP, Jorge Luiz Souto Maior.

Para Souto Maior, o atual momento “ficará para a história como um momento de ruptura, de transformação por parte sociedade brasileira, que não será mais a mesma, certamente. Também não serão mais as mesmas as instituições brasileiras, que sentiram fortemente o peso da manifestação popular”, resume.
O jurista enfatiza, no entanto, que as manifestações populares exigem, em seu fundo, uma maior intervenção social do Estado, no sentido de organizar e promover adequadamente os serviços públicos e essenciais. Além de mencionar que os acenos dados até agora pelo governo neste sentido são muito genéricos, faz uma importante  advertência quanto ao tema para o qual mais se voltou o governo até o momento, e aquele que tem recebido maior cobertura na mídia corporativa,  a reforma política.  “Precisamos discutir que modelo de sociedade nós queremos, pra determinar a medida da atuação que se deseja dos políticos e do governo. Penso que a questão, já posta na mesa, sobre a participação mais ativa do Estado nos temas que dizem respeito aos direitos sociais e à economia é algo mais importante do que simplesmente determinar a forma de eleição dos políticos”.

Quanto à ideia de uma Assembleia Constituinte para levar adiante uma reforma política, seja ela instituída de forma ampla  - uma forma de, justamente, levar a cabo uma revisão mais profunda do modelo de sociedade -, seja de forma específica - convocada por Emenda Constitucional, de acordo com a Constituição -, Souto Maior não a enxerga como oportuna. “Creio que essa reforma política pode ter a necessidade de uma constituinte, mas a proposta parcial – fora de um contexto, digamos, revolucionário, e pura e simplesmente dentro de um acerto do modelo de sociedade que aí está – é muito perigosa, na medida em que se abre a porta para a fragilidade da Constituição como um todo, tanto daquilo que ela tem de ruim como também daquilo que tem de bom. E a Constituição de 1988, é importante lembrar, fez parte de um pacto de reconstrução da sociedade brasileira, na forma de um Estado Social-democrático, que na realidade ainda não foi implantado (...) Ainda precisamos implantar a Constituição de 1988”.

O jurista não teme, finalmente, por retrocessos, uma vez que, acima de tudo, o povo tomou as ruas para colocar suas urgências em pauta, como há muito não se via. “Tais reivindicações de massa representaram uma espécie de sepultamento da lógica neoliberal”, completa, complementando que o atual momento deve ser visto também pela perspectiva da crise internacional do capitalismo e seu modelo de sociabilidade e produção, em última análise, o autêntico estopim da revolta.

A entrevista completa com Jorge Luiz Souto Maior pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como o senhor tem visto e o que significa, em sua análise, o desenrolar dos acontecimentos políticos desde o início das manifestações até o seu atual estágio?
Jorge Luiz Souto Maior: Eu vejo o momento muito positivamente, porque é uma demonstração clara e evidente de que as pessoas em geral perceberam que toda mobilização precisa de luta. E, sobretudo, a população tem utilizado a mobilização para pleitear, com mais força, uma maior participação do Estado na vida social, no sentido da melhoria dos serviços sociais. De certa forma, o momento representa um pouco de saída daquela situação vivenciada até aqui, de isolamento, individualismo e certo egoísmo, trazendo um pouco dos valores da solidariedade a essa sociedade, os quais ela tanto precisa. Eu vejo tudo que ocorreu muito positivamente, do ponto de vista democrático, político e também pela conotação social relevante.

Correio da Cidadania: Acredita que este momento mais efervescente já sofreu algum recuo, um arrefecimento?

Jorge Luiz Souto Maior: A efervescência ainda está presente, mas acho que a tendência é diminuir, pelo que tenho visto. Não porque eu queira que diminuam os volumes de manifestações. De toda forma, o que já ocorreu não ficará para a história como algo que passou, simplesmente. Ficará para a história como um momento de ruptura, de transformação por parte sociedade brasileira, que não será mais a mesma, certamente. Também não serão mais as mesmas as instituições brasileiras, que sentiram fortemente o peso da manifestação popular.

O sentimento de força, adquirido pelas manifestações, certamente não ficará perdido mais adiante. Muitas conquistas concretas vieram, embora as reivindicações sejam bastante diversificadas. Houve conquistas e avanços concretos, que se anunciam ainda maiores, como poderemos ver através de uma eventual reforma política. Consequentemente, esses avanços a serem obtidos ficarão como demonstração clara de que as mobilizações sociais são relevantes.

Correio da Cidadania: Quanto à reação e medidas que têm tomado os mandatários, prefeitos, governadores e presidente da República, o que teria a comentar?

Jorge Luiz Souto Maior: Acho que as reações dos governantes, independentemente dos partidos – todos eles, é importante frisar – demonstram uma evolução das manifestações, evidenciando exatamente a conquista do movimento. Porque, num primeiro momento, os governantes desprezaram a força das mobilizações ou quiseram abafá-las, utilizando antigas estratégias de repressão. E tiveram que mudar sua postura, foram forçados a mudar a postura, diante dos eventos que se sucederam e passaram a ser notícia mundial, levando-os a tomarem medidas concretas no sentido de acolher as reivindicações, ou pelo menos parte delas.

Isso mostra, consequentemente, que as mobilizações representaram muitas vitórias e uma delas é exatamente essa: a evolução dos próprios governantes diante das mobilizações sociais, aceitando agora o desafio futuro, em relação ao que vem daqui por diante. Porque as questões colocadas em jogo se anunciam para brevemente, já estão prestes a ocorrerem, ao menos de acordo com o discurso dos próprios políticos.

Qual será a postura dos governantes diante de mobilizações sociais, com reivindicações mais emergentes e mais urgentes, vindas das periferias das cidades, das classes sociais, sobretudo dos trabalhadores? Os movimentos sociais que em grande parte são criminalizados têm agora a importante possibilidade de serem vistos através de suas reivindicações democráticas e também suas mobilizações, dando um impulso ao diálogo e à evolução concreta dos arranjos sociais, políticos e econômicos. Teremos de ver como tudo sucederá. Em princípio, parece que, necessariamente, terá de haver avanços.

Correio da Cidadania: No que se refere especificamente às medidas anunciadas pela presidência da República, para saúde, educação, transportes e sistema político, como você as recebeu, no geral?
Jorge Luiz Souto Maior: É evidente que algumas soluções exigidas nas reivindicações, quanto à saúde pública, educação pública e, sobretudo, o transporte com tarifa zero, não se resolvem de uma hora pra outra. De todo modo, o governo acenou com algumas soluções, que não são nem definitivas nem amplamente satisfatórias, cabendo verificar daqui por diante a eficácia de tais medidas em curto espaço de tempo, a fim de compreendermos se efetivamente representam algum avanço, na perspectiva das reivindicações populares.

Pessoalmente, não sei dizer se as medidas oficiais vão conduzir aos avanços, acho que devem ser feitos acenos maiores, mais abrangentes, mais definitivos. Mesmo assim, essa é uma verificação a ser feita na sequência, pra sabermos se algum desses anúncios representa evolução. Pessoalmente, acredito que são acenos genéricos demais e precisariam de definições mais concretas.

O debate apenas se iniciou e precisa ser aprofundado, não é possível ficar apenas na promessa de que serão destinados, futuramente, determinados valores dos royalties do petróleo, um percentual ‘xis’ do orçamento, para a educação e a saúde. É preciso saber quanto será administrado, de fato, para a educação, a saúde, e como esse dinheiro efetivamente vai ser empregado, quais são as políticas concretas para viabilizar a educação pública de qualidade e o acesso a ela, seja no ensino fundamental, médio ou superior.

Como será, de fato, o acesso à política, à educação e à saúde pública, sobretudo frente ao interesse privado nas áreas da saúde e também da educação?

São questões bastante relevantes para serem tratadas, de forma que não basta apenas destinar dinheiro. É preciso saber concretamente como e se o dinheiro será usado, quais serão exatamente as políticas para a resolução do quadro atual etc.

Correio da Cidadania: No sentido de novas providências a serem tomadas, a reforma política é o tema para o qual mais se voltou o governo até o momento e aquele que tem recebido maior cobertura na mídia corporativa – e, para a sua consecução, foi anunciada pela presidente Dilma até mesmo a tão criticada, e já descartada, Assembleia Constituinte. Como enxerga a necessidade e urgência de se promover uma reforma política em nosso país?
Jorge Luiz Souto Maior: Não tenho conhecimento profundo dessa questão. Eu tenho visto e lido bastante coisa, em geral com as pessoas pautando a reforma política como forma de gerar benefícios ao país, na perspectiva de melhorar as formas de representação. Vejo discussões sobre como os políticos poderiam representar mais democraticamente a sociedade, como a eleição poderia ser feita de forma a encontrar representantes ou políticos mais conectados com a vontade popular etc.

De todo modo, não sei se basta. Precisamos discutir que modelo de sociedade nós queremos, pra determinar a medida da atuação que se deseja dos políticos e do governo. Penso que a questão, já posta na mesa, sobre a participação mais ativa do Estado nos temas que dizem respeito aos direitos sociais e à economia é algo mais importante do que simplesmente determinar a forma de eleição dos políticos.

Parece também que se corre o risco de considerar todos os problemas vivenciados na sociedade, em geral, frutos da política e sua representação, como se os problemas decorressem somente da classe política partidária, deixando de lado as discussões mais relevantes, em torno da crise econômica nacional e mundial, que passa pelo modelo capitalista de produção. Ou seja, falta a perspectiva econômica e social, que transcende a atuação coletiva, pura e simples, dos políticos.

A sociedade precisa participar mais ativamente do debate a respeito do modelo de gestão de sua vida, dada a estagnação vivenciada, em nível mundial, pelo modo capitalista de produção, o que consequentemente requer, no mínimo, uma remodelação, chegando à sua reavaliação profunda.

Correio da Cidadania: Ainda a respeito da reforma política, muitos advogam que seria de fato mais efetiva uma Constituinte do que um instrumento limitado, para muitos oportunista, como o plebiscito: existem dede os que defendem uma ampla Constituinte -  uma forma de, justamente, levar a cabo uma revisão mais profunda do modelo de sociedade -, até aqueles que propõem uma “assembleia constituinte (revisora) específica, convocada conforme a Constituição, por Emenda Constitucional, para conectar as instituições políticas da República com o povo, que é o poder constituinte real” - conforme chegou a clamar o governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro. Como o senhor se posiciona nesse debate?
Jorge Luiz Souto Maior: O momento de realizar uma constituinte, pelo que tenho visto, em termos de necessidade, parece não existir. Creio que essa reforma política pode ter a necessidade de uma constituinte, mas a proposta parcial – fora de um contexto, digamos, revolucionário, e pura e simplesmente dentro de um acerto do modelo de sociedade que aí está – é muito perigosa, na medida em que se abre a porta para a fragilidade da Constituição como um todo, tanto daquilo que ela tem de ruim como também daquilo que tem de bom. E a Constituição de 1988, é importante lembrar, fez parte de um pacto de reconstrução da sociedade brasileira, na forma de um Estado Social-democrático, que na realidade ainda não foi implantado. Vejo muito por esse aspecto: ainda precisamos implantar a Constituição de 1988, de fato, na sociedade, realizando melhorias na vida através dela.

Ressalto que a melhoria do atual modelo de sociedade requer outras avaliações, requer uma reparticipação, uma repactuação, que precisaria ser muito discutida, muito pensada e muito idealizada, passando por uma avaliação profunda da sociedade brasileira. E simplesmente utilizar uma Constituinte, numa perspectiva parcial, sem uma discussão mais ampla, não é o melhor caminho.

Encaminhar o plebiscito, sugerido pela presidente, me parece melhor e mais adequado, podendo também surtir efeitos relevantes, neste caso atraindo as pessoas para as ruas para um debate político concreto, elevando o nível da discussão. Isso tem efeito importante. Vejo algumas manifestações contrárias ao plebiscito, pois existem questões complexas sugeridas, e que seriam direcionadas ao voto direto da população. Mas creio que, nesse aspecto, há um certo pré-conceito quanto às possibilidades de compreensão da sociedade, em geral, a respeito de seus próprios problemas.

Penso que a sociedade de hoje, sobretudo os estudantes e jovens, é muito apta e rápida na compreensão das coisas, muito mais inteligente do que já foi no passado, e bastante comprometida, embora tenha quem diga o contrário, que tais jovens não estão aí para nada. Não é verdade. Há certa subestimação sobre o que representa essa movimentação política para os jovens. Creio, portanto, que eles são bastante aptos para conduzirem a discussão.

Correio da Cidadania: Abordando alguns detalhes de uma eventual reforma política, fala-se de voto distrital, voto proporcional em lista fechada, financiamento público de campanha, dentre outros aspectos. O que o senhor comentaria a respeito desses pontos ou priorizaria como elementos essenciais para um reforma política no país?

Jorge Luiz Souto Maior: Escolhendo um ponto, me parece que a questão do financiamento público de campanha é a mais relevante a ser avaliada. Mas, de fato, todos os pontos mencionados têm sua importância.

Correio da Cidadania: Acredita que o atual momento crie circunstâncias políticas favoráveis para se levar a cabo uma reforma política que, ainda que circunscrita pela ordem burguesa, tenha um cunho mais progressista, que combata firmemente a “privatização dos mandatos”, consequentemente contrariando os próprios interesses do sistema econômico vigente?

Jorge Luiz Souto Maior: Eu tenho impressão que sim. Tenho impressão que as forças sociais ou a consciência atual tende, mesmo, para o lado da reivindicação social, dos direitos sociais e uma participação mais ativa do Estado na economia e na realidade social, no sentido da diminuição das desigualdades, evitando a diminuição dos direitos sociais, tal como estamos vivenciando.

Acredito que a sociedade tenderá a uma reforma que vise aquilo que ela desconhecia, e não simplesmente a reafirmação de um modelo econômico neoliberal, o que, afinal, mostrou o momento que estamos vivendo. Acho que tais reivindicações de massa representaram uma espécie de sepultamento da lógica neoliberal.

Desse ponto de vista, a gente só pode ser otimista quanto ao que virá. De todo modo, sendo pessimista ou otimista, acho que o problema não é este. Penso que temos de nos dar a chance de conhecer a fundo a sociedade em que vivemos. Não dá pra ter medo do que virá das manifestações populares, porque, no fim das contas, precisamos conhecer a fundo a nossa sociedade.

Correio da Cidadania: O que vislumbra, finalmente, como o decorrer destes intensos acontecimentos das últimas semanas, para curto e médio prazos?

Jorge Luiz Souto Maior: É muito difícil imaginar. Já é difícil entender o presente, mais difícil ainda prever o futuro. Se nós conversássemos há um mês, arrisco-me a dizer que não estaríamos aqui hoje com essa conversa, com todos os fatos que já ocorreram. Na verdade, não só a sociedade brasileira, mas o modelo de sociedade mundial, caminha a passos largos em direção ao estado de estagnação, em nível de caos mesmo. Bastaria um estopim pra que as coisas se apresentassem, mais precisamente no que diz respeito à realidade social. Foi o que acabou ocorrendo, de certa forma a previsão não era tão difícil de ser feita. Mas, agora, prever o que virá por diante, depois de tudo que aconteceu, é difícil. A única coisa que posso dizer, com muita segurança, é que não haverá um passo pra trás, só para a frente, adiante.

A pior leitura que se pode fazer é dizer que tudo vai voltar ao que era, que nada disso valeu a pena, foi só um fogo de palha. De fato, não vai, e acho que essa previsão é possível fazer. Mas saber qual o limite é uma grande dificuldade, porque acho que os problemas identificados não serão resolvidos rapidamente, a insatisfação permanecerá, outros problemas de natureza social tendem a se manifestar, ainda mais dentro da atual lógica econômica.

A reivindicação sempre vem dentro de outra perspectiva econômica, a de avançar sobre os direitos dos trabalhadores. Se isso se repetir, de que forma os trabalhadores reagirão, de que forma a sociedade vai se mobilizar contra, como se portarão os movimentos sociais, reivindicando moradia, reivindicando justiça social, reivindicando melhores condições de vida, de trabalho, como as respostas serão efetivamente dadas, é toda uma dinâmica que está posta na mesa, ainda sem conclusões.

É uma dinâmica que vai gerar efeitos múltiplos e imprevisíveis. Porque, de toda forma, fingir que essas coisas não estão acontecendo, tal como vivenciávamos até então, fazendo de conta que a sociedade estava coesa, bem unida a partir de um bem comum etc., não é mais uma postura sustentável. Em certo sentido, a sociedade está unida, mas, neste caso, pela busca de uma outra sociedade, uma sociedade que supere todos os problemas que estão postos e identificados. Não é mais possível fingir que tais problemas não existem. De que forma as pessoas mobilizadas se contentariam, eventualmente, com uma não solução dos problemas é algo que não dá pra prever. Mas, certamente, tal dinâmica continuará se desenvolvendo.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Revolução Farroupilha, uma visão crítica...

Até quando vamos endeusar a revolução farroupilha? (Por Juremir Machado)

Até quando?
Todo os anos eu me pergunto: até quando?
Sim, até quando teremos de mentir ou omitir para não incomodar os poderosos individuais ou coletivos?
Até quando teremos que tapar o sol com a peneira para não ferir as suscetibilidades dos que homenageiam anualmente uma “revolução” que desconhecem? Até quando teremos de aliviar as críticas para não ofender os que, por não terem estudado História, acreditam que os farroupilhas foram idealistas, abolicionistas e republicanos desde sempre? Até quando teremos de fazer de conta que há dúvidas consistentes sobre a terrível traição aos negros em Porongos? Até quando teremos de justificar o horror com o argumento simplório de que eram os valores da época? Valores da traição, do escravismo, da infâmia?
Até quando fingiremos não saber que outros líderes – La Fayette, Bolívar, Rivera – outros países – Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia – e outras rebeliões brasileiras – A Balaiada, no Maranhão, por exemplo – foram mais progressistas e, contrariando “valores” da época, ousaram ir aonde os farroupilhas não foram por impossibilidade ideológica? Até quando a mídia terá de adular o conservadorismo e a ignorância para fidelizar sua “audiência”?
Até quando deixaremos de falar que milhões de homens sempre souberam da infâmia da escravidão? Os escravos. Até quando minimizaremos o fato de que a Farroupilha, com seu lema de “liberdade, igualdade e humanidade”, vendeu negros para se financiar? Até quando deixaremos de enfatizar que os farrapos prometiam liberdade aos negros dos adversários, mas não libertaram os seus? Até quando daremos pouca importância ao fato de que a Constituição farroupilha não previa a libertação dos escravos? Até quando deixaremos de contar em todas as escolas que Bento Gonçalves ao morrer, apenas dois anos depois do fim da guerra civil, deixou mais de 50 escravos aos seus herdeiros? Até quando?
Até quando?
Até quando adularemos os admiradores de um passado que não existiu somente porque as pessoas precisam de mitos e de razões para passar o tempo, reunir-se e vibrar em comum? Até quando os folcloristas sufocarão os historiadores? Até quando o mito falará mais alto do que a História? Até quando não se dirá nos jornais que os farroupilhas foram indenizados pelo Império com verbas secretas? Que brigaram pelo dinheiro? Que houve muita corrupção? Que Bento Gonçalves e Neto não eram republicanos quando começaram a rebelião? Que houve degola, sequestros, apropriação de bens alheios, execuções sumárias, saques, desvio de dinheiro, estupros, divisões internas por causa de tudo isso e processos judiciais?
Até quando, em nome de uma mitologia da identidade, teremos medo de desafiar os cultivadores da ilusão? Até quando historiadores como Décio Freitas, Mário Maestri, Sandra Pesavento, Tau Golin, Jorge Eusébio Assumpção, Spencer Leitman e tantos outros serão marginalizados? Até quando nossas crianças serão doutrinadas com cartilhas contando só meias verdades?
Até quando a rebelião dos proprietários será apresentada como uma revolução de todos? Até quando mentiremos para nós mesmos? Até quando precisaremos nos alimentar dessa ilusão?
Até quando viveremos assim?